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An. 1 Simp. Internacional do Adolescente May. 2005

 

Da vulnerabilidade social à vulnerabilidade psíquica: uma proposta de cuidado em saúde mental para adolescentes em situação de rua e exploração sexual

 

 

Bellenzani, Renata; Malfitano, Ana Paula Serrata; Valli, Cristiane Marangoni

Projeto Rotas Recriadas – Campinas/ SP

 

 

Introdução

A experiência que aqui relatamos desenvolve-se no interior do Projeto Rotas Recriadas: Crianças e Adolescentes livres da Exploração Sexual em Campinas-SP1, implementado pela Prefeitura Municipal de Campinas, em uma proposta intersetorial, e reunindo ainda ONG(s) (Organizações Não-Governamentais) locais e o Conselho Municipal de Direitos da Criança e do Adolescente – CMDCA / Campinas.

Tal projeto conta com um financiamento da empresa Petrobras, através dos recursos de isenção fiscal. A equipe da empresa Petrobras – a partir do conhecimento das rotas de exploração sexual de crianças e adolescentes – convidou sete parceiros técnicos no Brasil, dentre eles o Município de Campinas, para implementarem projetos de intervenção e elaboração de metodologias sociais (pesquisa-ação) de enfrentamento ao referido fenômeno (PROJETO ROTAS RECRIADAS, 2004). Este pode ser definido como:

"(...) uma relação de mercantilização (exploração/dominação) e abuso (poder) do corpo de crianças e adolescentes (oferta) por exploradores sexuais (mercadores), organizados em redes de comercialização local e global (mercado), ou por pais, ou responsáveis, e por consumidores de serviços sexuais pagos (demanda)" (LEAL, 2003 p.8).

A exploração sexual comercial de crianças e adolescentes – ESCCA – desdobra-se nas modalidades atualmente constatadas no mundo da economia global: prostituição, turismo sexual, pornografia e tráfico para fins sexuais (LEAL,2003).

Para o estabelecimento de ações neste campo faz-se necessário considerar as multi-causalidades que envolvem a problemática da violência sexual infanto-juvenil2 e a essencial implantação de programas intersetoriais e a construção de redes de serviços, com fluxos complementares (VASCONCELOS E MALAK, 2002).

No âmbito das Políticas Públicas, a institucionalização desse programa no Município de Campinas insere-se no Plano Municipal da Infância e Juventude e no Plano Municipal de Enfrentamento à Violência Sexual Infanto-Juvenil (CÂMARA MUNICIPAL DE CAMPINAS, 2003). Almeja-se que as estratégias traçadas propiciem, com resolutividade, ações na direção da prevenção, do enfrentamento e do cuidado.

Especificamente na esfera da promoção da atenção às crianças e adolescentes em situação de exploração sexual foi criado o Eixo Cuidar3 concebido com o intuito de ofertar para a população-alvo cuidados em saúde, em especial em saúde mental, para apoio, formação de vínculo e auxílio para a construção conjunta e participativa de novos projetos de vida que se traduzam na (re)criação de novas rotas e percursos de suas vidas.

Enquanto estratégia de implementação da intervenção o Eixo Cuidar operacionalizou-se através de três estratégias, a saber: inserção de um técnico de saúde mental em cada Distrito de Saúde da cidade4, criação de uma equipe especial para a região central, local notoriamente reconhecido enquanto espaço de maior concentração da temática no Município e alocação de um técnico para atuação na região de um bairro historicamente conhecido como região de prostituição local.

A equipe do centro está alocada em um CAPS – Centro de Atenção Psicossocial – dedicado ao atendimento de meninos e meninas em situação de rua e/ou usuários de substâncias psicoativas. A escolha deste equipamento deu-se devido à equipe já existente concentrar uma grande quantidade de atendimentos de casos que apresentavam uma interface com a exploração sexual, porém este fator nunca foi abordado em sua particularidade. Sobre este ponto dedicamos as análises subseqüentes.

A equipe do centro do Eixo Cuidar está desenvolvendo atividades conjuntas com a equipe local, ampliando as ofertas de atendimento, além do acompanhamento de novos casos. Estas ações objetivam ampliação no número de casos a serem acompanhados e intensificação do atendimento em casos em andamento.

A partir da recente experiência em desenvolvimento afirmamos que um fenômeno complexo como a exploração sexual comercial infanto-juvenil caracteriza-se como uma das inúmeras experiências que compõem a situação de vulnerabilidade social e violação de direitos dos referidos jovens. Trata-se de um fenômeno que se apresenta em diferentes "roupagens" conforme cada arranjo de experiências de vida e contextos sócio-culturais com os quais se articula. Como conseqüência destes arranjos, temos uma variabilidade dos perfis dos jovens que, de algum modo, estejam em situação de exploração sexual comercial, o que nos permite agrupá-los em quatro características: 1) adolescentes das periferias que se relacionam localmente com o comércio sexual (tendo em alguns momentos o envolvimento com o tráfico de drogas), 2) aqueles em situação de rua, 3) as crianças e adolescentes envolvidas com o mercado informal (trabalho infantil) e 4) os meninos e meninas que trabalham ou moram em casas e espaços de prostituição.

A equipe do Eixo Cuidar alocada para a região central, atuando no CAPS, dirige suas ações às meninas e meninos em situação de rua5 (perfil 2) ou aqueles que transitam pelas ruas centrais na prática do trabalho infantil (perfil 3). Tanto em relação às crianças e adolescentes que residem nas ruas, como aqueles que passam o dia a vender flores e balas, retornando às suas casas para dormir, constatou-se o envolvimento com a prostituição / exploração sexual comercial. Para a população de ambos os perfis é que se dirigem, prioritariamente, as análises, problematização e a tentativa de desenvolver tecnologias sociais no campo da saúde, embutidas na perspectiva dos direitos humanos.

 

UMA LEITURA DA REALIDADE E DISPOSITIVOS PARA A INTERVENÇÃO

No território central de Campinas encontramos os problemas dos grandes centros urbanos, como altos índices de criminalidade e violência, desemprego, pobreza e intenso fluxo imigratório das regiões mais pobres do país, cujas contingências se expressam nas fragilidades psicossociais das famílias em prover o sustento, cuidado e a proteção de suas crianças e jovens. O cenário reflete o impacto de fenômenos macroeconômicos na violação dos Direitos da Criança (LEAL, 2003).

Uma parcela daquela população ocupa as ruas e encontra-se em alta vulnerabilidade para a situação de exploração sexual, apresentando-se esta como mais um fator que acometem suas vidas, dentro de um quadro mais amplo de vulnerabilidade social: vínculos rompidos ou esgarçados com a família, a migração dos jovens das regiões periféricas (carentes de equipamentos sociais) para as ruas da região central da cidade, evasões escolares, práticas de atos infracionais e o uso abusivo de substâncias psicoativas (com preponderância do crack). Percebe-se um progressivo processo de exclusão e ausência dos direitos básicos, de modo que se envolver com a prática da prostituição nas ruas centrais constitui-se como um meio de aquisição de recursos financeiros ou outras trocas que propiciem o acesso à droga, a um espaço para pernoite, à alimentação e, por que não, como uma forma de atuação como sujeito social, ocupando o cenário disponível.

O tripé que caracteriza a população descrita se dá: estar em situação de rua (residindo ou no trabalho informal), usar, de modo abusivo, substâncias psicoativas e estar em situação de exploração sexual comercial, nos moldes do que, historicamente, chamamos de situação de prostituição.

Uma vez descrita a população à qual estamos, prioritariamente, abordando no presente trabalho (perfis 2 e 3), alguns conceitos fazem-se necessários serem abordados por nos propiciarem uma "leitura" da vida cotidiana destes jovens, destacando que as várias interfaces dialogam constantemente com a nossa experiência empírica. São conceitos dispositivos para a ação na realidade social.

No que se refere ao conceito de vulnerabilidade, central dentro da perspectiva teórica construcionista adotada frente à realidade empírica, é aqui utilizado desdobrando-se em duas dimensões: vulnerabilidade social e vulnerabilidade psíquica.

O conceito de "vulnerabilidade" é originário da área da advocacia internacional pelos Direitos Universais do Homem e designa, em sua origem, grupos ou indivíduos fragilizados, jurídica ou politicamente, na proteção ou garantia de seus direitos de cidadania (ALVES, 1994 apud AYRES, 2003). Penetrou o campo da saúde há aproximadamente dez anos como um conceito chave nos estudos e intervenções frente à epidemia de HIV/AIDS. Sendo:

"a proposta da vulnerabilidade aplicável, rigorosamente, a qualquer dano ou condição de interesse para a saúde pública, pode ser resumido justamente como este movimento de considerar a chance de exposição das pessoas ao adoecimento como a resultante de um conjunto de aspectos não apenas individuais, mas também coletivos, contextuais, que acarretam maior suscetibilidade aos adoecimentos" (AYRES et al., 2003, p.123).

Contrastando com o conceito de risco, a vulnerabilidade tem a premissa de buscar identificar a co-participação, a síntese das variáveis que estejam envolvidas na suscetibilidade ao adoecer, sejam elas abstratas, subjetivas ou estruturais, ao contrário do isolamento das varáveis e a busca de uma relação causal bilateral.

A idéia da vulnerabilidade social tem sido eficaz para chamar a atenção sobre as condições estruturais que colocam as pessoas em risco, para além do seu comportamento individual, mais, ou menos, "irresponsável" (PITANGUY,2003). Classe, etnia/ raça, gênero e nacionalidade são sistemas de classificação social oriundos de estruturas de desigualdade social que também distribuem os riscos em saúde de maneira desigual (BRONFMAN E HERRERA, 2001 apud PITANGUY, 2003).

AYRES at al. (2003) apresentam alguns componentes importantes para avaliar condição de maior ou menor vulnerabilidade social de um indivíduo ou de coletivos. São eles: acesso a meios de comunicação, escolarização, disponibilidade de recursos materiais, poder de influenciar decisões políticas, possibilidade de enfrentar barreiras culturais, estar livre de coerções violentas ou poder defender-se delas.

Ao iniciarmos o trabalho junto à população de jovens em situação de rua, miserabilidade e exploração sexual, partindo do olhar da saúde pública e da saúde mental (por estarmos atuando em um CAPS, equipamento da saúde mental do Sistema Único de Saúde) percebemos-nos a todo instante instigados, quando não indignados, com o seguinte questionamento: que tipos de experiências vivem os sujeitos de direitos, adolescentes, em um contexto de vulnerabilidade social, portanto de não garantia de direitos à proteção integral, que os colocam em condições potenciais para o sofrimento e, em alguns casos, para o adoecimento psíquico? Qual o papel do profissional na tentativa de romper e minimizar estes processos diversos de violências, e, ao mesmo tempo, auxiliar na (re) constituição da subjetividade intrapsíquica e interpsíquica?

Durante o decorrer das intervenções e supervisão muitas discussões são levantadas a este respeito, pois se trata de uma prática em construção, em constante avaliação. Em um dado momento sugerimos o uso da expressão "vulnerabilidade psíquica", o qual pautamos no interior das indagações, das construções...

Cabe aqui fazermos uma ressalva quanta a utilização de termos e definições que nos pautamos para pensar as ações em combate à exploração sexual. Partimos de uma concepção sócio-histórica da realidade na qual compreendemos que o campo social é de âmbito interdisciplinar e intersetorial, sendo que a saúde apresenta-se como uma das áreas que têm contribuições a partir de seu núcleo de intervenção, porém, isolada não possibilita a produção de resultados, pois não se trata de uma discussão unicamente do eixo saúde-doença. Tal comentário faz-se relevante para sublinharmos o aspecto de que não temos a intenção de criar "patologias" para o campo social, pelo contrário, a partir do conhecimento acumulado na saúde e a complexidade do fenômeno em questão, buscamos trazer contribuições para o campo e integração de saberes e ações.

Os termos aqui utilizados como "vulnerabilidade psíquica", "acompanhamento terapêutico", dentre outros, partem de nosso lugar de origem – a saúde – mas encontram-se abertos para o debate e para possíveis redefinições e renomeações, de acordo com o processo. Ressaltamos que as condições que circundam o fenômeno da exploração sexual relacionam-se diretamente com a situação sócio-econômica de desigualdades instaladas na estrutura do país e, simultaneamente, a uma estrutura da modernidade que coloca novos parâmetros de constituição de si no mundo.

Considerados os esclarecimentos, o que propomos com o conceito de "vulnerabilidade psíquica" é a possibilidade de pensarmos fatores potenciais de modo que, sinergeticamente, componham condições propulsoras ao sofrimento ou adoecimento psíquico. Estes fatores potenciais são relacionados tanto ao social, daí a dimensão da vulnerabilidade social, como às experiências de vida singulares que, combinados, são "matéria prima" para a constituição das subjetividades. Sofrimentos psíquicos presentes em larga escala na população das crianças e adolescentes que vivenciam experiências de rua (com todo o impacto das violências múltiplas, incluindo a exploração sexual como uma delas) exteriorizam-se na forma de depressões, dos transtornos de condutas, da agressividade generalizada, da hiperatividade, do uso abusivo de substâncias psicoativas, dentre outros.

Daí pauta-se a violação de seus direitos enquanto elemento central para a discussão de todos estes desdobramentos e conseqüências em sua saúde. Uma vez que os direitos básicos não foram respeitados, e frisa-se aqui a necessidade de desenvolver intervenções que se dediquem a este aspecto, passamos a buscar a promoção do direito ao cuidado, de expressão, de ressignificação das rotas de vida.

Como conseqüência de todas estas "violações", pauta-se a questão: como fazer a leitura das estruturas intrapsíquicas e das sintomatologias (uma vez que não são dadas naturalmente), levando em conta o contexto sócio-cultural, com as respectivas transversalidades de gênero, violências, classe social, geração e etnia / raça?

Da mesma maneira que no campo da Aids a noção de vulnerabilidade foi central para substituir a noção de comportamento de risco – que imprime um caráter de responsabilidade eminentemente individual – fazendo a transposição para o campo da saúde mental, a articulação entre as noções de vulnerabilidade social e vulnerabilidade psíquica tem duas conseqüências positivas: a primeira é a negação de uma tradição "psicologizante", individualista, culpabilizadora e a-histórica, que renega qualquer reflexão sobre os contextos culturais, sociais e políticos "onde" e "como" as pessoas sofrem e adoecem. Tais considerações possibilitam a segunda conseqüência, ou seja, o estabelecimento de formas de "tratamento" ou ações de caráter terapêutico que ultrapassem e transcendam o que historicamente é entendido como "da saúde", de modo que as mudanças ou propostas das políticas sociais se orientem pela intersetorialidade e interdisciplinaridade. Referimo-nos, objetivamente, a ações com impacto estrutural, no campo da educação, do esporte e da cultura, do trabalho e geração de renda, dos direitos, entre outros.

Pontua-se a relevância acentuada da disponibilidade para a construção em rede e o olhar ampliado no que se refere aos atores sociais que se dediquem ao trabalho com crianças e adolescentes, em especial aquelas em situação de exploração sexual. Deve-se valorizar a singularidade de cada sujeito em situação peculiar de desenvolvimento, buscando o provimento de sua colocação efetiva enquanto sujeito e a sustentabilidade do respeito a seus direitos.

 

A METODOLOGIA DO ACOMPANHAMENTO TERAPÊUTICO

O referencial que traçamos para as ações no trabalho com a população de crianças e jovens em situação de rua e exploração sexual é subsidiado pelas contribuições, reflexões e práticas da saúde pública, da saúde mental e dos direitos humanos.

A cada caso que nos aproximamos procuramos, a partir de uma avaliação global interdisciplinar, com um olhar ampliado para o contexto sócio-cultural, dimensionar as vulnerabilidades sociais a que estão expostos, os direitos então violados ou negligenciados, os agravos em saúde e impactos na qualidade de vida daí advindos e, considerando tais aspectos, iniciamos a construção de um projeto de trabalho junto à criança e ao adolescente. Este projeto inclui uma dimensão terapêutica do trabalho no âmbito da subjetividade, ou seja, de auxílio à afirmação do crescimento e da criação de perspectivas, pautadas na possibilidade de sonhar o futuro, bem como "amenizar as dores (...), físicas e psíquicas, que os abandonos sucessivos e a vida nas ruas lhes impuseram" (LESHER, 2002, p. 3).

O diferencial que buscamos na proposta terapêutica de abordagem da subjetividade individual é incluir a dimensão dos direitos humanos, para a qual se parte da premissa de que as violações de direitos têm impactos longitudinais à saúde (GRUSKIN e TARANTOLA, 2002), incluindo a saúde mental, o que requer uma mudança do ponto de vista técnico e metodológico do trabalho. Tal mudança implica em formas e caminhos diferentes dos tradicionais para o acesso à subjetividade, invertendo a lógica tradicional que preconiza uma mudança "apenas no e do individuo", com o paradigma de "dentro para fora", para intervenções no contexto coletivo, que possam vir a promover influências no âmbito individual.

Para se adquirir o âmbito coletivo almejado, baseando-se em outras experiências de intervenção à exploração sexual (FRANCA, TEIXEIRA e GORATTI, 2002), elegemos o acompanhamento terapêutico enquanto método propiciador de abordagem a partir do coletivo para a esfera individual.

Refazemos a ressalva de que o uso de tal nomenclatura ancora-se no campo da saúde, porém não pretende advogar sobre a isonomia deste campo sobre os demais, pois a exploração sexual é um problema complexo de necessária abordagem intersetorial. Opta-se pelo uso da terminologia "acompanhamento terapêutico" devido esta vir fundamentada em experiências práticas no campo da saúde mental e luta pelos direitos humanos daqueles que se encontram ou se encontravam em situação de sofrimento psíquico.

O Acompanhamento Terapêutico tem raiz histórica no Movimento Antipsiquiátrico, Luta Antimanicomial e Psicologia Institucional no início da década de cinqüenta, sendo uma grande referência o fechamento do Manicômio de Trieste, na Itália, e o processo de "desinstitucionalização" subseqüente6 (BASAGLIA, 1985).

O Movimento Antipsiquiátrico inaugura críticas ao cerne dos tratamentos em saúde mental, formulando novas concepções de cuidado a partir da desospitalização, da (re)inclusão social, considerando o isolamento como um fator de agravo do sofrimento psíquico (CARVALHO, 2004).

Este movimento questiona a condição do "doente mental" enquanto sujeito destituído de direitos, trazendo para a saúde mental a esfera dos direitos humanos. Denuncia a violação do direito à liberdade, à livre expressão e à convivência social (BERTOLOTE, 1995). Mantém-se esta discussão até os dias atuais para se embasar as intervenções direcionadas as pessoas em situação de sofrimento psíquico.

Traçando um paralelo entre este período histórico e a atualidade, contextualizando as novas configurações da sociedade contemporânea, apropria-se deste legado para a reflexão suscitada pelas novas demandas colocadas para a saúde mental no âmbito público, em especial na esfera da infância e juventude.

Se o contexto da luta antimanicomial referenciou-se nos direitos humanos em prol daqueles em sofrimento psíquico, utilizamos as mesmas bases para o debate da situação da infância e juventude em vulnerabilidade social.

Apoiando-nos nestes princípios históricos, elegemos o Acompanhamento Terapêutico (A.T.) por pontuar enquanto diretrizes de intervenção (EQUIPE DE AT's DE "A CASA", 1991):

Operatividade/ Funcionalidade para intervenções em situações de vulnerabilidade social que favoreça a vulnerabilidade psíquica

Metodologia possível em situações de extrema vulnerabilidade social diante da insuficiência das terapias individuais, grupais, familiares e medicamentosas, sem negar a relevância destas

Dimensão terapêutica implicada em ação nos diversos espaços sociais, no cotidiano, para uma escuta clínica sustentada por uma relação transferencial

Estabelecimento de um "contrato" com o sujeito envolvido

Ação baseada em um "fazer" pautado pelo que o sujeito está desejando (ex: cursos de beleza, comprar cigarro), necessitando (ex: tirar documentos, consultas médicas), ou ainda pela promoção de experiências e vivências diferenciadas de seu contexto social (ex: ir ao cinema, teatro, oficinas)

Posição de não "confinamento" ("clausura subjetiva" – dependência química, vivências nas ruas etc – e "clausura concreta" – hospital psiquiátrico, FEBEM etc.) de modo que o sujeito e suas relações sejam cuidados para além dos muros institucionais.

O A.T. pode ser caracterizado por uma gama de ações de socialização e cuidado que ocorrem no cotidiano da pessoa, na sua casa, na rua, no ônibus, em espaços sociais etc. Dessa maneira o processo terapêutico difere-se do tradicional, pois a intervenção busca, a partir de situações reais da vida coletiva, contemplar as necessidades e desejos da pessoa.

A utilização desta metodologia só faz sentido quando inserida em uma rede de atendimento intersetorial que partilhe, entre os serviços e profissionais envolvidos, o projeto em andamento e a responsabilização pelo mesmo, não desconsiderando a autonomia e capacidade de escolha do sujeito em questão.

Uma intervenção que apresentamos refere-se à obtenção de documento de identificação para esta população, que, ao não possuí-lo, não exerce nem sequer um dos direitos básicos da cidadania, ter uma documentação que a legitime juridicamente, o que reflete na simbologia de "existir" e "pertencer".

Lígia, 17 anos, é uma adolescente inserida na rede comercial de prostituição, que envolve casas noturnas tais como boates e saunas. Conforme apresentamos inicialmente, esta é uma população com a qual temos dificuldade de aproximação, pois o acesso é restrito pelos locais fechados, de caráter ilícito, nos quais se encontram.

A demanda neste caso surge a partir da solicitação de ajuda da mãe de Lígia para o Conselho Tutelar, por meio do qual o Projeto Rotas é acionado. Contatos telefônicos são estabelecidos na tentativa de convidar Ligia e sua mãe para uma vinda ao CAPS, porém estes são em vão. Como estratégia de acesso, a técnica de referência realiza uma visita domiciliar à adolescente, acompanhada por um profissional do Centro de Saúde do bairro que já tinha contato com a família, e, a partir daí, dá-se o início dos diálogos e da construção do vínculo.

Inicialmente muito arredia e com a saúde debilitada (baixo peso e problemas respiratórios), Ligia estava em casa, o que não era usual, parecendo ter interrompido os "programas" e apresentações eróticas de dança, devido suas más condições físicas. Em princípio, agiu como se não tivesse interesse por nenhum contato, mantendo um isolamento e certa frieza; diante da situação fez-se uma proposta à Ligia: estar com ela no espaço de sua casa, nas próximas semanas, para encaminhamento de demandas que a jovem apresentasse. Em meio às conversas aproximativas buscou-se atentar para algum desejo ou necessidade expressos por Ligia, para que alguma atividade conjunta pudesse contribuir como veículo para uma saída de casa, para a ida a um serviço de saúde, uma vez que demandava cuidados.

Em um dado momento, Ligia traz às conversas que não possuía a certidão de nascimento por tê-la perdido, nem tão pouco documento de identidade, interessando-se por viabilizar esta documentação. Combinada tal atividade para o próximo encontro, Lígia, sua mãe e a técnica foram juntas a um cartório. Neste trajeto, muitos assuntos puderam ser abordados, além da possibilidade da técnica poder conhecer a dinâmica da relação de Ligia com sua mãe e com o espaço social, além de interagir com a jovem.

No momento em que Lígia recebe da funcionária a certidão pronta, ela afirma: "Pronto, não morro mais como indigente, agora tenho a minha identidade".

Constatando os conteúdos simbólicos desta fala, algumas reflexões puderam ser iniciadas: sobre o significado do existir, os medos daí relacionados, enfim, sobre quem é Ligia... Abre-se uma brecha à subjetividade e desencadeia-se a possibilidade do compartilhar, do encontro com um outro, um estranho e, possivelmente, amedrontador. Para além do significado simbólico que tem este documento, pode-se pensar no papel do técnico e na função da atividade em si: a retomada de condições básicas para uma existência como cidadã, com o direito de sentir-se diferenciada da massa social anônima.

Portanto, a atividade realizada a partir de uma demanda que é singular, abre a possibilidade, dentro de uma perspectiva contínua do acompanhamento terapêutico, de que Ligia tenha o direito de ser cuidada, o que fortalece algo ainda incipiente: o senso de identidade. Este parece ser pré-condição para o sentimento de pertença a uma coletividade, enquanto cidadã, e não enquanto uma "indigente". Tal condição se estabelece como um dos primeiros passos para a construção da capacidade de escolha – poder dizer, simplesmente, "não" – ao universo das violências da contemporaneidade, em suas formas mais dissimuladas ou explícitas.

A realização da ação a partir da demanda inicial da jovem, ter sua documentação, desdobrou-se em outras atividades, tais como: atenção à saúde clínica, encaminhamento de questões de cultura e lazer, enfim, um acompanhamento mais amplo que possibilitou a retomada de outros laços sociais, refletindo no acesso a outros direitos.

O fazer conjunto, em prol da demanda do sujeito, possibilita a configuração de uma recolocação social, que favoreça a abertura de novas rotas, outros percursos de vida, vislumbrados, com base na autonomia daqueles jovens, na busca do exercício de seus direitos.

Portanto, o acompanhamento terapêutico adapta-se à mobilidade e ao trânsito dinâmico por ruas e espaços públicos, característica do dia-a-dia destas meninas e meninos em situação de exploração sexual. Dado que não se reconhecem em situação de vulnerabilidade social, dentro de um contexto sócio-cultural que não tem incorporado a juventude popular enquanto sujeitos de direitos, projetos direcionados para esta população devem prever a disponibilidade metodológica de colocar suas práticas em cenários extra-institucionais. Ressalta-se a relevante perspectiva da construção de propostas em uma rede intersetorial, que desenvolva coletivamente, enquanto princípio, o direito das crianças e adolescentes ao exercício de direitos.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O Projeto Rotas Recriadas tem possibilitado a primeira intervenção frente à temática da exploração sexual/ prostituição infanto-juvenil no Município de Campinas, dentro de uma perspectiva intersetorial de ações da prevenção ao cuidado, que envolvem propostas do âmbito da educação, cultura, saúde, justiça, trabalho e assistência social; compondo a rede já existente para a população infanto-juvenil.

Dificuldades e limitações são vivenciadas e revelam o cenário de alta complexidade sobre o qual intervimos, destacando que se faz necessário uma gradualidade e relatividade dos resultados almejados.

Pautada a complexidade do fenômeno da exploração sexual no quadro de vulnerabilidades sociais e psíquicas objetiva-se, através da promoção de ações de cuidado em saúde e direitos, conforme apresentado, trabalhar com uma perspectiva que seja inicialmente dada: a) pela redução de vulnerabilidades as quais estas crianças e jovens estão expostos (sair da rua, diminuir o uso de substâncias psicoativas, participar atividades de convivência e lazer); b) a criação de fatores de proteção que diminuam tais vulnerabilidades (do uso do preservativo ao retorno à escola); c) a diminuição das exposições às violências cotidianas (da violência física à moral). O objetivo-fim destas ações centra-se na atenção às necessidades e aos direitos desta população, na perspectiva de atuar em prol da autonomia e participação ativa, possibilitando, gradativamente, a saída da exploração sexual e a ocupação de outros lugares sociais.

Diante da realidade sócio-econômica com a qual convivemos questionamo-nos se uma sociedade fundada no respeito aos direitos humanos, com recorte desta análise aos direitos da criança – tão debatidos e estabelecidos por convenções, leis e tratados nacionais e internacionais (ONU, 1959, 1989; BRASIL, 1990) –, se confrontaria com fenômenos como a exploração sexual infanto-juvenil que denotam tal desigualdade social e precariedade nas relações de solidariedades para o reconhecimento do outro.

Finalizando, pontuamos a necessária priorização das diferentes instâncias públicas pelo enfrentamento de temáticas complexas, como a exploração sexual infanto-juvenil, prevendo, para tanto, a implantação de políticas públicas, destinações orçamentárias e diálogos permanentes com a sociedade civil para a criação de estratégias e metodologias condizentes com o fenômeno, almejando uma mudança cultural para a reversão do quadro estabelecido.

 

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1 Projeto premiado no 4º. Marketing Best de Responsabilidade Social, tendo sido apresentado pela empresa Petrobras, através de seu financiamento para implementação das ações.
2 Utilizamos aqui o conceito de violência sexual segundo FALEIROS (2000), enquanto categoria ampla que inclui abuso sexual extra e intrafamiliar e a exploração sexual comercial.
3 O Projeto Rotas Recriadas é metodologicamente concebido por Eixos de Atuação, a saber: Eixo Capacitar, Eixo Buscar e Diagnosticar, Eixo Prevenir, Eixo Cuidar, Eixo Fiscalizar, Eixo Comunicar e Eixo Gestar (PROJETO ROTAS RECRIADAS, 2004).
4 A divisão distrital segue os princípios do Sistema Único de Saúde – SUS, que preconiza a descentralização do atendimento à saúde, de modo que o território de Campinas encontra-se subdividido em regiões/ distritos com Serviços de Saúde circunscritos a cada um.
5 "Por menino de rua, definiu-se aquele que foi visto quando estava trabalhando em biscates, esmolando, perambulando ou exercendo atividades ilícitas. Além de ser feito à distância, dependendo do olhar do educador, treinado ou não, tal procedimento é duvidoso pela forma como define a quem contar: ele abrange crianças que trabalham nas ruas, mantêm vínculos familiares e freqüentam escolas, crianças que moram nas ruas com as famílias e crianças cujos vínculos familiares estão mais esgarçados" (GREGORI, 2000, p. 20).
6 Com o processo de desinstitucionalização houve a demanda e conseqüente criação de serviços substitutivos, como Hospital Dia, Oficinas, Centros de Convivência, Residências Terapêuticas, e, como local de referência de nossa experiência, os Centros de Atenção Psicossocial - CAPS. Estes equipamentos têm a finalidade de proporcionar um tratamento humanizado e a inclusão da dimensão de direitos e cidadania.