Services
An. 1 Simp. Internacional do Adolescente May. 2005
Adolescência e resistência
Caniato, AngelaI; Cesnik, Claudia CotrimII
IProfessora Doutora da Universidade Estadual de Maringá
IIAcadêmica de Psicologia da Universidade Estadual de Maringá, bolsista do PIBIC/CNPqUEM
O presente estudo é parte integrante de uma Pesquisa de Iniciação Científica, intitulada "Resistência: uma utopia possível?", em que buscamos compreender alguns aspectos do processo de resistência, da reafirmação da vida em condições adversas de existência. O interesse pela temática abordada surgiu a partir de um trabalho realizado desde 2002 com adolescentes de classes pauperizadas pelo Projeto de Pesquisa-Intervenção "Phenix: a ousadia do renascimento da subjetividade cidadã". Durante o trabalho observamos que, mesmo enfrentando dificuldades referentes à sua situação econômica, esses adolescentes encontravam formas e caminhos para driblar e enfrentar os obstáculos e empecilhos que a eles se apresentavam, embora por vezes, também chegassem a colocar suas próprias vidas em risco, quando de forma perigosa e descuidada buscavam marcar e reafirmar suas existências, suas identidades fragilizadas iludindo-se desta forma em serem sujeitos desejantes.
Adotamos aqui a mesma perspectiva de homem que norteia o Projeto de Pesquisa-Intervenção Phenix, a de que ele é um ser marcado pela incompletude constituinte e pela dependência em relação ao outro, mediador da cultura, as quais conduzem o sujeito a buscar a união com os demais e a transformar continuamente a cultura sócio-historicamente articulada. Conseqüentemente, o atributo básico desse homem é a possibilidade de perpetrar e criar novos caminhos e alternativas para o desenrolar de relações humanas que privilegiem a busca de felicidade, a diminuição do sofrimento e a dignidade reservada a cada homem. Objetivamos caracterizar algumas maneiras encontradas pelos adolescentes para marcar outras formas de viver que estejam associadas à produção e manutenção de sua singularidade e suas tentativas de sobreviver e não se conformar à imposição de formas de inserção social autoritárias.
Para tanto buscamos o significado da palavra resistência na língua portuguesa e em sua etimologia para esboçarmos uma definição desse conceito. A palavra resistência, segundo Ferreira (1991), significa "ato ou efeito de resistir"; força que se opõe a outra, que não cede a outra"; "força que defende um organismo do desgaste de doença, cansaço, fome, etc." (p. 1494). Essa palavra aparece geralmente contemplando os sentidos de oposição e de defesa. Ferreira (1991), ainda cita o termo resistência passiva caracterizando-o como "resistência sem revide, ou provocação" (p. 1494). Cunha (1982), em seu dicionário etimológico, aponta que resistência significa "ato ou efeito de resistir, de não ceder" (p. 679). Enquanto que ceder, para o mesmo autor, significa "transferir (a outrem) direitos, posse ou propriedade de alguma coisa" (p. 169). Ferreira (1991) ao definir o adjetivo resistente assim escreve: "que resiste ou reage"; "que resiste ao tempo; sólido, durável" e exemplifica: "calçado resistente"; e cita um outro significado possível "teimoso, obstinado, contumaz" (p. 1494). Quanto ao verbo resistir Ferreira (1991) o define como "oferecer resistência; não ceder"; "opor-se, fazer face (a um poder superior)"; " fazer frente (a um ataque, acusação, etc.); defender-se"; "recusar-se, negar-se; opor-se"; "não sucumbir; sobreviver, subsistir"; "durar; conservar-se; subsistir" (p. 1494).
Um outro sentido é utilizado por Chauí [;1986] (1993) ao buscar compreender aspectos da cultura popular no Brasil. A autora entende a cultura popular como algo que se efetiva por dentro da cultura dominante, como mescla de conformismo e resistência, além de considerá-la como prática local e temporalmente determinada. Na análise efetuada por Chauí (1993) não há uma oposição direta entre conformismo e resistência, são termos que não se eliminam mutuamente, mas que podem ser identificados num mesmo fato. Assim, uma ação ou uma reação que caracterize conformismo, pode ter efeitos de resistência.
Por que utilizamos aqui o termo resistência? Vimos que os usos de resistência e seus derivados na língua portuguesa remetem a fazer oposição, fazer frente, defender-se, não ceder, reagir, recusar-se, negar-se, conservar-se, subsistir, sobreviver a condições adversas, a circunstâncias em que é preciso defender-se de algo ameaçador, opor-se a um poder superior, etc.. Usamos a palavra resistência a partir de uma determinada leitura do atual panorama econômico de desemprego e exclusão sociais, reconfigurações na organização do trabalho, crises na política em sua subordinação à economia, pobreza e miséria em escala mundial, acompanhado da transmissão de valores que dignificam o individualismo, a competitividade exacerbada, o imediatismo, a mentira, o cinismo, o culto de um corpo performático, o consumismo, a descartabilidade do útil e necessário, práticas que destroem o corpo como body piercing, body modification, suspensão em ganchos, escarificações e outras. Apesar desse quadro, a humanidade continua existindo e os adolescentes criando e recriando formas de ser e fazer que lhes permitem suportar e resistir a essa destrutividade, ainda que se conformando e, num certo sentido, reproduzindo-a. Por outro lado, podendo também produzir algo novo e mostrar que, minimamente, é possível viver sob a regência de outros valores. Vamos aos exemplos.
Modificações corporais e resistência
Citamos primeiramente a crescente ênfase de cuidados corporais, médicos e estéticos apregoados pela nossa atual cultura da aparência. Ortega (2003) cita a noção de biossociabilidade e afirma que ela visa descrever e analisar as atuais formas de sociabilidade geradas da interação capital, biotecnologias e medicina. Conforme o autor (ibid), na biossociabilidade operam novos critérios de mérito e reconhecimento, portadores de valores fundamentados em regras higiênicas, de ocupar o tempo e até de modelos ideais de sujeito tendo como referência o desempenho físico.
A saúde transforma-se num imperativo e passa a orientar outras atividades sociais, se são ou não são saudáveis: é o moralismo do corpo perfeito e da manutenção da saúde a todo custo. "[;...] A nossa obsessão com o domínio do corpo, de suas performances, movimentos e taxas substitui a tentativa de restaurar a ordem moral. O corpo torna-se o lugar da moral, é seu fundamento último e matriz da identidade pessoal. [;...]" (idem, ibid, p. 3). Processo esse que o autor denominou de "somatização da subjetividade".
Entretanto, as modificações corporais1 não representam apenas um apoliticismo, conformismo e adequação à cultura da aparência. Para Ortega (2003) a biossociabilidade carrega consigo uma ressignificação dos laços sociais. Investir no corpo constitui uma resposta ao afastamento do outro e a perda de valores e significados coletivos doravante estruturantes do terreno simbólico do indivíduo. Esse se retrai sobre si mesmo e faz de seu corpo seu universo, procura em si e em seu corpo uma localização real de sua essência, na sociedade da aparência, como cita o autor.
[;...] As modificações corporais constituem uma radicalização do real: quando a ordem simbólica não produz mais a ordem social, o simbólico é reduzido ao real, ele é incorporado, encarnado. A passagem do simbólico ao real acontece pelo e no corpo. A autenticidade e a realidade são materializadas na marca corporal como uma forma de existir que dispense as palavras e o olhar do outro, os quais não são confiáveis.[;...] (idem, ibib, p. 6).
Ortega (2003) ainda afirma que conforme essas práticas são incorporadas à sociedade de consumo, tornando-se ornamentais ou meros adereços, as marcas tendem a ser cada vez mais profundas e menos epidérmicas. Lastória (2004) afirma que "[;...] os jovens preferem inscrever seus atos de protesto nos próprios corpos a protestar utilizando palavras de ordem coladas a alguma ideologia racional, indicativa de transformação da sociedade (p. 6). O autor ainda complementa: "[;...] as modificações corporais radicais constituem um protesto contra a sociedade por meio do qual afirma-se uma diferença corporal escolhida [;...]" (idem, ibid, p. 6).
Há um aspecto em que os dois autores, imediatamente acima citados, concordam: o desfalecimento das utopias sociais, principalmente aquelas dos séculos XVIII e XIX, iluministas e ou românticas que propunham um caminho capaz de conduzir a uma sociedade livre e justa, em que reinasse integralmente uma harmonia entre seus membros (LASTÓRIA, idem, ibid). Em alguns casos, a ânsia de mudar o mundo, típica da adolescência, produz outros efeitos quando constatada essa impossibilidade: "[;...] Não podendo mudar o mundo, tentamos mudar o corpo, o único espaço que restou à utopia, à criação. As utopias corporais substituem as utopias sociais." (ORTEGA, 2003, p. 4).
Por que essas modificações corporais estão sendo tomadas como exemplos de resistência se há uma notável cooptação dessas práticas pela mídia, pela ideologia neoliberal (no que remete principalmente ao individualismo exacerbado)? Os indivíduos que, com estas práticas excêntricas, buscam fugir da massificação, tentam construir suas identidades nas marcas produzidas em seus próprios corpos , muitas vezes fundadas na perversão do prazer na dor e no sofrimento.Triste e frustante percurso do desejo...
Por outro lado, ser jovem é, na contemporaneidade, um ideal que arrasta para esse estilo de vida muitos adultos (KEHL, 2004). Esses ao abandonarem seus lugares de autoridade, deixam os jovens com suporte afetivo e identificatório frágeis e, conseqüentemente, a demarcação de referenciais, parâmetros e limites necessários à construção da subjetividade e identidade dos adolescentes é precariamente estabelecida. "Los adolescentes y los jóvenes necesitan imperiosamente vivir en una sociedad donde haya ‘adultos’, para diferenciarse, para tenerlos como modelos, o para oponerse a ellos y para sentirse contenidos en la penosa transición hacia la individuación" (GREMES, 2005). Como nos diria Dufour (2001) o sujeito é submetido, sujeitado a um Outro que permite a função simbólica, pois fornece a ele um ponto de apoio; a partir do Outro uma ordem temporal se faz possível, uma exterioridade se faz referência para a constituição da própria interioridade.
Este contexto, autoritário por omissão e pela imposição de uma suposta liberdade de ser, produz uma busca insana de subjetivação calcada em referenciais que não param de mudar, em que o simbólico se torna demasiadamente instável.
[;...] Si los referentes s demasiado móviles o inseguros, o imprevisibles, se consumen en una realidad evanescente que no inscribe marcas, con un protagonismo de lo inmediato, de lo instantáneo. Entonces, tejer la sintaxis entre pasado y futuro, resulta problemático y el sentimiento de discontinuidad y fragmentación de la experiencia puede ser abismal, y en lugar de un futuro anhelado, como localización de un proyecto, el futuro aparece como desconocido, sin promesa y desolador (VIÑAR, 2005, p. 3).
Essa busca de subjetivação, no caso das modificações corporais, localiza um referencial, porém no próprio corpo do sujeito que utiliza uma definição auto-referencial e, portanto, não contraditória, segundo Dufour (2001), com a proposta da pós-modernidade democrática de definição do sujeito a partir de sua própria autonomia.
Nessas práticas há um aspecto de resistência, enquanto maneira possível de singularizar-se, de manter a existência subjetiva, ainda que sustentada por uma cultura da dor e pela confecção de marcas cada vez mais profundas na carne, buscando produzir e criar um referencial. Por essa razão denominamos essa resistência estabelecida a partir de dor auto-impingida como resistência precária, isto é, uma sobrevivência, principalmente subjetiva, mantida sob condições adversas, porém de maneira extremamente penosa e até prejudicial para o sujeito.
Por outro lado, se não há uma busca de mudança ou transformação das condições que geram a adoção dessas práticas desesperadas podemos falar também em conformismo, isto é, em adequação, em conformação, em enquadramento. O que se traduz como uma estratégia de existência ante um poder superior e à adversidade, pode também ser entendido como uma forma de conformismo.
A resistência num grupo de rap
Numa outra perspectiva de resistência está um grupo de rappers, os Racionais MC’s. Segundo Kehl (s. d.) em suas músicas eles consideram a consciência como um instrumento capaz de alterar a marginalização e a exclusão impelida tradicionalmente a população negra e pobre. Para a autora, a força dos grupos de rap está na sua capacidade de inclusão e na consideração de que são artistas e público, todos iguais: são negros, vítimas da discriminação e de origem pobre, são todos "manos". Conforme Kehl (s.d.), o tratamento de mano aponta para o sentimento de fratria "[;...] um campo de identificações horizontais, em contraposição ao modo de identificação/dominação vertical, da massa em relação ao líder ou ao ídolo. [;...]" (p. 2).
Considerar o outro como mano permite chamá-lo para enfrentar as dificuldades que se apresentam. Nessa consideração ele não é um competidor como tanto se diz, ele pode ser amparo, sofre discriminações, as mazelas referentes à situação econômica e à raça. É possível contar com seu apoio, para construir outras possibilidades de existência, diferente daquelas que condenam à priori os negros de origem pobre. Abre-se um espaço em que os sujeitos podem se amparar para construir outros referenciais e espaços simbólicos que não aqueles ligados ao banditismo, ao tráfico de drogas e a um fim prematuro e que podem, sobretudo ser ampliados, abarcando manos que sofrem injustiças, exclusão, discriminação, não necessariamente ligadas à raça ou ao lugar em que moram.
Nesse sentido, musicar, nomear a realidade dos negros na periferia tem uma força política muito significativa. O que seria indizível e inefável para alguns é colocado em palavras e reafirmado pelas letras do rap, as dificuldades enfrentadas são cantadas, são narradas. A resistência que se processa está na denúncia das condições de vida nas periferias, está na postura de enfrentamento ante as discriminações, está na recusa de assumir o individualismo exacerbado pregado pela ideologia neoliberal
Resistir es una forma donde la política y la mente se mancomunan en una operación de contrainvestimiento que se gesta en las prácticas sociales. Lo social se transforma en un simple balizador de la pulsíon sino en la condición de una operación constituyente para el psiquismo de quien busca transformar las cosas con su acción (SOTOLANO, s. d., p. 6).
Simbolizar a realidade da periferia mediante o rap e convocar os manos a ter consciência e atitude é uma forma de resistência, mas sobretudo se configura como possibilidade constituinte do psiquismo, isto é, na busca de transformação ou de resistir a crises e adversidades: o sujeito se lança numa operação de constituição do psquismo que poderá permitir a ele novas possibilidades de resistência e transformação.
REFERÊNCIAS
CHAUÍ, Marilena, Conformismo e Resistência: aspectos da cultura popular no Brasil. 5. ed. São Paulo: Brasiliense, 1993. [;1986].
CUNHA, A. G. da. Dicionário etimológico nova fronteira da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1982.
DUFOUR, Dany-Robert. As angústias do indivíduo-sujeito. Le monde diplomatic. França, 2001. Disponível em: <http://www.diplo.com.br/fechado/materia.php>. Acesso em: 17 nov. 2001.
GREMES, Lidia Rosa. La cultura adolescente y la sociedad de consumo. Crisis adolescente en la actualidad dificultades en la construcción de proyectos. Disponível em: <http://www.flapag.net/flapag.net/flapag/rif/rif01020.htm>. Acesso em: 28 de mar de 2005.
KEHL, Maria Rita. A juventude como sintoma da cultura. In: NOVAES, Regina e VANNUCHI, Paulo (Orgs.). Juventude e sociedade: trabalho, educação, cultura e participação. São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, 2004. p. 89-114.
___. As fratrias órfãs. Estados Gerais da Psicanálise. Disponível em: <http://www.estadosgerais.org/historia/57-fratrias_orfas.shtml>. Acesso em: 11 de set. de 2002.
LASTÓRIA, L. A. C. N. Utopias somáticas como contra-face de distopia social. Texto apresentado no Colóquio Internacional de Teria Crítica e Educação. Universidade Metodista de Piracicaba, São Paulo, set. de 2004.
ORTEGA, Francisco. Utopias corporais substituindo utopias sociais: identidades somáticas e marcas corporais na cultura contemporânea. Apresentado no XII Encontro Nacional da Associação Brasileira de Psicologia Social. Porto Alegre, out. 2003.
SOTOLANO, Oscar. Desctrutividad, resistencia y acción transformadora. Disponível em: <http://www.topia.com.ar/articulos/204-sotolano.htm>. Acesso em: 28 de mar. 2005.
VIÑAR, Marcelo N. El psicoanálisis en el mundo de hoy (ideas provisorias). Texto a ser apresentado no II Congresso Internacional de Psicologia e VII Semana de Psicologia da Universidade Estadual de Maringá-Pr. São Paulo, abr. de 2005
1 Ortega afirma que o termo modificações corporais é referente a muitas práticas que incluiriam tatuagem, piercing, branding, cutting, implantes subcutâneos, etc.