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An. 1 Simp. Internacional do Adolescente May. 2005
Grupo produção: uma pesquisa intervenção junto a adolescentes considerados em situação de risco pessoal e social
Cruz, S. G. F. P.II; Silva, R. G. da.I; Polastrini, J. B.I
IGraduandas em Psicologia da UNESP – Assis/SP
IIProfessora do Departamento de Psicologia Evolutiva, Social e Escolar da UNESP – Assis/SP
É preciso desformar o mundo: tirar da natureza as naturalidades. Fazer cavalo verde, por exemplo.
Fazer noiva camponesa voar como em Chagall.
Agora é só puxar o alarme do silêncio que eu saio por aí a desformar.
Manoel de Barros.
O presente trabalho pretende problematizar a produção grupal de adolescentes considerados em situação de risco pessoal e social e para tanto apresentaremos o referencial teórico que sustenta nossas práticas junto a esses personagens.
Cartografando as diferentes teorias de grupo percebemos que embora comportem divergências, mantêm constantes alguns pressupostos: grupo como intermediário, a dicotomia indivíduo/sociedade, grupo como uma totalidade, ou seja, visto como estrutura-unidade, como objeto de investigação a ser conhecido ou como uma abstração que o antecede aos indivíduos que o compõem.
Poderíamos afirmar que apreender os grupos segundo esses enfoques significa privilegiar um modo específico de subjetivação, qual seja, aquele que tem o indivíduo como único expoente da subjetividade. A partir dos séculos XVII e XVIII, com a disseminação das idéias do Renascimento, que valorizava o homem como produtor de conhecimento; do Romantismo o qual valoriza a liberdade, a expressão dos sentimentos, o conhecimento pela intuição, que o homem podia ter um conhecimento de si; do Iluminismo, que via na razão um norteador das ações do homem é que vai constituindo-se esse modo indivíduo de ser.
Segundo Foucault(1999), é no século XIX que dá-se o auge da sociedade disciplinar a qual intensifica o modo indivíduo, uma vez que as técnicas disciplinares em sua eficácia, fabricam indivíduos úteis e dóceis. Tais técnicas disciplinares vêm de encontro com as necessidades do sistema capitalista no intuito de produzir um controle social por meio de instrumentos como a sanção normalizadora, a vigilância hierárquica, o controle do tempo, do espaço, o exame. O exercício das disciplinas fabrica indivíduos tornando-os como objetos e produtos de saberes. Nesse período histórico também se desenvolve as ciências humanas, dentre elas, a psicologia, a pedagogia, a sociologia, as quais respaldarão toda uma ortopedia social.
Pensamos a subjetividade como formada por processos históricos, sociais, físicos, pela mídia, por sistemas de sensibilidade, ou seja, não há um único determinante da subjetividade, mas vários processos, nesse sentido, podemos dizer que tanto a subjetividade quanto o grupo não remetem a uma unidade ou totalidade. Nesse sentido, cabe-nos desmontar a equivalência subjetividade - indivíduo. Este modo de subjetivação é um dos modos possíveis, o qual esta sociedade pôs a funcionar.
Para além e aquém do modo-indivíduo o que há são os processos de produção que compreendem vários tipos de individuação. Como diria Foucault, segundo Deleuze, tanto individuações do tipo sujeito como acontecimentos sem sujeito, um vento, um som, uma hora do dia, uma batalha. (BARROS, S/d, p. 149)
Em acordo com os autores que usamos para problematizar e pensar grupos, vemos estes como Acontecimentos, isto é, como uma inversão no campo de forças, produzindo rupturas, decompondo o que se apresenta como totalidade excludente, sendo datado e localizado, funcionando por conexão e contágio, criando outros modos de experimentação da vida, desmontando territórios cristalizados (Coimbra e Neves, 2002). São pensados ainda como dispositivos, como máquinas abertas à conexões e multiplicidades. Nesse sentido, não podemos concordar com teorias as quais mantém presentes as antinomias indivíduo/sociedade, singular/coletivo. O grupo quase sempre é visto como uma totalidade, tendo uma essência, ou mesmo predisposições latentes para determinadas ações.
Como diz Barros (1997, p. 185):
Um grupo, entretanto, pode não ser visto apenas em sua configuração molar. Ele é um composto, um emaranhado de linhas.
Apostamos nos eixos transversais, de modo que as conexões são permanentes e não sucessivas umas as outras, mas são possíveis de engendramentos, pois, o grupo só pode ser tomado pelo meio onde há um modo rizoma, ou seja, aquele modo em que não se sabe onde começa e onde termina; porém, pode-se acompanhá-lo pelas conexões que vão se montando.
Nesse sentido, abre-se a perspectiva com os grupos dispositivos a qual está inserida uma proposta ético-estético-política, estando em questão os modos de produção de subjetividade, direcionados não para os modos indivisos privados/íntimos, mas sim, para modos-grupos-múltiplos-coletivos. A questão ética que se coloca é a busca da afirmação de outros modos de experimentação da vida. A opção estética é que vai garantir os modos de criação, invenção permanentes. A opção política implica em estar conectado com esse campo coletivo-múltiplo, onde as diferenças que se expressam não param de se ramificar.
No trabalho com o grupo, há o confronto com outras matérias de expressão a provocar a constituição de processos de subjetivação: indivíduo-máquina, ou seja, trocas infinitas que insinuam à pessoa virtualidades plurais de recompor uma corporeidade existencial, romper com seus impasses de um círculo repetitivo de ações e, de alguma forma, de se singularizar.
Barros afirma em sua tese de doutorado (1994), que grupos, indivíduo e a sociedade funcionam no mesmo registro: modo totalizante, individualizante e o grupo, gerido pelo modo indivíduo vive os conflitos do indivíduo e, com ele, torna-se conflitante. "Modo indivíduo" e grupo acabam por serem pretendentes ao lugar da verdade, na busca de uma identidade. Com isso, acabam por capturar-se ao mesmo modelo dicotômico indivíduo e sociedade que, há anos, vem sendo produzido.
Diz Barros (1994, p.432):
Quando desmanchamos a equivalência subjetividade/indivíduo, também o grupo-indivíduo se desmancha, criando condições para que se montem, autonomamente, novos territórios com os componentes de subjetivação. O grupo-substancializado só faz sentido se reconhecemos o modo-indivíduo como único, isto é, se acreditamos que o ser se esgota em algum de seus modos.
Nossa trajetória indica posição de se falar em cartografias grupais. Este termo, cartografia tomado de empréstimo da geografia nos permite dar visibilidade a outros territórios concomitantemente a construção destes. Assim a partir do entrelaçamento de várias das cartografias, as quais nos permitem dar visibilidade a um campo de forças em luta por si só, pois são múltiplas porque são coletivas. Como cartógrafos, cabe-nos dar passagem a essas forças que não deixam de atravessar o campo grupal, dando escuta e realizando uma análise das formações desejantes que atravessam o campo social, o qual também é cartografado.
Nessa proposta, o que fazemos é, "acompanhar os movimentos coletivos do desejo" (Barros, 1994, p.434), apontando as naturalizações e colocando-nos no lugar de intercessores, lugar este que dá passagem aos devires. A intercessão está ligada aos processos de criação e esta é a via estética. Esta via leva-nos a problematizar. Põe-nos a pensar e a criar outros modos de subjetivação, onde se afirma a diferença. "A diferença é o que se produz no mundo como capacidade de provocar outras diferenças e é aquilo que se consegue escapar da fala única" (Barros, 1994, p.434-5).
O grupo transforma-se em rizomas, quando singulariza as diferenças, de tal modo que a intercessão aconteça entre os estranhos em mim, em contato com os estranhos no outro. "A dimensão estética é a da composição/recomposição de universos de subjetivação" (1994, p.435).
O grupo, entendido como dispositivo, ou seja, como aquilo que põe a funcionar os modos de expressão de subjetivação, produz processos de individualização. É esta a nossa ferramenta política.
Máquina de decomposição de verdades absolutas, de noções tomadas como naturais e universais, o grupo dispara confrontos entre expressões do modo indivíduo vigente. Ao tomar os enunciados como remetendo não a sujeitos individuais, mas coletivos, a percorrer os caminhos maquínicos do desejo que não se esgotam nas vivências individualizadas, o grupo dispara desconstruções dos territórios enclausurantes da subjetividade. Entrar em contato com as multiplicidades que flutuam, não almejando equilíbrios, mas a invenção de bifurcações de um tempo que é maquínico - tempo das intensidades -, eis a via política de nosso paradigma. Grupo-dispositivo, grupo máquina: via entrada que nos faz entender as armadilhas de um modo serializado de produção do indivíduo e do grupo. Dispositivo-instrumento que nos auxilia a por em questão a problemática da economia do desejo sob nova óptica, escapando à idéia de falta jamais preenchida, dado que o que se quer é expansão. Máquina-instrumento que se conecta a outras máquinas: técnicas, ecológicas, sociais, semióticas. (Barros, 1994, p.436)
O grupo ou a entrada grupal, como designa a referida autora para a qual o paradigma ético-estético-político nos abre é a de uma subjetividade que experimenta, que se implica em outros modos de composição; a de uma subjetividade que se produza de formas diferentes, de uma subjetividade que esteja aliada com os processos coletivos que a produzem.
É, portanto nessa perspectiva que trabalhamos teoricamente os grupos, como sendo coletivos em intercessão, num plano rizomático, produzindo diferentes modos de subjetivação. O grupo será entendido por nós como um entre, transversalizado pelas três linhas, dura, flexível e de fuga, com suas respectivas máquinas acopladas aos agenciamentos. As linhas duras são cristalizantes, homogeneizantes, formam territórios, identidades que vão se compondo e decompondo por meio de linhas flexíveis, de movimentos, acontecimentos e devires que desterritorializam esses territórios cristalizados, virtualizando linhas de fuga, que provocam ruptura, criação, invenção e singularização atualizando o novo.
Buscaremos extirpar de nosso trabalho, atos de classificações que transformam experiências de vida, em processos de vitimizações, criando categorias de normais e desviantes, bem como cidadãos de bem e outros.
Como diz Rodrigues (1998, p. 74- grifos do autor), que para pensar, praticar de outro modo,
É imprescindível este pensar pelas pontas, instalando-se, as custas de muito esforços entre ou no meio. Aqui pensamos que a subjetividade pode aparecer como algo da ordem do produzido por componentes heterogêneos, como eminentemente social, em permanente construção/processualização. Tomar pelo meio é prática interventora, intercessora, minimamente aberta às virtualidades ilimitadas das forças em suas composições e decomposições, desaprisionada de modos pré-determinados ou pré-inscritos e previsíveis ou redundantes de subjetivação.
Percebendo dessa forma, estaremos indagando, a todo o momento, como esses grupos funcionam; se funcionam através de inquietações, rachaduras, produzindo devires, ou se funcionam de modo intimista, territorializado, acoplado às subjetividades produzidas pela ordem dos equipamentos coletivos que gestam modos únicos de pensar e ser.
Para isso, dizemos que portamos uma caixa de ferramentas que são mais que referenciais teóricos, pois vão nortear no que funcionam, como assinala Coimbra (1998, p. 75):
Menos para si mesma que para martelar, aplainar, aparafusar e desparafusar, conectar e desbloquear, etc, as forças e formas componentes de socius. O conhecimento das ferramentas que a caixa contém não pode, por conseguinte, preexistir a seu trabalho enquanto dispositivo de narrativa/figuração/subjetivação.
O que significa dizer que não há um a priori, conceitual universal imposto aos acontecimentos produzidos pelo grupo e sim, que os conceitos serão produzidos no meio deles, entre eles (acontecimentos). E que esses conceitos tem como utopia ativa, abrir canais para a multiplicidade.
Contextualizando o estabelecimento em que intervimos
A prática ora cartografada é um recorte de acontecimentos produzidos durante o ano em que intervimos em um estabelecimento de atendimento a infância e a adolescência consideradas em situação de risco pessoal e social, tal estabelecimento localiza-se em uma cidade do interior do Estado de São Paulo.
Neste primeiro momento nos cabe contextualizar a intervenção proposta, bem como os paradigmas que embasam a construção e a manutenção do estabelecimento em questão.
Achamos pertinente fazer um breve histórico do processo de construção social da infância e a adolescência bem como das práticas de proteção destas. Podemos assinalar um primeiro momento datado no período colonial, em que se destacavam as práticas assistencialistas que tinham como símbolo maior as Rodas dos Expostos instaladas nas Santas Casas de Misericórdia. As crianças por eles acolhidas eram em sua maioria frutos de uniões ilegítimas ou filhos de escravas que eram abandonados.
A partir do século XX, com o surgimento de práticas higienistas voltadas para a infância, esta se torna um objeto de estudo bem como de investimento, pois as crianças e adolescentes passam a serem vistos como "futuros cidadãos", necessários para a construção do país. Neste período se destacam a filantropia e surgem os primeiros institutos educacionais voltados para a infância.
Em 1927 é promulgado o Código de Menores o qual contextualiza e legitima o imaginário social de que a criança pobre deve ser cuidada a fim de se evitar um futuro criminoso. O termo menor é pejorativo na medida em que estabelece uma relação intrínseca entre criança pobreza e marginalidade.
Em 1942, no contexto histórico do Estado Novo, cria-se o SAM(Serviço de atendimento ao Menor) que era um órgão do Ministério da Justiça, de orientação correcional e repressiva. Por volta de 1970, no contexto da tomada de poder pelos militares é criada a Funabem (Fundação Nacional do Bem Estar do Menor) em substituição ao SAM, e a nível estadual as Febems (Fundação Estadual do Bem-Estar do Menor). Em 1979, é promulgado um novo código de menores, devemos ressaltar que as instituições criadas nesse período ganhavam maior importância do que os próprios "menores".
Em 1990, é promulgado o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), sendo editado em um período de redemocratização do país. A partir do ECA, as crianças e os adolescentes passaram a ser vistos como cidadãos de direito, permitindo também uma reflexão do termo menor embora este ainda seja aplicado. Nesse sentido, ainda vemos não só o termo menor ser aplicado, mas também as práticas decorrentes a essa terminologia em relação a crianças e adolescentes pobres.
O estabelecimento em que intervimos tem sua fundação concomitante ao nascimento das FEBEMs, tendo como objetivo atender a parcela de empobrecidos socialmente, oferecendo-lhes profissões.
Este se propõe a atender crianças e adolescentes com idades entre sete e quatorze anos. O critério usado para a seleção destas crianças é que os mesmos estejam devidamente matriculados em uma escola pública, com assiduidade comprovada. Essas crianças ficam, dessa forma, apenas meio período na entidade e o outro na escola em que freqüentam. As vagas são preenchidas através de uma avaliação da situação familiar, dando-se preferência às famílias mais carentes. O estabelecimento oferece as seguintes modalidades de atendimento: atividades educacionais; atividades lúdicas; atendimento psicológico; atendimentos assistenciais; cursos pré-profissionalizantes (marcenaria, cana da índia, bordado e auxiliar administrativo); higiene pessoal; ambiental e prevenção de doenças, atendimento psicológico realizado em duas frentes: psicopedagogia e os grupos por nós realizados.
Trata-se de um estabelecimento sem fins lucrativos, mantidos por parcerias e pela comunidade local. Foi fundado há trinta anos por um frei da Ordem dos Capuchinhos.
A fundação desse estabelecimento ocorreu numa época em que se falava muito em "criança e adolescente em situação de risco pessoal e social". Na verdade, este termo é utilizado até hoje, mas foi nesse momento histórico (ditadura militar) que essa concepção passou a ser referenciada e junto com esse estigma passou a ser criado um conjunto de ações preventivas para com esta população. Para isso, o aparelho estatal incentivou a criação de estabelecimentos, bem como de programas de intervenções, que visassem uma reeducação dessas crianças e adolescentes para que estes não se tornassem futuros delinqüentes e marginais. E com esta "filosofia de trabalho" a figura de "criança e adolescente em situação de risco pessoal e social", foi sendo construída historicamente, não de modo linear, mas em processos descontínuos, como nos diz Foucault (in Rabinow & Dreyfus, 1995).
O frei, fundador do estabelecimento, percebendo o alto índice de pobreza da cidade e o alarmante número de crianças que ficavam pelas ruas, deu início a um trabalho assistencial que objetivasse tirá-las das ruas e ocupá-las com atividades de cunho educacional e também atividades profissionalizantes.
Os agentes institucionais acreditavam que um dado importante a ser revelado a nós enquanto interventores era o fato de que grande parte da população apresentava problemas psicológicos e/ou de aprendizagem. Nesse sentido, a nossa entrada se daria de forma a "corrigir" estes problemas. No entanto, não correspondemos a esta demanda que nos foi trazida, pois não víamos nesses adolescentes o perfil de "adolescente problema", intervimos, portanto desnaturalizando esses discursos rachando-os a fim de construirmos junto a estes adolescentes novas práticas, não classificatórias nem tampouco psicologizantes.
A prática grupal derivada desses conhecimentos
Atuamos em coordenação compartilhada junto aos grupos de adolescentes dentro da perspectiva de trabalho descrita acima a qual pensa o grupo como um dispositivo. Nesse sentido, como nossa prática não pretende psicologizar ou normatizar os indivíduos com que lidamos nos valemos de alguns conceitos da Análise Institucional dentre os quais os analisadores históricos que são entendidos por "um acontecimento, um movimento social, que vem ao nosso encontro, inesperadamente, condensando uma série de forças até então dispersas. Neste sentido, realiza a análise por si mesma, a maneira de um catalisador químico de substâncias"(Rodrigues, 1992).
Para melhor visualizar nossa prática pretendemos ilustrá-la com os seguintes analisadores históricos: "dia da bagunça", passeios como forma de habitar novos territórios e o Movimento Hip Hop com ênfase no Break.
Dentro das expectativas em relação ao grupo, que apareceram em um encontro, nos chamou a atenção o pedido de vivenciar uma hora e meia de bagunça. Pensando no desejo deles de se apropriar deste espaço, disponibilizamos uma hora e meia de bagunça, no intuito de produzir novas formas de afectação para aquele grupo.
Os adolescentes foram para a quadra com duas coordenadoras e uma terceira permaneceu montando a sala para a "uma hora e meia de bagunça". Levamos vários materiais que ficaram dispostos na sala para que os adolescentes se apropriassem deles de forma que fosse possível promover movimentos de fissura, liberdade de expressão e produção. Para isso contamos com: vídeo, rádio, TV, filme, música, revista, livros, bolas, canetinhas, lápis, papel, galões de água, barbante, corda, garrafas plásticas, rolinhos de papel higiênico, cola, tesoura, etc e dispusemos esse material livremente pela sala sem que eles soubessem ou vissem o que estava por acontecer.
Assim que a sala foi montada e com o rádio e a TV ligados ao mesmo tempo pedimos que entrassem e dissemos que eles poderiam fazer o que quisessem já que uma das espectativas em relação ao espaço grupal era de vivenciar uma hora e meia de bagunça.
A primeira reação deles foi de observar e explorar o que estava disposto na sala. Logo os meminos pegaram a bola e chutaram pela sala as meninas produziram arte com os materiais de papel através de recorte e colagem. Alguns leram outros comandaram o rádio. Os galões de água ora viraram tacos de beisebol, ora tambores de som e filhos de um dos integrantes do grupo. A TV foi o estímulo menos procurado pelos adolescentes. Além, de ficarem na sala, os meninos saíram pelo estabelecimento com a bola e com os galões de água, ora batucando, ora com o taco de beisebol, ora como filho.
Podemos observar que neste segundo momento, diante de vários estímulos e possibilidades, os adolescentes revelam sua capacidade inventiva alterando significado dos objetos, dando um outro sentido a eles.
Dando escuta para o desejo do grupo, percebemos que os momentos de caos e bagunça puderam ser também momentos de criação. Desnaturalizando as regras de ordem e disciplina que são constantes no estabelecimento, o grupo pode se apropriar daquele espaço dando visibilidade a uma nova ordem e organização que partiu do desejo grupal e não das normas de manutenção do instituído.
Um outro analisador por nós percebido foi o interesse despertado por um grupo pelo Movimento Hip Hop, isto se mostrava desde o primeiro encontro do grupo, entretanto, em um encontro alguns garotos levaram uma fita de vídeo de campeonato de break.
Em um outro encontro, levamos ao grupo um CD de Rap e algumas revistas de Hip Hop. Como o Movimento Hip Hop era algo que estava se expressando bastante no grupo, pensamos em levar materiais a fim de disparar no grupo possíveis discussões tais como as letras das músicas, cidadania, história do Movimento Hip Hop, ou o que emergisse no grupo. Deixamos o grupo bastante à vontade, a fim ou de dançarem ou verem as revistas, começamos a conversar sobre as letras dos raps, seus significados até que surgiu a idéia de escrevermos uma letra de rap. Não escrevemos uma letra inteira apenas um ensaio no qual falava sobre a vida na rua, drogas e crime. Conversamos com os adolescentes sobre o que significava a rua para eles, se só havia coisas ruins, o que são estas coisas ruins, se há coisas boas e o que significa para eles esse algo bom. Tentamos desmistificar a idéia de rua como sinônimo de perigo, sem banalizar a questão da violência, das drogas e da prostituição trazidos por eles. Alguns meninos se interessaram mais outros menos, mas o break sempre esteve presente.
Segue agora a transcrição da letra produzida pelo grupo:
"Dia-a-dia
A vida na rua não é fácil não
Muita violência e também muito ladrão
Morte na rua não é muito bom
Também tem droga e quem passa é o cabeça ou o avião
Mas o preço que você paga pelo resultado não é barato não
Mas será que tem solução?
Tinha um camarada que tocava na igreja
Hoje ele vive dia-a-dia só na correria".
Outro analisador histórico que se destacou foram os passeios como forma de inscrição em outros territórios sendo possível problematizar o espaço da rua. Um dos grupos em um dos encontros saiu pela cidade com uma máquina fotográfica, "clicando" e registrando lugares dos bairros em que residiam. Outro grupo pôde nos mostrar a cidade de posse de uma máquina fotográfica, tiraram fotos dos paqueras, tiraram fotos entre eles, também com as coordenadoras do grupo e de lugares da cidade que se interessavam. Em outro momento dois grupos puderam fazer dois passeios ao Campus da Unesp de Assis.
Um episódio que bem ilustra o analisador histórico passeio e o Movimento Hip Hop, foi quando, em um encontro anterior às férias, reunimos os quatro grupos coordenados pelo núcleo de estágio. Realizamos um passeio em um parque chamado Parque Buracão, localizado na cidade de Assis; passamos o dia juntos, levamos bolas e lanches para passar o dia. Quando chegamos à instituição um garoto nos perguntou se um amigo podia ir junto para eles dançarem Break, prontamente permitimos, arrumamos uma extensão caso no parque fosse difícil ligar o rádio. Perguntamos se haviam levado CDs, nos disseram que não, logo combinamos que assim que chegássemos os buscaríamos. Também tivemos a idéia de convidar alguns integrantes do grupo Força Break com os quais também trabalhamos, para participarem deste "passeio".
Durante a manhã o grupo se apoderou do espaço, jogaram basquete, vôlei, passearam pelo parque, alguns perguntavam para nós se morávamos naquela cidade, como era morar sem a família.
Logo os meninos da "Força Break" convidados por nós foram até o parque, eram todos mais ou menos da mesma faixa etária, de início ficaram meio tímidos, mas se misturaram logo com os meninos do estabelecimento que intervimos, começaram a perguntar se não iriam dançar, até que começaram, quando vimos estavam todos juntos, a roda de racha de break que estava pequena ficou maior, criando um clima de descontração. Tiramos fotos, foi uma experiência bastante produtiva, passar o dia com os quatro grupos, onde foi possível a troca de experiências, fez-se novos contatos com os grupos, tanto com os adolescentes como com os de Break de Assis, nos permitimos afectar e ser afectados, dando passagem ao novo e ao inusitado, pensando o grupo não como algo pronto , mas como um dispositivo.
Conclusão
Com alguns exemplos de nossa prática, procuramos mostrar como temos buscado com o grupo engendrar possibilidades de recriação da vida. Pensamos a visita ao Campus como algo que permitisse aos adolescentes se apropriar da cidade e da faculdade como um espaço público assim como flâneur os colocando em contato com uma diferente realidade a qual eles podem também fazer parte. A proposta do grupo sempre foi perceber os movimentos dos adolescentes assim como provocar inquietações através de problematizações que os levassem a romper o instituído e cristalizado dentro do estabelecimento como também em suas vidas. Desse modo, pensamos o grupo como um dispositivo, não pretendemos atender a demandas que colocam os adolescentes em lugares de portadores de "problemas psicológicos", lugar este que os próprios adolescentes não ocupam uma vez que estes escrevem letras de música, elegem lugares de seus passeios. Enfim, nos propomos a fazer do grupo, junto aos adolescentes, um dispositivo de singularização, ou seja, de expansão e recriação da vida, nas palavras de Foucault, vida aqui é pensada como uma obra de arte.
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