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An. 1 Simp. Internacional do Adolescente May. 2005

 

A letra desmobilizada: reflexões sobre a perseguição de uma miragem na escrita de jogadores de role-playing game (RPG)

 

 

Thomas Massao Fairchild

Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo. Programa de pós-graduação em Educação

 

 

"Observo esse povo que joga RPG: calça jeans, camisetas de grupo de rock, anéis de caveiras, brincos, piercings, tênis e sempre, uma mochila. O que eles trazem nestas mochilas? Observo a mochila de um mestre aberta sobre a mesa, de dentro dela saem dados, canetas coloridas, uma pasta preta dessas tipo arquivo com fichas de personagens, alguns desenhos de personagens, um caderno de notas, e livros, muitos livros. Os mestres de RPG quase sempre têm mochilas recheadas de pesados livros."1

 

Esta talvez seja a impressão mais marcante de qualquer outsider que se aventure num dos grandes eventos que congregam jogadores de RPG a cada tantos meses: um doce estranhamento, quiçá com as cores daquele sentimento freudiano que se chama unheimlich. Há de fato alguns sinais, alguns índices identificatórios – parte deles opera, sem qualquer inocência por ambas as partes, observador e observado, como marcadores da diferença; outros deslizam quase despercebidamente para o terreno das igualdades.

Durante as pesquisas de Mestrado, se me tornou bastante claro que há uma crescente conscientização, por parte dos próprios jogadores, de alguns desses traços que supostamente os caracterizam, ou pelo menos um dizer esses traços cada vez mais prolífico, crescentemente organizado. A uma parte disso chamei o "discurso de escolarização do RPG", expressão com que buscava englobar a produção, na própria linguagem, do RPG como objeto de relevância para a escola. Evocar o RPGista como leitor e escritor espontâneo mostrou-se, nesse contexto, como um aspecto do trabalho indiciário pelo qual vem se efetuando a releitura do hobby em método de ensino: a partir de um traço atestado pelo olhar, a mochila do mestre captada por Pavão, o discurso dá conta de equacionar a presença do livro a todo um universo de leituras escolares, leituras legítimas e, exatamente por isso, desejadas.

Este trabalho nasce da constatação de uma defasagem: o fato de que, se há um discurso pelo qual se multiplica a auto-identificação do RPGista como leitor e escritor, não é com a mesma facilidade que se testemunham suas próprias práticas de leitura e escrita. Daí decorre um mote inicial: investigar o que produzem esses jogadores, como escrevem e lêem dentro da prática do jogo, para que, a partir de um conhecimento um pouco mais circunstanciado, seja possível enfim avaliar a pertinência de tais exercícios à jurisdição do ensino.

 

1. A cartografia de uma escrita desconhecida

Resta fazer uma demarcação metodológica: por que meios atingir essas práticas de leitura e escrita no turbilhão silencioso da atividade de jogadores de RPG desconhecidos? Que vestígios deixam essas práticas, passíveis de recolha sistemática, observação e análise?

A escolha por trabalhar sobre materiais produzidos por jogadores para o jogo ou devido ao jogo elimina outras opções igualmente válidas, como as descrições densas da etnografia ou as técnicas estatísticas do questionário. Ao nomear esse conjunto de dados genericamente como material produzido por jogadores, evita-se o uso da palavra "escrita", o que se deve a dois motivos: primeiramente, o fato de que o agrupamento dos dados não obedece a uma definição previamente formalizada (como, por exemplo, a noção de texto da Lingüística Textual), mas releva dos próprios critérios adotados pelos informantes ao fornecer seu material; em segundo lugar, dessa concessão aos critérios seletivos dos próprios informantes decorre que o conjunto sobre o qual se trabalhou inclui uma série de itens – mapas, desenhos, fotografias, tabelas, listas – que não se enquadram numa concepção anterior do que seja texto ou escrita, mas requerem a construção de uma.

O material foi reunido através de um chamado pela internet e do contato pessoal com jogadores no Centro Cultural São Paulo, ponto de encontro de jogadores aos fins-de-semana. Seis pessoas consentiram em fornecer material para o trabalho, que foi escaneado e devolvido aos informantes. O conjunto total pode ser mapeado através de uma tipologia que inclua as seguintes categorias (desde que se admita que não têm quaisquer fins operacionais de análise, mas apenas atendem à necessiade de descrição do corpus):

Escritos do jogador sobre sua personagem

1. Planilhas de personagem (fichas, geralmente fornecidas nos livros, em que se anotam as informações essenciais de uma personagem interpretada por um jogador).

2. Históricos de personagem (breves textos narrativos contando a história pregressa de uma personagem).

3. Diários de personagem (textos narrados pelo olhar da personagem de um jogador, relatando em primeira pessoa os enredos de sucessivas 'aventuras'2).

Escritos do mestre sobre a aventura

4. Roteiros de aventura (anotações, anteriores à sessão de jogo, para auxiliar o mestre na narração da aventura).

5. Sinopses de aventura (anotações, posteriores à sessão, com a finalidade de manter um registro do andamento de uma ‘campanha’3).

6. Textos de ambientação (descrições de cenários em que se ambienta uma aventura).

7. Compêndios de regras (descrições de regras a serem utilizadas pelo grupo durante uma 'campanha').

8. Objetos cênicos (objetos concretos, como mapas ou cartas, que representam objetos pertencentes ao enredo de uma aventura).

Essa tipologia (ou qualquer outra que se proponha em seu lugar) alerta sobretudo para o caráter inespecífico de um termo como RPG, e portanto a necessidade de explorar um campo novo antes de se adotar sua própria terminologia, sob risco de fazer desta um uso inadvertido ou ingênuo. O exercício de categorização serve para apontar que, sob o nome RPG, há um conjunto de práticas ou formas de jogar, um conjunto de impressos que prescrevem essas formas de jogar, um conjunto de "motes" ou "termos especializados" associados ao jogo4, um conjunto de materiais usados por jogadores para jogar5, e finalmente um conjunto de materiais produzidos por jogadores a partir dessa prática. Ao incidir sobre este último conjunto, fica claro que o trabalho não pretende dar conta do que sejam a "leitura e escrita no RPG", mas antes refuta o próprio emprego dessa noção, em especial quando se trata de argumentar em prol da adesão do professor ao que se lhe apresenta como um novo método. Ao lidar com a produção de jogadores de RPG, não se busca decantar as constantes que a tipificam ou definem; o que está em jogo não é uma categoria tal como "a escrita do RPGista", procedimento que implicaria dar prevalência a um princípio de homogenização e agrupamento dos dados sobre a singularidade dos próprios dados – o objeto de análise é a própria escrita, circunscrita por sua vez no recorte das práticas do RPG.

 

2. A letra, a imagem, a miragem

Trabalhar com o par leitura/escrita a partir do que os jogadores de RPG produzem em sua prática de jogo, sejam textos ou ilustrações, requer que se façam pelo menos dois acordos, o primeiro em relação à indispensabilidade do ler numa definição do que seja escrever, e, a partir daí, o segundo em relação à pertinência dos laços entre letra e imagem numa definição da escrita.

No primeiro caso, admite-se que uma dada forma de escrita é sempre acompanhada por uma forma de leitura que a modifica à medida que ambos os procedimentos se efetuam, de forma que os produtos sucessivos da escrita – diversas versões de um mesmo texto, suas rasuras e refacções – trazem as marcas de um sujeito leitor. Mais do que isso, o próprio sujeito é modificado nesse processo, na medida em que se estranha em seu enunciado, pois lê nele algo que não sabia ter escrito. Tal forma de produção é nomeada por Riolfi como trabalho de escrita e definida como

"(...) um trabalho de ocultação, através do qual a matéria bruta fica ocultada por uma ficção textual (narrativa ou argumentativa). Estou chamando de ficção textual o processo através do qual um escritor, ao mesmo tempo que ficcionaliza para terceiros o percurso de seu pensamento pregresso ao texto, consegue, através deste esforço, recuperar para si próprio o inatingível processo de enunciação." (2003: 50)

Supõe-se, por contraste, que um texto sobre o qual não se efetue essa forma de leitura, isto é, uma escrita que se produz sem o apoio de um olhar que lê, deve trazer em si sinais que permitam distingui-la do primeiro tipo, mais ou menos como saberíamos discernir um desenho feito por alguém de olhos abertos daquele traçado por um desenhista vendado.

Este traço que é lido no trabalho de escrita, e pelo qual se torna possível lançar uma própria definição do que seja escrita, não é outra coisa senão a letra do inconsciente, isto é, um traço que confere a um ser o valor de significante. Ora, no decurso de nossas vidas somos expostos a uma imensa cadeia de dizeres que nos são endereçados; alguns passam despercebidos, sem deixar marcas, enquanto outros se escrevem em nós, justamente porque neles lemos algum sinal de quem somos e do lugar que ocupamos no mundo. Evidentemente o conjuto dessas sentenças – quer as tomemos no sentido lingüístico ou jurídico – não está deposto em algum arquivo ao qual tenhamos livre acesso, nem seríamos capazes de enumerá-las caso se no-lo solicitassem, donde o aforisma lacaniano: o inconsciente é o discurso do Outro (Lacan, 1998b: 18).

A inscrição no ser dessas marcas da palavra do Outro, vale dizer, a delimitação da letra no inconsciente, é a condição para a existência do sujeito no discurso: "O significante como tal não se refere a nada, a não ser que se refira a um discurso, quer dizer, a um modo de funcionamento, a uma utilização da linguagem como liame" (Lacan, 1985: 43). Para que haja trabalho de escrita, por conseguinte, é condição forçosa que haja uma implicação do sujeito no ato de escrever, um laço com o discurso cujo sinal mais evidente talvez seja o próprio efeito do discurso sobre o sujeito observado na série de seus escritos.

Há portanto um procedimento que aqui se denomia estritamente como escrita, no qual está implicada a intervenção de um saber inconsciente e seu alavancamento em constantes modificações do próprio escrito. Neste caso a produção individual será marcada pela constante reelaboração, pela produção de restos na forma de rascunhos abandonados, rasuras e borrões. Obviamente a interpretação dessas ocorrências não é imediata, como a análise a seguir deve mostrar, visto que há rasuras que não relevam de uma intervenção literal; todavia, sua produção é efeito necessário do trabalho de escrita. Por meio desta escrita o sujeito depara-se com um saber não-sabido e chega ao fim do processo diferente do que era no início.

Há, em contraste, um procedimento que se aproxima da escrita sem tomá-la por letra. Não se trata de ignorar o funcionamento das letras do alfabeto, o que alguma instrução vem sendo capaz de assegurar à maior parte das pessoas, mas de lidar com o texto fora do campo simbólico, fora do cálculo, externamente a qualquer possibilidade de posta em cena do novo. Neste caso o leitor lê apenas o que já sabe, talvez confirme suas próprias paixões e angústias na poesia de mestres, porque recolhe da página aquilo que já sabia estar lá. Trata-se de uma leitura imersa no sentido, o que permite equiparar seu objeto de comtemplação à imagem, que, diferentemente da letra, é indecifrável. Como atestar o sentido que tinham as gravuras de cervos e bisões para os homens que as pintaram nas paredes de cavernas? Muito diferente foi o destino dos leões e cobras que participam da escrita hieroglífica.

A entidade que se apresenta a este ser não é a letra, mas dela somente sua imagem, donde parece lícito descrevê-la como uma miragem.

 

3. Lagos e miragens: uma escrita entre hipóteses

Gabriel é um jogador de 22 anos que cursa Ciências da Computação na Unisa e declara que seu sonho é estudar Física. Mora na região de Interlagos e trabalha numa empresa de telefonia multinacional nas vizinhas do Centro Cultural. Tem uma longa experiência com o RPG: seu primeiro contato com o jogo, conforme relata, ocorreu aos dez anos. Já jogou diversos sistemas, e fala de uma longa experiência com grupos de live action, dos quais, todavia, se diz cansado. Gabriel entregou uma pasta na qual estavam armazenados mapas, ilustrações, roteiros de aventura, sinopses de aventura e planilhas de personagens, a maior parte relacionados a "mundos" ou cenários criados por ele e a campanhas neles ambientadas. Nessa pasta ainda havia um CD em que Gabriel se dispôs a gravar arquivos de texto contendo roteiros, sinopses, descrições de personagens, monstros e regras referentes às suas partidas.

A primeira página de um roteiro de aventura escrito por Gabriel está transcrita abaixo.

 

 

 

Trata-se de um texto instrucional, presumivelmente destinado a guiar um leitor na narração de uma aventura idealizada por Gabriel. O título em inglês aponta para a filiação anglo-saxônica do universo cultural que rodeia o RPG, o que Gabriel demonstra aceitar em boa medida – encontram-se no seu material outros comentários em inglês, sempre à margem, mas também por isso em posição de destaque: lê-se a expressão "Dungeon Master’s Cut"6 manuscrita ao topo da página inicial de um roteiro de aventura impresso, e o título de uma campanha relatada alhures é "Nightfall in the Middle-Earth", não "Crepúsculo na Terra Média"7. Para além dessa reprodução de sinais de pertencimento, todavia, um pequeno acidente pode lançar luz sobre a escolha implícita no uso de um palavra inglesa para abrir um texto em português. Ao entregar seus escritos, Gabriel acidentalmente aviou também uma carta remetida por uma garota com a qual se corresponde na China. A carta estava escrita em inglês, e a partir dela podem-se tirar algumas considerações: primeiramente, que Gabriel deve ler, e provavelmente também escrever, em inglês; em segundo lugar, que, se mantém tal sorte de correspondência, o domínio de uma língua estrangeira deve ser alvo de investimento de tempo e esforço, já que através dela Gabriel mantém um vínculo com outra pessoa. Dessa forma, no conjunto do material entregue pelo informante há pistas de que a emergência de "Adventure" ao topo da página mostrada acima responda não apenas como sinal iniciático de conquista, nem tão somente a um assujeitamento a certa tradição, mas encontre solidariedade em algum movimento do sujeito.

O texto é composto pela intercalação de segmentos narrativos e instruções codificadas. Pode-se supor que os trechos narrativos destinam-se à leitura em voz alta ou à organização e memorização da narrativa do mestre em partes; as instruções codificadas indicam pontos de interrupção da narrativa em que o jogo se abre para a participação dos jogadores. Na linha 10, por exemplo, "Teste de Iq" pode ser lido como "neste ponto da história os jogadores devem executar um teste de inteligência8 em suas personagens. Em caso de sucesso, narrar-lhes que sentem oscilações na água ou ouvem um barulho de respiração, o que se deve à existência de um certo número9 de crocodilos nas proximidades". Esta forma de construção do texto, da qual participa inclusive o uso de duas cores, parece seguir um modelo mais ou menos estável entre as publicações de RPG, como sugere este excerto da revista D20 Saga nº 1, p. 9:

"Os textos em azul são informações aos jogadores e devem ser lidos em voz alta; as caixas de texto em destaque (demarcadas com um retângulo), bem como as estatísticas de monstros e PdMs [;personagens do mestre] servem apenas para uso do mestre."

Se por um lado desponta no texto de Gabriel esse modelo canônico dos próprios textos de RPG, por outro há que se levar em conta que a escolha do suporte – uma folha de caderno, o uso de caneta esferográfica – remete a um segundo modelo, mais próximo à escrita escolar. Gabriel mostra, assim, certa disciplina no uso da folha que sugere uma imagem de texto fortemente marcada pela instrução escolar. Se tomarmos a expressão ao pé da letra, suspendendo o impulso leitor e olhando para o texto efetivamente como uma imagem, isto é, como uma área preenchida por marcas de tinta cujo peso se distribui mais ou menos de acordo com alguns princípios (note-se a linha vertical vermelha à esquerda), perceberemos então que, antes mesmo de se implicar a linguagem, está atestada aqui a apropriação de alguns traços da escrita pelo princípio de semelhança. Não pensaríamos que a Figura I representa qualquer coisa que não um objeto portador de texto, mesmo que a observássemos de uma distância à qual não conseguíssemos discernir o traçado das letras: a preensão da escrita se dá, se não exclusivamente, ao menos também pela via do imaginário.

Resta saber: para além dessas duas imagens de texto que norteiam o trabalho de Gabriel, há efetivamente um trabalho de escrita? Localizamos quatro rasuras na página reproduzida acima: duas delas, nas linhas 2 e 28, consistem numa troca de letra (escreve-se um "c" onde viria um "s", logo em seguida corrigido); nas linhas 17-18, a expressão "em frente" é riscada e substituída por "calmamente", eliminando a repetição; ainda na linha 18, antes de "gradativamente" há uma letra incompreensível que Gabriel rabiscou.

O primeiro caso é certamente instigante, embora não haja elementos sobre os quais fundamentar uma hipótese de maior alcance. Pode-se supor que a troca de "c" por "s" decorra do fato de que, na língua portuguesa, há situações em que as duas letras são homófonas e situações em que não são; além disso, tanto "c" quanto "s" são letras capazes de portar dois fonemas (/s/ e /k/; /s/ e /z/) conforme o contexto. A emergência de uma letra no lugar da outra talvez remonte a um recalcamento ainda não plenamente efetuado sobre esses campos de exclusão.

O segundo caso parece menos críptico, já que se pode atribuir o descarte de "em frente" como forma de evitar uma redundância detectada no âmbito da própria frase. Há uma interrupção no eixo sintagmático que leva Gabriel a perder de vista, por um momento, a primeira ocorrência da expressão que riscará. Em seguida, parece que há uma reapreensão do trecho em que se dissolve essa interrupção, tornando evidente a presença da duplicação. Gabriel a elimina. Pode-se cogitar acerca de um retorno ou uma insistência marcados nas assonâncias que salpicam o parágrafo: em frente, calmamente, gradativamente, novamente.

Do último caso pouco se pode extrair, já que a rasura se apresenta ilegível, a não ser a própria existência da rasura, sua posição no texto. Como se posiciona logo antes de um dos elementos da série assonante deste parágrafo, é possível que indique, assim como a duplicação do "em frente", a tentativa de erupção de um elemento inconsciente. Todavia, é mais seguro concluir apenas que a presença dessas rasuras sinaliza o fato de que esta versão do texto não foi precedida por rascunhos10, o que está em acordo com a análise de alguns vestígios de um modo de operar com a linguagem inscritos em sua composição.

Com efeito, o trecho entre as linhas 23 e 29 guarda as marcas de um procedimento bastante específico. Nesse parágrafo aparece em realce a tentativa de depurar um certo efeito nos jogadores, o que se vê pelo encadeamento de diversas elaborações descritivas: "estranha mais saudosa calma", "aguas claras e calmas", "a luz do por do sol adentra nessas águas". Não obstante, a tentativa de Gabriel é caracterizada, justamente, por um espraiamento horizontal das hipóteses de texto. O número reduzido de rasuras e a hipótese da inexistência de versões anteriores apenas sustenta a tese de que, no modo de escrever de Gabriel, não há um trabalho de depuração do texto através do ocultamento de formulações rejeitadas, mas o acúmulo progressivo dessas formulações conforme a lógica da fala.

A ausência de pontuação no trecho que abrange as linhas 24 e 25 sugere um fluxo metonímico em que a própria regulação sintática se rompe, uma vez que o encavalamento das orações gera um efeito de ambigüidade (não detectado pelo escritor a tempo de reelaborá-lo).

Seja qual for a leitura que se adote, falta pelo menos um sinal de pontuação neste trecho: logo após "aproximarem", na hipótese (1), ou antes de "ao vocês se aproximarem", na hipótese (2). A falta desse sinal, que se pode assumir como sendo um ponto, conduz a duas hipóteses.

A primeira delas é a do lapso: Gabriel sabe que seria necessário um ponto nesse trecho, mas não o colocou porque, tendo aderido inicialmente à hipótese 1, foi acometido por uma segunda hipótese da qual o segmento S2 participa por homofonia, embora tenha lá outro sentido. Um efeito de metáfora coloca S2’ no lugar de S2 e desloca Gabriel da hipótese (1) à (2). A quebra de sintaxe sugerida pela ocorrência inesperada do pronome "vocês" marca essa passagem, visto quea formulação esperada seria "ao se aproximarem", oração reduzida que implicaria, na sua seqüência, uma oração principal cujo sujeito fosse "vocês" — a falha em cumprir com essa exigência no eixo sintagmático faz o sentido retroagir sobre ele, causando um deslizamento no eixo paradigmático.

Esta conjectura admite a implicação da letra do inconsciente, uma vez que a metáfora descrita acima só é possível dentro da lógica do rébus de transferência (Allouch, op. cit.: 145). Vale dizer: o segmento S2 é tomado como bloco ideogramático e em seguida esvaziado de todo sentido, passando a valer apenas pelo som que representa — o que é precisamente o mesmo que dizer que S2 entra como letra para escrever, por aproximação fonética, S2’.

A segunda hipótese é a da ignorância: Gabriel não sabe que deveria haver um ponto no trecho em questão. Neste caso, é possível supor que, ao menos do ponto de vista de quem escreve, não há ambigüidade. Uma única hipótese de texto prevalece, mas devido à falha no uso do código que recebe do outro, essa hipótese não se escreve, lançando o leitor ao indecidível da imagem – pergunta-se, então: o que terá ele querido dizer com aquilo?

É possível que Gabriel implicite ao seu texto escrito uma sintaxe entonacional ou prosódica, que ele mesmo resgata na releitura de seu texto. Se assim for, ao reler-se, Gabriel não tem qualquer possibilidade de modificar o texto, não tanto porque ignore o uso convencional da pontuação, mas porque, estando ancorado na escrita como representante mimético da fala, e da sua fala mais propriamente, tudo o que poderá ver na folha é um vestígio de seu próprio desejo, uma marca banhada de sentido que, ao ser tocada pelo olhar, faz acender a chama de sua verdade. O retorno sobre o próprio texto não resgata propriamente aquilo que a pragmática chama de locução, mas, passando ao largo do simbólico, promove um retorno, no real, dos aspectos ilocutivos da enunciação. Não se trata assim de uma releitura, tanto quanto não nos tornamos Platão ao ler Platão, mas de uma experiência de outra ordem, um reviver do ato de escrita que não se pauta propriamente no sentido, mas na própria persistência daquilo mesmo que escapa à enunciação. O caráter alucinatório dessa experiência é o que permite chamar miragem a esse preenchimento da letra em imagem.

O trecho seguinte, extraído de outro texto de Gabriel, traz uma ocorrência idêntica:

Neste caso, a segunda oração, nas linhas 10-11, parece sugerir que no lugar de "quando" (S1), na linha 9, deveria estar a palavra "ele" (S1’). Todo o trecho "foi criado por seu pai o deus Staret para proteger o certo do errado", S2, é homófono a um S2’ que participa de um período parcialmente escrito. A marca desse descarte seria o misterioso advérbio no início do período, marca de uma ambigüidade que, neste caso, forçosamente existe, mas que Gabriel não capta, vale dizer, não lê, perdendo uma alavanca para a reelaboração de seu texto.

Os segmentos analisados acima comportam a idéia de uma aceleração horizontal da escrita, o que não implica uma ausência do trabalho inconsciente da linguagem, mas se define pela ineficácia do escritor em valer-se dessas intervenções para modificar o seu texto. As implicações desse ponto de vista são inúmeras. Primeiramente, dizem respeito à questão lingüística da oralidade e da escrita. Alguns procedimentos resgatados no texto de Gabriel refutam uma definição como a de que "as hesitações, as repetições e as correções não ocorrem no texto escrito, já que são apagadas e/ou substituídas" (Fávero et al., 2000: 66). Não será uma atividade de correção o truncamento das hipóteses nos dois exemplos estudados? Não há algo comparável à hesitação nas quatro rasuras mantidas por Gabriel em sua versão final do primeiro texto? Não há uma estratégia coesiva pela repetição em "ao vocês se aproximarem o lago é de aguas claras e calmas a luz do por do sol adentra nessas águas", nas linhas 25-27 do primeiro texto? É preciso admitir que essas "atividades de formulação" não são próprias da oralidade, mas da linguagem, e que há um modo de escrita que se caracteriza pelo seu apagamento sistemático.

Esta é a forma de escrever que esperamos que a escola ensine. Independentemente das razões pelas quais elejamos essa maneira de escrever como ideal, fato é que se trata de uma escrita que requer aprendizado, uma vez que se caracteriza por certos procedimentos que estão para além da atividade linguageira oral – as formas de ocultamento do trabalho de escrita. O fato de que Gabriel tenha percorrido todo o trajeto da educação básica, passado em um exame vestibular e ingressado em uma faculdade sugere que há um sistema de ensino pouco sensível para a diferença entre a escrita com a letra e a escrita-miragem; mais do que isso, sugere que há um sistema de ensino desinteressado em ler a letra. A forma como Gabriel produz seus textos apenas indica que em todo esse percurso bastou-lhe uma forma de produzir textos baseada fortemente no mimetismo dos objetos e práticas de escrita.

Esta observação finalmente põe em cheque a concepção de letramento no que ela enfatiza o domínio de fórmulas, usos e funções sociais da escrita (Colello, 1995; Soares, 1986, 1988; Tfouni, 1988, 1995, 1997). Fundamentando-se no materialismo dialético, a perspectiva do letramento concebe a dominação como um conjunto de procedimentos de expropriação dos meios de acesso à leitura e das condições de produção da leitura, donde se chega a uma concepção do texto como sobredeterminado pelas condições em que é lido e do leitor como privado de suas liberdades por um sistema opressor altamente eficaz. Embora seja necessário reconhecer os avanços desse viés em relação a algumas perspectivas da alfabetização, a reversão dessa mirada estabelece como alvo final do ensino o simples domínio de práticas de leitura e escrita autorizadas, como se o assujeitamento se encerrasse com a conquista da prosperidade sócio-econômica – como se lá houvesse uma transparência da linguagem perdida, uma limpidez ideológica que é apenas mascarada com astúcia.

Ora, se é verdade que a criança, muito antes de saber escrever, constrói sentidos e valores para a escrita através da observação das atividades dos adultos, e se mesmo aqueles considerados analfabetos trazem um saber sobre a escrita sem dela participar, é preciso fazer uma distinção. A efetiva entrada do sujeito nessa nova ordem só se dá por uma transformação qualitativa no modo como a apreende – a saber, a simbolização de uma bateria de elementos imaginários recolhidos na fase imediatamente anterior. Sob uma perspectiva pautada no letramento, este passo tende a se apagar ao mesmo tempo em que se projeta como alvo derradeiro de uma boa escrita a capacidade de reprodução eficaz das formas de escrita pré-existentes na sociedade, o que permite saídas como a de Gabriel.

 

4. Referências bibliográficas

ALLOUCH, Jean (1995). Letra a letra. Transcrever, traduzir, transliterar. Trad. de Dulce Duque Estrada. Rio de Janeiro: Campo Matêmico.

COLELLO, Silvia Mattos Gasparian (1995). Alfabetização em questão. 2ª edição. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2004.

FÁVERO, Leonor Lopes, ANDRADE, Maria Lúcia C. V. O., AQUINO, Zilda G. O. (2000). Oralidade e escrita. Perspectivas para o ensino de língua materna. 2ª edição. São Paulo, Cortez.

JACKSON, Steve (1993). GURPS: generic universal roleplaying system basic set. 3ª edição. Steve Jackson Games.

LACAN, Jacques (1998a). A instância da letra no inconsciente ou a razão desde Freud. In: Escritos. Trad. de Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, pp. 496-533

_________ (1998b). O seminário sobre "A carta roubada". In: Escritos. Trad. de Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, pp. 11-66.

_________ (1985). A função do escrito. In: O Seminário. Livro 20: Mais, ainda. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.

PAVÃO, Andréa (2000). A aventura da leitura e da escrita entre mestres de Role-Playing Game (RPG). São Paulo: Devir.

RIOLFI, Claudia Rosa (2003). Ensinar a escrever: considerações sobre a especificidade do trabalho de escrita. In: Leitura. Teoria & Prática. Revista da Associação de Leitura do Brasil. Unicamp. Campinas, volume 40, Jan/Jul, pp. 47-51.

SOARES, Magda Becker (1986). Linguagem e escola. Uma perspectiva social. Série Fundamentos, 3ª edição. São Paulo: Ática. SOARES, Magda Becker (1988). As condições sociais da leitura: uma reflexão em contraponto. In: SILVA, Ezequiel Teodoro da; ZILBERMAN, Regina (orgs.) (1988). Leitura. Perspectivas interdisciplinares. Série Fundamentos. São Paulo: Ática, pp. 18-29.

TFOUNI, Leda Verdiani (1988). Adultos não-alfabetizados: o avesso do avesso. Campinas, Pontes.

TFOUNI, Leda Verdiani (1995). Letramento e alfabetização. Coleção Questões da nossa Época, v. 47. São Paulo: Cortez.

TFOUNI, Leda Verdiani (1997). Capítulo 3. A escrita – remédio ou veneno? In: AZEVEDO, Maria Amélia; MARQUES, Maria Lucia (orgs.) (1997). Alfabetização hoje. 3ª edição. São Paulo: Cortez, pp. 51-69.

 

 

1 Pavão, 2000: 37.
2 Termo usado para designar uma unidade narrativa no RPG, supostamente coincidente com o tempo de uma sessão de jogo, embora uma mesma aventura possa demorar várias sessões para ser concluída.
3 Termo comumente usado para designar um conjunto de aventuras sucessivas envolvendo as mesmas personagens.
4 Pode-se pensar que termos como "vampiro", "aventura" ou "falha crítica" têm, no contexto particular do RPG, limites que, ao menos para os que participam do jogo, estão claros o suficiente para que não haja grandes desentendimentos. Obviamente não se trata de um único conjunto fechado de termos ou noções, mas isso não implica que, conforme a inserção e a experiência do jogador com os livros e com outros jogadores, não se estabeleçam alguns acordos, pontos nodais de amarração de um consenso.
5 Dados, miniaturas, tabuleiros, folhas para anotações, calculadora; neste conjunto seria possível incluir os próprios livros, quando usados para fins de referência in loco.
6 A analogia deve ser com "director's cut", expressão que no Brasil se traduz por "versão do diretor", isto é, uma nova versão de um filme antigo contendo cenas anteriormente excluídas.
7 Vale notar que "Middle-Earth" é um termo proveniente da obra de Tolkien, que não sabemos se Gabriel leu, mas deve conhecer por alguma via. "Nightfall in Middle-Earth", por sua vez, é o nome de um álbum da banda alemã de heavy metal Blind Guardian, baseado no livro "The Silmarilion", de Tolkien. Evidentemente o que está em jogo é mais do que o simples uso da língua estrangeira: tal uso apenas indicia a circulação de Gabriel por um determinado universo de referências.
8 Embora não saibamos que tipo de regras Gabriel e seus companheiros utilizavam para jogar esta aventura, tudo indica que a expressão "teste de IQ" advém do sistema GURPS (Jackson, 1993). Se for este o caso, trata-se de jogar três dados de seis lados e confrontar o resultado com o valor previamente determinado para a "inteligência" da personagem. Se o número obtido nos dados for maior, tem-se fracasso no teste; se for menor ou igual, o teste foi bem-sucedido.
9 A fórmula "2d6 crocodilos" indica que o número de crocodilos a serem enfrentados pelas personagens é igual ao número obtido rolando-se dois dados de seis lados (de 2 a 12, portanto).
10 Se se admitir, pelo contrário, que houve ao menos uma versão anterior, pode-se pensar que as duas últimas rasuras sejam de fato erros de cópia e não lapsos. Ainda assim, não se pode inferir que a passagem de uma versão para outra seja uma reescrita, no sentido estrito que se deu ao termo aqui, já que o único procedimento indicado por tais rasuras seria, neste caso, o passar a limpo.