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An. 1 Simp. Internacional do Adolescente May. 2005
(In)Disciplina escolar: confrontando e problematizando concepções e ações
Forster, Mari Margarete dos Santos; Schwieder, Emanuel Otto; Lisboa, Joiciana Gonçalves; Sbicigo, Juliana Burges
Universidade do Vale do Rio dos Sinos – UNISINOS – Programa de Pós-Graduação em Educação.
Resultando (...) do equilíbrio entre autoridade e liberdade, a disciplina implica (...) o respeito de uma pela outra, expresso na assunção que ambas fazem de limites que não podem ser transgredidos. O autoritarismo e a licenciosidade são rupturas do equilíbrio tenso entre autoridade e liberdade. O autoritarismo é a ruptura em favor da autoridade contra a liberdade e a licenciosidade, a ruptura em favor da liberdade contra a autoridade. Autoritarismo e licenciosidade (...) negam o que venho chamando a vocação ontológica do ser humano
(Paulo Freire 1996.)
Falar de disciplina /indisciplina é falar de um fenômeno complexo, multifacetado e que não encontra sentido único. Esta questão tem ocupado um espaço cada vez maior no cotidiano escolar e vem se tornando um desafio para professores e gestores educacionais que não sabem o que fazer para impedir ou minimizar estes conflitos presentes desde a educação infantil até o nível superior, nas instituições de ensino públicas ou privadas e que se manifestam nas relações dos alunos entre si, dos alunos com os professores e com o ambiente físico, situações que devem ser resolvidas, de um modo geral, em sala de aula entre o professor e o aluno.
Esta temática, com multiplicidade de causas e efeitos, tem sido estudada ora sob o enfoque psicológico, ora sob o enfoque sociológico. Esta investigação pretende examinar a questão da disciplina/indisciplina pedagogicamente e, mesmo considerando os limites e restrições deste olhar, procura contextualizar a temática entendendo-a no cotidiano da escola, com todos seus rituais e condicionantes, inserida em um espaço-tempo mais amplo: a sociedade brasileira do século XXI e suas dissonâncias sócio-político-culturais.
Tomar a indisciplina e outros comportamentos disruptivos como fenômenos complexos ditados pelos novos tempos pedagógicos significa conceber a relação professor-aluno como necessariamente conflitiva. Mais ainda: significa concebê-la como um continente sempre mutante e deveras distinto das monocórdias imagens que acalentamos sobre a ambiência escolar. (AQUINO, 2003, p.16)
Vivemos hoje no Brasil, e no mundo, situações de violência, de corrupção, de "desmando", de impunidade que vêem se alastrando de forma espetacular no imaginário social e que repercute nas instituições de ensino e não só.
... não haveria dúvida de que o cotidiano escolar é herdeiro direto do entorno social e de que os reveses da relação professor-aluno (especialmente a indisciplina) seriam conseqüência, mais ou menos imediata, de entravas estruturais de múltiplas ordem – cultural, econômico, político ... (AQUINO, 2002, p.38)
A lógica econômico-mercadológica reguladora das ações e das instituições, acrescida das transformações das políticas públicas e do papel do Estado, tem permeabilizado o campo educativo, provocando importantes mudanças na estrutura curricular e na definição dos atores a quem se reconhece com legimitidade para intervir na definição da vida das escolas, na planificação e gestão dos sistemas educativos. Como diz Bell (in Giddens, 1995, p.53) o Estado-Nação se tornou "demasiado pequeno para os grandes problemas da vida e demasiado grande para os pequenos problemas da vida". Com a perda da força do Estado que, simbolicamente, pautava a sua intervenção no campo educativo pela lógica do bem público, da preservação da identidade e da cultura nacional, as reformas educativas das décadas de 80 e 90 permitem que outros agentes sociais interfiram não só nas transformações curriculares, mas na própria concepção de docência. Hoje, com a redução gradativa do papel do Estado, os professores, mais do que nunca, têm sido responsabilizados pela crise da nação, dos sistemas educativos, pelo seu despreparo, pela indisciplina dos alunos.
A profissão docente, que encontrava no Estado o princípio de referencialização, é pressionada pelo mercado a se autojustificar permanentemente, gerando para além de uma crise de autoridade, uma crise de poder.
No que se refere ao contexto escolar, esse estado de coisas encontrará sua máxima expressão na idéia de ‘crise da educação’, o que se traduz no desarranjo das pautas de funcionamento dessa instituição secular e, por conseguinte, na desfiguração dos papéis e das funções clássicas de seus protagonistas. (AQUINO, 2003, p. 23)
Mesmo sabendo-se que a crise de autoridade dos professores parece ter sido sempre uma das propriedades da profissão e que, como remete Arend (1979), a crise de autoridade consiste, tanto prática como teoricamente, em não se saber o que a autoridade realmente é, vive-se atualmente, e concomitantemente, uma crise dos mecanismos clássicos de delegação de poder nos professores. Segundo Correia e Matos,
O pressuposto de que o professor seria o único especialista na utilização dos saberes pedagógicos, sendo imprescindível para que o poder do professor se dissimule em autoridade, é hoje contraditado por uma utilização indiscriminada da noção de pedagogia que se associa tanto à publicidade como à ação de inculcação ideológica desenvolvida pelos governos e partidos políticos, como tende, ainda, a ser associada a culturalização da empresa e dos empresários. Por sua vez, o pressuposto da bondade do Estado como garantia inquestionável da identidade nacional e da realização do princípio da igualdade de oportunidades no campo educativo parece sofrer, hoje, um processo de erosão particularmente intenso, na seqüência tanto do processo de globalização da vida das sociedades como do abandono progressivo dos princípios de justiça em detrimento dos critérios de eficiência no campo educativo. (2001, p. 20)
Grande parte dos cientistas sociais refere-se ao poder como a capacidade de um agente para produzir determinados efeitos, sendo decorrente de uma relação social entre indivíduos, grupos ou organizações, em que uma das partes exerce controle sobre a outra (entre outros autores, French & Raven, 1969). Destacam, os autores, ainda, que os efeitos produzidos nessas relações são indeterminados; mostram que o grau de controle exercido ou o grau de obediência obtido é bastante variável e, a não ser em casos extremos, a obediência nunca é completa. Ao conceituarem o poder como uma capacidade potencial para a ação aproximam-se da distinção já estabelecida por Aristóteles, entre a potência (dunamis) e o ato (ergon). Mesmo que o indivíduo, grupo ou organização nunca passe ao ato, possuem a delegação para tal. Correia e Mattos (2001) dizem que a palavra poder nos remete para a idéia de procuração, mandato, ter influência ou força. Uma relação de influência verifica-se quando alguém adere a interesses, valores, crenças ou modos de comportamento de outrem; essa adesão pode se dar com o consentimento ou não de quem adere. A abrangência (sócio/político/psicológica) da concepção de poder não a restringe, portanto, às relações que acontecem em instituições. O sistema de comportamento socialmente imposto abrange também "os costumes, leis, preconceitos, crenças, paixões coletivas e tudo o mais que contribui para determinar a ordem social" (Lebrun, 1984, p. 35).
O poder, portanto, não pode ser considerado como uma propriedade, como algo que se possui ou não. Para auxiliar na compreensão sobre a natureza complexa do poder, torna-se necessário recorrer a Foucault (1979) que diz que o mesmo dá-se por práticas sociais e relações diversas. É nas relações mais elementares, mais cotidianas que o poder é exercido, deixando suas marcas nas vidas das pessoas e da sociedade. Esse poder, indutor da ação humana consoante regras sociais existentes, possibilita resistências e mudanças. Atrelado à constituição do saber, o poder vincula-se a processos de disciplinamento humano, enquanto conjunto de "métodos que permitem o controle minucioso das operações do corpo, que realizam a sujeição constante de suas forças e lhes impõem uma relação de docilidade (...)" (FOUCAULT, 1993, p.126). Isto é que vai permitindo que o poder vá adquirindo novos movimentos que buscam superar a sua ação violenta e simbólica. Foucault mostra (1988, p. 83) que "é somente mascarando uma parte de si mesmo que o poder é tolerável. Seu sucesso está na proporção daquilo que consegue ocultar dentre seus mecanismos". Creio que aqui se apresenta uma boa referência para pensar relações particulares na constituição do poder e na própria crítica à autoridade autoritária. Este enfoque teórico foucaultiano, embora muitas vezes niilista-reprodutivo, pode instituir diálogos com Freire, que aposta no poder a serviço da produção de relações sociais mediadoras da materialização da humanidade nos humanos, rejeitando a idéia de poder atrelado ao bom argumento, a razão pura, que se impõe sobre as demais dimensões humanas (Freire, 2000, p. 31).
Este conjunto de compreensões sobre poder, incita-nos a indagar: onde está o poder do professor? Correia e Matos (2001, p. 31) indicam que o poder do professor, diferente de sua autoridade, apóia-se em três planos, que estão em crise: plano cognitivo, em que o professor é fiel depositário do saber científico; plano político e social, em que o professor é depositário de um poder cultural, público e laico, delegado pelo Estado-Nação ou por uma geração social e, finalmente, o plano jurídico em que o poder do professor se apóia numa delegação de ordem jurídica que dá legitimidade ao exercício da avaliação que, de um modo geral, não é suscetível de recurso quanto ao seu conteúdo. Os planos agrupados, caracterizando a "crise de autoridade do professor, constituem (...) uma manifestação da crise dos mecanismos de delegação de poder e dos pressupostos que asseguravam sua ocultação". A crise da delegação cognitiva tem sua origem na "Ciência Moderna, na crise de sua neutralidade axiológica, de sua objetividade, de sua fatualidade e de seu pretenso desinteresse" (CORREIA E MATOS, 2001, p. 32). A crise de autoridade manifesta-se frente à "emergência das incertezas e de imprevisibilidades que já não podem ser encaradas como déficits de cientificidade, mas (...) como dimensões constitutivas do conhecimento científico". Certezas científicas perdem credibilidade. Assim, concluem os autores: "se a crise da delegação cognitiva do poder dos professores se confunde com a crise da própria ciência, a crise da delegação política confunde-se com a crise do próprio Estado e de sua autoridade" (Ibidem, 2001, p. 33).
Como já referido anteriormente, a crise de autoridade do professor pode estar diretamente relacionada à crise do Estado, que vem se desresponsabilizando gradativamente de várias atribuições, entre elas, da educação. Os educadores tentam manter seu estatuto original de formadores humanos, enquanto o Estado aponta para novas referências à educação. O docente, com atribuição da Família e do Estado tem legitimidade enquanto usa o poder delegado. Entretanto, frente a seus alunos esta delegação não é suficiente, pois coloca-os em compulsória relação: a escola é local obrigatório para aprender, onde há horários, calendários, trajetos e ritos de obediência a serem cumpridos. O poder do professor, também, é abalado quando o usa para separar os que sabem dos que não sabem, os que acertam e os que erram, potencializando conformismos, competitividade, obediência, por um lado, e resistência, inconformismos, apatias e desobediências, por outro. Assim, a crise da escola moderna acentua-se quando acentua-se a crise do paradigma da modernidade.
Com certeza, dadas às condições atuais, sem o respeito à lei (sem disciplina?) nenhum indivíduo integra-se socialmente. Como estimular o individuo à "obediência", sem provocar sujeição às autoridades investidas de poder e mando? Como exercer autoridade para produzir liberdade e não o poder pelo poder? A autonomia e não o condicionamento? A responsabilidade e não a submissão? Como ser rigoroso, sem ser rígido? Por que é necessário, possível e legítimo exercer a autoridade e a diretividade sem negar a liberdade de sujeitos envolvidos em processos educativos?
Estas são algumas das questões que circunscrevem este estudo, que tem como marco teórico orientador as reflexões de Paulo Freire. A autoridade freireana é a materialização de relações que se constituem pelo diálogo que os sujeitos envolvidos estabelecem. O poder para Freire aproxima-se do conceito de autoridade que desenvolve: a capacidade que humanos têm, no diálogo, na aceitação da diferença, de problematizar o mundo vivido e a experiência imediata do outro, desafiando a superação do estágio em que se encontram e de sua capacidade de criação e reação.
Vivemos hoje a perda do espaço da escola sobretudo devido aos atravessamentos de novos conhecimentos e múltiplas subjetividades produzidas pelas indústrias culturais de consumo e (re)produzidas pelas novas tecnologias da informação e comunicação de massa; os professores, por sua vez, sentem-se, cada vez mais "incompetentes" para dar conta de todas as solicitações, intensificando seu trabalho e regendo-se por uma lógica de consumo dos saberes escolares e de diversificação de públicos que habitam as escolas. Frente a tudo isto e assistindo a violência "explícita como moeda de troca nas relações sociais" ante a violência como "novo código da sociabilidade", é fundamental repensar a função da escola e do educador (OLIVEIRA, 1998, p. 230).
É dentro deste contexto que se faz necessário discutir acerca de questões como autoridade/disciplina/liberdade. Que autoridade/disciplina/liberdade deve ser desempenhada para auxiliar as pessoas na decifração do mundo? Será a que tem por base a força ou a que tem por fundamento a ética, a competência, o diálogo? Como entender e desvelar causas estruturais que provocam marginalização e exclusão? Como perceber a realidade cercada por contradições sócio-históricas, condicionadoras de concepções e práticas de vida? Como construir referenciais que auxiliem na percepção e análise de processos autoritários? Como falar em liberdade nas atuais condições sócio-histórico-culturais em que nos encontramos?
Todos estes questionamentos acompanham a investigação, que tem um enfoque qualitativo, usando os princípios de pesquisa-ação, embasada substancialmente no diálogo freireano.
A sustentação teórica considera estudos sobre a temática a) (in)disciplina/autoridade/poder/autoritarismo, liberdade/licenciosidade, ordem/desordem, limites/exigência/ rigidez/rigor/, principalmente nas obras de Paulo Freire (1982, 1985, 1994, 1996, 1997, 2000), Gomercindo Ghiggi (1992, 2002), Bourdieu (1989), D’Antola (1987), Aquino (1999), Estrela (1986,1994), Foucault (1993) e Correia e Matos (2001), b) escola, nas obras de Apple (1997,1999), MacLaren (1991,1988, 1999), Giroux (1998) e c) Prática docente em Freire (obras já citadas), Tardif (2002).
A parte empírica envolve diálogos e discussões sobre concepções e práticas docentes visões de educação, ensino, aprendizagem, (in)disciplina, leituras de livros, textos e relatórios de pesquisa que tratam da temática e/ou da abordagem metodológica da pesquisa-ação, entrevistas semi-estruturadas, individuais e coletivas, análise de registros e documentos, observações e diário de campo.
São interlocutores desta investigação: orientadores, coordenadores e supervisores pedagógicos que atuam junto às escolas do município de Montenegro, professores de três escolas que ministram aulas em quintas-séries do ensino fundamental e professores que atuam em uma escola de educação infantil.
Até o presente momento já foram realizados estudos sobre a temática e a metodologia da pesquisa, por um lado, com supervisores e orientadores educacionais que atuam junto a rede municipal de Montenegro/RS e, por outro, com doutorandos, mestrandos e alunos bolsistas de iniciação científica envolvidos no projeto, vinculados ao Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade do Vale do Rio dos Sinos – UNISINOS. Realizou-se também a caracterização diagnóstica do contexto das escolas envolvidas.
A partir desse estágio da pesquisa o grupo elabora pequenos textos registrando os principais achados teórico-metodológicos, com o intuito de uma interlocução com outros investigadores, professores e instituições envolvidos com a temática.
De imediato o processo investigativo indicou: 1. falar de indisciplina é falar de um fenômeno complexo, multifacetado e que não encontra sentido único; logo tratar desta problemática implica em lidar com realidades, concepções e fenômenos heterogêneos; 2. escola e indisciplina sempre estiveram associados, desde os meados do século XIX, com a institucionalização da escola como aparelho reprodutor do Estado, com a implantação da racionalidade moderna e com a emergência dos moldes de produção industrial. Só que hoje a escola não pode mais dar conta da questão da "disciplina" da mesma forma como dava antes, pois, o que se concebia como escola e aluno já não mais faz sentido; 3. juízos morais e políticos sempre estarão presentes nos estudos sobre a temática, mas precisamos analisar o fenômeno disciplina na sua totalidade e complexidade.
Até então concluímos que precisamos: a)desmanchar mitos, contrapor concepções professor/aluno; aluno/aluno; equipe diretiva/professor/aluno; b)evitar posições extremas – não dramatizar e não ignorar as questões de disciplina/indisciplina; c)colocarmo-nos numa perspectiva de reflexão e análise. d)tentar entender como os discursos são construídos, desvelando-os e questionando-os; e)revelar (desvelar) a fragilidade da ordem escolar, localizando-a no espaço da ordem social. Para além disso, a análise dos tensionamentos anteriormente apontados tem permitido ao grupo avançar na compreensão do cotidiano escolar e da questão da (in)disciplina.
Portanto, o objetivo central deste projeto, no diálogo com supervisores e professores da rede municipal de Montenegro, é promover discussões que (re)signifiquem o papel do professor como autoridade pedagógica, ética e competente e, ao mesmo tempo, o papel da escola enquanto espaço formativo. Também busca servir de dispositivo de transformação ética de práticas que não mais se sustentam. Acreditamos que, para além de atender a esta rede de ensino, que buscou a parceria espontaneamente para estas discussões, os resultados deste trabalho, juntamente com outras pesquisas já realizadas, poderão se estender não só a outras redes, como às Universidades que se ocupam com a formação de professores. Pensamos que o olhar pedagógico contextualizado pode avançar na compreensão da temática, que tem assumido uma complexidade maior frente aos desafios de nosso tempo.
Assim, ao entendermos melhor a temática pretende-se "buscar alternativas de sociabilidade", alternativas democráticas que apontem para horizontes de "emancipação", que neutralizem o risco de erosão do contrato social (Santos, 2000).
Acreditamos que essas alternativas democráticas passam, necessariamente, por um diálogo rigoroso, que não quer dizer "rigidez". "O rigor vive com a liberdade, precisa da liberdade" (FREIRE, 1987, p. 98). Por outro lado, "a liberdade precisa de autoridade para se tornar livre" (Ibidem, p.115).
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