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An. 1 Simp. Internacional do Adolescente May. 2005

 

Anorexia: fome de nada

 

 

Glaucinéa Gomes de LimaI; Beatriz Cauduro Cruz GutierraII

IUniversidade Presbiteriana Mackenzie e Universidade de São Paulo. São Paulo - Brasil
IIUniversidade São Marcos; Faculdade Taboão da Serra e Universidade de São Paulo. São Paulo - Brasil

 

 

Tem mais presença em mim o que me falta.

Manoel de Barros.

 

Meninas anoréxicas, em sua insustentável leveza do ser, interrogam a psicanálise e os meios científicos. Por que uma relação tão distorcida com a alimentação e com a feminilidade, tendo em vista que a maioria dos graves episódios anoréxicos ocorre, como é sabido, entre púberes femininas? Haveria um curto-circuito do desejo? O circuito do desejo parece encurtado para estas moças... Desejo de comer... desejo de mulher...há lugar para eles na anorexia?

Freud, em sua obra nos ensinou que a alimentação inclui um muito além da satisfação da necessidade, ou seja, que a relação do humano com as "necessidades orgânicas" é desde sempre uma relação distorcida, desnaturalizada pela relação com o Outro e com a linguagem. As discussões sobre a pulsão oral remetem ao fato de que a relação com o alimento implica numa satisfação de necessidade, mas, conseqüentemente, uma instalação de uma insatisfação. O bebê que mama satisfaz-se por um tempo efêmero e instala-se aí imediatamente o circuito de insatisfação, pois, freudianamente falando, a experiência mítica de satisfação (sexual) oral nunca mais será recuperada. Abre-se espaço para o circuito desejante, onde se busca a recuperação de uma experiência mítica de encontro real com o objeto.

Neste sentido, uma criança amamentada pode ficar satisfeita sob o ponto de vista da sua fome fisiológica, porém manterá seu desejo insatisfeito. Ou seja, conservará o apetite do desejo. A paciente anoréxica recusa este estado dúplice que reconhecemos na criança amamentada: satisfação da fome, insatisfação do desejo. Mantém obstinadamente a sua insatisfação, tanto da necessidade fisiológica, como do desejo, pois acredita ser a única forma de preservar o seu ser. O desejo parece ser o de refreá-lo, de controlá-lo, de tal forma que na verdade estamos diante de um... desejar NADA, um comer nada. Neste sentido, visa-se um estado de completude: ao não desejar a jovem anoréxica não se confronta com a falta. Segundo Célia Salles, em seu artigo "Cisne - um caso feliz" uma paciente adolescente anoréxica lhe responde a respeito da sua opinião sobre o tratamento: "não me importo, eu não quero TV, visitas, NADA. Não é que eu não quero comer. Se tivesse um cardápio no qual estivesse escrito NADA, eu pediria esta comida".

A anorexia mata em torno de 15% das jovens. Como se pode pensar a incidência maior de surgimento da anorexia na adolescência? Para Freud, a puberdade é o momento do encontro com o real da sexualidade e o revivescência da problemática edipiana. A menina terá que efetuar o recalcamento da sua masculinidade e Freud aponta três saídas possíveis: a inibição da sexualidade, o complexo de masculinidade e a feminilidade normal.

Pode-se pensar na anorexia como uma solução encontrada pela púbere que a mantém no complexo de masculinidade, pois apaga de seus corpos todo sinal exterior de feminilidade e desafia o desejo desfilando amenorréica e lisa, distante da sedução do alimento, longe da sedução dos homens, apresentando ao olhar de horror do Outro um corpo esquelético, isento dos caracteres sexuais secundários. Por sua crescente perda de peso e as alterações endocrinológicas que produz, sua amenorréia e ciclos anovulatórios dificultam uma gestação futura.

Na adolescência, surge a necessidade de uma identificação sexual adulta e a menina vai se confrontar com a questão que foi tão enigmática para o pai da Psicanálise: "o que quer uma mulher?" As pulsões orais são reativadas pela nostalgia da infância e os conflitos edipianos retornam com toda intensidade. Surge a falta de apetite alimentar, no lugar da repugnância e falta de apetite sexual. Quando tem que assumir a sexualidade, ela recua e abre mão do encontro genital, refugiando-se na satisfação da pulsão oral. O não comer pode ser a resposta à fantasia anoréxica de uma mãe não castrada, que pode canibalizá-la, que pode devorá-la, de forma devastadora.

A anoréxica apresenta, desde cedo, uma preocupação obsessiva com os alimentos, em uma extrema erotização oral, em detrimento da área genital, que parece ficar anestesiada. O corpo da anoréxica mantém-se infantilizado, assexuado e pouco atraente, o que convoca o horror e a demanda de um regime de engorda, ao qual é convocada pelo Outro, seja a mãe, a equipe médica, as colegas.

Em busca de um corpo idealizado e perfeito, a anoréxica apresenta-se ao mundo com uma nova identidade e, por isso, pode manter-se identificada com colegas de anorexia, que com ela, estão obstinadas a passar fome. Segundo Sara Pérola Fux, em seu texto "A fome dói... mas passa", encontram-se na Internet muitos sites que oferecem orientações e regras para os que desejam se manter ou aderir a um jeito anoréxico de ser: "Sempre que você sentir fome, escove os dentes... Assim, a comida vai ficar com um gosto horrível e a vontade de comer passa.. "Quando você sentir fome, beba muita água... Isso engana o estômago e a fome passa..."

A questão dos alimentos nos remete à relação pré-edípica mãe-filha, cujos conteúdos são reativados na adolescência das meninas, sendo fonte de intensas ambigüidades. No cotidiano, já verificamos o quanto a alimentação se sustenta na relação de demanda do Outro. "Coma para a mamãe", diz a mãe aflita com as recusas alimentares de seus bebês. As crianças mais velhas, com seus jogos, transitam neste meio de "realizar ou não a demanda da mãe". Vide uma menina de 5 anos que brinca com sua mãe de "NÃO COMER" - a mãe lhe oferece comida e diz: "não coma", aí a menina come. A menina tem que fazer um jogo de não submeter-se por completo ao desejo da mãe, ela deve ativamente descolar-se da mãe para tornar-se mulher/ sujeito...mas ao mesmo tempo deve identificar-se com ela.

Trata-se de um jogo de não se submeter ao Outro...por quê? Segundo Freud, em 1930, em seu texto "A sexualidade feminina" a relação primária com a mãe constitui uma luta ferrenha cujo objetivo final é determinar quem vai devorar o Outro. Ao comer nada, a anoréxica mantém o seu apetite pela morte, ficando indiferente aos apelos médicos e familiares, horrorizando-os com o seu corpo disforme, apelando para a angústia que pode causar no outro. Uma cadeia de televisão transmitiu, em um programa de variedades, em cadeia nacional, a cena que mostrava pais desesperados fotografando o corpo da filha para mostrar-lhe e fazer com que ela se dê conta de seu corpo "pele e osso", que a adolescente parece obstinadamente não enxergar.

A anoréxica habitua-se a receber as demandas do outro e a recusar-se a todas elas. Ela nada demanda, pois nada lhe falta, nada lhe faltou nunca. Apresenta-se como se estivesse saturado pela demanda do outro, do médico, do nutricionista, da equipe hospitalar, das tentativas de reeducação alimentar. Todos os que lhe demandam sentem-se por ela desafiados, pois o seu saber é colocado em xeque. Há uma pergunta que insiste: O que fazer para que a anoréxica coma? Ela faz da sua recusa em se alimentar uma manobra, tentando produzir a angústia no Outro, para tentar escapar à sua demanda de engorda.

Mas, a anorexia não parece só falta de apetite, em relação à comida. É uma anorexia mental, falta apetite de forma generalizada, todo o seu corpo parece deslibidinizado, desencarnado e desexualizado. Falta-lhe apetite de vida. A anoréxica parece obedecer a um mandato superegóico de gozo insensato, que parece lhe levar para a morte, ao qual ela parece estar alienada. A anorexia parece emudecer, pois a paciente anoréxica não quer falar, permanece silenciosa, em uma mudez que remete à pulsão de morte. Ela não quer falar nada sobre o seu sintoma anoréxico que não parece fazer questões, interrogações sobre o seu ser.

Com essa posição, a anoréxica parece se recusar ao Outro, se recusar ao convívio, permanecendo em uma satisfação auto-erótica, em que ela parece se bastar, distante de tudo e de todos. Ela se recusa à mesa, se recusa ao convívio. Ao negar a castração, que é o que possibilita a entrada no circuito das trocas corporais, a anoréxica denuncia a degradação das trocas simbólicas, o declínio do convívio tão em voga na era atual. Ficar em uma posição de satisfação auto-erótica vem ao encontro da estruturação do convívio da sociedade contemporânea, pois nunca se falou tanto em solidão.

Os encontros familiares são esporádicos e, quando acontecem, ninguém tem tempo para comer junto à mesa, pois "não temos tempo a perder", como cantava um rock nacional. Nesse contexto, a anorexia parece estar perfeitamente inserida, pois se apresenta como uma satisfação pulsional, ou um gozo que não passa pelo outro, em que o contato com o outro não se dá. Ao recusar a troca simbólica, a anorexia oferece-se como uma negação da castração. Para negar a castração, a própria vida é arriscada.

Encontramos essa relação paradoxal com o outro na história clínica de Dolores que esteve internada em uma enfermaria há cinco meses, desafiando a equipe médica com a sua recusa em se alimentar, já tendo chegado aos 33 quilos. Sua vida esteve por um fio e ela se alimentava apenas por uma sonda nasogástrica. Não parava de evacuar e vomitar, deixando atordoados todos os médicos, nutricionistas e enfermeiros da equipe, que não paravam de oferecer-lhe alimentos, aos quais ela recusava, dizendo sentir-se enojada e enjoada só de pensar na comida. Ela não parecia se importar com a anorexia, que afligia a toda a equipe médica e a sua família. Não queria falar, na hora do atendimento estava sempre dormindo. Não queria receber visitas e não gostava quando outras pessoas eram internadas na mesma enfermaria que ela.

Durante as primeiras sessões, ela nada queria falar, limitando-se a dormir e se refugiar na sua recusa ao outro, ao mundo, à vida. Com a oferta de atendimento, ela começou a falar de si, com reticências. Em um dos atendimentos, uma lembrança foi evocada, um dito materno, escutado várias vezes na infância, determinava: "Você vai morrer seca", era o que dizia sua mãe. Esse dito praguejoso da mãe ditava o lugar em que ela se alienava. Ao lhe ser apontado esse dito, ela responde: "É, eu já estou com 33 quilos, aonde eu vou chegar?" Passa, então, a só falar da sua falta de vontade de comer, do seu horror pelo alimento. Um dia, ao chegar para lhe atender, ela me diz que não comera ainda, que a nutricionista lhe perguntou o que havia comido e ela respondeu: "Nada". Perguntei que gosto tinha o nada. Ela começa a falar que fica sentindo o gosto da sua saliva, da sua boca e que não queria colocar mais nada na boca. Queria que as pessoas deixem-na em paz, pois está bem assim, queria ficar sem comer. Mas passou a querer falar. Foi por abrir a boca para falar e se escutar, que Dolores pode despertar o seu apetite para a vida.

A escuta oferecida pode permitir a Dolores separar-se do dito materno, devorador que a perseguia. Ao seu apetite pelo nada, pode se abrir um apetite pelo dito, um outro dito, que a separou do maldito materno. Podemos perguntar, então, ao sujeito que se apresenta sem apetite para comer, sem apetite para falar, o que a psicanálise pode oferecer, já que se apresenta como uma cura pela fala? Segundo Lacan, aquilo que o sujeito não pode falar, ele o grita por todos os poros do seu ser. Como escutar esse grito presentificado no corpo magro da anoréxica? Sabemos que a descoberta freudiana oferece um descentramento da clínica do olhar para a clínica da escuta. A escuta psicanalítica não pode ficar presa ao espetáculo de um corpo esquelético que se oferece ao olhar de horror do outro, mas deve poder deslocar-se da preocupação orgânica para a escuta do discurso do sujeito. Diferente da mãe, que força a boca para que a anoréxica coma, o analista deve oferecer a sua escuta a uma boca que pode falar e não somente se fechar para o outro, seja na inapetência ou no silêncio.

 

Referências bibliográficas

Bidaud, E. Anorexia: mental, ascese, mística. Rio de Janeiro, Cia. de Freud, 1998.

Barros, M. Livro sobre nada. Rio de Janeiro, Record, 2000.

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_________. A fome dói, mas passa. In: A fuga nas doenças impossíveis. Latusa, EBP/RJ, 2002, pp27-34.

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Salles, C. Cisne – um caso feliz. In: Opção lacaniana n. 38, pp. 54-58.