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An. 1 Simp. Internacional do Adolescente May. 2005
Mudança das práticas socio-educativas na Febem-SP: uma análise das representações sociais de funcionários da instituição
Rita de Cássia Pereira Lima
Centro Universitário Moura Lacerda (CUML) - SP. e-mail: ritalima@netsite.com.br
RESUMO
A pesquisa tem como objetivo principal analisar as representações sociais quanto à mudança de práticas sócio-educativas entre funcionários da Fundação Estadual para o Bem-Estar do Menor do Estado de São Paulo (FEBEM-SP). Baseia-se em uma proposta de trabalho que ocorreu em duas das 15 unidades do Complexo Tatuapé, no período de 1997 a 1999. Trata-se de uma iniciativa fundamentada na proibição de qualquer tipo de violência física contra o adolescente ator de ato infracional, por acreditar que tratá-lo de forma mais humana poderia apontar um caminho para a redução da violência. O estudo buscou identificar como os funcionários envolvidos com essa proposta visualizavam as possibilidades de mudança e vivenciavam esse processo em meio às práticas da instituição como um todo, veiculadas principalmente pela mídia por sua natureza punitiva e violenta. O trabalho fundamenta-se na Teoria das Representações Sociais (Moscovici, 1961). A "mudança" foi contextualizada a partir da influência de grupos minoritários, com base na Psicologia das Minorias Ativas (Moscovici, 1976). Foram realizadas entrevistas semi-estruturadas com 15 funcionários de diferentes categorias sócio-profissionais. O material obtido foi analisado com base na Análise de Conteúdo Temática (Bardin, 1977). Três grandes temas-chave articulados foram observados nos discursos: "A proposta", "FEBEM-SP" e "Mudança das práticas sócio-educativas". Os resultados revelam resistências e dificuldades em utilizar o diálogo ao invés de medidas violentas. Notou-se o mal-estar dos entrevistados que, por constituírem um grupo minoritário na instituição, precisavam lidar constantemente com a oposição das outras unidades em seu cotidiano de trabalho. As representações sociais expressas por eles quanto à mudança das práticas sócio-educativas têm a violência física como núcleo figurativo. Ao compactuar com esse tipo de violência, os profissionais contribuem para a consolidação dos métodos tradicionais da instituição. Negá-la significa romper e buscar práticas sócio-educativas mais humanistas, nem sempre vistas como possíveis. Esse tipo de ambigüidade está presente nos discursos. Percebe-se que representações sociais arcaicas veiculadas na instituição, fundadas na punição e na violência, dificultam a mudança de suas práticas sócio-educativas.
I. FEBEM e mudança: a construção do objeto de estudo
Esta pesquisa pretende estudar representações sociais de funcionários quanto à mudança das práticas sócio-educativas na FEBEM-SP. Algumas questões atravessaram o trabalho: Como os profissionais pensam a mudança nessa instituição? Quais são as dificuldades para se erradicar a violência física? Como mudar as práticas institucionais na FEBEM-SP, historicamente fundadas na punição e na violência?
Buscou-se responder a esses questionamentos por meio do estudo de uma proposta implementada entre julho de 1997 e fevereiro de 1999, em duas das 15 unidades que, na época, faziam parte do Complexo do Tatuapé (conhecido como Quadrilátero), situado na cidade de São Paulo. A iniciativa foi de um antigo funcionário da FEBEM, cuja primeira contratação data de 1984. Conhecido por seu posicionamento contrário ao atendimento punitivo prestado pela instituição, foi convidado a dirigir uma das unidades para "colocar em prática" suas idéias.
Iniciou-se então uma tentativa de mudança em duas unidades do Quadrilátero. O trabalho na primeira unidade ocorreu entre julho/1997 e maio/1998. O estabelecimento contava com 30 vagas (80 internados) destinadas a adolescentes atores de ato infracional "grave" (de roubo a latrocínio), de 14 a 18 anos, do sexo masculino. Na segunda unidade, a proposta foi implementada no período de maio de 1998 a fevereiro de 1999. Este estabelecimento tinha a capacidade para receber 178 adolescentes do sexo masculino, de 14 a 18 anos, atores de atos infracionais também considerados "graves"1.
Um dos principais objetivos da iniciativa foi realizar um projeto que partisse do contato direto com os sujeitos envolvidos, evitando-se a aplicação de propostas feitas sem interlocução com a prática cotidiana da instituição. A nova proposta partiu da articulação entre o conhecimento da realidade da unidade, algumas experiências na área da infância e da juventude e teorias produzidas, principalmente, nos campos da Educação e da Psicologia.
De imediato, foram rompidos procedimentos ditos "de segurança", exercidos no dia-a-dia. Por exemplo, os jovens eram obrigados a ficar sentados no pátio o dia todo. Não podiam levantar sem pedir licença. Só podiam se locomover levantando a mão e perguntando em voz alta "com licença, senhor". O adolescente poderia fazer o que pretendia somente se o funcionário autorizasse. Outro procedimento era o jovem andar com as mãos para trás o tempo todo, seja para conversar com um profissional, seja para se locomover. Caso o jovem desobedecesse, poderia sofrer violência física. Esse tipo de prática foi abolido na unidade.
A nova proposta proibiu qualquer tipo de violência física contra o adolescente ator de ato infracional, por acreditar que tratá-lo de forma mais humana poderia apontar um caminho para a redução da violência. Foi enfatizada a incompatibilidade entre violência física e atendimento de caráter humanista2 sendo que o diálogo deveria ser utilizado para a resolução de conflitos. Essa mudança de uma prática já enraizada e legitimada pela instituição provocou críticas e oposição entre as várias unidades da FEBEM. O empenho do diretor consistiu em formar um grupo que compartilhasse suas idéias, mesmo sem abertura para discutí-las com outras esferas de poder institucional.
Contando com os profissionais que aderiram à proposta e procurando sensibilizar os demais, iniciaram-se as tentativas de implementar um novo trabalho sócio-educativo. Uma das prioridades foi a construção de uma proposta de parcerias que pudesse se articular com entidades extra-muros, por exemplo Pastoral da Criança, universidade, empresas, entre outros. Algumas tentativas de atividades na unidade, visando o vínculo com o adolescente e sua qualificação também foram empreendidas.
A proposta partiu de um diretor de unidade que conseguiu formar um grupo com as mesmas idéias. Porém, dentro de uma perspectiva mais ampla, o objetivo seria provocar discussões, mobilização e adesão de uma maioria na instituição. Evidentemente, este percurso foi extremamente difícil.
Na transferência do projeto, da primeira unidade para a segunda, os entraves se acumularam. Por exemplo, o diretor pretendia ocupar as 178 vagas gradativamente, para que jovens e funcionários pudessem se adaptar à proposta. Porém, foi pressionado a lotar a unidade em caráter de urgência e preencher o quadro de funcionários de acordo com indicações da instituição, não participando da seleção dos mesmos. Conseqüentemente ocorreram fugas e o projeto foi prejudicado.
Apesar das dificuldades, a proposta da unidade manteve-se pautada no respeito, no diálogo, e principalmente, na absoluta erradicação da violência física por parte de funcionário contra jovem. Foi privilegiado o trabalho com as famílias, os vínculos com o jovem dentro da unidade e a parceria com a comunidade.
Um dos aspectos mais problemáticos para a mudança de enfoque no atendimento foi o posicionamento dos funcionários da instituição. O projeto em uma unidade provocou reações nas outras. Percebe-se, por um lado, funcionários antigos que são resistentes em refletir e mudar suas práticas, e por outro lado, funcionários novos influenciados e inseguros quanto a tomar um posicionamento contrário. Há, sobretudo, uma instituição que legitima as práticas de violência física.
Embora a resistência à mudança seja reforçada do ponto de vista institucional, motivando a desistência de muitos, é fundamental ressaltar a importância do trabalho de pequenos grupos que acreditam na possibilidade de mudança das práticas sociais, mesmo que os resultados não sejam visíveis em curto prazo.
As dificuldades na FEBEM levam pessoas a buscarem trabalhos com adolescentes atores de ato infracional em outras instâncias, por exemplo em ONG's ou em atividades autônomas onde haja, de fato, a possibilidade de exercer práticas sócio-educativas. É compreensível o desgaste dos funcionários, porém a FEBEM continua existindo, dentro de uma perspectiva de violência. Daí permanecem as questões: Como acabar com a instituição? Como mudá-la (ou contribuir para o seu fim), começando, ao menos, pelo o impedimento da violência física? Um outro tipo de atendimento seria possível se as pessoas não mudarem sua maneira de pensar e agir?
A iniciativa aqui relatada aponta um caminho nessa direção, embora o diretor não tenha conseguido dar continuidade ao seu trabalho. Após um ano e meio tentando implementá-la, foi transferido para uma unidade para crianças e jovens "abandonados" e algum tempo depois desligado da FEBEM. No entanto, trata-se de um trabalho que provocou discussões entre funcionários, que causou desconforto para a instituição, que conseqüentemente deixou marcas.
Esse percurso incita reflexões, tanto no campo da Educação quanto da Psicologia Social. O termo "mudança" pode ser analisado à luz de diferentes perspectivas teóricas: psicológica, psicanalítica ou sociológica. Neste trabalho será privilegiada sua dimensão psicossocial, considerando-se os aspectos individuais e sociais articulados em uma mesma realidade. Com este objetivo, a fundamentação teórica da pesquisa pauta-se na Teoria das Representações Sociais (Moscovici,1961) e na Psicologia das Minorias Ativas (Moscovici, 1976).
II. O referencial teórico
A teoria das representações sociais
As representações sociais relacionam-se às mentalidades, às atitudes, às opiniões, às imagens que podem exercer uma ação para mudar condutas e comportamentos e desenvolver a habilidade de questionar e transformar. Dizem respeito a um conjunto de imagens, símbolos e modelos veiculados numa sociedade para caracterizar pessoas, situações, objetos, entre outros.
Moscovici (1961) propôs a noção de representação social a partir da crítica ao conceito durkheimiano de "representações coletivas", aproximando-a e distinguindo-a de noções como mito, ideologia, visão de mundo, opinião, preconceito, imagem. O autor abriu um novo campo de estudos na psicologia social afirmando que as representações sociais ocupam uma posição "mista" porque estão situadas na encruzilhada de uma série de conceitos sociológicos e psicológicos. Ele enfatiza a necessidade de se fazer da representação "uma passarela entre o mundo individual e o mundo social" (Moscovici,1993, p.82).
De acordo com o autor, as representações sociais estão organizadas de maneira muito diversa segundo as classes, as culturas ou grupos e contribuem para os processos de formação de condutas e de orientação das comunicações sociais. Elas se formam principalmente quando as pessoas estão expostas às instituições, aos meios de comunicação de massa, à herança histórico-cultural da sociedade. São imagens que condensam um conjunto de significações; de sistemas de referências que permitem que se interprete os acontecimentos, que se dê sentido ao inesperado (Moscovici, 1978).
Jodelet (1996) se refere às representações sociais como conhecimento "espontâneo", "ingênuo", chamado "conhecimento do senso comum", ou "pensamento natural", em oposição ao pensamento científico. Este conhecimento se constitui a partir das experiências, mas também de informações, saberes, modelos de pensamento recebidos e transmitidos pela tradição, educação, comunicação social. Trata-se também de um conhecimento socialmente elaborado e partilhado.
Para a autora, a representação social é uma construção e expressão do sujeito, que pode ser considerado do ponto de vista epistêmico (aspectos cognitivos) ou psicodinâmicos (mecanismos intrapsíquicos, motivacionais, etc), mas também social ou coletivo (pertencimento e participações social e cultural). Nesse sentido, as representações sociais estão ligadas a sistemas de pensamento mais amplos, ideológicos ou culturais, a um estado de conhecimentos científicos, à condição social e à esfera da experiência privada e afetiva dos indivíduos (Jodelet, 1993).
De acordo com Sá (1996), elas são reconhecidas como fenômenos psicossociais histórica e culturalmente condicionados, sendo que sua explicação deve se dar aos níveis de análise posicional e ideológico. Na mesma direção, Bonardi&Roussiau (1999) afirmam que as dinâmicas social, técnica, ideológica e política agem sobre as concepções individuais. Para os autores,
o indivíduo personaliza os elementos (as idéias sociais) que circulam na sociedade. Ele constrói, ao mesmo tempo em que reconstrói para si mesmo, a representação de um objeto através do contato com seu ambiente. Ele ajusta/reajusta sua representação por meio de suas relações com os membros dos grupos aos quais ele pertence. Esse processo conduzirá então, não a uma representação individual, mas a uma representação social compartilhada. (p.18)
No que diz respeito aos profissionais da FEBEM é fundamental conhecer suas representações sobre a mudança das práticas institucionais porque elas orientam suas ações. Esses profissionais têm seus próprios códigos de interpretação marcados culturalmente, principalmente pelo contexto da instituição. No âmbito desse trabalho pretende-se verificar, por meio das representações sociais, como um grupo específico da instituição está vivenciando um processo de mudança de suas práticas. Devido à sua característica minoritária na instituição, adotou-se também, como referencial teórico, a Psicologia das Minorias Ativas (Moscovici, 1976).
A Psicologia das Minorias Ativas
Moscovici chamou a atenção para a "Psicologia das Minorias Ativas" (1976) com o objetivo de compreender as relações de influência e os fenômenos de conformidade e de submissão às normas de certos grupos sociais. O autor partiu de uma crítica ao modelo tradicional no que diz respeito à mudança, em que a influência é considerada um processo unilateral que parte dos que ocupam uma posição dominante (maioria) em direção aos que estão em uma posição dominada (minoria). Nessas condições, a mudança é vista como uma modificação das atitudes dos destinatários (minoria) sob a influência dos que constituem a fonte dessa mudança (maioria). Para Moscovici, a mudança deve ser considerada como um processo de influência recíproca entre um pólo majoritário e um pólo minoritário. No interior desse processo de influência, o pólo minoritário, que no contexto social é o que tem reconhecimento e legitimidade somente através da submissão às normas, pode na realidade ser produtor de novas normas à sua maneira (Fischer, 1992).
Na perspectiva tradicional, o receptor seria um sujeito passivo. Moscovici (1996) afirma que os sujeitos podem ser ativos, na medida em que reagem às pressões e tentam impor seu ponto de vista. O autor questiona o papel exclusivo da maioria como fonte de influência e explica os fenômenos de mudança como resultado de uma influência minoritária. A minoria seria potencialmente portadora de uma mudança porque sua influência se manifesta na aparição de idéias novas ou na modificação de comportamentos existentes.
Para Moscovici, o estudo das minorias permite uma concepção da mudança social a partir de várias dimensões: o conflito, a importância das normas e das relações de poder, o lugar das minorias na mudança. Ressaltando a importância do conflito, o autor define a influência social não como uma pressão unilateral vinda da maioria, mas como um jogo de negociações. Os fenômenos de negociação são considerados fundamentais porque se desenvolvem a partir de um conflito inerente à interação maioria-minoria e implicam na recusa de um consenso freqüentemente imposto como base da relação social (Fischer, 1992).
As minorias constituem um instrumento de mudança social porque são sensíveis às idéias novas e contribuem para difundi-las. Porém, esse procedimento não é sempre bem sucedido porque a inovação proposta freqüentemente interfere em outros fatores que podem bloquear a adesão daqueles a quem ela se direciona. De acordo com Fischer, "quando uma minoria procura influenciar a sociedade em relação a normas ou respostas muito fortemente interiorizadas, ela se choca com a maior resistência" (1992, p.82).
Entretanto, Moscovici afirma que esse conflito faz parte de toda mudança social: "a luta entre as forças de conformidade e as forças de inovação nunca perde seu atrativo e permanece decisiva tanto para uma quanto para a outra" (1996, p.10). As práticas e projetos originais de transformação das relações sociais devem se pautar nessa relação, motivando ações que permitem ao grupo minoritário prosseguir seus objetivos e transformar sua condição de acordo com seus recursos e valores.
Apesar das dificuldades e resistências encontradas, a proposta implementada na FEBEM, descrita anteriormente, pode ser colocada dentro dessa condição, bem ilustrada pela colocação de Moscovici: "a tensão entre os que devem defender certas normas, opiniões ou valores e os que devem defender outras a fim de mudar essas normas, essas opiniões e esses valores é o resultado sob o qual repousa o crescimento de uma sociedade" (1996, p.14).
III. A metodologia de coleta e análise dos dados
A pesquisa de campo iniciou-se com duas entrevistas com o diretor, uma na primeira unidade e outra na segunda. Tratou-se de um momento para tomar contato com a proposta e com a instituição e viabilizar, juntamente com o diretor, o cronograma para entrevistar outros profissionais, todos da segunda unidade em que o trabalho foi implantado.
O estabelecimento contava com 73 funcionários (1 diretor, 1 encarregada técnica, 1 encarregado administrativo, 1 psicólogo, 4 assistentes sociais, 3 auxiliares de escritório, 2 auxiliares de serviço, 10 coordenadores de turno e 50 monitores) e atendia uma média de 176 adolescentes.
Foram entrevistados 15 profissionais: diretor (psicólogo, mestre em serviço social e doutorando em educação), encarregada técnica (assistente social), 3 assistentes sociais, 5 coordenadores de turno (1 professor de educação física, 1 historiador, 1 pedagogo e assistente social, 1 com superior completo – não declarou área, 1 com superior incompleto – administração de empresas), 4 monitores (1 matemática, 1 socióloga, 1 com magistério, 1 com 2º grau completo), 1 auxiliar de serviços exercendo a função de auxiliar de escritório (2º grau completo).
As entrevistas foram semi-diretivas e realizadas de maneira relativamente aleatória tentando-se o contato com diferentes categorias profissionais. Só foram entrevistados aqueles que voluntariamente aceitaram participar da pesquisa. Eles foram informados sobre os objetivos do trabalho e preencheram um questionário que solicitava dados sócio-demográficos como gênero, idade, estado civil, profissão do pai, profissão da mãe, profissão do cônjuge, cargo na FEBEM, formação (estudos realizados), trajetória profissional até chegar na FEBEM, unidades da FEBEM onde já trabalhou, tempo de trabalho na FEBEM, posição política declarada.
A metodologia apoiou-se na análise de conteúdo (Bardin,1986). Minayo (1996) menciona que a análise de conteúdo "parte de uma literatura de primeiro plano para atingir um nível mais aprofundado: aquele que ultrapassa os significados manifestos" (p.203). Para a autora, a análise de conteúdo relaciona estruturas semânticas (significantes) com estruturas sociológicas (significados) dos enunciados. A superfície dos textos descrita e analisada é articulada aos fatores que determinam suas características, como aspectos psicossociais, contexto cultural, contexto e processo de produção da mensagem.
Optou-se pela análise temática, uma opção da análise de conteúdo. De acordo com Minayo (1996), a noção de "tema" relaciona-se a uma afirmação a respeito de determinado assunto, comportando um feixe de relações e podendo ser apresentada através de uma palavra, uma frase, um resumo, entre outros. Para Bardin (1986), "fazer uma análise temática consiste em observar os ‘núcleos de sentido’ que compõem a comunicação, e cuja presença ou freqüência de aparição poderão significar alguma coisa para o objetivo analítico escolhido" (p.105).
Dentro dessa perspectiva, três temas-chave foram analisados, inferindo-se categorias e contabilizando-se a freqüência de aparição das mesmas. Os temas "a proposta", "FEBEM" e "mudança", detalhados a seguir, são considerados fundamentais na medida em que estão estreitamente articulados e permitem analisar as representações sociais da mudança expressas nos discursos.
IV. A representação social da mudança no discurso dos profissionais: entre a cultura institucional punitiva e as práticas socio-educativas
Nos três temas-chave foram observadas representações estruturadas em torno de uma imagem da mudança que tem a "violência física" como núcleo figurativo. Para explicá-lo é preciso retomar a teoria das representações sociais. Moscovici (1978) colocou em evidência dois processos básicos das representações que mostram a interdependência entre a atividade psicológica e suas condições sociais de exercício: a objetivação e a ancoragem. A objetivação seria a dimensão mais individual e cognitiva das representações e se define como uma operação imaginante e estruturante, ou seja, o sujeito faz corresponder coisas às palavras, transforma conceitos em imagens ou dá corpo a esquemas conceituais. A ancoragem seria a dimensão mais social das representações. Ela diz respeito ao enraizamento social da representação, à significação e utilidade que lhe são conferidas. Ela se refere também à integração cognitiva do objeto representado no sistema de pensamento pré-existente (Jodelet,1996).
O "núcleo figurativo" de uma representação social organiza-se com base no processo de objetivação. A análise apresentada a seguir apóia-se nestes fundamentos. A representação da mudança tem como núcleo figurativo a "violência física" contra o adolescente. Ele implica na construção de duas imagens: a aprovação da violência, em geral legitimada pela instituição, e sua negação, tentando-se encontrar um saída humanista (processo de objetivação). A cada uma destas imagens correspondem interpretações, baseadas em conhecimentos prévios, base cultural, inserção social dos sujeitos, vivência na instituição, posicionamento quanto à questão social dos adolescentes de classes desfavorecidas no Brasil. A imagem da aprovação da violência física está enraizada na antiga cultura escravagista do país que pune com castigos físicos os menos favorecidos socialmente. A imagem humanista relaciona-se, principalmente, a teorias educacionais progressistas e a direitos humanos e ideais democráticos que caracterizam alguns setores da sociedade contemporânea (processo de ancoragem).
Os três temas analisados - "a proposta" , "FEBEM", "mudança"- descritos abaixo, e sua articulação, ilustram esses aspectos.
"A proposta"
Na Tabela 1, a seguir, os entrevistados mencionam vários aspectos relacionados à proposta: suas ações, o posicionamento da FEBEM, o papel dos profissionais, a ausência de violência física, as possibilidades de sucesso, o pessimismo e a necessidade de auto-crítica.
Percebe-se a ambigüidade entre a intenção de romper, de inovar e as possibilidades de implementá-la dentro da estrutura organizacional da instituição. Vários tipos de atividades são mencionados: interlocução com famílias e comunidade, apoio psicossocial e qualificação face ao adolescente, consolidação do trabalho na FEBEM visando sensibilizar a instituição para mudanças, reflexões teóricas sobre temas sociais, por exemplo, a exclusão. Porém, muitos entraves são percebidos para viabilizar essas ações: os profissionais se sentem rejeitados e desrespeitados, citam a falta de apoio da instituição quanto a implementar mudanças, mencionam que recebem muitas críticas e que se sentem incomodados com esse fato. No entanto, embora com pouca freqüência, alguns discursos indicam o impacto da proposta na FEBEM. Relatam que as atividades desenvolvidas despertam curiosidade no Quadrilátero e algumas podem ser vistas como positivas.
A interdição da violência física é percebida como a grande inovação da proposta que, em geral, é vista com possibilidades de sucesso a longo prazo. Alguns entrevistados se mostram pessimistas quanto à sua continuidade. O papel dos profissionais é considerado fundamental para a consolidação do trabalho desenvolvido, sendo mencionadas a necessidade de formação e de envolvimento. Nota-se também a relevância da auto-crítica para que a proposta tenha se desenvolva e, conseqüentemente, tenha visibilidade.
"FEBEM"
A Tabela 2 ilustra os discursos que os entrevistados expressaram sobre a FEBEM, fundamentais para a compreensão de suas representações sociais sobre a mudança na instituição.
No seu conjunto, percebe-se uma visão bastante crítica da instituição, local em que há ausência de proposta sócio-educativa, escassez de funcionários (incluindo má formação dos mesmos), superlotação, espaço físico inadequado. A FEBEM é vista como ineficaz e, mesmo assim, resistente a mudanças.
"Mudança"
A Tabela 3, estreitamente relacionada às duas anteriores, concentra as representações sociais da mudança vivenciada na FEBEM. Quatro categorias básicas foram identificadas: a postura face à inovação, as dificuldades enfrentadas, a oposição encontrada e a dimensão afetiva. Notam-se dificuldades e resistências face ao novo, tanto do ponto de vista individual quanto social. Os entrevistados expressam seu mal estar, incluindo elementos afetivos, frente ao trabalho desenvolvido. Porém, o que prevalece é a dimensão institucional. A FEBEM, enquanto estrutura político-social, é vista como a grande cerceadora de mudanças. Sua postura conservadora, fundada na punição e na violência, dificulta ou impede a mudança das práticas institucionais. Os profissionais parecem ter que se situar dentro de uma ambigüidade: compactuar com a violência física, contribuindo para a consolidação dos métodos tradicionais da instituição, ou negá-la, tentando rupturas e buscando práticas sócio-educativas mais humanistas, nem sempre vistas como possíveis.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Este trabalho procurou mostrar as possibilidades de mudança das práticas institucionais na FEBEM-SP com base nas representações sociais de funcionários. O estudo tentou valorizar o papel das minorias enquanto grupos de pressão. Os sujeitos da pesquisa constituem um pequeno grupo de profissionais que buscou a inovação através de práticas sócio-educativas mais humanistas dentro de uma instituição cuja política legitima a violência.
Apesar dessa minoria não ter resistido à pressão da maioria, ao menos até o momento, a proposta apresentada aponta uma pista no que se refere às possibilidades sócio-educativas junto aos jovens atores de ato infracional. Devido às dificuldades de romper somente com um tipo de violência, a física, fica claro, mais uma vez, o insucesso de uma instituição do tipo FEBEM.
Percebe-se um longo caminho a percorrer, que começa com a mudança de representações. Acredita-se que a mudança das práticas institucionais pode ocorrer num plano microssocial, com pequenos grupos que começam a refletir sobre sua forma de pensar e agir. A experiência relatada aqui é instigante quanto a refletir sobre a influência das minorias quando uma mudança social é pretendida.
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Financiamento: CNPq
1 O início e andamento da proposta foram relatados por seu idealizador, diretor das unidades, em entrevistas gravadas.
2 Utiliza-se o termo "humanista" considerando-se as possibilidades de atendimento em instituição fechada do tipo FEBEM, oferecida pelo Estado e que recebe, sobretudo, as camadas sociais menos favorecidas. Reconhece-se que a privação de liberdade e a internação em meio fechado, por si, revelam várias formas de violência contra o adolescente, colocando em questão a palavra "humanista". Porém, sendo as medidas sócio-educativas em meio fechado um procedimento legal do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), este trabalho procura refletir sobre a maneira como elas são colocadas em prática na FEBEM-SP, onde a violência física faz parte do cotidiano institucional. Nesse sentido, erradicá-la para tentar implementar um possível projeto sócio-educativo passa a ter um caráter mais "humanista".