2A porta de entrada para o atendimento clínico na instituição pública: adolescentes repletos de querer, mas nem tanto assimAdolescência(s) vividas no momento do (des)abrigamento e a produção de sentidos sobre si mesmo author indexsubject indexsearch form
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An. 1 Simp. Internacional do Adolescente May. 2005

 

"Um outro mundo é possível?" Algumas reflexões analíticas sobre os adolescentes, seus cuidadores e o mundo em que vivemos

 

 

Cristianne Spirandeli Marques; Daniela Rodrigues Goulart; Nilza Inácio Lacerda; Rejane Afonso Burgos; Raquel Prado Xavier

 

 


RESUMO

Considerando a afirmativa proposta pelo Fórum Social Mundial de que um outro mundo é necessário e indispensável, as autoras procuraram refletir neste trabalho sobre a produção de formas-limite de cuidados que vêm sendo vividas junto aos adolescentes na atualidade. O mundo – não um outro, mas aquele em que vivemos sob o predomínio da comunicação instantânea, surge produzindo relações/vínculos na escola e na clínica, que merecem nossa atenção. Nesse sentido, buscamos pela escuta analítica que a Psicanálise oferece, ouvir o discurso de uma professora na escola e uma psicoterapeuta na clínica, considerando o campo de comunicação afetiva destas com jovens adolescentes. O discurso revelou que a comunicação instantânea pela mídia que hipo e hiper protege, deixa à mostra na escola o aluno-informação e na clínica o aluno-fazeção. Ambos os efeitos produzidos na relação com os adolescentes revelaram uma forma fragmentária/descontínua na relação de aprendizagem e no discurso na clínica, estando esta sob o domínio do saber instantâneo consciente em detrimento do ser desejante inconsciente.

Palavras-chave: Psicanálise, Educação, Adolescência, Globalização.


ABSTRACT

Reflecting the affirmative proposed for the global social Forum that another world is essential and necessary, the writers in this work lookint for to reflect about the production of limit form of care experienced with teenagers in actuallity.
The world – not another – but that where we live on supremacy of immediate communication, arise effecting relation in school and clinic, deserving our attention. So, we look for anlytical hearing suggested for Psychoanalysis to the teacher’s speech in school and a psychotherapeutic in clinic, refleting the affective communication with teenagers. The speech showed that immediate communication through the publicity that hypo and hyper support, make clear in school the information-student and in the clinic the maker- student. Both the effects created for the teenagers relations showed a fragmentary form in the apprenticeship relation and in the clinic speech, under the immediate knowledge control conscious to the advantage of the insensible and desiring person.

Key-words: Psychoanalysis; Instruction;Adolescence;Globalization


 

 

INTRODUÇÃO

Globalização é um assunto que vem fazendo parte integrante das discussões que permeiam nosso cotidiano.

Há algum tempo, o Fórum Social Mundial (2001-2005) tem como tema: "Um outro mundo é possível". Em meio a tantas pessoas diferentes, de tantos países e idiomas distintos, a fala comum que se estabeleceu foi: um outro mundo é necessário, ou seja, indispensável. O impasse frente ao cotidiano estava colocado.

Visando partir exatamente do mundo de relações em que vivemos, decidimos tecer breves considerações sobre algumas formas cuidadoras – Hipo e Hiperproteção – de adolescentes, refletindo sobre a lógica psíquica produtora das mesmas.

Esse caminho de investigação da psique que nos aproximou das particularidades de duas situações do cotidiano - escola e clínica, deixou surgir de suas representações certa produção de sentidos dos vínculos na adolescência atual. Atentas ao que diz o mundo em que vivemos, buscamos refletir sobre a fala comum de que é necessária e indispensável a produção de um outro mundo.

 

O MUNDO EM QUE VIVEMOS

O cotidiano globalizado tem delimitado um campo de relações vividas pelo adolescente. Neste sentido, tal processo, mais particularmente a Midiologia, tem se tornado uma "poderosa rede de comunicação instantânea, com novas tecnologias ligadas à informática, a produzir profundas transformações para a sociedade contemporânea, com decisiva influência no psiquismo de todos, notadamente nas crianças e nos adolescentes" (ZIMERMAN, 2000, p.23).

A rapidez com que a comunicação instantânea se impõe, representa e produz formas de comunicação e evidencia situações limite a serem pensadas nos mundos da cultura, do trabalho, da educação e da clínica psicanalítica.

Ao considerarmos duas situações limite ocorridas em momentos distintos como escola e clínica, refletimos sobre alguns sentidos das formas vinculares ali estabelecidas.

Cada vez que nos debruçamos sobre os processos psíquicos onde quer que eles se dêem, sempre tentamos elucidar parte da vida da relação social. Esta Psicanálise do Cotidiano tem sido lugar de reflexão para a Teoria dos Campos, no que pese conceitos como real, realidade e em sua contrapartida, a subjetividade, o desejo e a identidade. O homem psicanaliticamente concebido, o Homem Psicanalítico – a psique em condição de crise, de sofrimento psíquico – não vive entre coisas materiais simplesmente, mas como salienta Herrmann (2001) "num mundo prenhe de alma", isto é, de sentido, ou segundo o autor: "um mundo psíquico"; a realidade ou o mundo é aquilo de que se fala a alguém sem cessar, porém a maior parte do tempo sem entender; o mundo, ou os diversos mundos em que vivemos, são determinados por regras inconscientes de nossa linguagem, que geram a realidade.

No que tange ao mundo da família e do adolescente nela inserido é possível refletir, por exemplo, sobre a rebeldia, a oposição às regras da vida adulta, que por forçar excessivamente a sua adoção, produz o avesso. Herrmann (2001, p.186) nomeia tal regra de "des/obede/serás: serás justamente aquilo a que tiveres desobedecido". É que realidade é representação. Representação do real. De acordo com Herrmann nós somos realidade, a forma representacional da psique, que é o próprio mundo que nos cria. As regras inconscientes produzem relações que já são representação.

Neste trabalho, buscamos refletir a adolescência atual, que brota pelas regras do contexto midiológico, em que pese a comunicação instantânea. Nesse sentido, o campo da comunicação, do discurso que se produz na sala de aula e de atendimento, tornou-se palco de investigação psicanalítica.

 

O IMPASSE NA RELAÇÃO ALUNO/PROFESSOR

No ensino profissionalizante uma professora vivia uma situação-limite com seus alunos adolescentes. O trabalho não deslanchava, pois os alunos não paravam de falar e não a ouviam. Os sentimentos relatados pela professora eram de solidão e desespero. A partir destes sentimentos, a professora nos conta que, como mãe, perguntou à sua filha adolescente:

- Filha, tenho tido dificuldades para ter a atenção dos meus alunos em sala. O que posso fazer pra que eles percebam que estou na sala, já que você também é uma adolescente?

A resposta veio rápida, num discurso proveniente da experiência de quem compartilhava da vivência, mas do outro lado da carteira.

- Escreva no quadro, escreva, escreva muito, que funciona. Eles vão parar para te ouvir.

A professora-mãe surpreendeu-se diante da resposta/dica que revela o não-pensar por meio da falação/fazeção. Mesmo nos informando sobre sua contrariedade, a princípio ela mergulha na situação, seguindo a sugestão da filha.

Depois de muito escrever e de muita dor concreta – no braço – e na alma, algo fez sentido na relação com os alunos. A regra falação/fazeção fez falar em diálogo, fez existir a professora em sala de aula, onde só havia a falação dos alunos. A situação-limite, que reduzia as experiências possíveis de comunicação na relação professor-aluno transformou-se em re-clamação do que a professora estava fazendo. Rompia-se o campo da falação/fazeção e abria-se a possibilidade de comunicação. Ao mergulhar na falação pela fazeção, a primeira surgiu como um sintoma determinante, consensual e constante das salas de aula na atualidade. A necessidade inquietante da falação/fazeção atualmente tem gerado uma diminuição do espaço para seu oposto necessário, o ouvir. No mundo da informação, o que sugere tal situação-limite é que através do sofrimento da professora ao tentar estabelecer o vínculo como condição de aprendizagem, surgia o impasse dos alunos questionando: porque copiar tanto?

A demanda dos alunos à professora deixa à vista a existência possível só do aluno-informação e pela fazeção faz surgir também a possibilidade do aluno em formação. Na comunicação congelada abre-se, através da manifestação da identidade do aluno atual, a possibilidade sócio-relacional.

A forma de relação que ronda salas de aula, onde o professor se desespera em função do aluno-informação e busca a lógica da falação/fazeção, faz surgir a forma hipoprotetora que se produz no cotidiano da comunicação instantânea. Nela, a falação do adolescente "representa uma forma possível ou um modo desesperado de conter e até mesmo de dar contornos, a uma tentativa falhada de ser sujeito" (AMARAL, 2001,p. 1013). Da mesma maneira, a comunicação globalizante, instantânea (pela mídia) que hiper-oferece, retira o sujeito do desejo, alienando-o e transformando-o em ato/ação.

Ainda no âmbito desta condição de comunicação alienante, que se mostra desconhecida do próprio sujeito, surgiu uma outra situação, que agora se processa num Setor de Atendimento Psicológico para alunos universitários.

 

O IMPASSE DE SER E NÃO-SER

Numa primeira entrevista psicológica, um jovem universitário relata à psicoterapeuta:

-Fico ocupando o meu tempo com muitas coisas. Antes era 100% para os estudos. Agora, 40% divido entre o coral, piano, aula de teologia, monitoria, projeto de iniciação científica... .

Ufa, quanta coisa! pensa a ouvinte da narrativa. A escuta desta, mostra o paciente que se ocupa de 100% de atividades, surgindo como se ele fosse as próprias atividades. Seus colegas de faculdade fazem chacota, listam no quadro todas as suas ocupações.

Á psicoterapeuta acomete uma questão-inquietante: porque fazer tanta coisa? Mas prossegue a escuta.

-Desde pequeno só me relaciono com livros, não me lembro de ter brincado quando criança. Minha mãe me programou para ser assim e agora não consigo fazer diferente. Ela me programou para não ter necessidade, necessidade humana (beber, fumar...). Nunca bebi. Não sou anjo, mas não me sinto humano. Estou na transição.

Surge o impasse de ser e não-ser pela forma materna de cuidado que programa, pré-determina, cuida exacerbadamente – hiperprotege - antecipa. A escuta analítica indica o caráter da conversa: dar informação sobre a fazeção e o discurso da transição anuncia o que está desumanizado. Ser é agir e repetir, no lugar de rememorar ou de elaborar, prevalecendo assim, a atuação em detrimento da fantasia. Surge na clínica a fazeção como "uma tendência à excitar a pulsão em direção à descarga e à repetição; processo este que curto-circuita a elaboração psíquica"(AMARAL, 2001, p. 1013).

Considerando o estudo de Adorno sobre o entrelaçamento entre cultura e barbárie presente na cultura ocidental, Amaral salienta: "como resultado do mundo administrado (porque não dizer também programado) que retira da cultura o seu aspecto propriamente humano,decreta-se definitivamente a sentença de morte contra o sujeito. Ou seja, a despeito da aparente exaltação, orquestrada sobretudo pela mídia, o que se observa é a impossibilidade crescente de sua singularização" (AMARAL 2001, p.1002-1003). (Grifo nosso)

O paciente em questão, justifica seu interesse pelo curso programado a fazer, que lhe pré-determinará uma vida financeira garantida e status social, conforme crê sua parentela e cidadãos mais próximos de sua cidadezinha no interior. A identidade que surge na análise fica reduzida, pelo discurso materno e da coletividade. Impregnada, ela brota em seu sentido único, histórico e próprio à região do paciente. À psicoterapeuta ele revela o estado de transição, que está entre seu estado de "origem" - aquele que lhe proverá de recursos e segurança pela dedicação 100% a um curso - e a dor de ser e não ser.

O esvaziamento – não ser anjo nem se sentir humano – revela a face absurda de seu projeto de 100% fazeção. Estar em formação pela fazeção, tão comum às crianças e jovens na atualidade, parece evidenciar um funcionamento pautado pelo acting-out, como estratégia, como tentativa de se delimitar como sujeito, de dar contornos a uma vivência no limite do reconhecimento e do recurso garantido que é queixa latente na relação de análise.

Semelhante às formas cuidadoras no cotidiano globalizado, em condições de extremos, de limites, de radicais – hipo e hiperproteção, encontramos também cuidadores como professores, pais, entre outros, à mercê da forma mídica, de comunicação instantânea e descontinuidade da existência humana.

Esse estudo sobre algumas formas de cuidado na atualidade possibilitou-nos refletir como a Hipo e Hiperproteção são faces de uma mesma moeda, que revelam o sujeito não-pensante, preso à lógica que o produz, no mundo produzidamente globalizado.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A afirmativa "Um outro mundo é necessário e indispensável", nos levou ao mundo em que vivemos. A constituição deste mundo, tanto no discurso dos alunos na escola, quanto do adolescente na clínica, revelou o desconhecimento do Ser da inconsciência, que é produzido cotidianamente. O desconhecimento do Ser da inconsciência faz surgir uma autonomia disfarçada ou pré-programada de sobrevivência psíquica, induzindo a crença na necessidade de um outro mundo, quiçá este um mundo perdido.

"A priori", a desconsideração pelo que não é visto e percebido, gera o mundo de alienação, de pura consciência. No entanto, este nos permite ter acesso ao que se produz sem que o saibamos produzindo.

Seria a idéia: "Um outro mundo é necessário e indispensável" uma afirmativa ou a possibilidade de uma indagação?

As formas-cuidadoras-limites salientes e radicais que durante o próprio caminho deste estudo revelaram ser faces de uma mesma moeda – dar conta do mundo humano produzido – evidenciaram uma condição restritiva de vinculação emocional. A comunicação instantânea e a fazeção tornaram-se anunciadores de formas cuidadoras-limites desconhecidas, em seu sentido inconsciente. Hipo e Hiperproteção atendem instantaneamente as regras que programam o sujeito, tanto quanto revelam seu desamparo, sua condição desumanizante, sofrida e produzida cotidianamente.

A reflexão pela Psicanálise sobre a necessidade indispensável de um outro mundo, convida-nos a pensar se a criação de uma outra realidade não estaria apenas atendendo a uma fantasia infantil de completude e saciabilidade. De acordo com Herrmann "a Psicanálise que pretende curar do descentramento fragmentário, não por restituir ao homem o centro perdido – fantasia religiosa – busca revelar seu descentramento essencial e a insaciabilidade do desejo. Se nossa cultura espelha material e concretamente essa condição e portanto cobre seu homem com a ilusão de resposta como um véu de esquecimento, a Psicanálise busca levantar esse véu, desvelar o olvidado (alethéia), mostrar o descentramento e a ruptura internos ao sujeito, para curá-lo do excesso de fragmentação" (HERRMANN,1991, p.14).

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

AMARAL,M.G.T. Adolescentes sem limites ou "funcionamentos-limite" diante de uma existência que exige a demissão do sujeito? Revista Brasileira de Psicanálise, v.35, n.4, p. 1001-1021, 2001.

FERREIRA,M. Globalização,Trabalho e Psicologia. Jornal do Psicólogo, n. 69, ano 18, p.7-9, 2001.

ZIMERMAN, D. Fundamentos Básicos das Grupoterapias.ArtMed: Porto Alegre, 2000.

HERRMANN, F. A. O Método Psicanalítico. Brasiliense: São Paulo, 1991

HERRMANN, F. A. Introdução à Teoria dos Campos. Casa do Psicólogo: São Paulo, 2001