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An. 1 Simp. Internacional do Adolescente May. 2005
Adolescência(s) vividas no momento do (des)abrigamento e a produção de sentidos sobre si mesmo1
Martinez, Ana Laura MoraesI; Silva, Ana Paula Soares da SilvaII
IAluna de Mestrado do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da FFCLRP-USP
IIProfessora do Departamento de Psicologia e Educação da FFCLRP-USP
INTRODUÇÃO
Desde os estudos antropológicos de Margareth Mead (1945) têm havido questionamentos acerca do entendimento da adolescência como um fenômeno universal e natural. Apesar disto, na Psicologia, ainda existem descrições sobre a adolescência que se pretendem universalizantes e que negligenciam a inserção histórica bem como as condições concretas de vida deste segmento etário. Apesar de muitas teorias psicológicas se preocuparem com a constituição social do sujeito e com as formas situadas de produção do homem em relação direta com o seu meio, ainda se tem muito a avançar no sentido de romper com uma visão de homem determinado prioritariamente pelo seu "mundo interno". Este fato também se repete quando o objeto de estudo e intervenção é a adolescência.
Estudada em disciplinas como psicologia do desenvolvimento e teorias da personalidade, a adolescência é geralmente compreendida como a fase da vida que ocorre entre a infância e a fase adulta. Particularmente marcada por conflitos, tensões e dificuldades "internas", a adolescência passa a ser entendida enquanto fenômeno que, necessariamente, é marcado por "turbulências emocionais". Entretanto, é importante contextualizar que, conforme coloca Silva (2003), a adolescência, caracterizada como uma fase de profundas transformações, apesar de se constituir como campo de significação presente na sociedade como um todo, não se referem a todos os adolescentes, mas a uma forma dominante de se pensar a adolescência, particularmente aquela vivida nas camadas médias, em sociedades ocidentais e industrializadas. Ainda segundo a autora, muito pouco se conhece da realidade de outras culturas no que se refere à adolescência, assim como há um desconhecimento geral das diversas formas de manifestações e descrições da adolescência, mesmo dentro de uma mesma cultura.
Assim, os estudos da Psicologia, particularmente relativos aos desenvolvimento humano, conforme já foi dito, foram importantes protagonistas na construção de discursos normativos na busca de se compreender a adolescência.
Para Castro (2001), a psicologia do desenvolvimento contribuiu para a construção de uma visão adultocêntrica de desenvolvimento e também para a construção de um modelo familiar normativo, onde se preconizava que o "desenvolvimento normal" é sempre resultado que depende da existência de um contexto familiar afetivo, acolhedor e sem privações.
Juntamente com outros discursos produzidos pela Psicologia, este discurso normativo, fundamentado em inúmeros teóricos (Bowlby: 1988, Spitz: 1993, Winnicott: 1993), pode se tornar um divisor para categorizar situações familiares e contextuais, como "desestruturadas" e "potencialmente desestruturantes", uma vez que diferem da norma. Configuram-se, assim, as "situações de risco" para o desenvolvimento normal, podendo culminar em patologias, na delinqüência e na marginalidade social.
Analisando esse ideário normativo da perspectiva de seus impactos nas construções identitárias, Huning & Guareschi (2002, p.44) chamam a atenção para o caráter sempre relacional da identidade e afirmam que, ao defendermos "uma determinada identidade de infância ou adolescência ditas normais, estamos instituindo outras identidades de infância e outras adolescências diferentes da norma" (p.44). Longe de ser algo recente, este discurso normatizador, encontra suas origens em longa data, demarcando práticas sociais destinadas à determinados grupos sociais. Ainda de acordo com as autoras, parece haver uma profunda confusão entre as noções de em risco e de risco. Sem querer desconsiderar a existência de situações limite de pobreza e carência de políticas públicas, que certamente constituem situações que colocam o jovem em risco de integridade física e psicológica, as autoras questionam a assunção de que esta vitimização social o transforme numa espécie de perigo social. Estas normativas que vinculam as noções de pobreza/desvio, articulam-se nas mais variadas práticas, onde se confundem auxílio e controle, assistência e prevenção.
É neste contexto que se situam as ações social e historicamente construídas e destinadas por exemplo, às crianças e adolescentes abrigados, pelos mais variados motivos previstos pelo ECA (1990) – negligência física e/ou psicológica, abandono, maus-tratos, violência física, sexual, abuso, morte dos pais, abandono, etc. Pautando-se unicamente numa concepção que sustenta o desenvolvimento psicológico "saudável" como sendo aquele ocorrido em determinado contexto familiar, além de problemas do ponto de vista da compreensão da diversidade dos modos de organização e dinâmica familiares, corre-se o risco de deixar "no limbo da patologia anunciada"2 todas aquelas crianças e adolescentes que foram privadas da sua convivência com a família biológica, seja qual for o motivo, determinando ainda, a priori, dificuldades psicológicas, cognitivas e de relacionamento interpessoal para estas crianças e jovens.
Neste texto, a adolescência é entendida não como algo naturalmente dado ou, ainda, como uma fase da vida com características independente do momento sócio-histórico de sua existência. Ao contrário, compartilhamos com as concepções de diversos autores que entendem que as formas de se compreender a adolescência estão intimamente relacionadas aos significados negociados em uma dada época e lugar – daí o convite para se pensar na existência de múltiplas adolescências. Aderindo mais a uma concepção construída e menos universal da adolescência, particularmente da adolescência considerada por alguns discursos como sendo "de/em risco" convida-se, então, a refletir sobre uma população adolescente específica – aquela que vivencia sua adolescência longe do cenário familiar de origem (tão valorizado por alguns discursos da Psicologia). Trata-se dos adolescentes que permaneceram muitos anos em situação de abrigamento e que atingem a maioridade neste contexto. De acordo com o ECA(1990), é sabido que este adolescente não pode permanecer no abrigo após ter completado dezoito anos. Entretanto, tendo permanecido no abrigo durante muitos anos de sua vida, como enfrentará este momento de profundas mudanças em sua vida? Como estará vivenciando sua adolescência, neste momento de transição que se impõe diante dele? Que sentidos de si mesmo serão construídos neste momento? Para se avançar nesta discussão, torna-se necessária uma contextualização acerca da redefinição das práticas e entendimentos sobre a adolescência após a promulgação do ECA.
A REDEFINIÇÃO DAS PRÁTICAS DESTINADAS À ADOLESCÊNCIA APÓS O ECA E A CONDIÇÃO DE CRIANÇAS E ADOLESCENTES ABRIGADOS
O Estatuto da Infância e da Adolescência (Lei Federal 8069/90) constitui um marco importante para os entendimentos da adolescência uma vez que ele amplia os grupos sociais considerados objetos de atenção governamental e de políticas públicas, estendendo a todas as crianças e os adolescentes a condição de sujeitos de direitos. Instaura-se a doutrina da Proteção Integral, em substituição à doutrina da situação irregular. Ao considerar crianças e adolescentes em condição peculiar de desenvolvimento, o ECA estabelece uma série de mecanismos para a garantia dos direitos da infância e juventude. Rompe-se com a distinção crianças de família / crianças sem família e propõe-se a superação do processo de estigmatização de crianças e de famílias que vivem em situação e pobreza ou miséria.. A proposta consiste em que responsabilizar o Estado e a sociedade pelas condições de vida das crianças, invertendo a lógica anterior que visava mais, e principalmente, a proteção da sociedade contra crianças e adolescentes pobres. Conforme sintetiza Mendez (1994):
O Estatuto tornou-se, assim, o instrumento mais adequado para propor a reprodução ampliada das experiências de maior êxito da década de 80, experiências estas que foram desenvolvidas à margem, contra ou na indiferença das leis vigentes.(...)A convivência e não o controle, constituiu a idéia básica para se garantir a paz social e a preservação dos direitos do conjunto da sociedade." (p.57).
Entretanto, considerando-se um longo passado marcado por fortes discursos que associavam periculosidade/pobreza, seria ingênuo pensar que esta transição seria rápida e sem conflitos. De acordo com Bazon (2002), no que se refere especificamente ao universo da infância e juventude assistidas, ou seja, àquelas que efetivamente precisam de ajuda por se encontrarem em situação particularmente difícil, pode-se afirmar que a promulgação do ECA não foi suficiente para "apaziguar a tensão entre os fatos e a nova norma" (Seda, apud Bazon, 2003, p.22), já que, segundo a autora, os trabalhadores da linha de frente ainda cultivavam e/ou foram cultivados em meio à hábitos de desservir os mais vulneráveis, revelando práticas de atuação no mínimo inadequadas e, no máximo, violentas.
Um outro risco apontado por Huning & Guareschi (2002) em relação ao ECA é que este, apesar de promover um deslocamento da situação de irregularidade da criança ou adolescente para outras instâncias da sociedade, sejam elas a família ou a escola, acaba tendo como alvo de intervenção a própria criança ou adolescente, desconsiderando novamente a responsabilidade destas outras instâncias apontadas. Este apontamento feito pelas autoras pode ser exemplificado em situações nas quais o Conselho Tutelar (órgão responsável pela aplicação das medidas previstas pelo Estatuto) deixa de orientar suas ações por encaminhamentos que passam pela via da reestruturação econômica e social de uma determinada família e passa a ter como ação prioritária a retirada da criança ou do jovem do seu contexto familiar, colocando-os em abrigos.
Desta forma, salienta-se que, apesar do grande avanço representado pelo Estatuto da Criança e do Adolescente na construção de novos significados sobre esta adolescência "socialmente vulnerável", as ações e condutas, particularmente das instâncias legais sobre esta população, ainda são pautadas por uma visão de família ideal e nuclear – família esta longe de ser hegemônica na realidade brasileira.
Em relação às crianças e adolescentes no contexto de abrigamento, de acordo com o ECA, esta seria uma medida de proteção (Capítulo II, Artigo 101) aplicada apenas após esgotadas as medidas que visam o fortalecimento dos vínculos familiares e comunitários (Artigo 100). Além disso, a medida de abrigamento deve ser provisória e excepcional, utilizável como forma de transição para a colocação em família substituta, não implicando privação de liberdade. (Artigo 101, Parágrafo Único).
Na prática quotidiana, entretanto, observa-se que a escolha pela colocação em abrigos acaba sendo uma das principais, quando não a única forma de atuação frente à problemática familiar reproduzindo, assim, modos tradicionais de institucionalizar esta população, tendo como uma das inúmeras conseqüências desta prática a descontinuidade, ou até mesmo rompimento, dos vínculos familiares.
Fica, assim, configurada uma série de contradições entre os aspectos legais e a realidade concreta – a preservação dos vínculos familiares, princípio defendido no ECA às vezes não é garantida; por sua vez, o abrigo, diferentemente do seu caráter provisório e excepcional, acaba sendo uma medida a que se recorre com freqüência e cujas crianças e jovens, por diversos fatores, permanecem longos períodos nestas instituições. Este quadro é possível de ser verificado através da pesquisa nacional realizada pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (www.fapesp.br/agencia/boletim). O estudo levantou que cerca de 80.000 crianças e adolescentes brasileiros vivem hoje em situação de abrigamento, sendo que os profissionais dos abrigos vêm encontrando sérias dificuldades para promover a reintegração familiar dos abrigados, em especial dificuldades vinculadas à condições econômicas. Enquanto 18,9% das crianças e adolescentes estão abrigadas por causa do abandono, ausência ou perda do vínculo familiar, 24,2% dos abrigados não retornam à família devido à pobreza. Os demais se encontram nos abrigos por sofrerem violência doméstica (11,7%); pela dependência química dos pais (11,4%); por vivência na rua (7%); por orfandade (5,2%). Em relação ao tempo de abrigamento, os dados revelam que as crianças permanecem no abrigo por muito tempo, algumas até mais de dez anos, apesar de possuírem família. Em outra pesquisa realizada por Weber & Gagno (1995) em um abrigo de Curitiba, foram ouvidas crianças que não possuíam vínculo familiar há pelo menos um ano. Destes entrevistados, a grande maioria estava abrigada há mais de 3 anos, chegando até a 15 de institucionalização.
Considerando-se os discursos sobre a adolescência e os dados da realidade dos jovens abrigados, questionamo-nos sobre as os modos como esses jovens que permaneceram abrigados durante muito tempo constroem suas subjetividades, tendo neste contexto um importante ponto de referência para si e para sua vida. Como não incorrer no grave erro de patologizar esta população? Como compreender suas adolescências, particularmente no momento em que estes jovens se vêem obrigados a sair do abrigo, já que esta medida é prevista até os dezoito anos de idade? Como estão vivenciando este momento de mudanças em suas vidas? E como estão sendo posicionados pelos seus interlocutores relacionais – companheiros de escola, comunidade, educadores do abrigo, colegas, etc.?
A NARRATIVA COMO CONSTRUÇÃO DE SENTIDOS SOBRE SI
Para se trabalhar com as questões levantadas e em especial com a construção de sentidos sobre si de adolescentes que, em função da maioridade, estão em processo de saída do abrigo, privilegiamos a utilização de entrevistas biográficas, entendidas como instrumento para a produção das narrativas pessoais (Silva, 2003).
Bruner (1997) reserva à narrativa a condição de uma das formas mais poderosas de discurso, e critica a psicologia científica que não negligencia ou até mesmo desconfia dos relatos humanos enquanto fonte de ação e de produção de sentidos sobre o mundo e sobre si mesmo. Também Hermans (1996) trabalha com a narrativa enquanto metáfora para se pensar a construção de si mesmo. O autor parte do pressuposto de que o eu é sempre um narrador motivado a contar histórias sobre si. Este narrar sobre si é entendido como um evento sempre dinâmico, relacional e dialógico, uma vez que sempre se conta uma história para alguém (que pode ser um outro real, imaginário, para outra pessoa ou para si mesmo).
À perspectiva narrativista (Harré, 1998; Hermans, 1993) soma-se as contribuições do referencial teórico-metodológico da Rede de Significações (RedSig), desenvolvido por Rossetti-Ferreira e colaboradores (2004). Da mesma forma que as autoras, "posicionamo-nos no mesmo campo de idéias daqueles que acreditam na natureza discursiva e no caráter semiótico da constituição humana" (p. 24). Esta perspectiva se propõe a compreender a complexidade em que os processos de desenvolvimento humano ocorrem,descrevendo e interpretando os vários elementos (interacionais-pessoais-contextuais) que participam destes processos. No que se refere à constituição da pessoa, a RedSig propõe o outro como fundante no processo de constituição da subjetividade, ou seja, na construção das identidades pessoais e grupais, permanecendo presente ao longo de toda a vida da pessoa. Admite-se, assim, a multiplicidade da pessoa, já que são múltiplos e heterogêneos os vários outros com as quais ela interage.
As contribuições das perspectivas da narrativa e da RedSig marcam uma concepção de sentidos de si relacional e discursiva, que contempla as contradições e multiplicidades do próprio sujeito e, ressignifica uma visão de um sujeito fechado e coeso, amplamente veiculada no pensamento ocidental.
A NARRATIVA DE PEDRO NO MOMENTO DE SAÍDA DO ABRIGO – CONSTRUINDO SENTIDOS SOBRE SI
A experiência de ouvir adolescentes no processo de desabrigamento, considerando-os um grupo que constrói concretamente significados sobre suas vidas e sobre o processo de ser jovem neste contexto, faz emergir uma série de discursos, contraditórios, polissêmicos e complementares que compõem o cenário de suas condições atuais e já vividas, relativos à família de origem, ao abrigo, às experiências de adoção, às relações com a escola e o trabalho, além de questões relativas ao futuro. Este momento caracteriza-se por des/reestruturações concretas, reais e simbólicas acerca de seu passado, presente e futuro. Sem pretender estancar sentidos sobre este adolescente que viveu em abrigo por muito tempo e que agora se vê frente ao desabrigamento, apresentaremos aqui o caso de Pedro. Neste texto, apresentaremos as narrativas de Pedro em relação aos motivos do abrigamento e ao momento de saída do abrigo. A entrevista com Pedro foi realizada um mês antes de completar os dezoito anos, quando estava ainda no abrigo, uma instituição destinada especificamente a meninos, situada em uma cidade de porte médio do interior do Estado de São Paulo..
Uma breve descrição de Pedro
Pedro foi um dos primeiros a chegar no "orfanato"(como é chamado o abrigo), assim que ele foi inaugurado. Na ocasião, contava com seis anos de idade. Tem cinco irmãos (três meninos e duas meninas). Uma de suas irmãs ficou no abrigo feminino, também na mesma cidade. Dois de seus irmãos ficaram no abrigo com ele por alguns anos, mas já faz algum tempo que a mãe veio buscá-los de volta. Pedro não quis voltar com ela, "dizendo que agora era tarde demais para se arrepender". Atualmente ele é o único dos irmãos que continua abrigado. Conta que seus pais o entregaram para sua tia, onde ficou por volta de um ano. Diz que ela queria adotá-los, mas "acho que não tinha verba. Aí ela decidiu me botá no abrigo".Refere-se à possibilidade de adoção como sorte, dizendo que ele não teve a sorte de ter sido adotado como uma de suas irmãs e que agora sabe que é tarde demais. Conta que sua mãe já veio procurá-lo algumas vezes, mas que ele não quer mais saber dela. Atualmente, tem irmãos casados e irmãos que moram com a mãe. Seus pais são separados e cada um deles já formou uma outra família. Freqüenta o segundo colegial e trabalha numa empresa da região. Fala com orgulho que começou como officce-boy e que hoje trabalha na área de informática, organizando toda a parte de exportação. Faz curso de informática e gosta de jogar futebol aos sábados, além de sair para a balada, embora "as tias fiquem regulando um pouco". Pensa em fazer faculdade de informática, mas tem que ser em uma faculdade pública ou com bolsa. Tinha algumas "tias" que iam visitá-lo de vez em quando.
Logo no primeiro contato com os meninos que pretendíamos entrevistar, Pedro mostra-se o mais falante e expansivo. Faz brincadeiras constantes com as crianças e com as educadoras que preparavam o lanche naquela tarde de Sábado. Era um menino grande e robusto, cheio de espinhas no rosto. Tinha o sorriso fácil e acesso a todas as salas do abrigo, inclusive a da assistente social, sem grandes problemas. Vestia-se bem, com tênis de marca, roupas com nomes de jogadores de basquete. Disse que comprava estas roupas com seu próprio dinheiro do trabalho. Neste primeiro contato, após expor o projeto, Pedro é o primeiro a dizer que toparia fazer a entrevista. Faz chacota com os outros, que parecem um pouco mais tímidos que ele. Durante as visitas abrigo (ao todo foram dez momentos), Pedro quase sempre se encontrava no abrigo (os encontros eram de Sábado a tarde, já que era somente aos finais de semana que os menino se encontravam no abrigo, uma vez que todos eles trabalhavam e estudavam). Nesses encontros, ocorreram várias conversas com Pedro, geralmente em uma sacada em frente a um campinho de futebol.
Os motivos do abrigamento
Em relação aos motivos pelos quais Pedro foi abrigado, quando questionado, ele responde:
Eu num lembro muito bem que eles num me contô até hoje a história. Até hoje eles num me conta. Eu pergunto, assim, eu prucuro sabê, mais, ninguém conta... Falavam que eles bebia demais...essas coisa....mais eu nem...eu vô atrás, mais nem...nem muito....no assunto. Mais ninguém conta a verdade!" (primeira entrevista)
Quando Pedro conta que pergunta sobre sua história, não fica claro para quem ele está fazendo esta pergunta, já que utiliza o pronome "eles". Assim, parece dialogar com um contexto um tanto impessoal e despersonalizado. Vale ressaltar que neste abrigo a rotatividade de funcionários é muito alta, algo que poderia limitar a formação de vínculos mais próximos entre o adolescente e o educador. De qualquer forma, neste trecho, fica explícito um desconhecimento de Pedro acerca de sua própria história de vida (algo que também aparece na narrativa dos outros adolescentes). Chama a atenção a indefinição dos termos utilizados por Pedro ("eles", "falavam", "ninguém"), dando-nos a impressão de que todos os interlocutores negaram-lhe uma verdade, ficando um diálogo muito solitário acerca de suas dúvidas e curiosidades sobre sua vida. Um outro ponto que chama a atenção refere-se ao movimento que Pedro faz no sentido de ir atrás de sua história, mas não muito – indicando um movimento de sucessivas aproximações e afastamentos acerca do "assunto". Este movimento, conforme colocam alguns autores da perspectiva narrativista, indica para a co-existência de uma multiplicidade de sentidos (contraditórios, antagônicos ou complementares) numa mesma narrativa construída sobre si mesmo. Assim, neste momento a narrativa co-construída por Pedro, no contexto conversacional da entrevista, parece apontar para uma reconfiguração de sentidos sobre si, a partir do momento que é convidado a pensar sobre sua vida e sobre seu futuro. Por fim, traz num tom de desabafo que ninguém conta a verdade a ele; algo que corrobora algumas das observações referentes a este abrigo e no modo como a equipe lida com "assuntos familiares e do passado". Desta forma, ficou evidenciada uma certa postura de afastar Pedro, assim como os demais jovens, de sua história de vida e das figuras familiares que possam intervir em suas vidas. O que restam são lacunas – lacunas nos prontuários, lacunas nas histórias, silêncios e "não sei".
O momento de saída do abrigo
Quando perguntado sobre como vai ser morar sozinho e se ele pensa nisso e tem vontade, Pedro diz:
Eu num...tô procurando pensá agora, mais mais prá frente. Há um mês antes eu começo a pensá. Eu acho que vai sê legal morá sozinho. Assim, vai estranho, o quê? Um mês, dois mês...até um ano pode sê estranho, que...acostumado morá com um monte de gente, um monte de barulho. Já é acostumado, então...cê estranha. Acordá cedo pra i trabaiá...acostumado a tia acorda. Aí...tem que coloáa uns deiz mil despertador na casa.
E: Aqui são elas que te acordam?
P: Tem veiz que é. Quando...eu num acordo assim, ela vai lá e chama. Tem veiz que eu acordo sozinho, mais...a maioria das vezes é ela que acorda. Vai chama eu, o J., o A. pra escola.
Neste trecho, nota-se que, ao posicionar Pedro para pensar sobre este particular momento de sua vida, uma série de sentidos contraditórios e até mesmo opostos sobre sua vida emergem em sua narrativa. Assim quando diz que "há um mês antes eu começo a pensá", não se sabe ao certo se ele quer dizer que já vem pensando nisso há algum tempo ou se pretende começar a pensar sobre isso somente na véspera de seu aniversário, que seria dali um mês. Vale ressaltar que, neste abrigo, não há nenhum espaço ou atividade mais ou menos estruturada para se pensar as questões da saída do abrigo – algo que pode estar relacionado a este "não sei o que pensar" que Pedro traz em sua narrativa. Este "não sei o que pensar sobre isso" apresenta-se novamente quando fala que acha que vai ser legal morar sozinho. Logo em seguida, introduzindo a questão concreta da adaptação a esta nova situação ao longo do tempo (um mês, dois meses, etc.), diz que vai ser estranho, uma vez que concretamente está acostumado a morar com um monte de gente. Neste sentido, é importante salientar o tempo de abrigamento de Pedro, ou seja, o cenário do abrigo, ao contrário do que se prevê no ECA, constitui-se para ele como um contexto central na construção de sua subjetividade – algo que talvez traga ainda mais conflitos e contradições para se pensar o seu desligamento. Um outro ponto que merece destaque diz respeito às construções de si enquanto alguém autônomo/dependente. Assim, quando diz "...acordá cedo pra i trabaiá...acostumado a tia acordá. Aí...tem que colocá uns deiz mil despertador na casa", ao mesmo tempo que se depara com a possibilidade de ter que acordar sozinho todos os dias (algo que só às vezes acontece no abrigo), que o desafiará a posicionar-se enquanto alguém mais autônomo e independente, por outro lado, o modo como se refere à educadora ("tia") indica um posicionamento de dependência e até mesmo infantilização na relação com a educadora. Desta forma, não há somente um sentido de si autônomo ou só um dependente. Ao contrário, estes dois sentidos contraditórios se presentificam na narrativa de Pedro, misturando presente e futuro e indicando para uma subjetividade em processo de negociação de sentidos, consigo e com os outros. Uma das saídas narrativas possíveis que Pedro dá a esta contradição dependência-autonomia é a necessidade de colocar dez mil despertadores para conseguir acordar. Neste sentido, salienta-se que seria de extrema importância que o abrigo, entendido enquanto um contexto de subjetivação destes jovens, pudesse posicioná-los ativamente neste cuidado de si, preparando-os gradativamente para o momento da saída (como, por exemplo, a instalação de "repúblicas" como já ocorrem em alguns abrigos do país).
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Pretendendo avançar na compreensão de como a subjetividade destes jovens estão sendo construídas, neste momento de ruptura e mudanças – que é a saída do abrigo, buscou-se problematizar quais os sentidos de si que estão sendo negociados por estes adolescentes. Imersos numa infinidade de discursos sobre a adolescência (momento de crises, instabilidade emocional, rebeldia, etc.), torna-se importante compreender como o contexto do abrigo presentifica estes sentidos acerca da adolescência, disponibilizando determinados lugares e interditando outros para este jovem. Pôde-se notar, neste sentido, que, através da fala de Pedro, ao mesmo tempo que o jovem do abrigo é posicionado enquanto alguém tutelado durante muitos anos (já que não são eles que lavam suas próprias roupas, fazem sua comida ou sequer cuidam de seu próprio salário), frente ao desabrigamento são cobrados por uma postura pró-ativa, onde devem ser corajosos e não terem medo de enfrentar a vida lá fora. Podemos discutir, por exemplo, que este tipo de expectativa não difere muito dos adolescentes da classe média que são cobrados para cursarem uma faculdade fora de suas casas. Talvez a cobrança realmente não difira. O que difere é o contexto de subjetivação destes diferentes jovens – um terá o apoio dos pais com mesadas, visitas, etc. (e sabemos que o período de moratória do jovem classe média se estende cada vez mais); o outro, na grande maioria das vezes, só poderá contar consigo mesmo quando sair do abrigo, já que as redes de apoio são quase sempre nulas para estes jovens. É preciso situar de que jovem estamos falando, em que contexto vive e quais as condições de produção de sua subjetividade, para que façamos mais do que simplesmente comparar juventudes que são simplesmente diferentes e singulares.
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O projeto é financiado pela FAPESP, a quem agrademos o apoio.
1 Este texto é parte do projeto de mestrado desenvolvido junto ao Programa de Pós-Graduação em Psicologia da FFCLRP-USP.
2 Termos utilizados por Maria Clotilde Rossetti-Ferreira em discussão no GIAA-CINDEDI (Grupo de Investigação sobre Acolhimento e Adoção do Centro de Investigações sobre Desenvolvimento Humano e Educação Infantil da FFCLRP-USP).