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An. 1 Simp. Internacional do Adolescente May. 2005

 

A compaixão na contratransferência: narrativa de um encontro clínico com uma adolescente soropositivo

 

 

Vera Lúcia MencarelliI; Tania M.a J. A VaisbergII

IPsicóloga/Psicanalista, doutoranda em Psicologia Clínica pelo Instituto de Psicologia da USP, pesquisadora da SER e FAZER: Oficinas Psicoterapêuticas do mesmo Instituto, membro da equipe do ambulatório de moléstias infecciosas do Município de Santo André, membro fundadora do NEW: Núcleo de Estudos Winnicottianos de São Paulo
IIPsicóloga/Psicanalista, Livre Docente pelo Instituto de Psicologia da USP, Professora do programa de pós-graduação do mesmo Instituto e da PUCAMP, coordenadora da SER e FAZER: Oficinas Psicoterapêuticas do IP-USP e presidente do NEW: Núcleo de estudos psicanalíticos de São Paulo

 

 


RESUMO

O artigo narra o encontro de uma psicanalista, que trabalha em equipamento público referenciado para o tratamento de moléstias infecciosas, DST(s) e aids com um adolescente que acaba de ser informado sobre sua soropositividade para o HIV. A condição existencial do jovem, que vive em condições sociais precárias, que conjugam pobreza e vitimização de ação violenta, coloca a psicanalista em contato com intensos sentimentos contratransferenciais, que são tomados, aqui, como alvo de reflexão, numa busca de articulação teórica, à luz do referencial winnicottiano. O trabalho, como um todo, aponta para a necessidade de se pensar sobre a experiência de compaixão na contratransferência, como fenômeno que tem lugar quando, numa clínica extensa e diferenciada, estamos em contato com dramáticas humanas marcadas por sofrimento intenso.


 

 

"O psicoterapeuta (analista ou psicólogo analista) deve permanecer vulnerável e ainda assim reter seu papel profissional durante suas horas de trabalho. Acho que o analista profissional que mantém comportamento correto está mais à vontade do que o analista que (ainda que com comportamento correto) retém a vulnerabilidade que faz parte de uma organização defensiva flexível". (Winnicott, 1960, p.147)

 

Pretendemos neste texto apresentar a narrativa, seguida de reflexões que buscam uma articulação teórica com o pensamento de D.W.Winnicott, de um encontro clínico em que uma de nós esteve presente junto a um jovem soropositivo para o HIV logo após ter sido comunicado sobre seu diagnóstico médico. A psicóloga/psicanalista integra uma equipe multidisciplinar de um equipamento público referenciado para o tratamento de aids, entre outras doenças. Trata-se do Ambulatório de Moléstias Infecciosas e Programa DST/aids de Santo André. A situação narrada teve lugar em um dispositivo clínico do ambulatório forjado, especialmente, para o acolhimento de pacientes que devem dar início a seu seguimento terapêutico, que intenta a atenção e assistência à saúde total.

 

Um triste encontro

A psicanalista conheceu Alex em seu dia de plantão no acolhimento1. Ele chegou com um encaminhamento de um clínico que o enviava de forma bastante abreviada. No receituário constavam apenas duas palavras: moléstias infecciosas. O rapazinho com quem se defrontava era muito jovem e meigo e a ela ficou a se perguntar o que lhe traria ali, pois o médico, de outro serviço, nada esclarecera e não havia nenhum resultado de exame junto ao encaminhamento, o que costuma ser habitual quando o paciente vem encaminhado após diagnóstico de soropositividade para o HIV em investigação de clínica médica.

A psicanalista perguntou-lhe, então, em que poderia ajudá-lo e o motivo de seu encaminhamento para um serviço médico de especialidade. Antes, quis saber quantos anos tinha e se tinha algum acompanhante consigo.

Alex2 respondeu-lhe que logo completaria 17 anos e que se encontrava sozinho. Costumava ir ao médico com a orientação e conhecimento da mãe, mas esta não o acompanhava, pois tinha um trabalho no qual não podia faltar. Disse-lhe que há alguns dias uma série de bolhas havia aparecido em suas costas e que a região tornara-se muito dolorosa, tanto antes como depois da erupção. Contou que o médico, clínico geral, havia explicado-lhe que o tratamento para tal problema seria realizado ali, onde agora se encontrava.3

A psicanalista pode compreender, instrumentada por seus treinamentos e atualizações, que a descrição de seus sintomas correspondia a uma suspeita de herpes zoster, reativação do vírus da catapora, por ocasião de episódio de imunodepressão. Este tipo de patologia, de fato, é tratada no ambulatório de moléstias infecciosas, pois o fornecimento de medicação específica - bastante cara - encontra-se ali atrelada. No entanto, uma outra questão relacionada ao encaminhamento tinha pertinência: qual seria o motivo da falha imunológica do paciente? Afinal o clínico não agira de forma a prescrever a medicação específica que poderia ser apenas autorizada pelo médico infectologista. Teria ele suspeitado de uma infecção pelo HIV? A psicanalista intuiu que o encaminhamento procurava contemplar além do tratamento da herpes zoster, a investigação sorológica para o HIV.

Conversou um pouco com Alex, perguntou-lhe se alguém da família também havia apresentado aquele problema, como era sua vida, se tinha namoradinha, se já iniciara sua vida sexual, se já havia por algum motivo recebido sangue transfundido. Explicou-lhe que não era médica, mas a psicóloga que recebia as pessoas na primeira vez que elas vinham ali e que estas perguntas ajudariam o médico no sentido de entender o porquê dele estar com aquele problema.

Alex disse-lhe que ninguém em casa havia apresentado o mesmo problema e que havia tido sua primeira relação sexual há 4 meses com uma garota com quem ficou, mas com quem não estava namorando. Afirmou ter usado preservativo na ocasião. Nunca havia recebido sangue por transfusão. Sobre sua vida familiar contou-lhe que morava com a mãe e mais cinco irmãos. Não convivia com o pai de quem a mãe se separara. Ele e o irmão mais velho eram filhos do mesmo pai, enquanto os irmãos mais novos eram filhos(as) cada um(a) de um pai.

A psicanalista pediu-lhe licença e foi conversar com a colega infectologista para passar-lhe o caso. Esta lhe explicou que, caso confirmado o diagnóstico de herpes zoster, talvez não houvesse relação com o HIV, pois, muitas vezes até mesmo um grande desfavorecimento emocional pode abalar as condições imunológicas e ocasionar seu aparecimento. Julgou-se que seria melhor não lhe oferecer um teste rápido para o HIV, situação na qual o psicólogo é solicitado a preparar o paciente. No entanto, a médica observou que, apesar do paciente não apresentar história epidemiológica, não poderia ser descartada a possibilidade de infecção pelo HIV, ainda que pouco provável. Era, portanto, prudente realizar a sorologia. Combinou-se que o rapaz seria dirigido ao COAS4, onde receberia orientação mais detalhada e a oferta da sorologia HIV, em condições que não lhe impressionariam sobremaneira, pois o enquadramento deste dispositivo carrega consigo nuances pedagógicas. Submetê-lo à tensão de um pedido na própria consulta médica poderia assustá-lo desnecessariamente.

Voltando para dar seguimento a entrevista com o rapaz, a psicanalista comunicou-lhe que seria consultado imediatamente pela médica que também iria passar-lhe algumas orientações. No final do período da manhã o diagnóstico de herpes zoster estava confirmado, o rapaz medicado e encaminhado para o COAS onde foi atendido prontamente. Naquela mesma manhã já havia colhido sua sorologia HIV junto a outras que são oferecidas nesta ocasião: hepatite B e Sífilis.

Após aproximadamente 15 dias a psicanalista teve uma lamentável surpresa. A colega que havia atendido Alex no Centro de Aconselhamento Sorológico procurou-a para contar que o rapaz apresentava reagência para o HIV. Ele havia acabado de ter o conhecimento disto através dela que o acompanhava preocupada com seu estado emocional: Alex permanecera, aparentemente, sem reação diante dela.

A psicanalista viu de longe Alex, recordou-se de seu desamparo e seu próprio coração tornou-se apertado. Desejou imensamente livrar-se da tarefa de realizar a entrevista que daria início a seu tratamento.

Procurou serenar antes de entrar na sala com Alex e sem grandes rodeios disse-lhe que a colega havia lhe informado de que ele, infelizmente, não recebera boas notícias. Repetiu-lhe o resultado de sua sorologia. Alex fitou-a com olhar apreensivo, porém, imediatamente, surgiu em seu semblante um ar de resignação. Abaixou a cabeça e manteve-se calado. A psicanalista explicou-lhe que o exame seria repetido, pois só com uma confirmação poder-se-ia dizer que realmente ele tinha tal problema de saúde. Disse-lhe da possibilidade do falso positivo e dos progressos no tratamento da doença, caso esta se confirmasse. Alex mantinha-se calado. Ela não sabia se ele a ouvia, se compreendia suas palavras, porém estas ocupavam um lugar e ela, profundamente, desejava que fossem capazes de levar-lhe algum conforto.

Perguntou-lhe se gostaria de falar ou esclarecer alguma coisa. Alex quis saber se o tratamento exigiria sua presença freqüente no ambulatório, pois acabara de arranjar um emprego e não queria faltar muito, pois temia perdê-lo. A inocência contida em sua preocupação tornou-a ainda mais sensível a ele. Disse-lhe que antes de tudo seria necessário confirmar seu diagnóstico. Foi então que ele disse que havia uma coisa que precisava contar-lhe. Com um grande esforço para superar o que foi compreendido como sentimento de vergonha, contou-lhe que não duvidava da veracidade do resultado do exame, pois quando tinha 9 anos havia sido "pego" por um grupo de 8 meninos e em seguida calou-se. Não teve coragem de continuar a frase que foi concluída por ela: você foi agredido sexualmente? Ele apenas fez sinal afirmativo com a cabeça.

A psicanalista sentiu um nó aparecer em sua garganta e uma súbita vontade de chorar, controlada com grande esforço. Suspirou profundamente e olhou para ele tentando expressar compreensão e solidariedade, mas em seu íntimo sofria pelo conhecimento de sua dor e humilhação. Esperou alguns segundos para ver se ele gostaria de falar mais a este respeito e diante de seu silêncio perguntou-lhe como se sentia em relação aos sintomas que o haviam trazido ali. Alex disse que as lesões estavam secas, mas que ainda sentia dor. Ela comunicou-lhe que iria pedir para o médico avaliá-lo e que este também providenciaria novos e mais sofisticados exames.

Sua vontade de chorar insistia. Alex, então, disse que queria perguntar-lhe uma coisa. Anunciando isto, simultaneamente, tirou da cabeça um bonezinho que usava e deixou à mostra uma grande área com ausência de cabelos. Perguntou-lhe se poderia indicar-lhe um tratamento para aquele problema, pois deste bebê convivia com ele. Aos 10 meses, acidentalmente, uma panela de óleo quente entornara sobre sua cabeça, quando se aproximou, furtivamente engatinhando, da mãe que cozinhava. Tendo a mãe se surpreendido, não pode controlar um movimento brusco que derrubou a panela. Alex não necessitou ficar hospitalizado, porém nunca ganharia cabelos na região da pele lesionada da cabeça.

Aquele relato, enfim, superou qualquer possibilidade da manutenção da tolerância emocional da psicanalista. Ela conseguiu dizer-lhe que o encaminhamento que desejava seria providenciado, pediu-lhe licença a pretexto de pegar alguns papéis que teria que preencher, escondeu-se em um outro consultório qualquer e chorou.

Quando retornou mais compensada e recomposta, comunicou-lhe o que havia decidido proceder em termos de sua inserção no ambulatório. Avaliou que talvez fosse melhor para ele ter um médico, homem, que pudesse encarregar-se de seu tratamento, possibilitando-lhe o convívio com uma figura masculina que lhe orientasse, aconselhasse e preocupasse-se com ele. Disse-lhe, então, quem seria seu médico e que iria conhecê-lo naquele mesmo dia, para que pudesse avaliar suas dores. Também lhe disse que seria necessário que contasse para sua mãe o que estava ocorrendo e ofereceu-se para fazê-lo na sua presença ou ausência, caso o desejasse. Ele aceitou a oferta e disse que preferia que ela contasse à mãe. Ficaram assim combinados e se despediram, não sem antes ela dizer-lhe que poderia procurá-la quando quisesse. Em seguida dirigiu-se ao consultório do colega infectologista, pessoa acolhedora e afetivamente bastante devotada a seus pacientes, o que justificava sua escolha. Quando começou a contar-lhe o porquê de sua decisão de atribuir-lhe aquele caso, bem como seus detalhes, foi tomada surpreendentemente pela intensidade da reação emocional, parcialmente, contida até então e chorou copiosamente em sua companhia. O colega sustentou sua pessoa invadida pelo impacto emocional. Disse-lhe que aquilo ocorrera com ele diversas vezes. Reteve-a ali um tempo, contando-lhe alguns episódios pelos quais passara. Garantiu-lhe que veria o rapaz e o tomaria em seus cuidados. Mais tarde, já sozinha, ela ainda verteria muitas lágrimas no banheiro do ambulatório.

 

Reflexões

Nossos esforços reflexivos após os acontecimentos narrados iniciam-se a partir de informar o leitor de que fazemos parte de um grupo de pesquisa que, a partir do estudo atento do pensamento winnicottiano, tem feito uso inovador de suas idéias em prática clínica. Acabamos por forjar um estilo clínico diferenciado da maneira tradicional de exercer a psicanálise, denominado estilo clínico SER e FAZER que, tendo como pilar de sustentação a obra de Winnicott, dela se apropria transformando o saber dali adquirido em aspecto de verdadeiro self.5

Em plano coletivo nossa produção inspira-se sobremaneira em um texto do autor de 1962 intitulado: Os objetivos do tratamento psicanalítico. Ali diz Winnicott que quando o paciente precisa de análise faz-se análise, quando outras necessidades são prementes, faz-se alguma outra coisa, constelando uma situação onde somos psicanalistas fazendo outra coisa, mais apropriada para a situação. No âmbito de um equipamento de saúde forjado para assistência do paciente soropositivo o analista muitas vezes encontra-se na posição indicada por Winnicott, como ilustra o acontecimento narrado acima. Acreditamos, no entanto, que a manutenção de seu lugar de analista não é dado a partir do exercício da técnica psicanalítica e sim da apropriação de sua função enquanto aquela que aponta para a possibilidade de transformação do campo do sofrimento humano. Segundo nossa compreensão, numa clínica assim direcionada, somente o holding pode alcançar, enquanto ferramenta metodológica, tal intento (Aiello-Vaisberg, 2003). Para o exercício do holding, porém, nada mais nada menos do que a presença real do analista é convocada. A sustentação só é possível a partir do verdadeiro self do analista.

É neste ponto que começam a surgir questionamentos e reflexões que dizem respeito aos sentimentos e disposições afetivas do próprio analista quando envolvido neste tipo de clínica específica como a clínica da soropositividade, pois tais sentimentos não podem estar extirpados deste se sua atuação é eminentemente forjada a partir de seu ser vivo e real. Podemos entender que caminhamos para entrar na seara do que, em psicanálise, é conhecido como conceito de contratransferência.

Importante que se observe aqui a maneira como entendemos conceitualmente a contratransferência pelo ângulo da inspiração winnicottiana adotada por nós da Ser e Fazer. Em texto de 1960, Winnicott estende sua compreensão deste fenômeno para além do que possa identificá-lo como uma falha do analista, a qual seria sanada com mais análise. O autor considera que tal abordagem seria, na verdade, inútil, pois isso encerraria qualquer discussão a seu respeito. Tendo isto em vista, coloca-se de acordo com Margaret Little para a definição de contratransferência, tomando-a como a resposta total do analista às necessidades do paciente. Diz ainda que é sob este prisma que teríamos muito para pensar sobre o uso que o analista pode fazer de suas próprias reações conscientes ou inconscientes diante do impacto do paciente em seu self e do efeito deste impacto na atuação profissional.

É deste mesmo artigo de 1960 que foi retirada a citação inicial do presente texto. Winnicott observa ali que, em seu entender, é de grande valor a permanência da vulnerabilidade do analista diante do impacto que seu paciente lhe causa, ainda que, obviamente, tenha que se manter no papel profissional. Recorda-nos que, por vezes, é assentada em defesas e inibições que infelizmente o analista conserva sua atitude profissional, o que certamente diminui sua capacidade de enfrentar a situação analítica.

Compreende-se, a partir destes esclarecimentos de Winnicott a respeito da contratransferência, a importância que dá ao reconhecimento por parte do analista da qualidade emocional das reações contratransferências evocadas pelo paciente na relação viva que se estabelece com este. A necessidade de tal reconhecimento já fora anunciada em texto de 1947 a respeito dos afetos que ganham primazia na relação com o paciente psicótico. Para Winnicott, o analista que trabalha com psicóticos, necessariamente, se defrontará com a emergência de seu próprio ódio, que tentará invadir esta relação. A seu ver não seria possível ao analista manter latentes, ou ignorados, sentimentos contratransferenciais que representarão, em certos momentos, o elemento central da análise. O autor chamou de "contratransferência objetiva" o conjunto de reações emocionais que determinada situação clínica específica, justificadamente, motiva no analista. Vejamos em suas palavras a maneira como o autor concebe a "lida" com os sentimentos evocados pelo processo analítico no próprio analista, ilustrado aqui pelo ódio emergente na relação com o psicótico.

"Se for inevitável que ao analista sejam atribuídos sentimentos brutais, é melhor que ele esteja consciente e prevenido, pois lhe será necessário tolerar que o coloquem nesse lugar. Acima de tudo ele não deve negar o ódio que realmente existe dentro de si. O ódio que é legítimo nesse contexto deve ser percebido claramente, e mantido num lugar à parte para ser utilizado numa futura interpretação." (Winnicott, 1947, p.279)

A nosso ver, estes apontamentos de Winnicott são inquestionáveis. O reconhecimento e identificação da qualidade dos afetos contratransferenciais na relação com determinado paciente parecem fundamentais para a condução da situação analítica. Somente inteirado de tais afetos, pode o analista permanecer como presença una e real no encontro clínico.

Tomando como verdadeiras as considerações de Winnicott sobre a contratransferência, unidas ao abundante e cotidiano convívio clínico de uma de nós em diversos dispositivos com soropositivos, passamos a tentativa de identificação dos elementos contratransferenciais de base nesta clínica específica6.

Encontramos em André Comte-Sponville (1995) algumas indicações que temos adotado, provisoriamente, como resposta aos nossos questionamentos. São idéias que forjam o início de um caminho, uma direção para estudos que, certamente, devem ser mais aprofundados e avançados, porém são idéias que se coadunam harmoniosamente com esta experiência clínica específica e respondem, momentaneamente, à questão que se refere à natureza dos elementos contratransferenciais que ganham primazia na clínica da soropositividade. São sentimentos identificados a partir de sua freqüência, predominância e, às vezes, intensidade no próprio ser do analista e também na pessoa de seus colegas de equipe. São afetos compartilhados, outras vezes negados, ou por vezes ainda geradores de grande desconforto emocional diante do qual manobras defensivas são declaradamente adotadas quando da consciência do mesmo e, quando inconscientes, podem ser claramente observadas através do olhar treinado do analista.

A situação narrada apresenta sobremaneira a evocação de sentimentos muito particularmente experimentados no cuidado a soropositivos, não apenas, como já mencionados, pelo analista, mas estendidos a outros profissionais da equipe. A reunião de condições de extremo desfavorecimento, infortúnio e desamparo do paciente, tornam a situação clínica em um "caso típico"7 que se presta a ilustrar a forma como o analista que trabalha com soropositivos, através do impacto que seu paciente lhe causa, pode se ver assaltado por reações contratransferenciais de características bastante específicas.

 

Natureza dos sentimentos contratransferenciais na clínica da soropositividade

Sponville chama de compaixão o sentimento/virtude que acometeu a psicanalista na situação acima compartilhada. Segundo ele, a compaixão, o sofrer "com" pertence, simultaneamente, a estas duas ordens, a dos sentimentos e a das virtudes que seriam definidas como potência, excelência, força que age, poder de humanidade. O autor nos diz que a virtude é uma disposição para fazer o bem, para se portar bem, e que o bem não se contempla, se faz. Talvez seja melhor não nos alongarmos aqui e apenas computar a intersecção de campos onde se inscreve a compaixão, território dos sentimentos e da ética. É, no entanto, no registro dos sentimentos que a psicanalista testemunha experimentar, por muitas vezes, o compadecimento por seus pacientes. O sofrer "com" brota espontaneamente, recobrindo-se de características contratransferenciais, estabelecendo a forma pela qual a presença do outro se instala no self da analista8.

As origens deste sentimento, sem dúvida, alojam-se em parte, em um processo identificatório, que, em última instância, portanto, seria compadecimento de si mesmo, caso o analista fosse vítima do mesmo infortúnio. Não nos parece, porém, que esta evidente explicação psicanalítica possa contemplar a amplitude do fenômeno contratransferencial de tal disposição afetiva tão comum nesta clínica. Citamos um trecho de Sponville, com quem compartilhamos opinião em relação a este aspecto da questão:

A piedade não seria mais que um egoísmo projetivo, ou transferencial; na verdade, o que tememos para nós é que nos inspira piedade pelos outros que o padecem, quando compreendemos que poderíamos passar pela mesma provação. Por que não? Mas que diferença faz? A piedade que sentimos não é menos real por causa disso, e, aliás, ela subsiste, notemos de passagem, no caso de males que não poderiam atingir-nos. A morte de uma criança e o sofrimento atroz de seus pais apiedarão igualmente o velho sem filhos. Sentimento absolutamente desinteressado? Não sei, e não me importo. Sentimento real, no entanto, e realmente compadecido. O resto são as pequenas intrigas do eu, que não valem mais do que valem as intrigas. Seria como querer condenar o amor, ou negar sua existência, a pretexto de que ele estaria sempre ligado a alguma pulsão sexual. Freud, no que concerne ao amor, não era tão bobo assim; por que, no que concerne à compaixão, nós o seríamos? (Sponville, 1995, p.125, os grifos são nossos)

Com esta afirmação, tiramos o compadecimento do analista do campo contratransferencial compreendido como não desejável, do condenável a partir do equívoco de tomar o sofrimento do paciente como uma ameaça imaginária que aponta o mesmo destino para si e que, em sendo "pecado psicanalítico", tem que ser eliminado com mais análise. Preferimos compartilhar com Winnicott, quando atribuímos à compaixão na clínica da soropositividade a mesma legitimidade do ódio que o autor reconhece na clínica com psicóticos. Resta, porém, a partir de sua constatação, exatamente, colocar a funcionar todo o esforço analítico, na verdade humano, para lidar com tal experiência, transformando-a em uma das bússolas que possa nos orientar para ir ao encontro do paciente. De posse da plena consciência de nossas reações contratransferenciais, de acordo com os pressupostos éticos, declaradamente assumidos pela SER e FAZER, a saber, o posicionamento a favor de mitigar, aliviar o sofrimento humano, acreditamos ser de grande valia transformar tais sentimentos, acomodá-los no ser do analista, de forma a poder tolerá-los, tomando-os como verdade emocional, experimentada em nós, que nos faz desejar profundamente alterar, na medida das possibilidades, o sofrimento alheio.

 

Referências:

COMTE-SPONVILLE, A.(1995) A compaixão. In: Pequeno tratado das grandes virtudes; tradução de Eduardo Brandão. São Paulo: Martins Fontes, 1995, p.115-129.

MACHADO, M.C.L. Universo em desencanto: conceitos, imagens e fantasias de pacientes psiquiátricos sobre loucura e/ou doença mental. 1995.278 p. Tese (Doutorado em Psicologia). Instituto de Psicologia, Universidade de São Paulo, São Paulo, 1995. I e II.

MENCARELLI, V. L. Em defesa de uma clínica psicanalítica não-convencional: oficinas de velas ornamentais com pacientes soropositivos. 2003. 101 f. Dissertação (Mestrado em Psicologia) – Instituto de Psicologia. Universidade de São Paulo, São Paulo. 2003.

VAISBERG, T.M.J. A . Ser e Fazer: interpretação e intervenção na clínica winnicottianna. In: Psicologia –USP, 14, 1, 2003.

WINNICOTT, D. W.(1947) O ódio na contratransferência. In: Da pediatria à psicanálise; tradução de Davy Bogomoletz. Rio de Janeiro: Imago, 2000, p. 277-287.

WINNICOTT, D.W. Contratransferência (1960). In: O ambiente e os processos de maturação; tradução de Irineu Constantino Schuch Ortiz. Porto Alegre: Artes Médicas, 1983, p. 145-151.

WINNICOTT, D. W.(1962). Objetivos do tratamento psicanalítico. In: O ambiente e os processos de maturação; tradução de Irineu Schuch Ortiz. Porto Alegre: Artes Médicas, 1983, p. 152-155.

 

 

1 Trata-se de um dispositivo clínico criado no ambulatório para o recebimento de casos novos ou de pacientes já usuários do serviço. Este dispositivo tem como finalidade atender necessidades emergenciais do paciente antigo e acolher o novo paciente que se apresenta pela primeira vez para dar início a seu tratamento. A entrevista de acolhimento do caso novo é bastante complexa, pois reúne em um único encontro uma série de finalidades: permitir que o paciente expresse suas angústias; orientá-lo; colocar a funcionar o fluxo de ações para o início do tratamento; acessar informações de caráter epidemiológico para tomar providências em relação aos comunicantes do paciente e notificá-lo junto às autoridades de saúde como cidadão brasileiro portador do HIV para que, desta forma, tenha acesso à medicação e exames que lhe são, de direto concedidos. Atualmente os plantões de acolhimento são divididos entre três psicólogas, uma orientadora em saúde e uma assistente social.
2 Nome fictício adotado para o paciente.
3 O paciente usou seus próprios termos para comunicar-se.
4 COAS: Centro de Aconselhamento Sorológico. É um dispositivo do Programa DST/aids e tem a finalidade de ser aberto ao público que deseja espontaneamente realizar a sorologia HIV. Não é necessário nenhum tipo de encaminhamento médico e trata-se de é um serviço bastante procurado. Os profissionais que atendem no COAS recebem treinamento específico para realizar a entrevista pré e pós-teste.
5 Temos desenvolvido estudos e pesquisas no âmbito da SER e FAZER: Oficinas Psicoterapêuticas do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo, coordenadas por uma de nós: Prof.a Livre Docente Tânia Maria José Aiello Vaisberg.
6 Sugere-se a leitura da dissertação de mestrado de Vera Lúcia Mencarelli ao leitor interessado em inteirar-se mais do universo da soropositividade. Vide referências.
7 A expressão "caso típico" foi adotada pela prof.a Dr.a Maria Christina Lousada Machado em sua tese de doutorado intitulada "Universo em desencanto". Maria Christina inspira-se no pensamento de George Lucáks para propor esta terminologia.
8 Importante comentar que não são todos os pacientes que suscitam esta qualidade de reações contratransferenciais, existindo aqueles que evocam, até mesmo, sentimentos opostos. Portar o HIV ou adoecer de aids não concede, apenas por isto, sentimentos de compadecimento aos que com a pessoa convivem no conhecimento de seu diagnóstico.