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An. 1 Simp. Internacional do Adolescente May. 2005
Os limites da idade penal
Carlos Alberto Menezes
Docente de Direito Penal da Universidade Federal de Sergipe e Doutorando em Direito pela PUC-SP
Introdução
Do ponto de vista da legalidade, o Estado brasileiro nunca teve uma orientação clara acerca da relação entre o crime e a idade da punição. A marca da Legislação a esse respeito é a da ambigüidade.
Esse artigo tem por objeto, mediante uma pesquisa histórica, esclarecer o leitor como os diversos Códigos Penais e Projetos de Lei oscilam quanto ao tratamento dessa matéria.
Os números da idade penal fixados pelo legislador ao longo da história do Direito Penal brasileiro, variando dos 9 aos 18 anos, correspondem não apenas a um mal-entendido nas leituras que o Estado tem feito do menor infrator, mas também a uma concepção segundo a qual a penalização, e não políticas específicas orientadas para a conquista da autonomia, identidade e socialização dos jovens, é o caminho que resta para enfrentar um problema que antes de tudo está ligado às crises relativas ao processo de amadurecimento.
I - O Problema
O assombro, a consciência e o inconsciente constituem descobertas suficientes para instruir qualquer reflexão acerca de uma história da subjetividade. O assombro pertence à ordem do conhecimento. É a descoberta da curiosidade como método para superar a ignorância, feita por Aristóteles na Metafísica. A consciência pertence à ordem da conduta humana na sua relação com o mundo. É a descoberta que o indivíduo faz de si mesmo, feita por Descartes no Discurso sobre o Método. O inconsciente pertence à ordem das pulsões encobertas, inacessíveis à consciência, que mobilizam a conduta humana. É a descoberta do outro de si mesmo, feita por Freud ao longo de suas Obras Completas.
A conexão dessas descobertas com o fenômeno da punição e, portanto, com o Direito e a Dogmática Penal, é direta. Com efeito, os fundamentos do direito de punir antes e depois do assombro são diferentes e correspondem a deslocamentos na interpretação que o homem faz do mundo. Assim, num período bem remoto e não datável da aventura humana, a pena é associada à vontade divina. Perplexo diante de alguns fenômenos naturais, por exemplo, o raio, o trovão, as enchentes, o homem primitivo transformou-os nos signos do primeiro código de conduta, em um edito impresso e publicado na tela da natureza, onde os deuses anunciavam sua ira e cobravam punição contra quem violasse a paz do grupo. Mais adiante, contudo, em período que pode ser reconhecido como o início das civilizações, a pena passa a ter sua origem ligada à pessoa do soberano. Entre essas etapas, o assombro de Aristóteles mobilizou o homem na passagem do mundo encantado das representações míticas (vontade dos deuses) para o mundo desencantado das representações referidas às relações humanas (vontade do soberano).
Por outro lado, o conhecimento dos antigos ignorava a consciência e mais ainda o inconsciente. Para designar aquilo que ocupava o interior das pessoas, fazia-se uso da palavra alma. Platão e os teólogos mais adiante até estavam interessados nisso. Mas na área do Direito Penal, por exemplo, a posição da alma não era levada em conta, nem como causa, nem como medida da punição. Somente o resultado objetivo da ação criminosa constituía o alvo de toda atenção num julgamento. Nenhum juízo sobre motivações, disposições anímicas, impulsos internos, etc, tinha relevância na solução do caso concreto.
Os modernos tornaram possível a alteração desse quadro. O lugar da alma foi ocupado em momentos distintos e separados por três séculos, pela consciência e pelo inconsciente. As implicações disto no discurso da razão penal foram automáticas. A consciência e mesmo o inconsciente, embora este num grau menor, passaram a ser referências que iluminam a culpabilidade enquanto categoria central da teoria do delito. Isto tornou possível que qualquer juízo sobre a conduta criminal do indivíduo só tivesse sentido se desse atenção não apenas ao resultado objetivo da ação, mas sobretudo às especificidades subjetivas do agente. A culpa, sem cujo reconhecimento a punição tornava-se inviável, ficava ligada então à questão de saber se o agente no momento do fato era ou não capaz de se motivar conforme a norma, pela consciência da ilicitude típica de sua atuação. Nesse sentido, quem se motivasse com defeitos invencíveis na direção do crime ficava impune. Alguns agentes seriam suscetíveis de portar tais defeitos. Em primeiro lugar, os loucos (sua doença pode torná-los incapazes de compreender a ilicitude do fato ou mesmo contaminar-lhes a vontade a tal ponto que, embora saibam que o fato é ilícito, não se orientam de acordo com essa compreensão); em segundo lugar, os menores ( por conta do desenvolvimento psíquico incompleto são carentes de maturidade e ainda não aprenderam as regras da socialização, pelo que agem sem consciência). Deixando de lado a relação entre culpa e loucura, o ponto em questão é saber quando o jovem completa seu aprendizado pela internalização das regras ou expectativas que em torno dele se formam e, assim, adquire a consciência capaz de constituí-lo destinatário da lei penal?
Com efeito, a posição do Direito Penal brasileiro frente à idade da punição tem a marca da ambivalência. Ela oscila com freqüência na direção de valores e exigências que a conjuntura social aponta. A linha sobre a qual se projeta esse movimento pode ser imaginada como uma espécie de escala penal. Na sua superfície ainda não foi fixado o ponto ou definida a medida (grandeza) capaz de paralisá-lo definitivamente. O fenômeno é histórico e universal. Em torno dele não só é muito pouco o que distingue os antigos dos modernos, mas as práticas dos povos em geral. É como se a idade penal constituísse um aspecto das relações humanas destinado ao eterno fracasso do legislador. No entanto, ele não renuncia à sua vontade de controle, domínio e regulação da matéria. A causa de tanta insistência é desconhecida. Num esforço por desvelá-la, contudo, pelo menos três pistas podem ser levantadas.
Com efeito, a primeira pista é deduzida da Psicologia. O homem odeia ser rejeitado pelos fatos, excluído de suas articulações, e quanto mais lhe escapa o objeto de seu interesse, persegue-o, como se fosse possível deter o deslocamento da sombra que se desprende do próprio corpo em marcha. A segunda é retirada da sociologia criminal. Os números da estatística do crime não mentem. Eles mostram que é sobretudo no meio dos jovens que a violência explode. A lei não teria como passar ao largo desse fenômeno, a um só tempo indiferente e compreensiva. A terceira está ligada à tradição. As práticas jurídicas dos povos, costumeiras ou escritas, sempre deram atenção especial á criminalidade juvenil. Não há ruptura previsível com essa orientação. Afinal, tradições somente se quebram quando é possível o começo de outras (o legislador, por exemplo, poderia conceber um sistema jurídico onde a idade penal fosse definida a partir do concreto. A justiça seria alcançada não mais segundo deduções extraídas do sistema penal, mas de acordo com as convicções firmadas a partir do próprio caso). Mas, não é disto que se trata neste trabalho.
O que se pretende aqui é um exame acerca da conveniência das propostas que têm sido lançadas no País, no sentido de nova alteração na regra da idade penal.Todas têm sua origem naquilo que parece constituir duas evidências: uma geral, outra específica. A primeira revela um aumento inquietante no exercício da violência entre os jovens; a segunda indica que tal evidencia tem sido muito bem instrumentalizada pelo crime organizado, sobretudo no setor que explora o tráfico de drogas. Diante desse quadro, caberia ao estado mobilizar seu arsenal punitivo, a fim de garantir a paz. Acontece que algumas limitações paralisam suas ações. Uma delas corresponde à norma que garante a impunidade penal para os menores de 18 anos. Trata-se então de remove-la. O investimento na lei penal, nesse caso, teria retorno assegurado. No mínimo, o Estado ganharia em mobilidade para o uso legítimo da força.
Acontece que essa leitura da questão – somente pelo incremento da violência do Estado, ainda que legítima, torna-se possível enfrentar a crescente violência juvenil -, partilhada por amplos setores da sociedade, exibe um caráter provocador. É que estimula um debate cuja lógica torna inevitáveis algumas indagações, por exemplo, qual a tradição do Direito Penal brasileiro em relação à criminalidade juvenil? E a do Direito Comparado? Existe uma medida (grandeza) capaz de definir adequadamente o tempo em que a pessoa está madura para a responsabilidade penal? O Estado brasileiro está aparelhado por formas legais, excluído o Direito Penal, capazes de oferecer uma resposta apropriada para as infrações praticadas pelos menores? As propostas de mudança da idade penal têm ou não o sentido de uma penalização da crise social?
II . A Idade Penal nos Códigos
1. Ordenações Filipinas.A genuína e original lei penal brasileira é relativamente recente. Ainda não alcançou a idade dos séculos. Data apenas de 174 anos. Antes, aplicava-se aqui as regras ditadas pela Coroa Portuguesa. Elas eram alojadas nas ordenações Afonsinas (1446), Manuelinas(1521) e Filipinas (1603). Mas os registros conhecidos de plena efetividade ligam-se somente às Ordenações Filipinas. A matéria que envolvia crime e punição era regulada no livro V, e tinha por objeto a particular situação dos menores.
Com efeito, a Coroa mostrou alguma sensibilidade em relação a eles. Nada que lembrasse o zelo, o cuidado, o refinamento no trato conferido aos fidalgos. Mas, pelo menos, um sentimento de tolerância (suficiente à percepção de um humanismo qualquer) capaz de fixar gradações e distinções na punição para maiores ou menores de 20 anos. Assim, para além dessa idade, a pena aplicada ao delinqüente era "total", ou seja, executava-se nos termos de sua previsão. As concessões, embora superlativamente reduzidas, foram definidas abaixo desse limite. Sua distribuição ocupava dois cenários bem distintos.
O primeiro cenário compreendia os menores de 20 anos com limite nos 17. Nesse âmbito, duas alternativas tinham de ser consideradas: ou o julgador aplica pena total, ou a diminui. Para aplicar pena total, leva-se em conta três fatores objetivos (a. o modo como o delito foi cometido; b. suas circunstâncias; c. a pessoa do menor), e um subjetivo (a malícia da ação). Enquanto isso, para diminuir o castigo, basta que pareça ao juiz não ser o menor merecedor daquela punição. É o que ocorre quando o menor age com "simpleza", ou dito de outro modo, sem malícia, sob o impulso da inocência que ainda não perdeu.
O segundo cenário é constituído por aqueles cuja idade se situa abaixo dos 17. Para essa faixa, o soberano brindou seus súditos com uma espécie de "privilégio". Proibiu a pena de morte. Não será aplicada contra nenhum infante, mesmo que mereça. Nessa hipótese, porém, o arbítrio do julgador é chamado para intervir. Sua tarefa será a de definir a pena mais adequada para o caso. Como se vê, na época do Brasil-Colônia, o soberano, de um lado, recusa sujar as mãos com o sangue ainda fresco dos jovens infratores, mas, de outro, recusa também conceder-lhes a imunidade penal. Esse panorama, contudo, será alterado com a nova lei penal que aparece.
2. Código Criminal de 1830. O Brasil do início do século XIX mudou de rumo. Rompeu seu vínculo de Colônia e assumiu o lugar de Estado autônomo (1822).As conseqüências disso no setor do Direito foram imediatas. O país ganhou seus documentos legais mais importantes, a Constituição(1824) e o Código Criminal(1830). Ambos continham as premissas da nova razão jurídica, criadas no século anterior pelas luzes. Uma delas é a que reconhece o indivíduo na sua autonomia.Ele é portador de uma identidade gerada na consciência que possui e que o torna único, passando a ser senhor e titular de direitos. A projeção disso na política jurídica aplicada aos menores infratores implica numa quebra radical do sistema precedente. Não mais as concessões sem muita grandeza do soberano. Tratava-se agora de uma abrangente diretriz, capaz de demarcar respostas diferentes para crimes conforme praticados por adultos ou menores.
Pois bem, na lógica das Ordenações a inimputabilidade, vale dizer, a exclusão da responsabilidade penal referida ao jovem infrator, era desconhecida. Passa a ser conhecida, no entanto, com o primeiro Código Criminal do Império. Nesse texto, o Estado estabelece que não são considerados criminosos "os menores de 14 anos". Mas os efeitos dessa regra não são absolutos. Dito de outra maneira, eles dependem da posição subjetiva do autor por ocasião do fato. Assim, se houver prova de que o menor de 14 anos agiu com discernimento, será recolhido à casa de correção (a limitação é fixada no art. 13). A inimputabilidade em si, imprópria para a produção de qualquer conseqüência, somente era reconhecida para quem, sendo menor de 14, agisse sem aptidão para distinguir o bem do mal na base de sua conduta. Como se vê, o legislador de 1830 era iluminado até certo ponto. Para ele, o jovem, não importa a idade, a qualquer tempo pode e é capaz de praticar o crime com clareza e compreensão do que faz.
No ensaio Menores e Loucos, Tobias Barreto tratou criticamente da matéria. Questionou a palavra "discernimento" e seu uso como critério capaz de separar os menores impuníveis dos puníveis. Na sua avaliação, isto poderia "abrir caminho a muito abuso e dar lugar a mais de um espetáculo doloroso"1, afinal o conceito de "discernimento, de dificílima apreciação"2, tornaria "possível, na falta de qualquer restrição legal, ser descoberto pelo juiz até em uma criança de 5 anos..."3. As observações de Tobias Barreto, contudo, não repercutiram no espírito do legislador de 1890.
3.Código Penal de 1890. A conjuntura do final do século XIX é muito diferente daquela que marcou seu início. Na passagem de uma para outra ocorreram mudanças estruturais, por exemplo, nos domínios político, social e jurídico. No domínio político a República substituiu o Império (isso tornou inevitável a troca dos fundamentos jurídicos que sustentavam o antigo sistema, por outros); no social, a escravidão foi abolida (isso liberou para o mercado de trabalho livre, sem espaço para acomodá-la, toda a mão de obra escrava, gerando uma crise social cujos efeitos parecem se projetar até hoje); no jurídico, o realismo, ligado à escola positiva, rasgou as fantasias da escola clássica do Direito Penal (isso criou o ambiente intelectual que permitiu, por exemplo, a Lombroso desenvolver a teoria segundo a qual toda criança já trazia embutido o germe da loucura moral e da delinqüência)4. A conjunção desses fatores repercutiu na nova legalidade referida aos menores infratores.
Com efeito, o Código Penal de 1890 criou um sistema mais complexo para a idade penal, agora fundado em 3 (três) orientações. A primeira, reduzia para nove anos completos o limite da inimputabilidade penal; a segunda, tornava também inimputáveis os maiores de nove e menores de 14 anos, desde que agissem sem discernimento; e a terceira, mandava recolher nos estabelecimentos disciplinares, os maiores de 9 anos e menores de 14, que tivessem se conduzido com discernimento.
A complexidade do novo sistema, contudo, só alterou em parte o sistema precedente. É que, de um lado, baixou o limite da inimputabilidade para 9 anos, mas, de outro, recepcionou do Código de 30, a idéia de discernimento. Com isso, o menor infrator passou a exibir dupla face. Sua inimputablidade podia ser absoluta ou relativa. A absoluta não dependia de nada, salvo a idade inferior a nove anos. Já a relativa, aplicável aos maiores de 9 e menores de 14, dependia do discernimento, apurável em processo regular.
Sob esse aspecto, a palavra discernimento migrou de um código para outro, carregando o mesmo uso. O de critério capaz de agravar ou não o castigo do menor. Por conta disso, carregou também o risco de se colocar como alvo de críticas. No mesmo padrão daquelas desferidas por Tobias Barreto. Costa e Silva, por exemplo, considerou-a "vaga e obscura"5. Diante da resistência que inspirou, até quando se manteve vigente a disciplina da idade penal adotada pelo legislador de 90?
4. Consolidação das Leis Penais (1932). Desde que surgiu, o primeiro Código Penal da república tornou-se aquilo que o senso comum chama de saco de pancadas. A intelligentsia jurídica ligada ao penalismo concentrou nele sua atenção, mas para demoli-lo. A disciplina da idade penal não escapou das investidas. As objeções eram dirigidas ao limite para a inimputabilidade (nove anos), considerado muito baixo, e, como já foi visto, ao uso da palavra discernimento, considerada imprópria (já que referida apenas à inteligência, e não "à maior ou menor fraqueza da vontade (...), do caráter, ainda em formação")6 para traduzir o critério capaz de filtrar quem entrava ou não no circuito da punição.
A conseqüência disso foi a adoção de outra disciplina. Ela foi estruturada pela contribuição da Lei número 4.242, de 1921, e do decreto 17.943, de 1927(Código de Menores). Na seqüência, as disposições aí contidas, naquilo que era fundamental, foram incorporadas na Consolidação das Leis Penais. Nesse documento, a idade penal é redefinida. Assim, o limite da inimputabilidade absoluta sobe de nove para quatorze anos. Nenhum processo então para os que cometerem infrações nessa etapa da vida. Mas ele será instaurado em face daqueles que estiverem entre os 14 e os 18 anos, a fim de serem submetidos a regime especial(art.30). Como se vê, quase um século depois, o pêndulo do legislador parou no mesmo número do Código do Império, o quatorze, sem desconhecer aqui, naturalmente, as diferenças referidas ao caráter relativo e absoluto da inimputabilidade, numa e noutra lei. Mas não demora e o inquieto pêndulo retoma seu movimento. Quando e como isto se deu?
5. Código Penal de 1940. Qualquer tentativa no sentido de associar aumento ou redução da idade penal com regimes políticos ora mais, ora menos autoritários, não se sustenta (pelo menos no Brasil). Ela seria fulminada pelas representações que se projetam do Código Penal de 1940. Trata-se de um texto de lei gerado num ambiente político duro. Ficou conhecido como o Estado novo e sua característica central foi a supressão das regras do jogo democrático. O paradoxo está em que, a despeito do corte autoritário, o regime não selou com essa marca o sistema penal que criou. Nesse sentido, um dos aspectos que melhor exprime seu sentimento geral de tolerância, é a disciplina da idade penal. O pêndulo do legislador oscilou de novo aí, mas numa curva ascendente, 18 anos agora é o limite da inimputabilidade.
Na base da nova medida da idade penal impôs-se uma visão mais generosa, humana e social. A doutrina da delinqüência juvenil muda de fundamentos. É o que deixa claro Nelson Hungria (principal autor do projeto de que resultou o Código de 40) nos comentários que faz acerca do tema. Para ele, em torno da menoridade nada mais deve subsistir que lembre Lombroso e sua teoria de que "todas as tendências para o crime têm o seu começo na primeira infância"7; nada mais ainda com a idéia de "condenação penal"8 que pode arruinar uma "existência inteira"9. É preciso renunciar à crença "no fatalismo da delinqüência"10 e assumir o ponto de vista de que a criança "é corrigível por métodos pedagógicos"11. Afinal, " a delinqüência juvenil é, principalmente, um problema de educação"12. Acredita que muitos jovens não seriam clientes das penitenciárias se tivessem recebido uma "orientação protetora"13, e só conheceram da vida "o que ela tem de sofrimento, de privação, de crueldade, de injustiça"14. Por conta disso, "torna-se-lhes odiosos o lar, a família, a sociedade"15. Assim, que esperar deles "senão que se deixem resvalar pelo declive de todos os vícios, de todas as perversões, de todos os malefícios?16. Nesse sentido então "é preciso socorrê-los, salvá-los de si próprios e do meio em que vegetam, ensejando-lhes aquisições éticas, reavivando neles o sentimento de vergonha e auto-censura"17. Essa tarefa cabe ao "Estado"18, mediante a aplicação do Código de Menores, sob cujas sanções "de caráter meramente reeducativo, devem ficar ainda nos casos de extrema gravidade, o menor de 18 anos, que comete ações definidas como crimes"19. Alguns anos depois, mais dois códigos sucederam ao de 40. Os novos textos alteraram o limite da idade penal?
6. Os Códigos Penais de 1969 e 1984. Desde a tradição inaugurada pelo Código de 1940, o pêndulo do legislador não se move. É como se a recorrente busca da medida adequada da idade penal tivesse encontrado seu desfecho. A história recente das codificações, aliás, já incorpora dois episódios capazes de assimilar um novo movimento, e nada. O primeiro concerne ao Código Penal de 1969; o segundo, ao Código de 1984. Aquele não entrou em vigência; o outro, sim. Ambos, curiosamente, foram obras de governos autoritários. O ambiente era de supressão das liberdades democráticas, e tudo podia ser feito. Mas ninguém ousou mexer com a idade penal. Os 18 anos como limite etário da responsabilidade foram mantidos. No código penal de 69, a matéria foi regulada no art. 33( "o menor de dezoito anos é inimputável"); já no de 84 está regulado no art. 27.
Com efeito, o legislador de 69 e o de 84 tinham uma compreensão semelhante à do legislador de 40. Consideravam que o lugar da lei próprio para alojar a disciplina da criminalidade juvenil não era o Código Penal. A elaboração da matéria, por conta de suas especificidades, exigia um espaço exclusivo. Este seria o da lei especial (como recomenda o artigo 34 do Código de 69), ou dito de outro modo, o ECA (como recomenda o de 84). A idéia que presidiu esta orientação é que o menor de 18 anos não deve ser sujeito de punição, mas de "medidas educativas, curativas ou disciplinares" (Código de 69) ou de medidas sócio-educativas (Cod 84, ECA, etc).
III – A Idade Penal nos Projetos
I. Introdução. A história do Direito Penal brasileiro vai muito além do exame de códigos que se sucedem no tempo. Eles apenas constituem o estágio mais visível de um longo processo de reflexão, discussão e elaboração que habitualmente mobiliza a mão-de-obra intelectual ligada à área. Nesse processo, os projetos de Código Penal ocupam lugar de destaque. A maioria resulta das iniciativas do governo. Nesse caso são convidados um ou alguns dos melhores quadros da intelligensia penal do momento para a tarefa. Mas são conhecidos casos onde os projetos parecem ter nascido da iniciativa pessoal. É a situação dos projetos João Vieira de Araújo e Galdino Siqueira. Nem sempre eles são aproveitados e são múltiplas as razões para isso. Em todo caso, quase sempre suas luzes deram uma contribuição especial para o pensamento no Brasil.Em todos eles a matéria da idade penal foi alvo de regulação. Mas não escaparam das oscilações já referidas aos códigos. Não é o caso de examiná-los, um por um. Os limites desse trabalho não permitem. O foco então será seletivo, pela escolha dos 3(três) que parecem ter sido os mais importantes.
2. Projeto Sá Pereira. O Desembargador Sá Pereira partilhava da compreensão de que o limite de 9 anos fixado no código de 1890 para a inimputabilidade penal era muito baixo. Convinha elevá-lo. Nesse sentido, o art. 33 do seu projeto estabeleceu que a menoridade penal absoluta termina aos 14 anos. Nessa faixa então, a imputabilidade fica totalmente excluída. A faixa que se estende dos 14 até os 18 anos é a menoridade relativa. Nesse caso, a imputabilidade fica apenas diminuída.
Com efeito, a solução do seu projeto para a idade penal é simples (sobretudo se comparada à complexa fórmula do código 90): de um lado, nenhuma repressão penal para a menoridade absoluta; de outro, a repressão penal pode alcançar, sim, a menoridade relativa. É o que ocorre "quando, da gravidade do crime e da perversão moral do menor, evidente resulta a sua temibilidade" (art. 180). Para esse cenário, aplica-se a pena de prisão. Fora dele, o relativamente menor será internado em estabelecimentos como a casa de reforma, navio-escola, colônia agrícola, casa de vigilância (art. 179). Nada disso, todavia, virou lei. Passaram-se 10 anos e outro projeto foi encomendado, desta vez a Alcântara Machado. O que seu projeto muda acerca da idade penal em relação ao de Sá Pereira?
3. O Projeto Alcântara Machado. Alcântara Machado foi um intelectual e político com papel destacado em São Paulo na década de 30 (século passado). Além disso, era professor de Medicina Legal na Faculdade de Direito do Largo São Francisco. Com esse currículo recebeu uma encomenda do Estado Novo. Cabia-lhe redigir um projeto para o novo Código Penal. Não se fez rogado e executou a tarefa. À obra que concebeu e montou deu o nome de "Projeto do Código Criminal Brasileiro".
Sob o aspecto particular da idade penal 3 (três) observações podem ser feitas. A primeira é que seu limite muda de 14 para 18 anos, mas se comparado àquele fixado no projeto Sá Pereira; a segunda é que seu limite não muda, se comparado à legislação então vigente (consolidação das leis penais Vicente Piragibe); a terceira refere-se ao que fazer com os menores infratores. Seu projeto basicamente propõe contra eles Medidas de Segurança. Desse modo, os menores de 18 anos não são passíveis de pena, porém, ficam "sujeitos à medidas de segurança constantes dos títulos V e VI que lhes forem aplicáveis (art. 15).
Desse modo, é o juízo de periculosidade que preside sua proposta de política criminal contra a delinqüência juvenil. A conseqüência disso é que o menor infrator passa a ter um lugar até então nunca imaginado no Brasil: ao lado dos loucos, dos vadios, dos criminosos habituais ou por tendência, etc. Sua fórmula, contudo, não vingou. É tanto que o legislador, mais adiante (1940), preferiu outra alternativa. Mas isso não interessa aqui. Nesse ponto, importa apenas saber qual é a nova posição para a idade penal no anteprojeto de Código Penal que apareceu 25 anos depois do de Alcântara Machado, agora com a assinatura de Nelson Hungria.
4. Anteprojeto Nelson Hungria. Em 1963 Nelson Hungria foi chamado pela segunda vez para inscrever seu nome na história do Direito Penal brasileiro. A conjuntura da época era marcada pelo avanço das idéias políticas e sociais. Tudo no país era feito em nome das reformas de base. Mexia-se com a terra, a educação, o capital, e o Direito não podia ficar fora daquele impulso reformista. Assim, o Código de 40 precisava ser revisto.
O anteprojeto elaborado por Nelson Hungria correspondeu a esse propósito. Sua estrutura mudou o código de 40 sob muitos aspectos, inclusive na matéria da idade penal. Assim, o jogo das oscilações manteve seu ritmo. O limite da idade penal agora é de 16 anos. Exige-se, contudo, que o mesmo revele "suficiente desenvolvimento psíquico para entender o caráter ilícito do fato e governar a própria conduta" (art. 32). Se esse atributo subjetivo não for captado, prevalece a inimputabilidade até os 18 anos.
IV. A Idade Penal no Direito Comparado
A instabilidade do legislador brasileiro em relação à idade penal não é um estigma local, sem símiles nas práticas jurídicas de outros povos. Alemanha e Espanha demonstram isso muito bem. O limite da idade penal nesses países hoje é 18 anos20. Mas até recentemente não era assim. Durante muito tempo a regra adotada na Alemanha indicava os 14 anos como limite da inimputabilidade21, e a Espanha 1622. Algo semelhante ocorreu em Portugal. No passado, a idade exigida para a imputação já foi de 10 anos23; a partir do Código Penal de 1982 passou para 16 (art. 19°).
Por outro lado, não há uma medida para a idade penal com o timbre da universalidade. Variam os números de um país para outro. De qualquer modo, segundo Túlio Kahn (pesquisador do Instituto Latino Americano das Nações Unidas para a prevenção do delito e o tratamento do delinqüente), os dados da ONU, obtidos em pesquisa realizada num universo de 57 países, apontam na direção de que em apenas 17% a idade mínima para punição se situa no limite inferior aos 18 anos24.
Alguma coisa esses números ensinam. Ajudam, por exemplo, na compreensão de que não tem muito amparo internacional as posições daqueles que De lege ferenda postulam a redução da idade penal para 16 anos. Mais ainda, permitem entender que as incertezas ligadas ao tema, enfraquecem os inconformados com a definição do legislador que estabeleceu na Constituição (art. 228), no Código Penal (art. 27) e no ECA (art. 104) os 18 anos como limite da imputação.
Conclusão
O percurso feito até aqui permitiu um levantamento da experiência do legislador, no Brasil e em outros países, com a idade mínima para a punição. A impressão que ficou é que o tratamento da matéria ainda se encontra na fase do tubo de ensaio. Sujeita, portanto, a uma longa e tardia observação, sem que nenhuma descoberta possa ser anunciada. No fundo, o que se passa não é mais do que um grande fracasso. O legislador, antigo e moderno, nunca soube o que fazer com crianças socialmente hostis. É por isso que insiste em tentativas de ensaio e erro que revelam, não a medida certa da idade penal, mas de sua ignorância.
Projetos que circulam no Congresso Nacional, os de números 91 e 133, por exemplo, refletem muito bem esse quadro. Pretende-se ali mudanças na Constituição (art. 228) para reduzir a idade penal de 18 para 16 anos. São justificados, contudo, por argumentos que beiram à indigência. A rigor, a lógica em que se fundam apela para 3 (três) vertentes: 1. a experiência do Direito comparado; 2. o discernimento dos jovens de hoje; 3. o uso manipulado dos menores pelos imputáveis. Sustentado nesse tripé, no discurso dos projetos os EUA aparecem como paradigma para explicar a experiência de outros povos, a mídia é exibida como capaz de transformar os jovens mais "cônscios dos seus atos" e o crime organizado manipula-os para escapar da imputação.
Acontece que nenhuma dessas premissas se sustenta. A primeira tem pelo menos dois pontos fracos. De um lado, a regra americana para a menoridade é minoritária no campo internacional; de outro, o direito brasileiro, sobretudo em matéria penal, tem raízes ligadas ao velho mundo e não a Tio Sam. A segunda fracassa ali onde de algum modo recupera o surrado conceito de discernimento (presente e amplamente criticado nos códigos do século XIX), agora travestido na idéia de que os jovens de hoje estão mais maduros pela eficácia "educadora" dos meios de comunicação. A terceira encontra seu limite na possibilidade bastante previsível de o crime organizado recrutar para seus quadros menores cada vez mais jovens, numa faixa suficiente para escapar da imputação.
Não se nega aqui uma conjuntura de surto referida a infrações dos menores. O que se nega é a solução pela via da penalização. Os menores socialmente hostis já têm no seu encalço as formas legais apropriadas para conter seu impulso. É o caso do Estatuto da Criança e do Adolescente. A carência então não é a de um novo cânon para a menoridade. Mas de políticas públicas aptas para, preventivamente, fazê-los assimilar a necessidade do pacto social. Fora disso, o que se tem é um discurso histérico. Este se apresenta quase sempre num quadro que combina fantasia desfeita com um drama montado. No caso do Brasil, a fantasia desfeita teve como causa a morte do Estado do bem-estar social. Ele sucumbiu aos ataques contra a Previdência, a CLT, e os serviços públicos que sempre prestou. Seu lugar vem sendo ocupado pelo mercado, pela privatização e por novos centros de poder. O luto que resultou disso mostra uma sociedade cabisbaixa, fragilizada e insegura quanto ao seu destino. É como se todos estivessem sitiados por inimigos. Acontece que eles são invisíveis, e isto é suficiente para descortinar o cenário do drama. O espetáculo começa quando eles são anunciados e timbrados com um nome. A escolha recaiu nos menores infratores.
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1 Barreto, T. Menores e Loucos. In: ____________Estudos de Direito II. Rio de Janeiro, Record, 1991,p.47.
2 Ibid., p. 49.
3 Ibid, p.59.
4 Lombroso,C. O homem criminoso. Rio de Janeiro, Ed rio, [S.D.], p.75.
5 Costa e Silva, A . J.da. Código Penal dos Estados Unidos do Brasil. São Paulo, Companhia Ed. Nacional, 1930, p.176.
6 Costa e Silva, op. cit.,p.177.
7 Hungria, n. comentários ao Código Penal. Rio de janeiro, Forense,1978,vol.I, p.360.
8 Ibid., p.359.
9 Ibid., p. 359.
10 Ibid., p. 363.
11 Ibid., p. 359.
12 Ibid., p. 363.
13 Ibid., p.361.
14 Ibid., p.361.
15 Ibid., p. 362.
16 Ibid., p. 362.
17 Ibid., p.365.
18 Ibid., p. 366.
19 Ibid., p. 366.
20 Kahn, T. [on line] Delinqüência juvenil se resolve aumentando oportunidades e não reduzindo a idade penal. Disponível em http:www.conjunturacriminal.com.Br.
21 Maurach, R. e Zipf, H. Derecho Penal. Buenos Aires, Astrea, 1994, p. 635.
22 Conde, F. M. Teoria General Del Delito. Valencia, Tirant Lo Blanch, 1991, p. 131.
23 Correa, E. Direito Criminal. Coimbra, Livraria Almedina, 1971, p. 331.
24 Kahn,T. op.cit.