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An. 1 Simp. Internacional do Adolescente May. 2005
Práticas educativas de protesto na adolescência: movimento Hip Hop
Rosangela Carrilo Moreno
Faculdade de Educação, UNICAMP, Programa de Pós-Graduação – Mestrado - São Paulo
Este trabalho tem como objetivo discutir, a partir do movimento Hip Hop, o conceito de adolescente, a fim de entender o jovem para além das explicações biológicas que caracterizam esta etapa como um período de conflitos, crises e rebeldias, comum a todos os seres da espécie humana.
O movimento Hip Hop, compreendido como uma prática educativa de protesto e como movimento social é apenas um exemplo, na história brasileira, que confronta esta concepção de jovem acima descrita.
Analisando a construção do movimento Hip Hop e a atuação dos adolescentes que são membros deste grupo, vemos estes jovens como sujeitos ativos na construção da sociedade, se opondo às concepções que compreendem esta etapa da vida como um estado de turbulência, um momento de crise que antecede e prepara para entrada no mundo adulto.
Para fazer este debate, este texto será dividido em cinco itens que discutirão: as concepções de adolescência; o movimento Hip Hop como espaço de discussão sobre juventude; a presença dos adolescentes em movimentos sociais; o aspecto formativo destas experiências; e os novos olhares para a compreensão de adolescência.
Adolescência em questão
Juventude, jovem, adolescente1, são termos corriqueiramente utilizados e são o centro das discussões deste Simpósio. Entretanto esta categoria social é alvo de debate entre diversos campos e concepções teóricas.
Conforme aponta Philippe Ariès em seu trabalho sobre a História Social da Criança e da Família2, esta categoria está intimamente relacionada às mudanças da instituição escolar e o contínuo prolongamento da idade escolar, que propiciou a formação de um período intermediário entre a infância e o mundo adulto, em grande parte impulsionado pelos ciclos escolares. A expansão escolar dada entre o século XIX e principalmente no século XX, que possibilitou o acesso de diferentes classes sociais à escola, na Europa, contribui na formação desta categoria social, conforme o debate apresentado por Sousa (2.0023). Segundo Sousa, no Brasil, esta expansão que colaborou para dar visibilidade a esta categoria social, aconteceu principalmente no século XX.
Levanto aqui alguns eventos do fim do século XX, que colaboraram para a consolidação do jovem como categoria social no Brasil. Podemos citar por exemplo: a expansão do ensino médio, a criação do Estatuto da Criança e Adolescente, a FEBEM (Fundação Estadual do Bem Estar do Menor) que consolidaram, por meio de políticas públicas específicas, esta categoria.
A visibilidade desta categoria também foi apropriada, no desenvolvimento industrial, pela criação de produtos específicos para esta categoria de consumidores. Estes produtos (vídeos, CD's, roupas, atividades de lazer) passaram a demarcar estilos entre os adolescentes, conforme aponta Abramo (1.9944) em seu trabalho.
Magro (2.0035) ao discutir a identidade pessoal na adolescência levanta e discute alguns autores que trabalharam com o conceito de adolescência, destacando diversos autores que trazem em seus trabalhos influências da teoria da evolução de Darwin, ou a filosofia de Rousseau, que caracterizam o desenvolvimento do ciclo humano como uma forma natural e biológica, ou como uma fase intermediária entre a mentalidade infantil, considerada primitiva, e a mentalidade adulta, entendida como civilizada ou racionalizada.
Assim a adolescência começa a se caracterizar, nestas perspectivas, como um momento de turbulência, uma fase que serve de pré-requisito para a chegada à idade adulta, que deve ser controlada e educada para adaptação as normas ou possíveis desvios6.
Estas concepções, segundo a autora, influenciaram vários trabalhos sociológicos como, por exemplo, o de Abramo que descreve o jovem como um ser em condição de marginalidade permitida, uma vez que esta fase é apenas uma condição de transitoriedade e preparação para o mundo adulto, para o sistema produtivo.
Para Magro os adolescentes são sujeitos nômades, não fixos, abertos e disponíveis ao horizonte de possibilidades, incertezas, da multiplicidade do seu percurso de construção. Segundo a autora, as concepções de adolescência que foram construídas na modernidade sobre a perspectiva iluminista da razão, que busca uma verdade única, foram afetadas pela turbulência da realidade social, marcadas por guerras mundiais e profundas transformações econômicas, que afetaram o espaço privado, da família e das intimidades (Magro, 2003, p. 37), e eu acrescentaria do espaço público e das instituições.
Em seu trabalho, Magro, coloca que a modernidade constitui concepções pautadas hegemonicamente na masculinidade, ou seja, conceitos sociais que trazem a imagem do adulto, forte, branco, heterossexual, de classe dominante, que no jogo das forças sociais, coopta ou subordina outras possibilidades de homem e mulher.
A adolescência, para Magro, deve ser compreendida por meio das práticas e experiências produzidas por estes jovens. Para ela são as vozes destes adolescentes, e não os sentidos vazios produzidos por representações exteriores aos jovens (mídia, mercado de consumo, pedagogos, médicos, psicólogos), que revelam a capacidade que o jovem tem de formular questões significativas no campo social e político.
Ela enfatiza que os jovens produzem sentidos que atuam tanto no campo da resistência, quanto no campo da manutenção da ordem social, e suas narrativas apesar de nômades, são marcadas por uma posicionalidade "em um corpo, uma classe social, um gênero e uma raça, revelando-se rizomática e estrategicamente assentada"7.
Entre as diversas concepções de adolescência acima descritas, um conceito que nos parece mais pertinente para entender os jovens membros do movimento Hip Hop, é aquele que permite compreendê-lo em sua posicionalidade, ou seja, no lugar, no tempo, nas héxis8 corporais que são estrategicamente acionadas no jogo social.
Portando as idéias que concebem a adolescência como uma fase de rebeldia e turbulência é suficiente para compreender os jovens do movimento Hip Hop. Este debate que tentaremos colocar ao longo do texto.
O Movimento Hip Hop como espaço de discussão sobre Juventude
Para compreender um pouco sobre o que é o movimento Hip Hop vamos traçar um pequeno histórico, desde seu surgimento até as práticas atuais no Brasil.
O movimento Hip Hop surgiu entre a década de 60 e 70 no Estados Unidos, na cidade de Nova York, por jovens negros, caribenhos e hispânicos, enquanto um movimento cultural.
Com a transformação de Nova York em capital financeira, a "desindustrialização" da cidade aumentou o número de desempregados ou subempregados, criando profundos impactos na região. As comunidades pobres ficaram expostas à violência, aos "donos de favela", aos serviços municipais e transportes inadequados.9
Neste cenário a cultura Hip Hop torna-se uma experiência local, negociando tanto com suas experiências de exclusão social, quanto temas ancestrais e contemporâneos.10
A cultura Hip Hop tem três formas principais de expressão: o rap (música), o break (dança) e o graffiti (desenhos, imagens).
Os jovens se reúnem pela cidade e deixam suas marcas na realização dessas expressões culturais. Estas manifestações desenvolveram-se em outras grandes metrópoles do mundo inteiro.
No Brasil o movimento consolidou-se na década de 80, trazendo dois temas principais: a reconstrução da identidade negra e a experiência juvenil na periferia.11
Além da manifestação cultural os jovens organizam reuniões, encontros seminários, palestras em escolas e ONGs e alguns membros articulam-se e aos partidos políticos ou ao movimento negro, além das festas que mobilizam estes jovens.
Mas pensando no Hip Hop como movimento social, quais interesses coletivos o Hip hop busca reivindicar? O Hip Hop vai reivindicar a mobilização dos jovens por novos comportamentos e pela reação crítica dos jovens, em muitas posses a questão racial brasileira é tema de discussão, promovendo a estes jovens um autoconhecimento da experiência de raça e classe que muitas vezes a escola não oferece.
Sua produção possui um modo particular e próprio que traz um conteúdo de denúncia, resistência às desigualdades raciais, sociais, econômicas e culturais.
Olhar para o Hip Hop e suas práticas pode nos ensinar sobre a construção de saberes e significados por parte destes jovens, ajudando-nos a compreender o adolescente de modo multidimensional, ou seja, entender tanto as marcas sócio-históricas que compõem estes jovens, assim como as estratégias que eles negociam em sua posicionalidade no mundo.
Adolescência e Movimentos Sociais
O destaque dado ao movimento Hip Hop neste trabalho, deve-se tanto a sua atualidade quanto a sua permanência ao longo, de pelo menos vinte anos. Permanência esta marcada por uma multiplicidade de ser, fazer e posicionar-se diante do mundo.
Entretanto queremos trabalhar aqui com as práticas que tornam o movimento Hip Hop como um Movimento Social que é organizado por adolescentes, assim como outros movimentos que se destacaram ao longo da história brasileira.
Estes movimentos nos ajudam a confrontar, pelas ações dos jovens, as concepções de adolescência influenciada pelos referenciais evolucionistas, que colocam a adolescência em oposição ao mundo adulto, mundo este que deve perseguido e alcançado.
Mas para falar destes movimentos precisamos situar a perspectiva que aqui trabalharemos. Ainda que consideramos que existem diversas formas de mobilizar e resistir aos modelos dominantes como, por exemplo, as práticas sutis e quase invisíveis que encontramos em algumas tradições populares, ou nas formas de consumo e uso dos bens e produtos12, vamos trabalhar neste item com movimentos de resistência a partir dos referenciais propostos por Gohn13.
Portanto vamos colocar aqui alguns movimentos organizados e reivindicativos, que tiveram os adolescentes como protagonistas sociais, pois não é somente o Hip Hop que ganhou destaque pela atuação de jovens na luta sócio-política.
Também levantaremos alguns movimentos culturais no campo da música que parece ter acompanhado as transformações históricas, até chegarmos no movimento Hip Hop14.
Se olharmos para as mobilizações desde a década de 60, os jovens universitários estiveram fortemente envolvidos com a discussão política sobre a nação brasileira, tanto no movimento estudantil, materializada na UNE (União Nacional dos Estudantes), quanto em espaços que a cultura estava sendo amplamente discutida e questionada, como por exemplo, o Centro de Cultura Popular da UNE. As críticas aos valores e produções culturais estavam presentes nas canções da bossa-nova, daqueles que se intitulavam como música popular brasileira.
Apesar da ditadura e da repressão, de um modo menos institucionalizado, os anos 70 viram com o movimento hippie e de contracultura, uma forma de protesto as "velhas" tradições e valores sociais. Muitas transformações ocorreram ao longo do período ditatorial e apesar delas os jovens estiveram presentes, ao longo dos anos 70 e 80, em diversos movimentos como vimos nas mobilizações pela Anistia, pelo fim da ditadura, ou na atuação em movimentos de trabalhadores, tanto da cidade, quanto do campo.
Já nos anos 80, com o enfraquecimento e término da ditadura, os movimentos sociais se ampliaram tanto em temáticas quanto em número de agrupamentos15, como por exemplo, as demandas na luta pela educação, moradia, transporte, saneamento básico entre outros. Alguns jovens estavam à frente destas mobilizações tanto em associações de bairros, como em comunidades eclesiais de base, entre outros.
Esta multiplicidade de movimentos, de temáticas, parece ter-se acontecido também no campo das produções musicais. Novos estilos surgiram e ganharam destaque como os punks, os darks, o rock, o pop. Esta abertura de estilos musicais parece ter acompanhado as mudanças políticas e sociais dos anos 80.
Desta multiplicidade de reivindicações surgem ou se fortalecem, nos anos 90, os chamados novos movimentos sociais, como por exemplo o movimento feminista, negro, de homossexuais, ecológicos, rurais, contra a globalização, entre outros.
"(...) Neste cenário, as lutas sociais relevantes serão pela inclusão social de setores que antes eram excluídos por estarem em desigualdade socioeconômica e que agora estão excluídos também por suas desigualdades socioculturais (dadas pelo sistema educacional, pela raça, etnia, sexo etc.). As políticas tendem a ser formuladas para o atendimento de clientelas específicas, agrupadas e caracterizadas como: índio, negro, mulher, terceira idade, menino de rua etc., e não mais por 'ser um pobre' ou por ser um demandante de um serviço (transporte, saúde e educação etc.) ou habitação. Ou seja, as políticas sociais perdem o caráter universalizante e passam a ser formuladas de forma particularista, visando clientela específicas, e neste processo tanto podem contemplar os interesses das minorias demandatárias como vir a ser segregativas/excludentes.16"
Nesta década aconteceram mudanças significativas nas formas de participação política e nas estruturas de mobilização, como por exemplo, as redes associativas do terceiro setor. Estas transformações também podem ser vistas na estrutura do Estado, que tem se responsabilizado cada vez menos pelas questões sociais, e tem criado outras formas de participação dos setores sociais, como os conselhos gestores, os fóruns, as redes e articulações da chamada sociedade civil17.
Neste cenário e jogo de poder o movimento Hip Hop ganha destaque e aglutina em si tanto característica de movimento social, quanto de movimento cultural, pois tem tanto o espaço para a organização e mobilização política (como por exemplo, a participação no Orçamento Participativo, a criação de conselho junto à prefeitura, a formação de ONGs, e organização de fóruns estaduais e nacional), quanto produz em suas letras, danças e imagens, conteúdos de protesto.18
O movimento Hip Hop, foco de destaque para discutir jovens protagonistas da sociedade atual, ganhou relevância em diversos espaços sociais. Na mídia, na indústria fonográfica, no comércio de produtos, no fortalecimento das posses19, na entrada de oficineiros do movimento em espaços escolares, na realização de encontros, os seminários, além da expansão de suas práticas nas ruas, e de suas produções culturais independentes.
Apesar de seu destaque ter sido forjado muitas vezes pelo Estado ou pela indústria do comércio, estes adolescentes se reúnem, agem, produzem a si, ao mundo em sua condição social, econômica e política, e cultural. Essa elaboração constitui uma experiência educativa, uma formação de identidade e pertencimento, que também nos interessa nesta reflexão.
Essas experiências, de jovens organizando movimentos sociais, parecem se contrapor à idéia de adolescência como uma fase de rebeldia, de turbulência que antecede e prepara para a entrada no mundo adulto. Elas parecem muito mais uma experiência educativa e formativa, como muitas outras que os sujeitos vivenciam em sua trajetória de vida.
Porém é uma experiência que permite ao jovem fazer formulações significativas sobre o campo social e político; formulações estas, que em concepções sob influência evolucionista, seriam vistas como rebeldia ou fruto da sua própria condição de marginalidade no mundo (em relação ao mundo adulto).
O aspecto formativo das experiências de jovens em Movimentos Sociais e no Hip Hop
Conforme discutimos logo acima, as experiências de jovens em movimentos sociais, remetem a uma formulação muito mais complexa para a concepção de adolescência do que simplesmente uma fase preparatória para a vida adulta.
Participar de movimentos sociais, independentemente da idade possibilita uma formação educativa. Gohn elucida sobre este aspecto educativo dos movimentos sociais afirmando que:
"(...) todos os processos que envolvem a aprendizagem de novas informações referentes a novos hábitos, valores, atitudes e comportamentos. Este conjunto, após sistematizado, codificado e assimilado pelos indivíduos e grupos sociais, constituem elementos fundamentais para a geração de novas mentalidades e novas práticas sociais, fundamentais para a formação dos indivíduos enquanto cidadãos."20
Especificamente o movimento Hip Hop pertence a uma formação educativa tanto formal, quanto informal21, pois de um lado as canções, o graffiti, a dança e o próprio convívio entre os membros são experiências educativas informais que contribuem na formação de um modo de ser no mundo; por outro lado, as reuniões, debates, oficinas realizadas pelos membros do movimento, trazem a intencionalidade desta educação, que muitas vezes é concretizada, inclusive por meio de projetos desenvolvidos em instituições escolares ou em complemento a elas.
O Hip Hop antes mesmo dessa tendência do século XXI em exarcebar a cultura como um espaço de luta e resistência social, desenvolveu toda sua prática com base na cultura, e uma cultura de crítica a nação, a política, as instituições de controle, as desigualdades econômicas, raciais, educativas, socais, propondo em alguns casos projetos de atuação com outros jovens. Sua presença gerou uma reelaboração e transformação da cultura política da nação, pois o movimento criou parcerias com muitas instâncias governamentais ou institucionais com a finalidade de desenvolver seus projetos.
Em Campinas (em 2.001), por exemplo, membros do movimento Hip Hop enviaram um projeto à prefeitura com o objetivo de realizar suas oficinas no período escolar, junto com as professoras das salas de aula, o que não aconteceu na prática, mas foi formulado como proposta do movimento.22
É preciso deixar claro que o Hip Hop é um movimento multifacetado, com várias concepções sobre o que é política e atuação política. Para muitos jovens o modelo político atual não é visto com bons olhos, desacreditando na participação dentro desta estrutura de poder, para outros a militância no Hip Hop caminha junto com a militância partidária. Isso significa que ao mesmo tempo em que, estes jovens criticam as desigualdades existentes em nossa sociedade, eles reagem de diversas formas: seja atuando com parcerias com o governo, em ONGs, em seus bairros, com seus amigos, com mundo do crime.
Não pretendemos afirmar que o movimento tem esta ou aquela concepção ou visão de mundo, ou que todos seus membros partilham de uma única concepção, pois ao contrário ele nos defronta, como mencionamos anteriormente, com um sujeito que dialoga com várias identidades, marcadas por quem o interpela, e pelo tempo, espaço, raça, gênero, educação, profissão, entre outros campos de representações e constituições dos sujeitos sociais.
Esta é uma característica muito interessante do Hip Hop, e um elemento rico para reflexão; em uma mesma denominação (Hip Hop) temos jovens que denunciam as desigualdades, mas reagem e colocam-se em suas produções culturais e diante da própria vida de modo diferenciado. Para alguns o rap foi uma alternativa ao mundo da violência, deu-lhe um pertencimento, uma posição positiva para vida, para outros o rap são os conteúdos da vida do crime e da violência, a alternativa encontrada para esta mesma situação de exclusão econômica, social, racial.
Independente do uso que cada membro faz da cultura Hip Hop existe um lugar comum a eles dentro do Hip Hop, que é esta crítica às desigualdades econômicas e raciais desta sociedade. O Hip Hop pode ser visto como um movimento de resistência à medida que os sujeitos, diante de um lugar, um espaço que não lhes é próprio (uma vez que não tem poder para definição das relações deste espaço, a cidade, a sociedade, as instituições) reelaboram esta cultura e este lugar. Sua música tem uma base na diáspora negra, mas é reconstruída pelos instrumentos da tecnologia; os graffitis redesenham o espaço público e privado pelo desenho e marcam diretamente suas mensagens sem se preocupar, muitas vezes, com a permissão ou autorização. E com suas marcas de resistências criam jogos de equilíbrio nas relações sociais.
Certeau contribui para este olhar cuidadoso do cotidiano, ele afirma que as "táticas desviacionistas não obedecem à lei do lugar. Não se definem por este."23 Para ele:
"essas 'maneiras de fazer' criam um jogo mediante a estratificação de funcionamento de diferentes e interferentes. (...) Ele os superimpõe e, por combinação, cria para si um espaço de jogo para maneiras de utilizar a ordem imposta do lugar ou da língua. Sem sair do lugar onde tem que viver e que lhe impõe uma lei, ele aí instaura pluralidade e criatividade. Por uma arte de intermediação ele tira daí efeitos imprevistos."24
Certeau também avança sobre as teorias nas ciências sociais que trabalham conceitos como cultura de massa, massificação, pois desconstrói essa noção de consumo passivo, centralizado, espetacular, qualificando o consumo como produtor de sentidos, uma arte de usar e recriar aquilo que é imposto. O Hip Hop constrói sua musicalidade com recursos tecnológicos impostos pelas práticas dominantes, mas reapropria e cria com suas mixagens, vozes e conteúdos seu estilo.
Novos olhares para a compreensão de adolescência
Toda a trajetória traçada até aqui permite olhar para o movimento Hip Hop como uma possibilidade de construção de identidades alternativas ao modelo hegemônico de adolescência, que os vêem como rebeldes, individualistas, ou conservadores, mas nos defronta como uma concepção que: por um lado critica este modelo de sociedade, respondendo de forma esperançosa ou violenta a esta estrutura social; e por outro lado, um adolescente que apesar de membro de um grupo, é marcado por identidades múltiplas de classe, raça, sexualidade, posição de trabalho, experiências educativas.
O Hip Hop é para alguns uma experiência educativa de luta, protesto e resistência, por melhores condições de vida e justiça social e racial, enquanto para outros é um caminho para ações concretas de sobrevivência econômica, como por exemplo expandir sua filosofia através de suas oficinas e receber por isso.
Pode ser um lugar alternativo ao mundo do crime e da rua, pois dá um lugar de pertencimento a um grupo, ganhando assim força e segurança; possibilitando a transformação de sua agressividade, revolta e insatisfação em produção musical, de dança ou graffiti. Pensar sobre esta força também é um bom ponto para discussão, mas que não vou me estender, nem discorrer sobre a possibilidade de ser positiva ou negativa esta força.
Como já dissemos o movimento tem várias formas de conceber e atuar sobre essa realidade, mas de qualquer forma permite que os adolescentes construam e reconstruam a si e ao mundo dentro de um grupo que se constrói coletiva e politicamente.
Sua ação coloca muitas produções acadêmicas ou políticas públicas em questão, pois categorias que busquem uma identidade estável e unificadora mostram-se insuficientes para explicarem estes adolescentes.
O jovem só pode ser entendido dentro de sua origem sociocultural, de classe, de gênero, e de sua trajetória escolar, familiar, e experiências educativas informais, articuladas e reelaboradas coletiva e individualmente. Ou seja, compreender as histórias singulares dos jovens, mas que falam de uma história social coletiva marcada por desigualdades.
Esses elementos podem assim contribuir de modo fundamental para pensarmos os trabalhos educativos que vamos desenvolver com os adolescentes.
Referência Bibliográfica
ABRAMO, Helena Wendel. Cenas Juvenis: punks e darks no espetáculo urbano. São Paulo: Editora Página Aberta, 1994.
CERTEAU, Michel de. Fazer com: Usos e Táticas. In: A Invenção do Cotidiano. 4ª Edição. Petrópolis, Rio de Janeiro: Vozes, 1999.
GOHN, Maria da Glória. Movimentos Sociais E Educação. 3ª edição. Cortez. São Paulo, 1999a.
____________________ Educação Não Formal e Cultura Política. 3ª Edição Loyola: São Paulo, 1999b.
____________________ História Dos Movimentos e Lutas Sociais. 2ª Edição. Loyola: São Paulo, 2001.
_____________________Movimentos Sociais no Início Do Século XXI: antigos e novos atores sociais. Petrópolis, Rio de Janeiro: Editora Vozes, 2003.
MAGRO, Viviane Melo de Mendonça. Meninas do graffiti: Educação, adolescência, identidade e gênero nas culturas juvenis contemporâneas. 2003. Tese (Doutorado em Educação) – Faculdade de Educação, Universidade Estadual de Campinas, UNICAMP Campinas, 2003.
_______________________________ Adolescentes como autores de significados próprios. In: Caderno CEDES. Campinas, v.22, no. 57, p. 63-75, 2002.
MORENO, Rosangela Carrilo. O movimento da música e a música em movimento: a música de protesto no período de 1960 a 1999. 2003. Trabalho de Conclusão de Curso (Curso de Pedagogia), Faculdade de Educação da Unicamp, Campinas, 2003.
SOUSA, Rafael Lopes. Contexto Histórico e o Nascimento do Movimento Juvenil. IN: Punk: Cultura e Protesto. São Paulo: Edições Pulsar, 2002.
1 Vou usar estes termos indiscriminadamente para tratar desta etapa da vida, que é a passagem da infância à vida adulta, sem entrar na discussão do sentido dos termos dentro das pesquisas produzidas.
2 ARIÈS, Philippe. História Social da Criança e da Família. Rio de Janeiro: Editora Guanabara, 1984.
3 SOUSA, Rafael Lopes. Contexto Histórico e o Nascimento do Movimento Juvenil. IN: Punk: Cultura e Protesto. São Paulo: Edições Pulsar, 2002.
4 ABRAMO, Helena Wendel. Cenas Juvenis: punks e darks no espetáculo urbano. São Paulo: Editora Página Aberta, 1994.
5 MAGRO, Viviane Melo de Mendonça. Meninas do Graffiti: Educação, Adolescência, Identidade e Gênero nas Culturas Juvenis Contemporâneas. 2003. Tese de Doutorado (Educação) – Faculdade de Educação, Universidade Estadual de Campinas, UNICAMP Campinas, 2003.
6 Em sua tese de doutorado Magro elenca alguns psicólogos que trabalham com esta concepção mais evolucionista, como Stanley Hall (1904), Arnould Gesell (1972), Robert Havighurst (1962; 1972).
7 Ibid., 188.
8 Para Pierre Bourdieu héxis corporais são o "conjunto de propriedades associadas ao uso do corpo, em que se exterioriza a posição de classe". Para entender melhor o conceito na obra do autor ler o texto Futuro de Classe e Causalidade do Provável, no livro Catani, Afrânio, e Nogueira, Maria Alice (org.). Pierre Bourdieu: Escritos sobre Educação. 6ª Edição. Petrópolis, Rio de Janeiro: Vozes, 2004.
9 ROSE, Tricia. Um estilo que ninguém segura: Política, estilo e a cidade pós-industrial no Hip Hop. In: Herschmann, Michael. Abalando os anos 90: funk e hip hop.Globalização, violência e estilo cultural. Rio de Janeiro: Rocco, 1997.
10 Discussão realizada por MAGRO (2003) no item, A cultura Hip Hop: identidades e expressões de si na periferia, da tese de doutorado.
11 SILVA, José Carlos Gomes da. Arte e educação: a experiência do movimento Hip Hop paulistano. In: ANDRADE, Elaine Nunes de (org.). RAP e educação, RAP é educação. São Paulo: Summus, 1999.
12 Sobre as práticas de resistência cotidianas podemos encontrar no trabalho de Michel de Certeau uma discussão minuciosa sobre o tema. Encontramos este debate no livro CERTEAU, Michel de. A Invenção do Cotidiano. 4ª. Edição. Petrópolis, RJ: Vozes, 1994.
13 Para Gohn movimentos sociais são "(...) ações coletivas de caráter sócio-político e cultural que viabilizam distintas formas da população se organizar e expressar suas demandas. Na ação concreta, essas formas adotam diferentes estratégias que variam da simples denúncia, passando pela pressão direta (mobilizações, marchas, concentrações, passeatas, distúrbios à ordem constituída, atos de desobediência civil, negociações etc.) até as pressões indiretas. Na atualidade, os principais movimentos sociais atuam por meio de redes sociais, locais, regionais, nacionais e internacionais, e utilizam-se muito dos novos meios de comunicação e informação como a internet". GOHN, Maria da Glória. Movimentos Sociais na atualidade: manifestações e categorias analíticas. In: GOHN, Maria da Glória (org.) Movimentos Sociais no início do século XXI: Antigos e novos atores sociais. Petrópolis, RJ: Vozes, 2003. p.13
14 Um trabalho exploratório sobre relação entre movimentos sociais e movimentos músicas pode ser encontrado em trabalho realizado anteriormente, que se encontra na Biblioteca da Faculdade de Educação da Unicamp, com a referência: MORENO, Rosangela Carrilo. O movimento da música e a música em movimento: a música de protesto no período de 1960 a 1999. 2003. Trabalho de Conclusão de Curso (Curso de Pedagogia), Faculdade de Educação da Unicamp, Campinas, 2003.
15 Sobre a história dos movimentos sociais pode olhar o trabalho: GOHN, Maria da Glória. História dos movimentos e lutas sociais: a construção da cidadania dos brasileiros. São Paulo: Loyola. 2ª edição, 2001.
16 GOHN, Maria da Glória. Educação Não-Formal e Cultura Política. São Paulo: Cortez Editora, 1.999b. p. 11 e 12.
17 Para aprofundar e entender melhor as transformações do cenário dos movimentos sociais e do contexto da década de 90, além das duas obras de GOHN que já foram mencionadas, ver: O protagonismo da Sociedade Civil: Movimentos Sociais, ONGs e redes solidárias. Cortez. São Paulo, 2005.
18 Estas informações sobre o movimento Hip Hop são parte da pesquisa de campo de meu projeto de pesquisa para o mestrado, alocado na Faculdade de Educação da Unicamp e sob orientação da Professora Maria da Glória Gohn e coorientação da Professora Ana Maria Almeida da Fonseca.
19 Formação social em rede que aglutinam jovens em busca de desenvolver as atividades do movimento Hip Hop.
20 GOHN, Maria da Glória. Movimentos Sociais e Educação. 3ª edição. Cortez. São Paulo, 1999a. p. 56
21 Seguindo os referenciais Gohn (1999, p.100) a educação informal é aquela transmitida por relações de convívio como família, amigos, grupos e organizações, ou experiências com materiais culturais como o teatro, jornais, livros, etc., e ocorre de forma espontânea, enquanto a educação não formal, apesar de sua abrangência, caracteriza-se por existir uma intencionalidade em busca de determinadas qualidades e/ou objetivos.
22 Dados extraídos do Diário de Campo da pesquisa O Movimento Hip Hop na cidade de Campinas: experiências educativas de protesto na sociedade atual.
23 CERTEAU, Michel de. Fazer com: Usos e Táticas. In: A Invenção do Cotidiano. 4ª Edição. Petrópolis, Rio de Janeiro: Vozes, 1.999. p. 92
24 Ibid. 92 e 93