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An. 1 Simp. Internacional do Adolescente May. 2005

 

Reconstrução da narrativa entre os alunos do ensino médio da escola pública

 

 

Aluno: Edson Yukio Nakashima (Bolsista do CNPQ – FFLCH / Letras)

Orientador: Profª. Drª. Mônica do Amaral - FEUSP

 

 

São Paulo, agosto de 2005

Agradecimentos e dedicatória

Minha profunda gratidão à minha orientadora,
Profª. Mônica Amaral, que me concedeu a
honra de realizar a iniciação científica
sob sua preciosa orientação.
Foi com muita paciência que ela pode me ajudar a
dar meus primeiros passos na pesquisa e educação.
Espero que este trabalho esteja à altura de
todo o trabalho de orientação que ela prestou a mim.

Agradeço também à CNPq
pelo apoio prestado pela bolsa de estudos.

Minha família e meus amigos também
têm uma grande parcela na realização desse trabalho.

Dedico este trabalho à Sandra Maria do Nascimento,
cujos amor, ânimo e apoio têm me estimulado a seguir sempre em frente.

 

 

A) Introdução

Este relatório sintetiza a realização de meu projeto de iniciação científica, que teve como objetivo uma análise, reflexão e proposta de novos métodos de ensino de literatura para o ensino médio, tomando como base o estudo dos princípios constitutivos da sociedade brasileira e da identidade cultural e psicológica do jovem. Com base em um estudo multidisciplinar (Psicanálise, Psicologia Social, Sociologia, Filosofia e Literatura), buscou-se compreender a problemática contemporânea do adolescente e propor formas da recuperação da narratividade no ensino de literatura. Além da revisão bibliográfica, foi realizada também uma pesquisa de campo em uma escola de ensino médio da rede estadual da cidade de São Paulo, em parceria com a minha orientadora, profª. Mônica Amaral.

No período da iniciação científica, fiz parte da Comissão Organizadora do 1º Simpósio Internacional do Adolescente, realizado nos dias 2 a 5 de maio de 2005, na Universidade de São Paulo.Neste evento, apresentei uma apresentação parcial de meu projeto em mesa livre.

 

B) Fundamentação teórica

1. Princípios constitutivos da sociedade brasileira: reflexões a respeito das raízes do Brasil

a) As raízes da consciência nacional

Para iniciar esta presente reflexão, tomaremos como base o livro Raízes do Brasil (1995), de Sérgio Buarque de Holanda. O livro, além da importância capital para a compreensão histórica do passado brasileiro, tem, no projeto desenvolvido por mim, o valor de oferecer os subsídios necessários para realizar uma abordagem sócio-histórica dos princípios constitutivos da formação social do Brasil moderno e também para analisar o processo de constituição da autoridade no interior da família, vital para que possamos constituir o trabalho com o ensino de literatura para adolescentes.

Segundo posfácio escrito pelo historiador Evaldo Cabral de Melo na 26ª edição de Raízes do Brasil (1995), a criação do livro corresponde a uma fase especialíssima na trajetória intelectual de Sérgio Buarque, equivalente a uma ruptura que iria conduzir aos grandes ensaios de maturidade do autor, como Caminhos e fronteiras, Visão do paraíso e Do Império à República. Tal rompimento ocorre com o abandono do "projeto de interpretação sociológica do passado brasileiro em favor de uma análise de cunho eminentemente histórico" (Evaldo Cabral de Mello, 1995, pág. 189). De acordo com Evaldo de Melo, se as obras da geração de 30 (de Sérgio Buarque, de Gilberto Freyre e de Caio Prado Júnior) sobreviveram, em contraposição aos trabalhos de "sociologia da formação brasileira" de Oliveira Viana e de Manuel Bonfim - sociologia, aliás, considerada ultrapassada nos centros de criação científica do Ocidente -, isto se deve à marca registrada dos grandes historiadores - a "tesão pelo concreto", segundo palavras do próprio Evaldo de Melo.

Já o crítico literário Antonio Candido, no prefácio da mesma edição do livro, faz considerações a respeito de três obras que causaram impacto e influência em sua geração - Casa Grande e Senzala, de Gilberto Freyre; Formação do Brasil Contemporâneo, de Caio Prado Jr.; e, por fim, Raízes do Brasil, de Sérgio Buarque de Holanda, que é considerada pelo crítico como um "clássico de nascença". Tais ensaios iriam superar as obras de Oliveira Viana e de Alberto Torres, cujos preconceitos ideológicos baseados em aspectos biológicos e de "raça" lançavam argumentos para uma visão hierárquica e autoritária da sociedade, traços aliás criticados por Sérgio Buarque em seu livro.

De acordo com Candido, Raízes do Brasil é um "livro curto, discreto, de poucas citações", escrito numa época em que as posições políticas eram dominadas pela descrença no liberalismo tradicional e cuja busca de soluções para este impasse se inclinavam ou em direção à esquerda (socialismo e comunismo) ou em direção à direita (o integralismo). É em meio a estas tensões que se buscava, por meio do livro, realizar uma análise do passado brasileiro, com fontes e perspectivas diferenciadas, cujas conclusões se concentravam na nova história social dos franceses, na sociologia da cultura dos alemães e contendo elementos de teoria sociológica e etnológica até então inéditos no Brasil. O rigor de composição do livro, virtude ofuscada pelo seu estilo digressivo e despreocupado, era uma contraposição à "abundância" tipicamente nacional.

O livro é construído por meio de uma "metodologia de contrários" (Antonio Candido, 1995, pág. 12), visando a exploração de conceitos antitéticos. Por meio deste método, buscava-se obter uma visão de um determinado aspecto da realidade pelo enfoque simultâneo de dois conceitos, através do qual "um suscita o outro, ambos se interpenetram e o resultado possui uma grande força de esclarecimento" (Antonio Candido, 1995, pág. 13). Tal procedimento se opõe ao pensamento dogmático e conduz para a meditação de cunho dialético. Segundo afirma o próprio Sérgio Buarque: "(...) a história jamais nos deu o exemplo de um movimento social que não contivesse os germes de sua negação" (S.B. de Holanda, 1995, pág. 180). Desse modo, vão se delineando no livro os pares antitéticos - trabalho e aventura, método e capricho, rural e urbano, burocracia e caudilhismo, norma impessoal e impulso afetivo.

Com base nesse raciocínio dialético, o historiador analisa as aludidas "raízes", isto é, os fundamentos do destino histórico brasileiro. Analisaremos esta questão capítulo por capítulo.

No primeiro capítulo "Fronteiras da Europa", é estudado o tradicional personalismo ibérico, do qual seria decorrente a falta de coesão social e a frouxidão das instituições caracteristicamente ibéricas - tendências tão marcantes de Portugal e Espanha e que teriam forte influência nos países colonizados por estes dois países. A nostalgia de um passado mais ordenado não teria, portanto, razão de ser, uma vez que os traços, geralmente considerados falhos do mundo contemporâneo, já eram existentes. Acrescentando-se ao citado personalismo, temos também a ausência do princípio de hierarquia e uma exaltação do prestígio pessoal em relação ao privilégio. A nobreza, desse modo, permanecia aberta ao mérito ou ao êxito, o que favorecia a ascensão de membros das classes burguesas à fidalguia - segundo Fradique Mendes, em uma de suas cartas, "em Portugal, somos todos fidalgos", em citação de Antonio Candido (1995, pág. 14). Essa tendência irá desembocar então em um dos temas principais do livro: a repulsa pelo trabalho e pelas atividades utilitárias. Tal particularidade fazia com que o ibérico não buscasse o benefício do grupo ou dos princípios, abrindo-se então o caminho para uma característica falta de organização social, presente até hoje em nossa sociedade.

O paradoxo que se cria a partir de então é uma outra tendência: a renúncia ao cultivo da personalidade por meio de uma obediência cega. Essa opção seria realizada por aqueles que não conseguiam abarcar a disciplina baseada nos vínculos que eram previamente aceitos. Desse modo, segundo Sérgio Buarque, haveria nos ibéricos tanto a tendência ao desmando, como também a disposição ao cumprimento das ordens.

No capítulo seguinte, "Trabalho e aventura", são distinguidos o "aventureiro" do "trabalhador". O primeiro está em busca de novas experiências, prefere a descoberta em detrimento da consolidação e se deleita com o provisório; o segundo persegue a segurança e não se indispõe com o esforço e as compensações de longo prazo. O que há de interessante é que o continente latino foi colonizado basicamente pelo primeiro tipo, o "aventureiro", enquanto que o segundo tipo teve pouca ou nula influência nele. No caso do Brasil, o cultivo da cana-de-açúcar cabia como uma luva para tal tipo de empreendimento por ser uma ocupação tipicamente aventureira de espaço e uma adaptação primitiva e facilitada às condições naturais encontradas. A escravidão, sendo uma conseqüência lógica desse processo, agravaria ainda mais a repulsa no brasileiro ao espírito de trabalho, pois tiraria do homem livre a necessidade de organização e cooperação.

O terceiro capítulo, "A herança rural", delineia os traços marcantes da vida rural na sociedade brasileira e que conduziria a outra dicotomia básica - a relação rural-urbano. Como influência dos grupos rurais dominantes na sociedade - com base nas características econômicas e familiares -, teremos a valorização do chamado "talento". Isso irá se relacionar com a tendência a se dar mais importância às atividades intelectuais em detrimento do trabalho material por parte dos grupos dominantes. Cabe ressaltar que a geração de intelectuais e políticos da época seria proveniente de pais fazendeiros e iria, paradoxalmente, lançar as sementes do progresso social que iria desmantelar a classe da qual se originavam, uma vez que iriam se posicionar contra a sua base econômica - o tráfico de escravos. Além disso, com a citada "herança", veremos o predomínio da fazenda sobre a cidade, sendo que a primeira estaria associada com a idéia de nobreza.

O raciocínio prossegue com uma outra dicotomia - a do "semeador e o ladrilhador". Nesse capítulo, iremos verificar as diferenças entre os chamados ibéricos em relação à construção das cidades - de um lado, temos o espanhol ou "o ladrilhador", que encara a cidade como empresa da razão, contrária à ordem natural, e com o objetivo de estabelecê-la como um prolongamento da metrópole e nas regiões mais internas das colônias. O português, designado "semeador", estabeleceria suas cidades no litoral, sendo estas rebeldes às normas abstratas, portanto irregulares, criadas e desenvolvidas ao acaso. Esse aspecto prudente da expansão portuguesa no Brasil, contraditória ao típico espírito aventureiro do lusitano, tem sua razão de ser em razão do interesse deste pela conquista rápida da fortuna e que dispensaria o trabalho regular. Sendo assim, o burguês lusitano, em virtude do desejo desta rápida ascensão social, aspiraria ao comportamento típico da nobreza. Tal encaminhamento iria então desmantelar qualquer pretensão de se formar uma mentalidade específica no Brasil, como ocorreu em outros países.

Um dos capítulos mais significativos e, provavelmente, centrais de Raízes do Brasil é o que trata do "O homem cordial". Neste capítulo, poderemos observar uma das características peculiares do brasileiro, conseqüentes dos desdobramentos antitéticos desenvolvidos anteriormente nos capítulos anteriores, que delineiam todas as condições históricas para a formação do chamado "homem cordial". Os traços tipicamente ibéricos de personalidade dos portugueses que se estabelecem no Brasil, o tipo de colonização adotado por estes e a herança rural proveniente deste aspecto histórico formam o cenário para a formação de um traço psicológico típico no brasileiro.

Sérgio Buarque de Holanda desenvolve a linha de pensamento iniciando uma discussão sobre a peça Antígona, de Sófocles, onde se pode observar a nítida oposição entre Estado e família, geral e particular, impessoal e pessoal, abstrato e corpóreo. Com isso, o historiador observa, com pertinência, que o Estado não é um prolongamento da família, mas, pelo contrário, uma relação de oposição. Desse modo, as crises sociais surgem exatamente quando a lei geral suplanta a lei particular. Um destes desdobramentos ocorre, num exemplo evidente, na dissolução das corporações de artesãos que serão substituídas pelo moderno sistema industrial - como conseqüência, a atmosfera íntima e familiar é suprimida, as relações humanas se deterioram e se formam antagonismos sociais.

Podemos observar que uma das linhas de pensamento da educação moderna é justamente separar o indivíduo do ambiente doméstico e familiar de modo a libertá-lo das "virtudes" peculiares das relações familiares, contrariando as tendências preconizadas pelos antigos métodos educacionais. Cabe observar que muitos dos filhos de latifundiários da época completaram sua educação na Europa, portanto longe dos pais, e, retornando ao Brasil, divulgaram as idéias liberais e igualitárias presentes na Europa. Como diz Joaquim Nabuco, "em nossa política e em nossa sociedade (...) são os órfãos, os abandonados, que vencem a luta, sobem e governam" (citação de S.B. de Holanda, 1995, pág. 144).

Mas, de qualquer modo, a existência de um modelo de família tradicional primitiva se chocaria com a urbanização e seria o gerador de um desequilíbrio social que se mantém presente até hoje na sociedade brasileira, ao atrair diversas áreas rurais para o espaço de influência das cidades.

Personalidades públicas oriundas deste ambiente familiar tradicional possuiriam então graves dificuldades de realizar uma clara distinção entre o público e o privado. Nesse sentido, Sérgio Buarque utiliza algumas expressões de Weber - o funcionário patrimonial e o funcionário burocrata. No caso do funcionário patrimonial, o que iremos ver é que a gestão política se transforma em uma questão de interesse particular - isto é, as funções, os empregos e benefícios são tratados como direitos pessoais do funcionário. O funcionário burocrata, por sua vez, irá buscar interesses objetivos na condução da gerência pública. No funcionalismo patrimonial haverá consequentemente a predominância de práticas clientelistas, enquanto que no funcionalismo burocrata, a ordem impessoal imperaria. Logicamente não podemos estabelecer diferenciações inflexíveis a este respeito, mas existe a predominância de uma lógica mais patrimonial na condução política e pública do país, fato que permanece até hoje no cenário político atual, caracterizado pelo clientelismo. Com uma mentalidade política oriunda deste caráter cordial, e com a dificuldade de separar o público do privado, a corrupção, o nepotismo e o favorecimento se tornam práticas constantes da máquina administrativa, além da visão do Estado por parte do povo como uma entidade acolhedora e paternalista.

No Brasil, o que podemos observar é que o domínio da família foi preponderante na sociedade brasileira e, por conseguinte, foram os laços de sangue e de coração, isto é, as relações domésticas que se tornaram o modelo obrigatório para a composição social do país, mesmo quando as instituições democráticas, fundamentadas em princípios neutros e abstratos, tentaram se impor com suas normas antiparticularistas. Na realidade, a democracia no Brasil nasceu de um mal entendido - no qual "uma aristocracia rural e semifeudal importou-a e tratou de acomodá-la, onde fosse possível, aos seus direitos e privilégios, os mesmos privilégios que tinham sido, no Velho Mundo, o alvo da luta da burguesia contra os aristocratas" (pág. 160).

Já foi dito que a grande contribuição do Brasil seria a criação do "homem cordial", cujas virtudes, como hospitalidade e generosidade, formariam o caráter brasileiro, traços da influência dos padrões de convívio humano formados no meio rural e patriarcal. Estas virtudes não significam exatamente civilidade, mas sim conseqüências legítimas de um fundo emotivo rico e trasbordante.

Desse modo, não é de se estranhar que o chamado "homem cordial" esteja totalmente distante de um modo de ser ritualista, típico do povo japonês, como observa Sérgio Buarque, pois a forma de relacionamento "cordial" é extremamente contrária à polidez. A polidez é, mais do que tudo, um mecanismo de defesa diante da sociedade, um disfarce que preserva a sensibilidade e as emoções do indivíduo, fazendo com que este afirme sua própria soberania e presença contínua perante os outros. O ritualismo social exige uma personalidade predominantemente homogênea e equilibrada, o que é totalmente contrário à natureza do cordialismo brasileiro.

Para o "homem cordial", o viver em sociedade é, acima de tudo, uma libertação - uma negação da presença majoritária do próprio indivíduo, reduzindo-o cada vez mais para a esfera da sociedade. Típico do homem brasileiro, que recebeu o peso das "relações de simpatia" e que não se agrada com relações impessoais, busca sempre reduzi-las ao padrão pessoal e afetivo. Alguns sinais destes traços estão no uso dos diminutivos nos nomes - a terminação "inho" - numa tentativa de fazê-los mais acessíveis aos sentidos e aproximá-los do coração. Basta ver isso na escalação dos times brasileiros - Ronaldinho, Zinho -; nomes de santos - Santa Terezinha - e, mais espantoso, nomes de notórios transgressores da lei - Fernandinho Beira-Mar, Champinha. Outro sinal é a omissão do nome da família no tratamento social, fato que não ocorre em Portugal.

Cabe citar Alfredo Bosi, em seu artigo Homenagem a Sérgio Buarque de Holanda (1988), que percebe o brasileiro "como inventor sutil de meios e jeitos, sabotador manhoso e sorridente dos óbices burocráticos que ele contorna apelando para os contactos pessoais diretos. Latejam igualmente aqui reiteradas leituras de uma História do Brasil como teatro de arranjos e conciliações que contemplariam a esfera privada ou clância em detrimento dos interesses públicos. Enfim, toda uma teoria do estilo brasileiro como dissolução dos ritualismos (...)" (Alfredo Bosi, 1988, pág. 152-153).

No capítulo seguinte, denominado "Novos tempos", vislumbra o primeiro choque nos antigos padrões coloniais, como resultado da vinda da família real. As características aludidas anteriormente não iriam favorecer a estruturação de uma ordem coletiva e sim, ao individualismo, neste caso concebido como uma resistência do indivíduo à lei que o contrarie, resultando, então, na conseqüente falta de capacidade do brasileiro em se aplicar a um objetivo externo.

Em relação aos intelectuais, o que iremos observar é a satisfação com o saber aparente - fonte de prestígio - isto é, aquele cuja finalidade se concentra em si mesmo e que não aplica a um objetivo concreto. São valorizadas então as profissões liberais, que se prestam a este saber aparente e que permitem manifestações de independência individual, estando desligadas do trabalho direto sobre as coisas, fato que lembraria uma condição servil. Desse modo, cultua-se então o exibicionismo, a improvisação e a conseqüente falta de aplicação. Não é de se estranhar então que o positivismo fizesse tanto sucesso nestes trópicos, uma vez que os dogmas se tornaram indiscutíveis e um porto seguro, uma vez que a confiança nas idéias alcançou uma altura elevada, mesmo sendo elas inaplicáveis.

No último capítulo, "Nossa revolução", demonstra como a dissolução da ordem tradicional iria ocasionar contradições não resolvidas. Em um dos exemplos considerados fundamentais, estaria a passagem do rural para o urbano, com o predomínio da cultura das cidades sobre o campo. Isso significaria o aniquilamento das raízes ibéricas da cultura brasileira para a criação de um novo estilo de vida, que se exemplifica no campo rural na passagem da cana-de-açúcar para o café, cuja exploração está mais vinculada ao modo de vida moderno.

Isso não significa que os modelos políticos passados, que já não encontravam respaldo no modelo econômico "modernos", seriam completamente desfeitos, mas que iriam lutar por sua sobrevivência. Cria-se então um impasse, que não se resolve apenas com uma mera substituição de governantes ou se criando leis formalmente perfeitas.

A "nossa revolução", prevista por Sérgio Buarque com base no conceito de "revolução vertical" preconizada por Herbert Smith, seria a fase mais dinâmica, que foi iniciada com o processo de dissolução da velha sociedade agrária, cuja base foi demolida de uma vez por todas com a Abolição. O seu advento implicaria no aniquilamento das tendências do passado, dando lugar para o predomínio do urbano sobre o rural e promovendo a emergência das camadas populares oprimidas, o que permitiria revitalizar a sociedade e dar um novo alento à vida política, na qual seria "revogada a velha ordem colonial e patriarcal, com todas as conseqüências morais, sociais e políticas que ela acarretou e continua a acarretar" (S.B. de Holanda, 1995, pág. 180).

No entanto, Sérgio Buarque adverte sobre a possibilidade de que se registre a resistência dos adeptos de um passado que se torna longínquo, que, a princípio, se manifestaria no campo literário e das idéias, mas também seria possível que se erguesse fontes de expressão social que poderiam comprometer qualquer expectativa de transformação profunda.

Uma dessas formas, segundo o autor, seria o típico caudilhismo sul-americano, como uma expressão do personalismo e arbítrio, embora considerasse que existissem condições no Brasil para a convergência para a democracia, a saber: uma relativa ausência de preconceito de raça e de cor; o advento da contemporaneidade na vida brasileira e o repúdio à hierarquia.

Mas Sérgio Buarque sustenta também que é provável que se erga a resistência dos adeptos de um passado que vai se tornando cada vez mais longínquo, não sendo impossível que se criem formas de expressão social que sejam capazes de restringir e comprometer as esperanças de qualquer tipo de transformação profunda.

Tendo como fundamentos Raízes do Brasil, de Sérgio Buarque de Holanda (1995), e Duas Meninas (1997), de Roberto Schwarz, Mônica Amaral, na apresentação do Projeto de pesquisa piloto para se pensar sobre as políticas de atenção à saúde mental do adolescente, delineia os fundamentos autoritários e excludentes que estão por trás do chamado projeto de modernidade brasileiro, formulado aliás sob a "compatibilidade das aparências modernas com a permanência do substrato bárbaro", conforme salientado por Schwarz (1997). Segundo a autora, "o conhecido traço cordial do homem brasileiro, no qual se encontra presente a influência ancestral dos meios rural e patriarcal, ao invés de envolver um padrão de civilidade, demonstra, ao contrário, alto poder coercitivo, abrindo caminho para a adesão irrefletida a idéias e projetos que lhes são impostos heteronomamente" (2004).

Segundo a pesquisadora, o surgimento de um verdadeiro Estado de exceção no Brasil, no caso a ditadura militar de 1964, foi o resultado da combinação dos traços autoritários do Estado brasileiro com a cultura de relações pessoais que invadem o espaço público, traço herdado desde a época da escravidão. Esta relação continua exercendo influências e trazendo conseqüências não apenas ao conjunto da sociedade, mas também individualmente, repercutindo na vida íntima do brasileiro.

O delineamento dos processos constitutivos da sociedade brasileira e os traços autoritários e excludentes que estão no seu âmago nos interessa neste espaço de reflexão principalmente no que se refere à sua influência na formação psicológica e social do adolescente no Brasil. Este assunto merecerá um estudo mais aprofundado na fase final do projeto.

b) Reflexões a respeito das raízes brasileiras

Um modo de ser "malandro"

É oportuno na seqüência do estudo abordarmos o romance Memórias de um Sargento de Milícias, de Manuel Antônio de Almeida, juntamente com o ensaio de Antonio Candido, Dialética da Malandragem, a respeito do romance. O ensaio, escrito em 1970, é visto como antológico pela crítica literária brasileira e considerado por Roberto Schwarz o "primeiro estudo literário propriamente dialético" (Schwarz, 1987, pág. 129) no Brasil e que não alardeia métodos ou terminologias em sua interpretação.

Escrito entre 1852 e 1853, o romance Memórias de um Sargento de Milícias narra as desventuras de Leonardo, filho de Leonardo Pataca e Maria das Hortaliças, no "tempo do rei" - isto é, no reinado de D. João VI, portanto anterior ao período da Independência. Figura tipicamente "malandra", vemos o personagem em sua vivência atribulada na Rio de Janeiro do século XVII, capital de uma colônia que está em busca de afirmação e construção de identidade. O personagem sobrevive de sua própria esperteza e do acaso, entre idas e vindas de um pólo de ordem - bem delineado pelo Major Vidigal, representante da Lei e das vontades do Rei – e um pólo da desordem - representado por toda uma gama de tipos humanos que transitam em um cenário desprovido de disciplina social.

No livro, encontramos duas linhas de narrativa que se inter-relacionam no livro. A primeira linha, mais ampla, apresenta arquétipos de cunho popular, de grande amplitude cultural, como, no caso, os chamados "malandros", que, segundo Candido, possuem uma linhagem na literatura brasileira, que é personificada em Gregório de Matos e que irá desembocar no modernismo, na figura de Macunaíma; a segunda linha, mais restrita, reflete um ritmo social que conduz a uma representação de uma sociedade real e historicamente delimitada, formada por uma chamada dialética de ordem e desordem, que representa claramente as relações humanas presentes no livro e que forma o sustentáculo do livro.

Falando de relações humanas, percebe-se, no livro, a ausência de duas classes sociais – a de uma elite detentora de privilégios, poderes e recursos, dominante em relação a outras classes; e a de uma classe de escravos, explorada de uma forma violenta e autoritária. Uma vez notada esta ausência, verifica-se então que as relações humanas do romance se concentram em uma sociedade específica da época, que é a classe dos homens livres. Sociedade esta que não possui o poder e os privilégios de uma elite dominante, mas também não possui o recurso do trabalho, que está, por sua vez, destinado aos escravos. Vivendo entre dois pólos sociais, a possibilidade de sobrevivência desta classe intermediária fica comprometida ao favorecimento de uma classe mais privilegiada, à sorte e a uma diversa série de subterfúgios. Tal dependência fica explícita na figura do agregado, um evidente tipo social parasitário da época, e que é retratado com muita acuidade em Dom Casmurro, de Machado de Assis.

A sociedade que aparece nas Memórias de um Sargento de Milícias é, segundo Antonio Candido, sugestiva porque "manifesta num plano mais fundo e eficiente o referido jogo dialético da ordem e da desordem, funcionando como correlativo ao que se manifestava na sociedade daquele tempo. Ordem dificilmente imposta e mantida, cercada de todos os lados por uma desordem vivaz, que antepunha mil mancebias a cada casamento e mil uniões fortuitas a cada mancebia. Sociedade na qual uns poucos livres trabalhavam e os outros flauteavam ao Deus dará, colhendo as sobras do parasitismo, dos expedientes, das munificências, da sorte ou do roubo miúdo" (Candido, 1978, 335-336). Antonio Candido aqui apresenta o importante conceito da formalização ou redução estrutural dos dados externos, isto é, conhecer qual a "função exercida pela realidade social historicamente localizada para constituir a estrutura da obra".

Sendo assim, Candido faz um paralelo entre a sociedade americana e a brasileira – de acordo com o crítico, houve na formação histórica dos Estados Unidos a presença de uma lei religiosa e civil que modelou a sociedade de um modo que o comportamento social era delimitado pela "força punitiva do castigo externo e do sentimento interno do pecado". Desse modo, sob a alegação de uma fraternidade aparente, buscava-se formar um grupo social homogêneo – "idealmente mono-racial e mono-religioso" (Candido, 1978, pág. 340). Cabe ressaltar que esse ideal tem ressaltado de maneira profunda nos tempos atuais, o que demonstra a atualidade do ensaio.

Por outro lado, segundo Candido, no Brasil, nunca houve uma obsessão pela ordem – e também pela liberdade, diga-se de passagem - a não ser por um ideal abstrato. A espontaneidade da criação das relações sociais trouxe um sopro de abrandamento, fazendo com que os choques de norma e conduta e os conflitos de consciência fossem menos intensificados. Uma vez que não havia a tão decantada necessidade de se criar um grupo homogêneo, o país se manteve aberto em geral a penetração de outros grupos, permitindo assim uma sociedade mais plural tanto racial como religiosa.

Em busca da sobrevivência em meio a condições tão adversas, a dificuldade desse grupo de aderir a uma ordem institucional acaba por se constituir na característica social do brasileiro. "Na limpidez transparente do seu universo sem culpa, entrevemos o contorno de uma terra sem males definitivos ou irremediáveis, regida por uma encantadora neutralidade moral. Lá não se trabalha, não se passa necessidade, tudo se remedeia. Na sociedade parasitária e indolente, que era a dos homens livres do Brasil de então, haveria muito disto, graças à brutalidade do trabalho escravo, que o autor elide junto com outras formas de violência" (Candido, 1978, pág. 342).

No ensaio a respeito de Dialética da Malandragem, Roberto Schwarz aproxima o ensaio de Candido aos clássicos de Sérgio Buarque de Holanda e Gilberto Freyre dos anos 30. Schwarz vê, com base no ensaio, a transformação de um modo de ser de uma classe social e específica em um modo de ser nacional – nesse caso, não uma classe dominante, mas uma classe oprimida. Isto é, a conversão da chamada dialética de ordem e desordem em uma classe popular "Assim, a matriz de alguns dos melhores aspectos da sociedade brasileira estaria na sociabilidade desenvolvida pelos homens pobres, à qual o futuro talvez reserve uma oportunidade" (Schwarz, 1987, pág. 150).

Como bem lembra Schwarz, o ensaio foi publicado em 1970 e então escrito provavelmente entre 1964 e o AI-5. "Neste caso, a reivindicação da dialética da malandragem contra o espírito do capitalismo talvez seja uma resposta à brutal modernização que estava em curso. Entretanto, a repressão desencadeada a partir de 1969 – com seus interesses clandestinos em faixa própria, sem definição de responsabilidades, e sempre a bem daquela mesma modernização – não participava ela também da dialética de ordem e desordem? É talvez um argumento indicando que só no plano dos traços culturais malandragem e capitalismo se opõem..." (Schwarz, 1987, pág. 154).

A comédia ideológica brasileira

Foi seguindo os caminhos iniciados e trilhados por Antonio Candido que Roberto Schwarz irá analisar a obra de Machado de Assis, cujas conclusões estão presentes em seus livros Ao vencedor as batatas (1977), Um mestre na periferia do capitalismo (1990) e Duas meninas (1997), além de diversos artigos. São nessas obras que o conceito estabelecido por Antonio Candido de redução estrutural dos dados externos, isto é, a correspondência entre o processo social e forma literária, apresenta ressonâncias.

Isso é confirmado com a indicação do autor a respeito da gênese de suas obras de análise literária no prefácio de seu livro Um mestre na periferia do capitalismo, como podemos ver a seguir: "[...] a possível correspondência entre o estilo machadiano e as particularidades da sociedade brasileira, escravista e burguesa ao mesmo tempo, me ocorreu pouco antes de 1964. A idéia traz as preocupações estilísticas daquele período, às quais se acrescentou o contravapor do período seguinte. No que diz respeito à interpretação social, o raciocínio depende de argumentos desenvolvidos na Universidade de São Paulo pela geração de meus professores, em especial um grupo que se reunia para estudar O Capital com vista à compreensão do Brasil. O grupo chegara à audaciosa conclusão de que as marcas clássicas do atraso brasileiro não deviam ser consideradas como arcaísmo residual, e sim como parte integrante da reprodução da sociedade moderna, ou seja, como indicativo de uma forma perversa de progresso. [...] Devo uma nota especial a Antonio Candido, de cujos livros e ponto de vista me impregnei muito, o que as notas de pé-de-página não têm como refletir. Meu trabalho seria impensável igualmente sem tradição – contraditória – formada por Lukács, Benjamin, Brecht e Adorno, e sem a inspiração de Marx" (Schwarz, 2000, pp. 12-13).

Os grandes estudos de Schwarz a respeito da obra de Machado de Assis se iniciam com o livro Ao vencedor as batatas. Nele, o crítico faz uma reflexão bastante lúcida a respeito da disparidade de idéias encontrada entre as doutrinas vindouras do liberalismo europeu - na época, a vanguarda mundial do pensamento filosófico, social e econômico - e o retrógrado sistema escravista brasileiro. Para um contexto histórico mais claro, cabe recorrer ao texto de Schwarz: "[...] éramos um país agrário e independente, dividido em latifúndios, cuja produção dependia do trabalho escravo por um lado, e por outro do mercado externo. [...] Era inevitável, por exemplo, a presença entre nós do raciocínio econômico burguês – a prioridade do lucro, com seus corolários sociais – uma vez que dominava no comércio internacional, para onde a nossa economia era voltada. [...] Além do que, havíamos feito a Independência há pouco, em nome de idéias francesas, inglesas e americanas, variadamente liberais, que assim faziam parte de nossa identidade nacional. Por outro lado, com igual fatalidade, este conjunto ideológico iria chocar-se contra a escravidão e seus defensores, e o que é mais, viver com eles" (Schwarz, 2000, pág. 13).

A grande questão colocada é como se deu a importação do ideal burguês de auto-suficiência do homem e de valores universais como liberdade e igualdade, além do ideário econômico liberal, que se fundamenta na mais-valia, em uma sociedade como a brasileira, que tinha no trabalho escravo o seu fundamento econômico. Se por um lado as idéias liberais seriam aqui impraticáveis, nem por isso seriam indescartáveis. Desse modo, uma certa forma de falsidade ideológica estava montada, na qual tais idéias eram apresentadas como um ornamento intelectual e com certo orgulho, como uma tentativa de mostrar o país como moderno e distinto, mas que não eram nada condizentes com a realidade social brasileira. Essas idéias, segundo Schwarz, eram "submetidas à influência do lugar, sem perderem as pretensões de origem, gravitavam segundo uma regra nova, cujas graças, desgraças, ambigüidades e ilusões eram também singulares. Conhecer o Brasil era saber destes deslocamentos, vividos e praticados por todos como uma espécie de fatalidade, para os quais, entretanto, não havia nome, pois a utilização imprópria dos nomes era a sua natureza. Largamente sentido como defeito, bem conhecido mas pouco pensado, este sistema de impropriedades decerto rebaixava o cotidiano da vida ideológica e diminuía as chances de reflexão. Contudo facilitava o ceticismo em face das ideologias, por vezes bem completo e descansado, e compatível aliás com muito verbalismo" (Schwarz, 2000, pág. 26).

Desse modo, a "comédia" ideológica nacional estava instaurada. Como diz Schwarz, "[...] está-se vendo que para a vida intelectual o nó estava armado. Em matéria de racionalidade, os papéis se embaralhavam e trocavam normalmente: a ciência era fantasia e moral, o obscurantismo era realismo e responsabilidade, a técnica não era prática, o altruísmo implantava a mais-valia etc. E, de maneira geral, na ausência do interesse organizado da escravaria, o confronto entre humanidade e inumanidade, por justo que fosse, acabava encontrando uma tradução mais rasteira no conflito entre dois modos de empregar os capitais – do qual era a imagem que convinha a uma das partes". (Schwarz, 2000, pág. 15).

Apoiado neste arcabouço teórico, ele analisa como os intelectuais da época, em especial os escritores, buscavam resolver em suas obras a grande contradição cultural e social existente na sociedade. Aqui ele se concentra em dois escritores específicos: José de Alencar e Machado de Assis, este na fase inicial de suas obras.

Segundo a concepção aguda do crítico, o romance já existia no Brasil antes dos romancistas brasileiros. Logicamente que os modelos de construção do romance europeu seriam importados por alguns de nossos escritores brasileiros, a prejuízo ou não da qualidade de suas obras. Um exemplo claro desta importação é José de Alencar, que transplanta o modelo de romance europeu, em especial o ideário romântico, para a realidade brasileira. O resultado é amplo e diverso. No geral, o que vemos é a sensação, independente da qualidade da obra, de que a transposição do modelo traz algo de canhestro e contraditório e a falta de sintonia com a realidade traz um certo grau de incômodo ao leitor.

Já em relação a Machado de Assis, Schwarz se concentra em suas obras iniciais, composta por Helena, A mão e a luva, Iaiá Garcia e Ressurreição. Segundo uma entrevista dada pelo crítico a Augusto Massi, o tema básico nos primeiros romances de Machado é a conduta arbitrária e paternalista dos membros da elite escravocrata, proprietários de latifúndios e posses, e o prejuízo que causa aos demais membros da sociedade, especialmente aos da classe de homens livres, que vivem sob a égide de uma incômoda dependência e sob os caprichos da classe de proprietários. Livros que incomodam pelo viés conformista, no qual "[...] Machado se filiava à estreiteza apologética da Reação européia, de fundo católico, e insistia na santidade das famílias e a dignidade da pessoa (por oposição ao seu direito)" (Schwarz, 2000, pág. 83). "O que esses livros estão dizendo é que se a gente de posse tratasse os pobres de modo menos bárbaro seria melhor para todo mundo, inclusive para os ricos, já que teríamos uma sociedade mais civilizada" (Schwarz, 1983, pág. 223).

A intermediação de todas essas relações sociais se dá pelo "favor". Segundo Schwarz, "[...] o favor atravessou e afetou no conjunto a existência nacional, ressalvada sempre a relação produtiva de base, esta assegurada pela força. Esteve sempre presente por toda parte, combinando-se às mais variadas atividades, mais ou menos afins dele, como administração, política, indústria, comércio, vida urbana. Corte etc. Mesmo profissões liberais, como a medicina, ou qualificações operárias, como a tipografia, que, na acepção européia, não deviam nada a ninguém, entre nós eram governadas por ele. E assim como o profissional, o pequeno proprietário depende dele para a segurança de sua propriedade, e o funcionário para o seu posto. O favor é a nossa mediação quase universal – e sendo mais simpático do que o nexo escravista, a outra relação que a colônia nos legara, é compreensível que os escritores tenham baseado nele a sua interpretação do Brasil, involuntariamente disfarçando a violência, que sempre reinou na esfera da produção". (Schwarz, 2000, pág. 17). A dinâmica do favor na sociedade brasileira, como vimos anteriormente, já havia sido retratada com acuidade e uma certa graça em Memórias de um Sargento de Milícias, como bem observou Antonio Candido, e se torna também um tema recorrente em Machado de Assis.

O que vemos posteriormente é o abandono gradual de Machado de Assis de sua posição conformista e alinhada aos ideais liberais, uma vez que observara que tal postura ideológica das elites não conduziria o país a uma emancipação política e social. Esse rompimento irá levar também a uma ruptura no andamento de suas obras. Como bem observa Schwarz, "Também nos romances da primeira fase de Machado de Assis há uma nota edificante que incomoda. Ela se deve ao propósito, conformista no essencial, de civilizar e tornar menos arbitrário o paternalismo de nossos proprietários. Devidamente esclarecidos, estes saberiam se reformar, quando então tratariam os seus dependentes com dignidade e segundo o mérito, corrigindo o sistema de condutas iníquas que acompanhava a escravidão e a autoridade incontrastada. Em 1880, ao publicar as Memórias Póstumas de Brás Cubas, a sua primeira obra-prima, Machado manifestamente deixara de acreditar nessa possibilidade crucial. Convencera-se de que a elite brasileira não ia assumir a responsabilidade histórica de consertar o estrago herdado. Pelo contrário, os ricos aproveitavam-se deste na medida do possível, e quanto ao mais, atrelavam-se ao padrão de consumo dos países adiantados, desentendendo o resto, ou ainda, fixando a feição moderna do desconjuntamento colonial" (Schwarz, 2000, pág. 143).

Uma reviravolta literária

Como já pudemos ver, a grande ruptura na obra de Machado de Assis - seja de temática (ou de uma nova abordagem da temática) ou de qualidade – ocorre com Memórias Póstumas de Brás Cubas. É nesta obra que Roberto Schwarz irá se concentrar em seu livro Um mestre na periferia do capitalismo. De acordo com a tese do crítico, Machado, abandonando o tom edificante e conformista dos primeiros livros, assume desta vez o ponto de vista do "inimigo", colocando como narrador um membro da elite escravocrata. Desse modo, vemos, em primeira pessoa, a mentalidade e os procedimentos arbitrários e irresponsáveis de um tipo social que representa a classe dirigente do país. Assim, o que era antes assunto se transforma na própria forma literária e o desmando, anteriormente apenas um momento raro e negativo, torna-se agora algo rotineiro, como se fizesse parte total da vida.

Como início de discussão, considerei válido trazer os primeiros capítulos de Memórias Póstumas de Brás Cubas, de autoria de Machado de Assis.

"Ao Leitor

Que Stendhal confessasse haver escrito um de seus livros para cem leitores, coisa é que admira e consterna. O que não admira, nem provavelmente consternará é se este outro livro não tiver os cem leitores de Stendhal, nem cinqüenta, nem vinte, e quando muito, dez. Dez? Talvez cinco. Trata-se, na verdade, de uma obra difusa, na qual eu, Brás Cubas, se adotei a forma livre de um Sterne, ou de um Xavier de Maistre, não sei se lhe meti algumas rabugens de pessimismo. Pode ser. Obra de finado. Escrevi-a com a pena da galhofa e a tinta da melancolia, e não é difícil antever o que poderá sair desse conúbio. Acresce que a gente grave achará no livro umas aparências de puro romance, ao passo que a gente frívola não achará nele o seu romance usual; ei-lo aí fica privado da estima dos graves e do amor dos frívolos, que são as duas colunas máximas da opinião.
Mas eu ainda espero angariar as simpatias da opinião, e o primeiro remédio é fugir a um prólogo explícito e longo. O melhor prólogo é o que contém menos coisas, ou o que as diz de um jeito obscuro e truncado. Conseguintemente, evito contar o processo extraordinário que empreguei na composição destas Memórias, trabalhadas cá no outro mundo. Seria curioso, mas nimiamente extenso, e aliás desnecessário ao entendimento da obra. A obra em si mesma é tudo: se te agradar, fino leitor, pago-me da tarefa; se te não agradar, pago-te com um piparote, e adeus.

Brás Cubas", (Assis, 1998, pág. 67)

Nas páginas iniciais do romance já vemos de antemão a caracterização do narrador. Brás Cubas é um proprietário de uma considerável fortuna, um homem ilustrado (indicado pelas referências literárias que apresenta), um escritor que possui pleno domínio do andamento da sua narrativa, uma vez que faz com que o leitor se mova de acordo com a sua vontade. Apenas um detalhe – o narrador está morto e escreve as suas lembranças do outro lado da vida, definindo-se como um "defunto autor" e denominando seu livro como memórias póstumas.

O que esperar de um morto? Provavelmente que seu juízo diante dos fatos fosse imparcial, uma vez que, no além-túmulo, não deve satisfações a ninguém. Aparentemente isso parece ser uma realidade para Brás Cubas, como ele explicita no seu prefácio Ao leitor ao dizer que se contentava com apenas cinco leitores e que não esperava nem agradar aos frívolos e aos graves. Mas o que podemos falar do fato dele comparar a sua obra com o Pentateuco, de Moisés, em termos de originalidade? Isso mostra que o narrador não deixará pedra sobre pedra, e de que está disposto a utilizar de tudo a seu alcance para benefício próprio, inclusive do que é sagrado. O que dizer também do fato dele se lamentar de que havia apenas onze pessoas (dez pessoas?) em seu enterro e do fato de não admitir que morreu de uma simples pneumonia, mas sim de uma "idéia grandiosa e útil"?

Fica demonstrado então que o narrador não é exatamente digno de confiança e que muda de um parágrafo para outro, mudanças que se repetem por toda a narrativa, realizadas por mero capricho e arbítrio do narrador, e que acabam por imprimir um ritmo próprio ao romance e a configurar uma forma literária. A isso, Schwarz, baseando-se em Augusto Meyer, chamaria de "volubilidade do narrador". Nas conclusões do crítico, pode-se supor que na denominada volubilidade, o que temos é um mecanismo narrativo em que está implícita uma problemática nacional. Segundo Schwarz. "[...] temos agora um proprietário brasileiro freqüentando em primeira mão o universo inteiro, no caso Portugal e Itália, e barbarizando a filosofia, a ciência, a política, a poesia etc. segundo as conveniências de seu interesse de liberal escravista e clientelista. Tratava-se da desprovincialização, da universalização em sentido literal da conduta de nossa elite, que passeava pela civilização contemporânea a marca registrada de seu procedimento ideológico, com efeito naturalmente deplorável" (Schwarz, 1983, pág. 223). A tese defendida é a de que a volubilidade do narrador configura a "redução estrutural" – conceito demonstrado por Antonio Candido em seus estudos – de um movimento cuja circunstância histórica impunha à camada dominante brasileira.

Cabe fazer um recorte histórico. Devemos lembrar que a emancipação política do Brasil com a Independência, embora integrasse o país à nova ordem liberal, tinha um caráter eminentemente conservador. Caíam por terra as justificações que balizavam o colonialismo e o Absolutismo, dando lugar a todo um cabedal de idéias ilustradas provenientes da Europa, como o ideal do estado nacional, do trabalho livre, da igualdade perante a lei – e o que antes era considerado positivo se tornava agora retrógrado e símbolo de atraso. Embora a Independência trouxesse alterações nas práticas políticas governamentais e alterasse o panorama da redefinisse as relações estrangeiras, elas não chegaram ao complexo sócio-econômico gerado pela produção colonial, isto é, mantinha intacta toda a estrutura escravista – com as relações de senhor-escravo e seus dependentes, juntamente com o sistema econômico formado pelos latifúndios, a monocultura de exportação e o tráfico negreiro. No Brasil, a ligação com a vanguarda do pensamento europeu não apenas não mudou as formas arcaicas de produção, como também praticamente as confirmou e as promoveu, e uma formação sui generis de progresso se formou. Desse modo, "[...] a mão-de-obra culturalmente segregada e sem acesso às liberdades do tempo deixava portanto de ser uma sobrevivência passageira, para fazer parte estrutural do país livre, o mesmo título que o parlamento, a constituição, o patriotismo revolucionário etc., igualmente indispensáveis. Seria, do ângulo prático, uma necessidade contemporânea; do ângulo afetivo, uma presença tradicional, e do ângulo ideológico, uma abjeção arcaica – atributos contraditórios mas verdadeiros à luz da experiência histórica da camada dominante" (Schwarz, 1990, pp. 37-38).

Fica evidente a ambivalência ideológica das elites brasileiras, que desejam participar da face burguesa, ilustrada e progressista do Ocidente, mas que eram beneficiadas pelos privilégios provindos do sistema escravista, considerado já mundialmente como algo bárbaro e ilícito. Norma e transgressão se revezavam na mente ideológica das camadas dominantes, obrigando-as a se utilizar de diversas acrobacias para justificar o tal estado das coisas.

Nem as mais altas idéias filosóficas escapariam ilesas desse estado de pensamento brasileiro. O Humanitismo, a célebre filosofia de Quincas Borba, é uma sátira da profusão de idéias oitocentistas que chegaram ao Brasil, cuja matriz aparenta ser as idéias de Augusto Comte. Os pormenores do Humanitismo são explicados pelo próprio Quincas Borba, no trecho a seguir.

"- Para entender bem o meu sistema, concluiu ele, importa não esquecer nunca o princípio universal, repartido e resumido em cada homem. Olha: a guerra, que parece uma calamidade, é uma operação conveniente, como se disséssemos o estalar dos dedos de Humanitas; a fome (e ele chupava filosoficamente a asa do frango), a fome é uma prova a que Humanitas submete a própria víscera. Mas eu não quero outro documento da sublimidade do meu sistema, senão este mesmo frango. Nutriu-se de milho, que foi plantado por um africano, suponhamos, importado de Angola. Nasceu esse africano, cresceu, foi vendido; um navio o trouxe, um navio construído de madeira cortada no mato por dez ou doze homens, levado por velas, que oito ou dez homens teceram, sem contar a cordoalha e outras partes do aparelho náutico. Assim, este frango, que eu almocei agora mesmo, é o resultado de uma multidão de esforços e lutas, executados com o único fim de dar mate ao meu apetite." (Assis, 1998, pág. 218-219).

Apesar de aparentar ser um compêndio de princípios filosóficos em ressonância com as idéias positivas e possuir todo um linguajar ilustrado, percebe-se que o "Humanitismo" nada mais é do que uma apologia a uma sociedade hierarquizada, mantenedora dos privilégios de uma determinada casta social, o que vai contra todas as teses propagadas pelas idéias filosóficas da época - como a "sobrevivência do mais forte". Machado de Assis, com sua grande sensibilidade histórica e estética, faz, com a filosofia de Quincas Borba, mais um retrato de como as idéias, por mais elevadas que fossem, eram distorcidas e utilizadas basicamente para justificar o "estado das coisas" do período imperial.

2) O modelo neo-individualista vigente atualmente na sociedade e a sua influência no adolescente

Nesta segunda parte da fundamentação teórica, exploraremos inicialmente as teorias filosóficas de Walter Benjamin, explanada em seus ensaios "O narrador" (1969) e "Experiência e pobreza" (1933), e Theodor Adorno, no ensaio "A posição do narrador no romance contemporâneo" (1980). Em linhas gerais, o assunto explorado por estes filósofos é o declínio da figura do narrador - "o do contador de histórias" - e da narração no mundo contemporâneo. Em conseqüência deste declínio, vemos, na modernidade, o empobrecimento e desvalorização gradativa da experiência e, conseqüentemente, do valor da tradição. Desse modo, as gerações vão perdendo continuamente seus referenciais e o conhecimento do passado. Prosseguindo em seu raciocínio, Walter Benjamin demonstra também a degradação do espaço público, isto é, os locais que propiciavam a sociabilização das pessoas. O amplo e gradativo solapamento deste espaço têm contribuído também para este cenário de desvalorização da troca de experiências entre os indivíduos.

Estas tendências repercutem de forma imensurável no indivíduo contemporâneo, principalmente nos jovens, que se ressentem da ausência de raízes nas quais pudessem se basear e seguir sua própria trajetória, buscam, inconscientemente e a seu próprio modo, retomá-las em suas próprias vidas.

Aliado às tendências contemporâneas explicitadas por Walter Benjamin e Theodor Adorno, está o desenvolvimento do chamado "capitalismo flexível", segundo definição de Richard Sennet em seu livro Corrosão do Caráter (2001), no ambiente profissional e a influência que ele tem no indivíduo e na sociedade. De acordo com Sennet, o capitalismo de curto prazo corrói o caráter do indivíduo, "sobretudo aquelas qualidades de caráter que ligam os seres humanos uns aos outros, e dão a cada um deles um senso de identidade sustentável" (Sennet, 2001, pág. 27). Isto é, as exigências de flexibilidade na área profissional e a transitoriedade nas relações de trabalho estariam minando valores tradicionais e essenciais na formação do caráter humano, como o compromisso, a confiança e a lealdade.

É sintomática esta tendência na situação das famílias brasileiras, que vêm sendo acometidas pelo desemprego, pela queda qualificativa das relações pessoais e pelo declínio das expectativas e planos de longo prazo. Estes fatores, além de se reproduzirem socialmente - com a conseqüente transitoriedade do relacionamento com amigos e membros da comunidade - influenciam profundamente a formação dos jovens, uma vez que estes não vêem no comportamento dos pais os valores tradicionais que eles tanto apregoam. tão apregoados por eles.

Este recorrente senso de desenraizamento é ampliado pelo mal-estar característico da contemporaneidade, como foi descrito por Sigmund Freud, em seu livro O Mal-Estar na Civilização (1974). Segundo Freud, este sentimento de mal-estar, na época em que o livro foi escrito, era concentrado na dualidade segurança-liberdade, o que significava que o desejo de maior segurança nos relacionamentos implicava em menos liberdade individual, e na busca dos ideais de beleza, pureza e ordem.

Segundo o sociólogo Zigmunt Bauman, no livro O mal-estar da pós-modernidade (1998), na chamada pós-modernidade, a dualidade apresentada por Freud se inverte em mais liberdade e menos segurança. De acordo com o sociólogo, "os mal-estares da pós-modernidade provêm de uma espécie de liberdade de procura do prazer que tolera uma segurança individual pequena demais" (Bauman, 1998, pág. 10). Isto é, na chamada pós-modernidade, uma vez que a liberdade individual se tornou um bem intensamente valioso, a moeda de troca se transformou na perda da segurança. Além disso, a busca da liberdade é agora pautada pelos ideais da beleza, pureza e ordem. Segundo Bauman, a liberdade é o valor pelo qual "todos os outros valores vieram a ser avaliados e a referência pela qual a sabedoria acerca de todas as normas e resoluções supraindividuais devem ser medidas" (Bauman, 1998, pág. 11). Isso quer dizer que os ideais de beleza, pureza e ordem - tão caracteristicamente modernos - devem ser perseguidos agora através da espontaneidade, do desejo e do esforço individuais, o que explica porque estes valores sejam tão perseguidos pela juventude atual.

Em seu livro A Era do Vazio (1983), o filósofo contemporâneo Gilles Lipovetsky define o título do livro como uma época no qual a exacerbação da própria individualidade tem se tornado uma regra na sociedade contemporânea. Segundo Lipovetsky, "só na aparência os indivíduos se tornam mais sociáveis e cooperantes: por trás da fachada de hedonismo e de solicitude, cada indivíduo explora cinicamente os sentimentos dos outros e procura o seu próprio interesse (...). Curiosa acepção a deste narcisismo, apresentado como estrutura psíquica inédita e que, de facto, se vê repescado pelas redes de 'amor próprio' e do desejo de reconhecimento já identificados por Hobbes, Rousseau e Hegel como responsáveis pelo estado de guerra" (Lipovetsky, 2001, pág. 65). Esta nova atitude psíquica, o narcisismo, tão característico da modernidade, tem provocado na sociedade a criação de grupos de interesses miniaturizados, o que resulta em uma maior e contínua fragmentação social, além de gerar o declínio do dever por parte dos indivíduos. Segundo o filósofo, em seu livro O crepúsculo do dever, "quando se extingue a religião do dever, não assistimos ao declínio generalizado de todas as virtudes, mas sim à justaposição de um processo desorganizador e de um processo de reorganização ética que se estabelece a partir das próprias normas individualistas: é necessário pensar a era pós-moralista como um 'caos organizador' " (Lipovetsky, 1994).

Como poderíamos definir uma sociedade marcada pelo citado "caos organizador?" De acordo com Lipovetsky, "entenda-se uma sociedade que repudia a retórica do dever austero, integral, maniqueísta, e que, paralelamente, exalta os direitos à autonomia, ao desejo, à felicidade. Sociedade deslastrada, no seu âmago, das exortações minimalistas, dando crédito apenas às normas indolores da vida ética" (Lipovetsky, 1994, pág. 17).

São essas tendências tão desestabilizadoras e contraditórias que vem acometendo os jovens na contemporaneidade. Em um país com diversos problemas sócio-econômicos como o Brasil, estas tendências se aprofundam e repercutem por toda as faixas sociais - em especial, os jovens das classes mais desfavorecidas. Segundo H. Pellegrino, em seu texto Pacto edípico e pacto social (1983), uma vez que são negadas aos jovens oportunidades de se inserir na sociedade, além da ausência de tradição e de um passado ao qual eles pudessem se ancorar, ocorre então, de acordo com o psicanalista, o rompimento do pacto social. Sofrendo tamanho revés, os jovens não têm razão de manter o denominado pacto, uma vez que lhe é negada a sua parte do acordo, gerando então neles ódio e reação contra o próprio meio social no qual estão inseridos. O surto de delinqüência que surge atualmente é uma resposta à outra delinqüência - a do capitalismo selvagem vigente atualmente.

A pouca aderência dos jovens aos compromissos, na realidade, é apenas um reflexo da própria sociedade, que vem abolindo gradativamente a idéia do dever. Se é uma tendência dos indivíduos exaltar sua própria autonomia e individualidade e seu desapego ao dever, logicamente que ela irá se estender ao próprio jovem.

É essa nova figura histórica, o jovem, que está ocupando as salas das escolas, com sua natureza contraditória e conflitante, e que vem carregando consigo toda uma extensa problemática. É diante desse novo elemento histórico que os educadores têm se defrontado e que tem apresentado desafios que estão ainda longe de serem confrontados com eficácia.

Segundo Julio Aquino, em seu artigo A desordem na relação professor-aluno - indisciplina, moralidade e conhecimento (1996), uma vez que atual problemática e um novo ser histórico adentraram no ambiente da escola, esta própria ainda não se conscientizou deste fato e vem tateando na busca de soluções e caminhos para lidar com esse novo fato. Para Aquino, o caminho a ser trilhado se inicia na pessoa do próprio professor e na sua relação com o aluno. Em seu ensaio A crise na educação (1954), a filósofa Hannah Arendt diz ser necessário reconhecer a grande responsabilidade que o adulto tem na educação das crianças e adolescentes e que cada professor deve ter consciência disso. Podemos concluir desse modo que, na visão da jovem, o aprendizado está intimamente relacionado com a figura do professor.

De acordo com o pesquisador, não podemos esquecer que o centro da ação educativa e da própria escola está baseado na relação professor/aluno e que cabe ao professor reconstruir então um determinado campo conceitual e apresentar novos olhares sobre a transmissão do conhecimento nas diversas áreas, sendo necessário reavaliar e reinventar continuamente os conteúdos e as metodologias. Para tanto, é necessário que o professor assuma uma nova postura tanto diante do aluno como do próprio conteúdo a ser ensinado - deve haver um dinamismo tanto na sua atuação como educador como também na sua atuação como mediador do conhecimento.

A escola, que era um espaço para a criação de relacionamentos, também tem se transformado, refletindo em seu meio o que vem ocorrendo na própria sociedade. Segundo Júlio Aquino, a escola também não é uma instituição autônoma ou independente em relação ao contexto sócio-histórico. Isso não quer dizer que a escola seja simplesmente um espelho da situação histórica e social, mas fruto do entrelaçamento e interpenetração de âmbitos entre as diferentes instituições.

Prosseguindo nos estudos de Aquino, em especial em seu livro Confrontos na sala de aula (1996), diante de tal complexa situação, os professores passaram a adotar uma conduta moralizante sobre o aluno e a escola passou a agir com um objetivo normatizador, disciplinador e moralizador. As conseqüências disso são o desperdício de força de trabalho qualificada do educador para cumprir sua função primordial; o desvio da função do professor e a chamada quebra do contrato pedagógico, que gera dificuldades no cumprimento da proposta de trabalho educacional. Isso tem gerado uma quebra de paradigmas que tem feito perder o grande sentido social da educação.

Temos de constatar que as antigas práticas escolares se espelhavam na disciplina militar, baseada em termos de obediência e subordinação. A função em particular era modelar o aluno moralmente e na observância dos preceitos legais mais amplos. Com a crescente democratização política e desmilitarização das relações sociais, criou-se uma nova geração e um novo sujeito histórico no aluno. A estrutura autoritária ainda vigente na escola e uma didática que perdeu o sentido para o aluno e que está muito distante de sua realidade acabam contribuindo para essa desvalorização. Aliado a isso, temos ainda que as próprias tendências modernas e pós-modernas geram também a sua carga de complexidades e problemáticas que atingem a sociedade como um todo, mas especialmente ao jovem, que está passando por uma fase muito sensível em seu próprio desenvolvimento.

A indisciplina por parte do aluno acaba sendo gerada como um fruto natural de todo esse processo, muitas vezes tomando a forma de uma espécie de protesto mudo diante dessa realidade e sendo, em muitas situações, uma forma legítima de resistência para que ocorra a produção de novos significados e funções por parte da escola. Isso deve gerar uma grande reflexão a respeito do próprio ato educacional.

Partindo dessa visão, é necessário que a escola, em si, adote uma nova postura diante de tal realidade, criando condições que possibilitem uma maior abertura ao diálogo, tanto interna como externa, e investindo na própria relação professor-aluno, que é, na verdade, o eixo do cotidiano escolar. O professor deve, ao meu ver, adotar uma visão diferente a respeito de sua função e de sua didática, tornando esta muito mais voltada para a realidade pela qual o aluno está atravessando. Mais do que um transferidor de conhecimento, cabe ao professor a busca pelo entendimento profundo da realidade sócio-histórica pelo qual o mundo vem atravessando e compreender como isso tem afetado o jovem em si. Por meio disso, compreender as razões pelas quais os jovens têm apresentado determinados tipos de comportamento.

Segundo T. Adorno, em seu artigo Educação e emancipação (1995), a educação pode interferir neste processo de destruição imanente ou poderá evitá-lo. Para isso, basta definir o que é a barbárie e como ela surge. De acordo com o filósofo, se as questões como falência da cultura, a perpetuação impositiva da barbárie e o mecanismo de deslocamento forem levados à consciência das pessoas, isso pode não mudar a situação, mas sim gerar um clima que é mais favorável para a transformação do clima vigente. Isso se refere à função de esclarecimento - não à conversão de todos os homens em seres inofensivos e passivos - pois a própria passividade inofensiva constitui ela também uma forma de barbárie, uma vez que está pronta a contemplar o horror e se omitir no momento decisivo - mas sim reconhecer os mecanismos que podem levar à barbárie. Para finalizar, segundo Adorno, é a educação que pode ajudar o indivíduo e a sociedade para se prevenir contra o surgimento e desenvolvimento da barbárie.

3) Formação da identidade cultural e psicológica do adolescente no mundo contemporâneo

Delineados os princípios constitutivos da sociedade brasileira e as tendências contemporâneas, torna-se vital abordar os estudos do campo psicanalítico, voltados para a questão do adolescente, desenvolvidos por Philippe Jeammet, professor de Psiquiatria Infantil na Université Paris V e diretor de Psiquiatria do Adolescente e do Jovem Adulto do Institut Montsouris. As reflexões aqui apresentadas estão baseadas no livro Novas problemáticas da adolescência: evolução e manejo da dependência(2005), escrito por Philippe Jeammet e Maurice Corcos. Concentrei-me no estudo deste livro pelo conteúdo extenso dedicado à problemática do adolescente e que apresentava grandes ressonâncias com todo o trabalho prático desenvolvido por mim nas atividades que promovi na escola Manuel Ciridião Buarque.

Como salienta Monica Amaral, na apresentação da edição brasileira do livro, vivemos em uma era do chamado hedonismo cool, no qual a "sociedade contemporânea vê-se pautada pela irresponsabilidade individualista, ao mesmo tempo em que prevalece um verdadeiro dogmatismo ético". (Amaral, 2005, pág. 15). É visualizando tendências provenientes desse momento contemporâneo que poderemos compreender a nova "classe de jovens".

Nesse livro, Jeammet irá desenvolver a definição das "patologias do agir" – caracterizadas por diversos formas como toxicomania, alcoolismo, perturbações das condutas alimentares – que seriam tentativas desesperadas do adolescente de dar a si próprio contornos ou impor um limite corpóreo a um estilo de vida que não apresenta limites nem regras e que ainda carrega toda uma gama de contradições e arbitrariedades do ponto de vista das condutas moral e psicológica.

Segundo Monica Amaral, "o problema é que diante da impossibilidade de se construir um espaço de intimidade e de segredo, tão necessário na puberdade – em uma sociedade em que tudo se esconde é suspeito, em que a barreira entre as gerações não apenas foi transposta como produziu uma proximidade com o mundo adulto, assustadora aos olhos do jovem – está ficando cada vez mais difícil para ele construir sua autonomia e manter um intercâmbio enriquecedor com os representantes desse mundo adulto, tão atraente e tão assustador, sejam eles pais, educadores, ou mesmo médicos e terapeutas" (Amaral, 2005, pág. 16).

A grande contribuição levantada pelo livro é alertar para a necessidade de levar a sério as demandas dos adolescentes em serem apoiados ou auxiliados na construção de sua personalidade. Também alerta para a necessidade de que o meio ambiente em torno do adolescente seja transformado quando necessário para que seja possível obter uma ressonância adequada ao campo psíquico do jovem. Isso porque o meio ambiente pode dar tanto vazão à valorização de suas potencialidades como para a autodestruição do adolescente.

Existe a necessidade de uma atenção cuidadosa dos adultos para as demandas de uma juventude que busca avidamente indivíduos que se sensibilizem com suas necessidades, isso num mundo contraditório e ambivalente, em que o cuidado com o outro e a delicadeza de espírito vão perdendo espaço.

As qualidades da resposta e do vínculo do mundo adulto tornam-se então essenciais para as gerações dos jovens que virão. Em seu livro, Philippe Jeammet trata de fazer em recorte sociológico e psicopatológico sobre a emergência de uma classe de "jovens" e apresentando o contexto de seu desenvolvimento atual.

a) A adolescência sob o olhar sociológico e psicopatológico

No aspecto sociológico, Jeammet ressalta a emergência de uma "classe de jovens", os chamados teenagers, que são as crianças do "baby-boom" do pós-guerra. Juntamente com essa explosão demográfica, verifica-se também o prolongamento da adolescência uma vez que a puberdade vem se tornando cada vez mais precoce e o fato também da dificuldade de se determinar o fim da fase da adolescência. Toda uma série de fatores explicam esse prolongamento, tais como o acesso cada vez mais precoce às atividades sensoriais e os estímulos de imagens e sensações provenientes do grupo no qual o jovem está inserido. Soma-se a isso, a demora da entrada na vida profissional e do estabelecimento de laços maritais, que acabam por contribuir para a indeterminação do modo de vida futuro do adolescente. "Pois é a primeira vez na história da humanidade que, em tão grande escala, o destino de uma geração não é percebido como devendo ser no essencial uma duplicação do modo de vida da geração precedente" (Jeammet, 2005, pág. 23).

Esse prolongamento da adolescência leva, por sua vez, à dissociação entre a puberdade, que é a etapa fisiológica da maturação somática, e a adolescência, que é um fenômeno psicossocial. Nota-se simultaneamente a isso um enfraquecimento das barreiras na relação de pais e filhos. A liberdade dos costumes, a fragilidade dos limites e a diluição dos valores favorecem a criação de uma pseudo-mutualidade familiar, onde a criança entra em contato, mais do que anteriormente, com a vida privada e afetiva de seus pais, chegando até a um estado de transparência nas relações. A criança torna-se alvo de um investimento excessivo por parte dos pais, que as transformam em "pais" de seus pais (paternização das crianças), sendo que o objetivo, com isso, é o de proporcionar uma segurança afetiva aos adultos, em vista das dificuldades profissionais, amorosas e familiares que estes atravessam. Tal condição contribui para diminuir quaisquer limites de interposição ou diferenças entre as gerações, o que reforça a dependência afetiva da criança e a natureza narcísica de seu investimento. A cumplicidade que se estabelece adquire um caráter incestuoso e conduz a uma evitação de todo tipo de confronto. Soma-se a isso os aumentos das exigências de êxito individual e valores impostos pela sociedade que dificultam uma via bem delimitada de expressão de suas necessidades.

Isso em nada facilita a diferenciação geracional. A problemática do conflito pulsional – o vínculo com os adultos seguem determinados por investimentos e contra-investimentos narcísicos – que, se por um lado, ameaça a identidade do sujeito, de outro acaba sendo substituída por uma nova dinâmica nas relações que não são mais moduladas pelo viés de limites e diferenças claramente definidas.

Sendo assim, ocorre o desaparecimento progressivo de todo e qualquer tipo de rito de passagem entre dois mundos, que antigamente servia para garantir a inserção da ex-criança no mundo dos adultos. O enfraquecimento e desaparecimento das fronteiras e obstáculos que cumprirem a função de rito podem abrir novas perspectivas identificatórias para os adolescentes mas também acabam por evitar todo choque com o mundo adulto. A ausência de confronto poderia, por sua vez, conduzir à solidão e à desvalorização do jovem.

Isso se agrava pelo fato dos pais dos adolescentes serem confrontados, nessa época de desenvolvimento dos filhos, com a sua própria crise de meia-idade. Isso faz com que, para vencerem a depressão decorrente de tal crise, transfiram seus conflitos para o adolescente. Buscam no próprio filho o apoio e a auto-afirmação e a confirmação de que são bons pais, o que impede qualquer tipo de confronto e priva o adolescente de conduzir sua agressividade, muitas vezes necessária para a conquista de sua autonomia e a conquista de um mundo que seja dele.

Desse modo, o crescimento populacional de jovens e a evolução liberal da sociedade colocam em evidência a necessidade de normas educativas que ajustem as relações intergeracionais e que possam dar conta da auto-estima e da auto-imagem dos adolescentes, requisitando também novas formas de mediação para administrar a distância relacional e os conflitos de gerações.

Segundo Jeammet, se por um lado, as mudanças no trato sociológico representam novos modos de expressão de conflitos da adolescência, é difícil avaliar os efeitos que causam "sobre a natureza profunda da dinâmica da crise da adolescência" (Jeammet, 2005, pág. 26). Tais transformações, no entanto, têm evidenciado uma série de problemáticas que podem ser agregadas sob a denominação de comportamento de evidência. Embora não se possa afirmar que os adolescentes de hoje, que se encontram em dificuldades, apresentem organizações psicopatológicas diferenciadas das gerações anteriores, é bem real que as feições psicopatológicas apresentem grandes transformações. Sendo assim, é possível determinar a visão psicopatológica sobre as patologias em duas vias:

Sendo assim, os estados-limite, as patologias anaclíticas ou narcísicas, as condutas aditivas, os transtornos de um comportamento (mais relacionados às condutas suicidas e desordens de personalidade) aparecem como uma patologia da atualidade. Essas patologias apresentam em comum determinado número de características que demonstram modalidades comuns de organização e funcionamento. Isso não quer dizer que as modalidades verificadas não estivessem presentes nas gerações precedentes, mas que emergem sob expressões ativas, favorecidas pela evolução da sociedade.

Encontramos nestas duas vias a oposição e o debate entre fatores predeterminados e os fatores ambientais, entre os que se situam na continuidade com os da infância e idade adulta, e os que supõem uma especificidade da adolescência.

b) A crise da adolescência – uma visão fenomenológica

Nesse capítulo, Jeammet fará um trabalho de reflexão a respeito da importância da puberdade e da adolescência no desenvolvimento da personalidade, tratando assim de três ordens dadas:

O que é a chamada "crise" na adolescência?

A noção de crise na adolescência, segundo Jeammet, tem sido utilizada para cobrir uma grande variedade de modos de expressão das transformações da adolescência. Se por um lado, esta noção serve para evitar uma categorização psiquiátrica rápida e reducionista, ele também tem servido como justificativa para evitar uma retomada precoce da hipótese relativa a transtornos psiquiátricos.

Uma das conseqüências disso é considerar facilmente como normais condutas que são atípicas. Mas o que estudos de acompanhamento de jovens turbulentos indicam é que a evolução não aparenta ser tão favorável assim. Jeammet cita um estudo realizado por Rutter, Graham et al na ilha de Wright a respeito de situações psicológicas e psiquiátricas de 14-15 anos, fazendo depois uma comparação com dados da literatura a respeito dos adolescentes. Eles mostraram, no estudo, uma freqüência notável de um mal-estar severo dos adolescentes, que representam aproximadamente 10% do total, além dos que apresentavam um distúrbio psíquico reconhecido, representado principalmente por sentimento de abandono e autodepreciação. Desse modo, puderam concluir que a crise de adolescência não é uma ficção, mas sim uma realidade que, além de tudo, é superestimada. De acordo com Jeammet, provavelmente esse estudo, já antigo, se realizado hoje, não apresentaria resultados muito diferentes.

A questão é que essa passagem da adolescência abrange uma variedade de exigências intensas, o que induz a uma pressão no aparelho psíquico que, por seu lado, conduz a todo um trabalho de remanejamento e elaboração. Esse trabalho dependerá das modalidades de organização e do funcionamento da personalidade.

A situação da adolescência apresenta à economia psíquica do indivíduo uma dupla direção:

Verifica-se então que a adolescência é um fenômeno natural, decorrente da maturidade biológica do indivíduo, mas que carrega consigo toda uma dinâmica cultural, pois as transformações físicas também atuam sobre a distribuição das funções dentro de um grupo social, que leva o adolescente a se deparar com a sua missão essencial, que é a liquidação de ameaça de incesto.

A crise é justamente verificada por corresponder a essa exigência de mudança. A psique do adolescente, em razão de tantas demandas provenientes de tais transformações, necessita organizar a integração das novas informações que fazem com que o adolescente deixe de atuar como antes. O efeito mutativo é inevitável e age à revelia do adolescente. A crise é a tradução de um fracasso do aparelho psíquico em gerenciar esse processo de transformação, resultando, nesse sentido, em vulnerabilidade, quando não em patologia.

Sendo assim, a adolescência não é uma criação fictícia de uma determinada era, mas sim um trabalho psíquico que é inerente ao desenvolvimento de todo ser humano, com o qual todo indivíduo se defronta e para o qual toda a sociedade busca uma solução. A adolescência, como etapa universal de desenvolvimento, irá variar de época e cultura. As sociedades, por sua vez, se preocupam em enquadrar cuidadosamente tal trajetória, chegando inclusive a transformá-la em uma cerimônia ou um modelo iniciático, o que demonstra o perigo que esses períodos de mutação e flutuação podem causar à transmissão de cultura.

O papel dos ritos de iniciação

Um olhar antropológico se torna necessário para analisar os ritos de iniciação. Considerando-se que estes se situam nas fronteiras do individual, corporal, psicológico e social, eles se encarregam de organizar a articulação dessas fronteiras. Uma série de elementos constante é encontrada na prática destes ritos: a preocupação dos adultos de controlar os adolescentes, a submissão dos jovens, a violência dos povos e a importância dada ao corpo, próprio do adolescente, como a diferença de sexos e de gerações.

No esquema iniciático, confere-se determinada importância ao agir e à concretização de status pela utilização do corpo e do espaço pelo adolescente. A "passagem" do estado de criança ao de adulto vai se traduzir por uma mudança de território – não apenas uma transformação do que é familiar em estrangeiro, mas também a solicitação do corpo, que será utilizado para que o adolescente seja vitorioso em certo número de provas, carregando nele os estigmas que tais provas provocam e que demonstram que ele pertence agora a um outro status. Os ritos iniciáticos se caracterizam pela utilização de seu corpo para conferir uma imagem a uma ameaça que é sentida como inquietante justamente por permanecer imprecisa.

A função do rito seria semelhante ao do mito, que é a forma que uma determinada cultura presta contas das relações paradoxais da realidade, formadas por contradições situadas em planos diferentes. Tais tradições não são de ordem lógica e sim paradoxal, pois procedem por condensações e deslocamentos graças ao auxílio de uma história, objetos de modificações sucessivas. O mito pode ser visto então como um romance de origens, por meio do qual uma cultura se propõe a dar forma a mistérios como a diferença entre o seres e as gerações e, para cada indivíduo, a bissexualidade e a identificação.

Por que, no caso da adolescência, a necessidade do rito e não do mito? Podemos concluir que tal período corresponde a tensões e ameaças de uma intensidade e violência particular. A violência do rito corresponderia ao risco de separação do mundo da infância e do mundo da mãe que envolve uma dupla confrontação: com o mundo dos adultos e nos planos de identificação e da sexualidade.

O sofrimento aceito pelo adolescente, sofrimento proveniente por parte dos adultos, oferece o paradoxo de realizar uma submissão passiva aos adultos, mas também inconscientemente é um sinal da força do adolescente, de sua capacidade de resistência e de afirmação de sua própria existência.

Remetermo-nos aos arcaicos ritos de iniciação nos leva a verificar a importância do encontro entre adolescentes e adultos e o potencial da violência que ele carrega, mas também nos levam a considerar como ocorre a atual regulamentação do encontro entre adultos e adolescentes. A questão que se torna evidente é se os atuais movimentos de revolta e de violência hetero ou auto-agressiva por parte dos adolescentes não estão correspondendo a momentos de flutuação do mundo dos adultos, que não tem oferecido consenso e cuja liberalidade de costumes pode ser percebida como uma forma de distanciamento que nos sugerem a idéia de abandono.

Tendo percorrido o olhar antropológico, podemos então ter a visão clínica do comportamento do adolescente. Nesse caso, poder-se-ia observar, acima de tudo, a mudança provocada pelo processo de puberdade. Para isso, é possível atentar principalmente para a questão fenomenológica – o fenômeno singular de uma psique em vias de se consolidar e suas dificuldades de integrar o Eu corporal. Como essas mudanças são concretizadas? Vamos por partes.

O corpo como elemento de identidade do adolescente

O processo de adolescência está inteiramente ligado às transformações fisiológicas da puberdade. Com isso, pode-se verificar que o corpo vem em primeiro lugar na adolescência. Uma vez que ocorreram transformações em seu corpo à revelia, o adolescente se defronta com a sua própria impotência.

Sendo o lugar por excelência de expressão das transformações da puberdade, o corpo escapa ao domínio do Eu. O Eu, mesmo que acredite ser o senhor de seus pensamentos, não consegue controlar seu corpo, assistindo às transformações deste último de forma impotente. O adolescente perde a sua familiaridade com seu próprio corpo e necessitará reaprender a amar e se adaptar à imagem de si mesmo;

O corpo que, na infância servia como escudo para esconder desejos e pensamentos, torna-se na adolescência uma vitrine de sua perturbação, ao promover ruborizações e embaraços e, assim, expondo os desejos mais íntimos. Também na infância, o corpo traçava um determinado limite entre a criança e o mundo externo, mas na adolescência deixa de ser uma barreira protetora. Na verdade, ele se torna um elemento de traição que desvenda ao mundo externo as "ignomínias de seu mundo interior" (Jeammet, 2005, pág. 41). É por isso que a ruborização se torna uma manifestação típica da puberdade, uma expressão notável do medo do adolescente de perder o controle de suas emoções.

É também onde se concretiza e se exibe a herança genética, denunciando as semelhanças físicas com os pais. Desse modo, a antecipação dessas semelhanças faz com que o adolescente sinta que o corpo não lhe pertence. Torna-se compreensível então as atitudes do adolescente que busca se apropriar de seu corpo, principalmente em relação ao modo de vestir ou de como modificar sua aparência corporal, impondo sua própria marca e o direito de propriedade sobre o mesmo.

Apesar de tudo isso, embora se observe toda a turbulência que envolve o corpo, podemos verificar que ele é também um sinal de referência tangível de continuidade do sujeito. É o corpo também que oferece uma determinada constância e que lhe garante um sentido de continuidade para sua existência.

Segundo Jeammet, "o corpo assim se torna um elemento essencial de identidade, aquilo que especifica um indivíduo a seus próprios olhos e aos olhos dos outros" (Jeammet, 2005, pág. 42).

Mas um paradoxo se estabelece pelo fato de, ao mesmo tempo em que preside o nascimento do Eu, ele é também apreendido como algo totalmente heterogêneo ao psiquismo, sendo percebido pela psique como corpo estranho na medida em que escapa a seu controle e o induz a uma situação de passividade. Quer dizer, o corpo está unido ao Eu psíquico, mas é diferente dele. Também materializa o limite entre o externo e o interno, delimitando uma fronteira e um lugar de troca entre os dois mundos.

É justamente para estabelecer uma realidade que o corpo resiste e se vê por isso constantemente solicitado quando a identidade do adolescente é colocada à prova.

Segundo Jeammet, é "essa posição de cruzamento que permite que o corpo represente um papel organizador na construção da personalidade e lhe confira um lugar privilegiado na organização e na expressão das manifestações psicopatológicas a partir do momento em que a problemática identificatória esteja em primeiro plano" (Jeammet, 2005, pág. 42). O corpo, permanecendo como o lugar privilegiado de expressão dos afetos, oferece à psique um palco possível de figuração e dramatização. Não é sem razão que todo golpe que é aplicado à identidade do adolescente acaba por ter uma tradução corporal, isto é, toda a angústia comporta uma expressão somática: manifestações de despersonalização, angústia da fragmentação, expressões hipocondríacas de angústia até a negação de órgãos nas formas maiores de melancolia. No entanto, é necessário compreender que o adolescente, nem de longe, se considere o autor de todas essas manifestações e que seu corpo está sendo o objetivo para a manifestação de queixas e reivindicações.

A essa passividade em relação ao corpo, o adolescente irá reagir como revolta, ao mesmo tempo em que pela capacidade de adotar uma conduta ativa de recusa, que se pode traduzir pela atração do negativo, que é um trabalho de reapropriação do destino diante da gravidade do que lhe é imposto e uma tentativa de domínio sobre suas próprias necessidades de dependência afetiva. A tentativa de reapropriação do próprio corpo se traduzirá pelas marcas que o adolescente nele inscreve, como demonstram tantos ritos com fins estritamente privados e coletivos (grupos, seitas etc.). Sendo assim, a marca corporal (piercing, tatuagens, cortes etc.) simboliza uma ruptura, um corte com o mundo anterior, caracterizado pela infância e dependência dos pais.

A reivindicação do direito à diferença é uma das formas que o adolescente possui para afirmar uma identidade, constantemente atingida por seus conflitos e dependência profunda às imagens parentais. Se nas décadas de 1950 a 1960, essa reivindicação estava direcionada para a sexualidade, agora ela se desloca para o direito de dispor de seu corpo à sua maneira, inclusive recorrendo aos atos extremos que representam o direito de dominar o corpo ou mesmo destruí-lo, como aparecem: o direito ao suicídio, a anorexia nervosa, a moda punk com seus ataques contra o corpo e sua busca incessante pelo enfeamento, as formas de submissão e de oferta do corpo para fins sádicos, a propensão de adeptos de seitas a impor formas freqüentemente pouco simbolizadas de mutilação do corpo.

A presença do adolescente no ambiente familiar cria um certo adensamento, uma atmosfera pesada que reflete a dificuldade tanto dos pais como dos adolescentes em estabelecer uma distância relacional apropriada. O mal-estar se estabelece no ambiente familiar, que é expresso de forma muito concreta pelos adolescentes, pois estes percebem seu espaço como invadido brutalmente pela onipresença, provocando neles uma sensação de promiscuidade insuportável, que passa a ser de tensão geradora de sentimentos de rejeição e aversão, às vezes violentos. Os pais adultos tornam-se alvo de uma sensorialidade excessiva que incomoda profundamente os adolescentes, como se houvesse uma diminuição de um espaço livre, não conflitante e não sensorial entre os pais e eles.

O afastamento físico, decorrente da impossibilidade de negociação da distância psíquica, se introduz dentro do cenário familiar por meio de uma redistribuição particular do espaço: fuga de espaços comuns, busca de espaço privado, enclausuramento no quarto, fuga de casa, utilização de espaços extrafamiliares e viagens impulsivas.

O objeto dos investimentos dos adolescentes, pelos menos aqueles que estavam relacionados diretamente à infância, no caso os pais, familiares ou os que os estão substituindo, torna-se alvo do fenômeno de atração-repulsão, dependendo da natureza pulsional do investimento. Isso repercute de forma muito clara na mudança da expressão dos afetos na adolescência ou nas condutas de oposição. Estas condutas tornam-se, nesse caso, as formas de excelência da nova organização do espaço familiar e ocupam um amplo espectro de comportamentos. São comportamentos relativamente duráveis e estáveis, conferindo um modelo identificatório – o do romântico; do asceta; do revoltado; e os que se inscrevem na delinqüência ou no vandalismo; ou ainda nas drogas e em uma série de comportamentos auto e heterodestrutivos. Há também os que só sentem sua existência colocando sua vida ou sua saúde em risco, ou os que fogem da confrontação e das limitações da realidade, se evadem na mitomania ou os que só encontram prazer e interesse quando escapam do olhar dos outros.

A adolescência irá se confrontar com duas formas de passividade: a passividade do Eu diante das transformações pubertárias que o seu corpo sofre e a passividade ligada à situação de espera em relação aos adultos, assim como aos futuros objetos de investimento, sejam eles afetivos ou profissionais, assim como o estatuto social.

Para o adolescente, a experiência de passividade tem o potencial tanto de fasciná-lo como de assustá-lo, pela especial razão de remeter à experiência da dependência de sua primeira infância. A relação que o jovem tem com o seu próprio corpo irá refletir a qualidade do vínculo estabelecido com os objetos parentais durante a primeira infância. No caso das transformações pubertárias, como ocorrem brutalmente e, além disso, entram em ressonância com os conflitos de passividade e dependência anteriores, maior se torna a possibilidade disso assumir uma conotação traumática. O corpo então é vivido como uma re-edição de conflitos infantis, como a representação fantasmática de vínculos de dependência mal resolvidos com as figuras parentais de sua primeira infância. O corpo então se torna um ente estranho ao qual será necessário todo um esforço de familiarização, sendo que esse tipo de experiência pode tomar uma dimensão persecutória. Muitas vezes, quando atacam ou rejeitam o corpo por inteiro ou em parte, é, na realidade, com os pais que o adolescente está acertando as suas contas, mas é também ele ou parte dele próprio mesmo que está também repudiando, com os riscos que tal atitude impõe a seu equilíbrio interior.

A confrontação com a passividade de alto potencial traumático para o Eu se traduzirá por um sentimento de perda de controle e ameaça de transbordamento e desorganização. Os afetos de vergonha e de decepção são recorrentes, sendo que a vergonha reflete a experiência de transgressão das barreiras que protegem o Eu e da invasão por uma emoção que a percepção só faz aumentar a importância e o mal-estar que a experiência gera. A vergonha demonstra a rendição do Eu ao objeto e assim o enfraquecimento narcísico. Já a decepção não tem como base a questão corporal e se apóia em um trabalho psíquico mais elaborado de representação, ficando o domínio do Eu mais assegurado. Tanto a vergonha como a decepção tem como habitual corolário defensivo o tédio – tal retraimento negativista sobre si mesmo testemunha, através de um movimento de recuo, o grau de fragilidade do Eu e de sua dependência ao desejo.

c) A adolescência como luto da infância

A história individual e a infância ocupam um papel importante e determinante para a psicanálise, sendo que se deu à puberdade um papel essencial nas transformações psicológicas próprias a esta idade. No entanto, somente a posteriori é que a psicanálise passa a se interessar particularmente pela adolescência. O interesse da psicanálise por este tema continua e encontra a ressonância no conceito de estado-limite, que tem se expandido e gerado muitos trabalhos.

O enfoque psicanalítico clássico a respeito da adolescência está resumido a dois pontos-de-vista, que se complementam mais do que se excluem. O primeiro ponto-de-vista, considerado clássico, seria o da adolescência como repetição e luto da infância. Nesta perspectiva de essência genética, a adolescência seria vista como o acabamento da infância e o seu término, por sua vez, seria a entrada para o mundo adulto.

Neste caso, uma vez que essa organização psíquica vem sendo colocada progressivamente, o impacto da puberdade está restrito a dar a esta organização os meios para realizar uma das finalidades do indivíduo – a procriação, sendo que a fase genital, que ocorre nesse momento, é a concretização do desenvolvimento antecedente. A puberdade ocorre depois da fase de latência, isto é, após uma pausa importante no desenvolvimento libidinal. Essa pausa é marcada pela ação do recalcamento. A adolescência propicia o levantamento do recalque infantil e a conseqüente reemergência dos desejos que estavam reprimidos no inconsciente. Aquilo que provocou as fixações na infância, e permaneceu recalcado ou clivado no seio do Ego se repete, fazendo com que o adolescente sofra de "reminiscências", seguindo o modelo da histeria.

O que confere a essa nova dinâmica um potencial traumático é, segundo o ponto-de-vista freudiano clássico, a "proximidade com os fantasmas incestuosos e parricidas certamente" (Jeammet, 2005, pág. 52).

Segundo E. e M. Saufer, "é o corpo do adolescente que se torna então o representante do progenitor incestuoso e perigoso. Nesse ponto, ele se torna o alvo de rejeição e ataques destrutivos. Esse trabalho de transformação e de maturação próprio à adolescência é descrito em termos de tarefas de desenvolvimento, tais como: integração do novo corpo púbere com o acabamento das identificações sexuais, autonomização e separação dos objetos parentais" (Jeammet, 2005, pág. 53).

Esquematicamente, podemos dividir tal processo de mudança em um processo de maturação e um processo de desinvestimento e de lutos dos objetos infantis, sendo que o processo de desinvestimento e luto será conseqüência da maturação. Quem estabeleceu pela primeira vez a relação entre adolescência, decepções amorosas e luto dos objetos infantis foi Anna Freud. Segundo ela, "certo luto pelos objetos do passado é inevitável" (Jeammet, 2005, pág. 53). É o luto pela mãe matriz e pelo corpo da criança. É no intervalo entre antigos e novos investimentos que se encontra o tempo de flutuação da libido que está em busca de novos objetos de investimento e o seu retorno sobre o ego do adolescente, o que gera a reconhecida inflação narcísica e os élans grandiosos próprios a essa idade. Como efeitos sintomáticos do vazio nos investimentos, podemos observar a morosidade, o tédio, os momentos de flutuação – às vezes de despersonalização -, e também episódios depressivos.

No entanto, precisamos observar que a problemática do luto será antes da ordem de uma ameaça. Ela só será uma realidade em adolescentes cujas relações objetais totais, estando carregadas de ambivalência, encontram-se sob a ameaça de uma agressividade liberada pelo deslocamento da parte libidinal para novas afeições.

O movimento de luto torna-se então fruto do trabalho fantasmático de destruição desses objetos e de emergência dos objetos internos arcaicos que estavam recalcados. Já um deslocamento bem sucedido irá conduzir para o prolongamento, o enriquecimento e diversificação dos investimentos, fazendo com que os primeiros investimentos não sejam tão essenciais, não havendo, por seu lado, uma vivência de perda.

A questão que fica é o que confere força e violência às fixações infantis e construções fantasmáticas. A intensidade do traumatismo e estimulações tem papel preponderante nas fixações infantis e organização dos complexos fantasmáticos.

O que é vital é que as primeiras trocas, que são consideradas fundamentais para o futuro das crianças, estejam se desenvolvendo em uma indistinção sujeito/objeto progressivamente decrescente que permite que a criança se alimente da qualidade da troca, interiorizando-a e permitindo que se torne sua, mas de um modo que o peso do objeto de intercâmbio afetivo não seja sentido nem reconhecido.

É o que podemos chamar de bases narcísicas, as que irão dar o sentido de segurança e continuidade internos para o indivíduo. A psicanálise demonstra que a construção de personalidade está vinculada a um sistema que se pauta por um determinado raciocínio:

Identifica-se aí uma contradição em potencial na adolescência. Como conciliar ambas as coisas? O indivíduo, ao viver a imposição do desenvolvimento, sente isso como uma contradição insolúvel. Neste caso, mais do que uma contradição, é um paradoxo que necessita ser pensado a posteriori ou mentapensado.

Para ilustrar a importância desse jogo dialético entre investimentos e contra-investimentos, satisfação alucinatória de desejo e apoio sobre o mundo das percepções e sensações, é o que propõe três desfechos hipotéticos para o bebê, dependendo da qualidade das relações que o meio ambiente (a mãe) estabeleceu com ele. Podemos ter três experiências-modelos, com base em uma criança de 18 meses a dois anos:

1. Uma criança que, confrontada com a separação da mãe – no sentido da perda do controle perceptivo dela – encontra em si própria as fontes internas suficientes para suprir a carência da mãe. Nesse caso, a criança não necessita fazer da mãe um objeto de representação mental particular ou rememorá-la. A mãe está presente na qualidade mesma do prazer presente no interior da criança;

2. A criança chora logo ao sentir a ausência da mãe. Ela está numa situação de dependência, isto é, necessita da presença real da mãe para estabelecer seu equilíbrio interno. Não é patológico, mas envolve uma situação de vulnerabilidade maior. O corolário habitual dessa dependência é os "caprichos" das crianças que compensam sua própria dependência, tornando-se tirânicas e fazendo com que suas mães se tornem dependentes delas. A característica essencial dessa dependência da realidade perceptiva – a necessidade de opor ao objeto exigências sempre maiores - sugere a idéia de que permitisse à criança inverter a situação e colocar o objeto, que a controlava anteriormente, sob seu domínio;

3. A criança, uma vez só, não utiliza o recurso de chorar e chamar. Ele substitui a ausência de recursos internos (os auto-erotismos) ou externos pela movimentação de seu próprio corpo. Começa a balançar de forma estereotipada, batendo a cabeça nas bordas, enfim, apresentando comportamentos encontrados em caso de carência afetiva e de hospitalismo.

O que podemos notar é que, para suprir a ausência do objeto de afeição, a criança inicia uma atividade de busca de sensações, que se apresenta sempre dolorosa e de caráter autodestrutivo. A ausência do objeto, em vez de ser substituído pelo prazer do recurso a uma atividade mental ou corporal, é compensado pela auto-estimulação do corpo.

Estes exemplos mostram a importância de constituição desses auto-erotismos, fundamentos das bases narcísicas. "É o conjunto do funcionamento do bebê, psicomotor, mas também fisiológico que pode, em graus diversos, ser visto sob o ângulo de implantação de uma forma de prazer trazida pela natureza da relação com o objeto investido (ou a mãe ou a pessoa que desempenha esse papel) que confere uma qualidade particular a esse funcionamento. Qualidade cuja escolha pode se dispor desde o grau de um prazer silencioso até uma erotização mais ou menos ruidosa" (Jeammet, 2005, pp. 59-60).

Um outro fator importante para a capacidade de autonomia do sujeito e de sua condução intrapsiquíca dos conflitos é o grau de diferenciação das estruturas internas da psique. Tal diferenciação se apresenta como sendo fundamental para o funcionamento do aparelho psíquico. Este, por sua vez, necessita de um espaço de jogo intrapsíquico que seja capaz de gerenciar os dados relacionados às representações e afetos por deslocamentos sucessivos, introduzindo-se "pequenas diferenças" essenciais no funcionamento psíquico, efetuando-se assim um trabalho de transformação que evita a descarga direta (seja alucinatória ou perceptivo-motora) e o curto-circuito estímulo-resposta. Sem isso, ele não possui a capacidade de gerir as pressões internas e as determinações exteriores. As estruturas diferenciadas são as duas tópicas freudianas (Primeira tópica - consciente, pré-consciente e inconsciente; Segunda tópica - Ego, Id e Superego), acrescidas das Imagos parentais totais e diferenciadas, além dos alicerces narcísicos.

Com a existência das citadas Imagos, podemos supor que o Édipo desempenha papel estruturante, ao possibilitar o reconhecimento da dupla diferença das gerações e dos sexos. Como isso terá impacto na puberdade e adolescência? É na adolescência que as duas vertentes do desenvolvimento da personalidade irão colidir um com o outro:

A adolescência surge então para pôr à prova a solidez de cada um desses eixos, tornando palpável o risco de antagonizá-los e fazê-los entrar em conflito, mais do que serem complementares. Tal antagonismo não é percebido como tal pelo sujeito. É vivido e sofrido como um constrangimento interno que não evidencia seu nome, sua origem e nem pode ser apreendido pelos seus efeitos, e que só pode ser percebido pelos adolescentes como forças que se anulam entre si.

O paradoxo se estabelece da seguinte forma: "aquilo que eu preciso, essas força que me faz falta para ser autônomo e que atribuo aos adultos de quem dependo, porque eu necessito deles, e na medida mesmo dessa necessidade, é o que ameaça minha autonomia". Os dois eixos, em princípio, não se opõem, mas devem se complementar, em um caso de desenvolvimento mais satisfatório, quando o narcisismo se nutre das relações objetais.

Quando esses eixos são percebidos como antagônicos, as conseqüências se fazem sentir em dois níveis – (1) para o desenvolvimento da personalidade, impedindo a procura dos processos de troca e de interiorização, bloqueando os mecanismos de identificação, que se tornam necessários para o amadurecimento; (2) e para o próprio desenvolvimento mental, entravando as possibilidades de representação, tendo então as situações paradoxais efeitos específicos para o próprio pensamento.

A passagem ao ato – o agir comportamental – é uma violência defensiva, que é a contrapartida de uma situação de violência que ataca sua integridade narcísica, sentida como ameaça à autonomia e ao pensamento do sujeito. O paradoxo criado é capaz de provocar uma violência independente de todos os fatos pulsionais, sem que eles seja excluídos, em razão do caráter dos efeitos de anulação dos processos de representação, em razão dos afetos mais ou menos diferenciados, e de destruição fantasmática dos limites e das diferenças.

A adolescência é então a caracterização e a conjunção dessas duas linhas de desenvolvimento e essa dupla pressão. Ela interroga em conjunto as problemáticas edípicas e narcísicas e sua inevitável confrontação. Tal conjunção se agudiza no momento da puberdade, pelo fato do adolescente ainda não ter encontrado os dois investimentos básicos de sustentação narcísica – o profissional e o amoroso -, que serão a substituição do apoio narcísico anterior oferecido pelos pais.

Resumindo, as capacidades auto-eróticas são desenvolvidas e interiorizadas de acordo com a qualidade dos vínculos amorosos estabelecidos na primeira infância. Desse modo, o chamado "bom objeto" é incorporado ao Ego, atenuando-se a dependência que ele possa ter em relação aos objetos externos, isto é, aqueles da realidade perceptivo-motora. De modo contrário, uma problemática adaptação do objeto externo às necessidades e expectativas da criança proporciona insegurança externa e superinvestimento defensivo dos objetos externos. O equilíbrio do "apetite objetal" é justamente proporcionado pela qualidade da relação com o objeto, sendo que este se torna parte substancial do sujeito – primeiro pelas vertentes dos auto-erotismos (bases narcísicas da personalidade), depois em razão das identificações (suporte para a constituição das estruturas diferenciadas intrapsíquicas).

Desse modo, se as imagens no interior do sujeito estiverem diferenciadas, o Superego e o Id estarão também individualizados e assim o investimento dos objetos será menos totalitário e ameaçador para o narcisismo. Quanto maior a expectativa do sujeito, mais as respostas do meio serão sentidas como ameaçadoras e violentas por parte do indivíduo. Os estímulos, tanto externos como internos, que excedem os recursos psíquicos do Ego, proporcionam as condições para a criação de um trauma, em um movimento desorganizador de diferenças entre as estruturas funcionais intrapsíquicas, entre o interior e o exterior.

Com as referências internas vacilantes e as representações se tornando desorganizadas, o Ego acaba por se agarrar à realidade perceptiva, com a forma de diferenciar entre o mundo interno e o externo, entre o si mesmo e o outro, isso no caso da realidade não se encontrar invadida por projeções delirantes ou alucinantes. Tal função de contra-investimento pela via da percepção e da motricidade, diante de uma realidade interna desorganizadora, é análoga modo como o Ego do sonhador, quando invadido por um pesadelo, recorre à realidade perceptivo-familiar que o rodeia, colocando à distância seu mundo interno.

d) As novas problemáticas

É durante a adolescência, na qual existe o que chamamos de confluência de fatores de risco, que faz com que este período seja considerado crítico e propenso a riscos característicos. Riscos estes que são próprios de uma vulnerabilidade na infância que dá lugar – na adolescência e na pós-adolescência – a condutas patológicas, que são passíveis de reorganizar a personalidade ao redor delas e de fixar o sujeito em condutas repetidas, que seriam então consideradas patológicas.

O caráter constrangedor de uma conduta e seu poder de reorganizar a personalidade do adolescente depende de duas ordens de fatores:

A reunião do conjunto destes fatores é específica da adolescência, os quais permanecem virtuais em grande número, e, no caso da adolescência, é passível de concretização de forma temporária, durável ou até mesmo definitiva. São diversas as possibilidades de desfecho de tais situações, mas de um modo geral, as sujeições patogênicas têm um determinado peso na adolescência, que só irão se desenvolver aquelas que serão só expressas e se organizarem em razão da natureza da resposta ambiental.

A organização da dependência

O conjunto dos problemas da adolescência pode ser observado do ponto de vista psicopatológico sob a égide da organização da dependência. Neste caso, a questão do domínio dos vínculos e do controle da distância dos objetos torna-se essencial.

O trabalho psíquico de interiorização e do recurso à satisfação alucinatória do desejo dá lugar ao superinvestimento do controle perceptivo-motor. O paradoxo que se estabelece entre a dependência dos objetos externos e de sua importância para garantir o equilíbrio psíquico interno é que faz com que tal relação se torne de tal difícil gerenciamento, tornando os citados objetos tão intoleráveis. Pelo fato do equilíbrio narcísico ser tão dependente dos apoios externos, ocorrem os chamados "fenômenos de reação em espelho" como uma espécie de reflexo de proteção de identidade. O Ego procura tornar dependente dele o objeto do qual ele mesmo depende" (Jeammet, 2005, pág. 69).

A importância da dependência pode ser visualizada tanto pela interioridade dos mecanismos de domínios acionados em relação ao objeto de dependência e pela importância do investimento e de apego aos dados sensoriais e perceptivos em oposição ao investimento do mundo psíquico interno das representações e dos afetos. Para reforçar essa idéia, Jeammet salienta que "o prazer do domínio sobrepõe ao do prazer da satisfação" (Jeammet, 2005, pág. 69).

As organizações da dependência apelam tanto aos mecanismos psíquicos de defesa como aos comportamentos, e dependendo do uso que é feito, os seus efeitos serão mais ou menos danosos sobre o equilíbrio do sujeito e dos resultados sobre suas capacidades de adaptação imediata e da evolução futura. Quanto mais estes mecanismos são maciços, mais eles têm potencial patogênico. E quanto mais eles entravam o desenvolvimento e limitam as capacidades de expressão e de troca, mais eles representam um risco para o futuro.

A organização pelas defesas psíquicas

Como pano de fundo das organizações, temos a presença de mecanismos de defesa arcaicos, oriundos das primeiras relações entre a criança e seu ambiente, marcadas por seu caráter maciço – ou tudo ou nada – e pela ausência dos trabalhos psíquicos de deslocamento e de diferenciação. Devido ao caráter arcaico, as defesas exprimem-se pela dupla de opostos, como no caso da dupla idealização/denegrimento. O objeto idealizado apresenta a vantagem de ser pouco sexualizado e de, algumas vezes, ser mantido à distância, levando a comparações com o próprio sujeito e evitando um confronto muito direto com as diferenças e o que elas podem gerar de inveja ao ativar uma ambivalência dos sentimentos e tornar o objeto ameaçador para o equilíbrio narcísico do sujeito. A idealização do sujeito nada mais é do que uma busca intensa de suporte na realidade externa extrapsíquica, uma vez que não o encontra no nível intrapsíquico e com o qual o sujeito não pode se consolar. Há uma tentativa de se agarrar à realidade externa e ao mundo perceptivo para compensar o fracasso parcial do mundo interno e da realização alucinatória no sentido de realizarem um contra-investimento à destrutividade interna. Esse apego ao exterior, no entanto, autoriza um trabalho de ligação narcísico-objetal e a retomada da atividade de deslocamento.

"A dificuldade com a idealização é que ela não implica um trabalho de transformação e do deslocamento dos fins pulsionais, ao contrário, da sublimação, que supõe essa dessexualização e, sobretudo, convoca o deslocamento dos investimentos mais socialmente valorizados. O sujeito fica de fato tributário de seu objeto de investimento para que esse equilíbrio narcísico", conclui Jeammet (Jeammet, 2005, pág. 71).

A idealização pode fazer com que um objeto exerça um efeito vampiresco sobre o narcisismo daquele que o idealiza. Mas pode, no melhor dos casos, permanecer como uma modalidade interessante de organização da dependência, útil e até indispensável em alguns casos, pelo fato de autorizar a manutenção de um investimento que comporta uma dimensão objetal e que permanece narcisicamente tolerável.

Inevitavelmente pode ocorrer o oposto da idealização – o denegrimento. A decepção do indivíduo é proporcional à expectativa – que ele nutre pelo objeto, que pode ser traduzido pelo terror da dependência do objeto. Desse modo, o denegrimento pode assegurar um controle preventivo do objeto, embora às custas de uma insatisfação e da permanência de uma expectativa e de um pedido implícito. Nesse caso, a insatisfação narcísica e a busca objetal se tornam piores e conduz ao reforço das defesas.

Há também a dupla clivagem/fusão. Não só a clivagem dos objetos, mas também do Ego. É preciso que haja o mau objeto para que haja o bom, pois o mau objeto assegura ao menos uma diferença entre o sujeito e o objeto. A clivagem, nesse caso, não é uma expressão da dualidade pulsional entre amor e agressividade. É um momento também de salvaguarda narcísica – por existir exatamente um mau objeto fora é que se pode aproximar de um bom objeto e assim interiorizá-lo.

A organização pelo comportamento

As conseqüências da relação da dependência são expressamente manifestas pelas perturbações do comportamento e pela patologia do agir. As mudanças de atitudes características da adolescência podem ser vistas como um fenômeno de exteriorização das tensões e exigências de modificação, que produz efeitos no aparelho psíquico; exteriorização esta que reflete claramente a natureza importante do trabalho de adaptação requisitada ao aparelho psíquico, assim como o dano relativo deste tornando-o melhor contido no interior do psiquismo. O agir, que é o oposto da ação (prolongamento do trabalho psíquico da elaboração), oferece uma via de descarga que substitui este trabalho psíquico. "Ele carrega um equivalente do objeto substitutivo do objeto interno, e por aí uma possibilidade de domínio, e substitui o que constitui a essência mesma do trabalho psíquico mais elaborado, o deslocamento" (Jeammet, 2005, pág. 73).

A utilização do espaço faz parte deste movimento de exteriorização. O adolescente utiliza esse recurso como um modo de figuração dos conteúdos intrapsíquicos, como forma de concretização de um pensamento que não tem mais à sua disposição os meios de representação suficientemente claros e diferenciados, mas também como um modo de exercer domínio sobre eles.

"Podemos interpretar assim o recurso ao agir como um sinal da dificuldade de uma representação puramente mental dos fenômenos psíquicos que o provocaram" (Jeammet, 2005, pág. 73).

Sendo assim, para o adolescente é mais fácil controlar a distância dos objetos externos do que a relação de desejo em relação aos objetos interiores. Uma atitude de oposição proporciona um recurso mais facilmente negociável entre o desejo de aproximação e a necessidade de diferenciação do que a conscientização de uma relação de ambivalência. O espaço torna-se então parte desta realidade externa, localizado sobre o controle do plano perceptivo-motor e, portanto, da consciência, do Ego e da ação voluntária. Ele se opõe à temporalidade, que remete à expectativa, passividade e ausência de domínio, aliás, uma passividade que faz uma analogia com aquela do Ego do adolescente diante das mudanças pubertárias que se impõem a ele. A incapacidade de configuração da temporalidade envia novamente o adolescente à sua dificuldade de se apoderar de sua própria imagem. Estabelece-se assim uma oposição dialética entre espaço e tempo em potencial, assim como entre a realidade interna e externa. A temporalidade também é uma referência ao mundo adulto, uma vez que pedem ao jovem que deixe passar o tempo, que ele trará as soluções que não se podem encontrar no momento. A este convite de deslocamento das tensões do momento sobre o futuro é que o adolescente irá responder por meio do deslocamento do espaço e uma tomada de distância imediata.

Assim, a conduta de oposição é uma variante mais simples da organização desse tipo de situação. Segundo Jeammet, "opondo-se, o adolescente apóia-se sobre o adulto ao qual ele se confronta, sem ter que tomar consciência deste apoio e arranjando seu narcisismo e sua autonomia por meio da afirmação de sua diferença" (Jeammet, 2005, pág. 74). Neste tipo de relação, a busca do limite prevalece sobre a mudança, a aparência sobre a interioridade. É o contato que é privilegiado: a ruptura é o exemplo do modo como é possível o adolescente se aproximar diferenciando-se e marcando os limites.

Nos jogos corporais entre meninos e o jogo de espelho entre as meninas, vemos que as características para estas condutas são a sua facilidade de se transformar em seu contrário – passando da mais resoluta oposição à passividade total; do negativismo e da recusa para a mais completa sugestionabilidade.

Essas condutas têm uma característica em comum – uma dimensão autodestrutiva e de auto-sabotagem das potencialidades do indivíduo, que está relacionada essencialmente às atividades e potencialidades investidas anteriormente por ele e por seus pais. Qual é a razão disso? "Ao mesmo tempo em que ele retoma, com sua conduta atuada, uma distância de seu objeto de investimento, o adolescente é conduzido a perseguir este movimento distanciando-se daquilo que, nele mesmo, liga-o a este objeto de investimentos e testemunha este vínculo". (Jeammet, 2005, pág. 75). Os problemas que eclodem na chamada crise da adolescência podem ser analisados sob o ângulo da expressão de uma divisão do próprio sujeito, que é conduzido a rejeitar uma parte dele mesmo, vivido como uma alienação possível em relação aos objetos de investimento, enquanto esta conduta de rejeição contribui para lhe permitir se afirmar em uma identidade negativa que não deverá nada ao objeto. "O sujeito esconde na sua negação sua inveja" (Jeammet, 2005, pág. 76).

O ponto central da patologia do adolescente é a propensão natural dos sintomas apresentados a substituir as relações objetais e, portanto, a induzir um movimento de desobjetalização. Este movimento transforma as capacidades de investimento libidinal, apresenta um efeito de desligamento pulsional e empobrece a vida relacional do adolescente. Trocas relacionais vivas, diversificadas, conflituosas em potencial, abertas às mudanças e à descoberta, são substituídas pelo retorno sobre si mesmo e sobre objetos de substituição (droga, álcool, alimento etc.), que têm em comum o fato de se prestarem a uma relação de domínio. Os adolescentes criam para si mesmos uma "identidade negativa", que repousa sobre a recusa dos processos de interiorização.

A conseqüência disso tudo é o risco do adolescente se ver privado do que é mais necessário a ele – os apoios objetais indispensáveis ao término de suas identificações, em especial em sua dimensão sexual. Vê-se assim a constituição da relação de dependência que o adolescente evitava com seus pais. Ao contrário das relações objetais, tais procedimentos não asseguram nenhum reabastecimento narcísico e o benefício de domínio apenas reforça a permanência da conduta, aumentando ainda mais o vazio interior e a necessidade dos objetos. Cria-se desse modo um fechamento na repetição e o fascínio pelo negativo. Desse modo, relações vivas são substituídas pela busca de sensações, sendo a anorexia nervosa e a toxicomania seus melhores exemplos.

Condutas negativas, de oposição ao outro e de recusa do desejo pelo outro, são capazes de exercer um intenso efeito de fascinação sobre quem as pratica. Recusar a atender aspirações e necessidades permite manter uma tensão interna constate que é sempre possível de não satisfazer, mas que dá ao indivíduo o sentimento de existência. Pelo fato de não oferecer seu fim, como é o caso do prazer, a não-satisfação é uma defesa duvidosamente eficaz das angústias, tanto da castração como do abandono.

Ao recusar de antemão o que poderia religá-lo ao objeto, o adolescente assegura a si próprio o domínio da situação que pode fazer com que acredite que tem autonomia e independência do vínculo, sem que se dê conta de sua alienação em um comportamento de recusa, que só pode se auto-alimentar, já que mantém aumentada ou intacta a necessidade que ele supunha ter ultrapassado. "O sujeito é possuído, habitado por suas emoções e pelo objetivo que está na origem: a única saída é a expulsão da excitação desorganizadora sobre um elemento de modo que o circunda (que não é necessariamente o objeto de investimento inicial), sobre o qual o paciente procura exercer um controle todo-poderoso e um domínio que ele não pode aplicar às suas emoções internas" (Jeammet, 2005, pág. 80). Segundo o psicanalista, "o desejo se torna o Cavalo de Tróia do objeto no seio do Ego" (Jeammet, 2005, pág. 80).

A fobia do desejo, então, se torna um meio de dominar o poder de atração do objeto, tão bem expresso na chamada "geração bof", na França, e no Brasil, pela expressão "não tô nem aí", tão comum nos adolescentes.

Toda força atuante sobre o sujeito é passível de ser reconhecida como violenta. Essa força é dessubjetivante, seja ela aplicada ao sujeito ou ao objeto. Ele comporta uma dimensão de efração que faz o Ego experimentar um sentimento de despossessão de si mesmo, tendo a sensação de ser um joguete de uma força que o vence. De qualquer modo, a vítima é o Ego.

Os arranjos da violência e suas modalidades de expressão dependem muitas vezes da organização psíquica do sujeito e do ambiente. O ambiente, por sua vez, será vital quando a organização psíquica for mais frágil e não tiver a capacidade de atuar na interface dos mundos interno e externo, servindo apenas como tampão do primeiro.

As vias de expressão da violência seguem as formas habituais dos modos de expressão do indivíduo; de qualquer modo, a marca da violência será sempre a do sucesso, que reflete o transbordamento do Ego e, sendo assim, a ameaça de desorganização que paira sobre ele. A permanência e a identidade do sujeito são questionados sob esta ameaça, abrindo caminho para a angústia da morte que se reflete tanto no sujeito como no objeto.

A partir do momento em que seu narcisismo é ameaçado, a resposta violenta aparece como resposta à ameaça, instalando brutalmente um processo de separação, de ruptura, de diferenciação do outro. A agressividade testemunha um vínculo, ao mesmo tempo em que o preserva. Há nela tanto um trabalho de vinculação, como também de perda de vínculo com o objeto, mas que tem sentido de restauração e proteção da identidade do sujeito. Desse modo, há um paradoxo do mau objeto, uma vez que ele fica sempre disponível, não podendo ser definitivamente perdido, o que garante ao sujeito sua própria permanência.

Como representante privilegiado das modalidades de vínculos marcados pela agressividade, temos o masoquismo, como violência voltada contra si mesmo, cujo componente libidinal e objetal torna-se possível de degenerar em ascendência e repetição mortíferos.

A solução masoquista se coloca em relação ao Ego como um compromisso possível, à mão, quando o Ego é ameaçado de transbordamento. Sendo um mecanismo de defesa arcaico, a conduta masoquista oferece ao sujeito continuamente a possibilidade de se libertar do domínio do objeto e de retomar uma posição ativa de controle, exatamente onde ele se sentirá ameaçado de transbordamento e rendição passiva ao objeto.

O motor do masoquismo é a ameaça sobre o Ego. Mas o objetivo principal é no sentido de colocar o objeto e as pulsões sob a dominação do Ego, mesmo que isso seja pago com o preço do sofrimento. A violência atuada representa a última defesa do Ego para a restauração da identidade que está sob ameaça. O dano e o sofrimento auto-inflingidos estão sob a posse do próprio indivíduo, escapando assim do poder do outro, tornando-o importante e mesmo dependente da boa vontade daquele a quem se faz mal. "Encontra-se como sempre esse movimento de transformação da decepção sofrida em seu contrário, o poder de decepcionar e do retorno contra si da violência dirigida ao outro" (Jeammet, 2005, pág. 84).

Jeammet faz uma citação do escritor Fritz Zorn: "Em todo lugar que dói, sou eu... eu não sou somente como meus pais, eu sou também diferente de meus pais (...) Minha individualidade consiste no sofrimento que experimento" (Jeammet, 2005, pág. 84).

e) O manejo da realidade externa

Jeammet cita Lebovici, que descreve nos adolescentes o que se pode chamar de "desenvolvimento atual das neuroses de destino", segundo o qual os jovens oscilariam da relação passional à busca de relações sexuais que não são acompanhadas de afetos. O fundamento comum entre ambos é a dimensão narcísica do vínculo, cujo arranjo pode ter direcionamentos opostos: a fusão ou a recusa total; o que poderia impossibilitar a confrontação da separação e da diferenciação entre sujeito e objeto.

O direcionamento para essas duas expectativas depende muito dos encontros dos adolescentes com o ambiente à sua volta, incluindo as pessoas que o compõe. Um mesmo tipo de organização psíquica pode dar vazão a um sentido valorizado pelo sujeito, dando reforço à sua auto-estima, colocando-o em uma posição mais favorável para abrandar suas defesas, mesmo que ocorram dificuldades no caminho. Do lado oposto, a ocorrência do fracasso dessas possibilidades pode fechar o adolescente em uma imagem negativa, que a realidade vem confundir, com o risco de fazer com que se organize de modo patogênico, tornando-se o único meio de assegurar sua identidade, que não consegue mais se sustentar em bases positivas e que conduz a um franco processo psicopatológico.

A realidade externa se apresenta então como uma possível mediadora, capaz de reforçar ou mesmo de desorganizar o aparelho psíquico. O papel fundamental é de tornar narcisicamente tolerável os investimentos objetais e evitar o confronto do paradoxo que foi definido anteriormente.

Os pais, como objetos externos, podem ser os mediadores, corrigindo o que os objetos internos podem contar de constrangedor, contribuindo para humanizar o Superego e o Id. Pode também criar condições para o prazer do funcionamento e da troca que permite ao adolescente o reinvestimento libidinal dos vínculos objetais, em que tenha de tomar consciência da importância desses objetos. No entanto, há também o risco do funcionamento familiar entravar este processo.

A sociedade pode também oferecer as figuras de mediação, como os professores, os assistentes sociais, além também dos grupos de pares, ideologias e religiões – que seriam suportes provisórios, proporcionando aos adolescentes pontos de apoio que realizam a proteção de suas necessidades de investimento, garantindo, desse modo, uma auto-imagem narcisicamente aceitável.

"Esta abordagem acentua a importância do manejo da realidade externa e de seu papel como auxiliar do aparelho psíquico, favorecendo ou impedindo o jogo dos investimentos e contra-investimentos" (Jeammet, 2005, pág. 111).

Também as medidas educativas e pedagógicas, sejam de natureza individual ou institucional, podem ser concebidas como um complemento útil e indispensável se integrarem de outro lado abordagem compreensiva e dinâmica do adolescente. Em todas as formas e técnicas, deve-se oferecer ao adolescente um espaço de encontro onde se possa desenvolver um clima de intercâmbios e de prazeres compartilhados – sem ser sensualizados ou excitantes -, isto é, sem que o adolescente tome claramente consciência desses prazeres e sem que ele necessite questionar a proveniência, o papel e o lugar do outro em seu desenvolvimento.

Os parceiros do adolescente devem, de acordo com estas perspectivas, fazer-se esquecer de sua realidade física e sexual, para estarem ali apenas de modo a permitir a expansão harmoniosa das funções do adolescente. É a presença do objeto que pode oferecer a possibilidade de expansão, o desenvolvimento das funções com finalidade de prazer, conferindo ao jovem uma dimensão libidinal e humanizadora, evitando manifestar uma presença que marque a diferença, e que suscite desejo e dependência, tornando-se excitante e intrusivo.

"O objeto adequado é, no caso da relação masoquista, o que sobrevive aos ataques e à desvalorização, e permite aos bons objetos internos e aos auto-erotismos sobreporem-se aos maus objetos, além de salvaguardar as potencialidades libidinais. A confiança do objeto nos recursos do sujeito, assim como a sua firmeza em manter os limites e as diferenças, autoriza em espelho o reinvestimento pelo paciente de sua confiança em si mesmo e no outro", diz Jeammet (Jeammet, 2005, pp. 126-127).

4) Os conceitos de literatura e seu ensino no âmbito escolar

Nesta parte da reflexão, é meu intuito lançar apenas alguns tópicos a respeito do ensino de literatura. Não se trata de uma discussão exaustiva, mas sim os primeiros passos para uma investigação mais aprofundada e posterior.

a) A importância da literatura

Para discutirmos a importância e a função da literatura, utilizarei dois textos de Antonio Candido, A literatura e a formação do homem (1972) e O direito à literatura (1995). Nestes dois artigos lapidares, Candido faz uma reflexão a respeito do quão vital a literatura é ao ser humano – uma conclusão fundamental em uma época como a atual, no qual a literatura vem sendo cada vez mais desprezada, taxada muitas vezes como algo elitista e erudito ou sem importância ou utilidade.

A literatura como direito

Um texto essencial para a apreensão da função da literatura é O direito à literatura (1995). Nesse artigo, Antonio Candido irá destacar a relação existente entre direitos humanos e a literatura. A pergunta que percorre todo o texto é "a literatura é um direito de todos?", mas uma outra questão está embutida nela, mais profunda, que é a importância da literatura para o ser humano.

Segundo Candido observa, um grande paradoxo contemporâneo é que, à parte do máximo de racionalidade técnica e domínio sobre a natureza – e a decorrente capacidade de resolver um grande número de problemas materiais – obtidos pelo ser humano, também é verdade que o irracionalismo chegou a um nível extremo. A energia nuclear que movimenta submarinos e traz energia elétrica às casas é a mesma que matou milhares de pessoas em Hiroshima e Nagasaki. Os meios que permitem o progresso de alguns podem causar danos às vidas de muitos outros. Como diz Candido, "todos sabem que a nossa época é profundamente bárbara, embora se trate de uma barbárie ligada ao máximo de civilização" (Candido, 1995, pág. 236).

Em meio a perspectivas tão desalentadoras, o crítico ressalta alguns aspectos positivos, como o fato de que a barbárie prossegue, mas ela já não é motivo de elogio e celebração como antigamente. É um sinal favorável, "pois se o mal é praticado, mas não proclamado, quer dizer que o homem não o acha mais natural" (Candido, 1995, pág. 237).

Pode-se constatar, nesse sentido, um progresso no sentimento em relação ao outro, mesmo que não haja a correspondente disposição de agir em consonância. E é nesse ponto que a questão dos direitos humanos entra.

Há um pressuposto ao se pensar em direitos humanos: considerar que aquilo que é indispensável a nós é também indispensável ao outro – ao próximo. A questão é que a tendência humana é, muitas vezes, justamente a contrária: considerar nossos direitos mais justos que o do próximo. A questão dos direitos humanos reside justamente nesse ponto – é o esforço para incluir o semelhante no mesmo elenco de bens que reivindicamos.

Nesse ponto, Candido utiliza o ponto de vista do sociólogo francês Padre Louis-Joseph Lebret, que faz uma distinção entre "bens compressíveis" e "bens incompressíveis". É interessante entrar nesta discussão, pois a definição de "bem incompressível" é justamente de que são bens que não podem ser negados a ninguém, o que traz relação com a questão dos direitos humanos.

Uma vez que cada cultura, em cada época, impõe os critérios de compressibilidade, utilizando até a educação para incutir estes valores, são necessários critérios seguros e adequados para se abordar o problema, tanto em nível individual como social.

Candido lembra então que os bens incompressíveis não devem assegurar apenas a sobrevivência física em níveis adequados, mas também garantir a integridade espiritual. "São incompressíveis certamente a alimentação, a moradia, o vestuário, a instrução, a saúde, a liberdade individual, o amparo da justiça pública, a resistência à opressão etc.; e também o direito à crença, a opinião, ao lazer e, por que não, à arte e a literatura" (Candido, 1995, pág. 241).

A questão que fica é se a literatura é realmente um bem incompressível, isto é, se ela é uma necessidade profunda do ser humano e que não pode deixar de ser satisfeita com o risco de desorganização pessoal ou frustração mutiladora. Aqui encararemos a literatura em sua forma mais ampla, quer dizer, todas as manifestações de toque poético, ficcional ou dramático, desde o simples chiste até as formas mais elaboradas e complexas de produção escrita das grandes civilizações.

A resposta a esta questão, segundo o crítico, é sim. A literatura é sim um bem essencial. Como já foi discutido anteriormente, a literatura representa uma espécie de fabulação e esta é necessária para qualquer indivíduo, pois ninguém consegue passar vinte e quatro horas sem mergulhar no universo da ficção e da poesia, seja como anedota, história em quadrinhos, canção popular. "Ela se manifesta desde o devaneio amoroso ou econômico no ônibus até a atenção fixada na novela de televisão ou na leitura seguida de um romance" (Candido, 1995, pág. 242). A literatura seria algo como o sonho acordado das civilizações e provavelmente não existira equilíbrio social sem ele.

Uma vez que abordamos a literatura como um direito do ser humano, torna-se importante verificarmos como ela atua no ser humano, em sua formação.

A literatura como formadora do homem

No texto A literatura e a formação do homem, o crítico aborda a função humanizadora da literatura, ou a sua capacidade de confirmar a humanidade do homem. Antes de tudo, ele discute a idéia de função, tão menosprezada nos estudos modernos de literatura, que se centralizam na forma, principalmente uma das suas vertentes, o estruturalismo. O estruturalismo se concentra na obra em si mesma, colocando de lado os elementos que demonstram sua gênese e função em um determinado momento histórico. Uma vez que a função se inclina para o lado do valor, isso acaba por conduzir também à pessoa: tanto o escritor (o produtor da obra) e o leitor (o receptor do impacto da obra).

O que vem se tornando claro é que uma visão íntegra da literatura irá conciliar a noção de estrutura e de função. A literatura inevitavelmente acaba por nos levar aos aspectos contextuais – dificilmente colocamos de lado os problemas individuais e sociais que dão sustentação às obras e que as conectam com o mundo. Sendo assim, podemos separar dois momentos em um estudo: um momento analítico – onde os problemas relativos á autoria, à atuação psíquica e social, à questão do valor, são deixados em suspenso, concentrando-se basicamente na obra como estrutura autônoma e objeto de conhecimento; e um momento crítico – onde se questiona a sua validade como obra literária e sua atuação como síntese e projeção de experiência humana.

Vale lembrar que a prática dessa visão crítica pode ser claramente observada no estudo Dialética da malandragem (1991), do próprio Antonio Candido, abordado anteriormente, no qual o crítico aborda tanto os aspectos estruturais como estéticos e históricos para dar um valor e um significado á obra Memórias de um Sargento de Milícias (1991), de Manuel Antônio de Almeida.

Após essa reflexão inicial, podemos abordar a literatura como uma força humanizadora – que expressa a condição humana e que age na formação do próprio homem.

O primeiro aspecto que chega até nós é a função psicológica. O homem necessita de ficção e fantasia, em todos os níveis, seja no primitivo e no civilizado, individualmente ou em grupo, no alfabeto e no instruído – uma necessidade que se torna vital. Ninguém pode passar um dia sem a fruição de ficção e fantasia, seja sob a forma de devaneio, anedota ou construção ideal. A literatura propriamente dita é uma das modalidades que respondem a essa necessidade universal. A fantasia nunca é pura. Ela sempre se conecta, de um certo modo, com a realidade. É nesse vínculo entre fantasia e realidade que se pode entrar na questão da função da literatura.

A porta de entrada para a questão se concentra na definição de devaneio. Para isso, Candido cita Gaston Bachelard, que investigou a função do devaneio na investigação científica. O devaneio, para Bachelard, não se tornou apenas um terreno comum para a qual se bifurca a reflexão científica e a criação poética, mas "a condição primária de uma atividade espiritual legítima" (Candido, 1972, pág. 805).

O devaneio seria então o caminho da verdadeira imaginação, não se alimentando dos resíduos da percepção ou sendo uma espécie de resíduo da realidade, mas sim séries autônomas coerentes, sempre tendo como ponto de partida a realidade visível do mundo e com o qual a está necessariamente ligada, incorporando-se desse modo à imaginação poética.

A esse pensamento de Bachelard, podemos conectar a imaginação literária e a realidade concreta do mundo – a profundidade que existe entre a função sintetizadora e transformadora da criação literária em relação aos pontos de referência da realidade.

Isso também se torna um indício de como as criações ficcionais poéticas atuam de forma inconsciente e subconsciente, trabalhando de um modo que as camadas mais profundas da personalidade recebam uma carga poderosa das obras literárias, sem que nós percebamos ou possamos até avaliar.

Sendo assim, a pergunta que fica é: a literatura tem uma função formativa de fundo educacional? A resposta é sim, mas não do ponto de vista pedagógico oficial. Justamente por sua atuação nas camadas mais profundas da individualidade é que não podemos abordar a literatura de um modo convencional. A literatura, em vez de reforçar as concepções ideológicas dominantes do que é Verdadeiro, Bom e Belo e o do que é moral é cívico, educa com a força poderosa proveniente da própria vida, isto é, com altos e baixos, com luzes e sombras.

Um vez que a literatura, assim como a vida, ensina na medida que age com toda a sua potencialidade, não se pode requerer que ela atua como manuais normatizadores de conduta e virtude. O paradoxo que se estabelece nas obras literárias é que as que são consideradas essenciais para a formação dos alunos trazem em geral o que as convenções desejam banir. Um exemplo é a obra de Olavo Bilac, cujas obras apresentavam aspectos patrióticos intensos e conotações didáticas denominadas de "boa doutrina", mas cujos poemas apresentavam o sexo sob formas acentuadamente cruas.

Paradoxos como esse demonstram todo o conflito existente entre uma obra literária "edificante" e "elevada", segundo parâmetros oficiais, e a força iniciática de vida proporcionada pela literatura. "Sendo assim, a literatura não corrompe nem edifica, portanto; mas trazendo livremente em si o que chamamos o bem e o que chamamos o mal, humaniza em sentido profundo, porque faz viver" (Candido, 1972, pág. 86).

Um outro questionamento que se estabelece é o seguinte: além de satisfazer a necessidade universal da fantasia e atuar como formador de personalidade humana, teria a literatura uma função de conhecimento do mundo e do homem?

Na questão do conhecimento, podemos fazer uma diferenciação entre dois aspectos: o conhecimento latente e o conhecimento intencional. Quando falamos de intencional, estamos nos referindo ao tipo de literatura que apresente níveis de conhecimento consciente planejados pelo autor e também assimilados pelo leitor de forma consciente. Estes níveis se destacam facilmente e é neles que o autor transporta toda a sua gama de intenções de propaganda, ideologia, crença, revolta e adesão. É nesse sentido que a literatura se presta como um conhecimento dos sentimentos e da sociedade e auxiliando-nos a posicionar perante eles. Vemos esse procedimento na chamada "literatura social" ou até mesmo "engajada", que parte de uma análise da sociedade e busca corrigi-la, seja por meio da denúncia ou da conscientização.

Em relação ao conhecimento latente, devemos compreender a obra literária como uma espécie de objeto construído e reconhecermos o grande poder humanizador desta construção.

Ao elaborar sua estrutura, o escritor propõe ao leitor um modelo de coerência, que é construído graças ao poder da palavra organizadora. As palavras exercem um papel ordenador sobre a nossa mente e sentimentos. "A produção literária tirar as palavras do nada e as dispõe como todo articulado (...) A organização da palavra comunica-se ao nosso espírito e o leva, primeiro, a se organizar; em seguida, a organizar o mundo" (Candido, 1988, pp. 245-246). Sendo assim, o impacto de uma obra literária se dá em virtude da fusão que se estabelece da mensagem com a sua forma. O poder do texto literário de impressionar é conseqüente da forma que o escritor concebeu a ele e essa mesma forma traz em si a capacidade de humanização, decorrente da coerência mental pressuposta e sugerida.

"O caos originário, isto é, o material bruto a partir do qual o produtor escolheu uma forma se torna ordem; por isso, o meu caos interior também se ordena e a mensagem pode atuar. Toda obra literária pressupõe esta superação do caos, determinada por um arranjo especial das palavras e fazendo uma proposta de sentido" (Candido, 1988, pág. 246).

Em todos esses níveis, vemos claramente a função da literatura como um elemento formador e humanizador. Concebemos aqui por humanização o processo que reafirma no ser humano traços essenciais, como a atitude de reflexão, a aquisição do saber, uma disposição correta e adequada com o outro, o depuramento das emoções, a sensibilidade em relação à beleza e à complexidade do mundo e seus desafios. "A literatura desenvolve em nós a quota de humanidade na medida em que nos torna mais compreensivos e abertos para a natureza, a sociedade, o semelhante" (Candido, 1988, pág. 249).

Fica evidente pela exposição de Antonio Candido o quanto a literatura é de fato imprescindível ao ser humano. Em momentos de agudas contradições e franco desrespeito pelos direitos e pela integridade do homem, necessário se torna tirar a literatura e o seu ensino do limbo e lhe dar uma atenção privilegiada.

b) O ensino da literatura

Uma vez que discutimos a importância da literatura, cabe nesse momento refletir a respeito do seu ensino, em especial aos alunos do Ensino Médio. Tomo como base o texto Ensino de literatura do 2º grau, de Adilson Odair Citelli, presente na coletânea Língua e literatura: o professor pede a palavra, que data de 1981.

Apesar dos 24 anos que separam o texto do nosso atual momento, considero importante fazer esse recorte com o intuito de verificar quais foram os desafios que foram superados, quais os que se mantém e quais se ampliaram, no tocante ao ensino de literatura.

Já no início do texto o autor nos apresenta a constatação de uma realidade – a de que o aluno do ensino médio está cada vez mais mal formado e praticamente pouco lê. Segundo Citelli, diversos fatores se conjugam para essa realidade, mas que o problema deve ser visto pelo prisma da criação da consciência e, nesse sentido, a lógica da comunicação ideológica. O autor cita, para fundamentar a sua tese, Mikhail Bakhtin, segundo o qual "a consciência adquire forma e existência nos signos criados por um grupo organizado no curso de suas relações sociais. Os signos são o alimento da consciência individual, a matéria de seu desenvolvimento, e ela reflete sua lógica e suas leis. A lógica da consciência é a lógica da comunicação ideológica, de interação semiótica de um grupo social" (Citelli, 1981, pág. 75). Desse modo, o autor aborda alguns dos centros reprodutores de ideologia, assim como as conseqüências deles na formação dos alunos que estão se iniciando no aprendizado literário: a escola, outras linguagens e as exigências sociais.

A escola

A escola é encarregada de difundir os saberes, em especial os considerados práticos, e nisso se posiciona como instrumento de grande persuasão. Torna-se evidente que, em uma formação econômica e social, nada se reproduz se não estiver sob a ótica de interesse do próprio produtor. Sendo assim, a escola cumpre seu papel de veicular justamente as "verdades" fundamentais em seus conceitos e sistematizações.

A escola não apenas reproduz a ideologia, como também atua como agente repressivo, utilizando os mecanismos básicos da produção – a seleção e a competitividade – e, desse modo, excluindo e selecionando os indivíduos. É sob a égide da reprodução ideológica que a escola se constrói e é nela que os professores estão inseridos.

Para agravar a situação, verifica-se a progressiva liquidação pela qual passa a educação e as marcas conseqüentes como professores mal pagos, desmotivados e sobrecarregados; corpo direcional inoperante ou autoritário; alunos desinteressados, desestimulados e mal instruídos; programas de ensino desatualizados; escolas em precárias condições de funcionamento.

Nesse amplo contexto, como trabalhar com língua e literatura com os alunos? Como conseguir desenvolver o potencial de linguagem deles?

Como decorrência, o aluno fica inserido em uma profunda encruzilhada: por um lado, os ensinos acadêmicos e claudicantes, que pouco tem a lhe dizer; por outro, a necessidade de adquirir conhecimentos que possibilitem sua ascensão social, seja por meio do trabalho ou por meio da faculdade. O estudante tem de buscar então os saberes que o possibilitem exercer da melhor maneira possível as funções para os quais está se direcionando, optando por um tipo de conhecimento em detrimento do outro. A "setorialização" do conhecimento, motivado em geral por uma lógica mercadológica, acaba por caracterizar o que Lucien Goldmann (citação de Citelli) define como: "... especialista ao mesmo tempo analfabeto e diplomado da Universidade, o homem que conhece muito bem um domínio de produção, que possui alta qualificação profissional que lhe permite executar de modo satisfatório e mesmo notável tarefas de que o incubem, mas que perde progressivamente todo contato com o resto de vida humana e cuja personalidade assim se limita e deforma no mais alto grau" (Citelli, 1981, pág. 78).

A escola, que deveria ser o núcleo que acentuaria o espírito crítico, ao seguir as programações dos livros didáticos, perde toda a sua autoridade para lidar com o texto de forma lúdica, restando apenas "... a sisudez de um ato ritual, uma exigência, uma chata cobrança de romances sem sentido, que soam muito mais como continuadores do nome e da tradição do que instigações para a descoberta da verdadeira dimensão dos signos" (Citelli, 1981, pág. 79).

Em tudo isso, perde-se gradativamente a fruição de todos os aspectos humanizadores e do prazer que poderiam caracterizar a leitura das obras literárias.

Outras linguagens

Outros fatores se somam para a distância do aluno em relação ao texto e, entre eles, podemos citar a intromissão de outras linguagens, sendo que o que mais se inseriu foi a televisão, que trouxe e traz continuamente toda uma gama de novas atitudes e comportamentos. Estudos e pesquisas da época em que o texto foi escrito demonstraram que a maior parte do tempo do jovem em idade escolar, se não estivesse trabalhando, era gasto na frente da televisão. Com isso, sacrificava-se boa parte das leituras para um estudo acadêmico sério. Nestes termos, assuntos ditos complexos, como física e química, eram sacrificados em primeiro lugar, seguidos pelos textos literários.

No embate do texto literário e a imagem televisiva, está o confronto entre um modo de conhecimento em linguagem simbólica (a literatura) e um outro modo que substitui o elemento onírico por uma espécie de estética do imediatismo, de familiaridade e da cotidianidade, com uma cultura massificadora que sintetiza e homogeneiza o real e o imaginário.

Como funcionaria este mecanismo? A televisão dramatizaria os fatos reais e trataria realisticamente o campo imaginário. Um modo fácil e cômodo de ter o seu quinhão de fantasia, mas sem o nível de elaboração e reflexão proporcionado pela literatura e o conseqüente enriquecimento do espírito crítico. Sem esse filtro crítico desenvolvido, a absorção por parte dos jovens em uma visão de mundo dominadora, colonialista e autoritária ocorre sem obstáculos ou ressalvas, adultizando crianças e infantilizando adultos.

Lembrando que o artigo foi escrito em 1981, não podemos nos esquecer que, se a televisão ainda continua causando impacto na formação dos jovens, temos hoje também a concorrência do computador, do videogame e da Internet. O impacto do advento destas novas linguagens não foi devidamente pesquisado, mas com certeza vem causando problemáticas cada vez maiores e acentuando a distância entre os estudantes e o texto. A aceleração da recepção das informações e a manipulação das emoções e sentimentos podem estar provocando um estado de letargia e dificultando o espaço de elaboração interna dos indivíduos.

Exigências sociais

Em um ambiente tão utilitarista e mercadológico, como desenvolver o interesse pela literatura, que não apresenta algo de imediatamente prático? O conceito de utilidade, que permeia o ensino em geral, atinge em cheio a literatura. "Para que serve isso?" é a pergunta mais recorrente nas salas de aula. A literatura assim vai se marginalizando, protestando mudamente contra o estado das coisas. O concorrencialismo burguês, que tem o romance como uma de suas vítimas, não satisfeita ainda, busca liquidar também a própria linguagem simbólica. Desse modo, o conceito de literatura vem se desenvolvendo como uma "espécie" de outro, tratado como algo que nada tem a ver com a realidade do mundo e tornando-se assim algo de "especialistas", reforçando o elitismo e o preconceito assentados sobre os ideais ilustrados. O próprio professor se agrada desta posição, uma vez que se torna aos olhos dos demais como o portador de um saber erudito. Com isso, uma penumbra museológica se forma em torno do ensino da literatura e a sua vivacidade se apaga. Os elementos vivos – como o chiste, a música popular, o humor – são deixados de lado defronte da alta literatura – que se apresenta como modelo e ideal. Não é de se estranhar que o seu ensinamento esteja baseado no denominado modelo em detrimento muitas vezes do prazer da leitura.

Como lidar com este estado das coisas?

É fundamental que ocorra uma aguda reflexão a respeito desse dilema, pois ao não encararmos a literatura como um grande elemento humanizador, temos justamente o contrário – a desumanização cada vez maior do indivíduo. Cabe aos educadores retomarem para si próprios, os alvos e à sociedade a vital importância da literatura.

c) Os parâmetros para o ensino da literatura

Nesse momento de reflexão, uma vez realizado um diagnóstico, ainda que limitado, dos grandes desafios encontrados no ensino de literatura, torna-se interessante discutir a respeito do PCN (Parâmetros Curriculares Nacionais) do Ensino Médio. Com o próprio nome diz, são parâmetros, mas que são utilizados muitas vezes como um conjunto de normas e procedimentos para o Ensino Médio. A discussão aqui não será exaustiva, mas sim um ponto de partida para uma reflexão mais ampla e posterior.

No tocante aos Conhecimentos de Língua Portuguesa, o PCN aborda de início os problemas encontrados na didática do Ensino Médio – a dicotomia entre Língua e Literatura, a ponto do currículo escolar estar separado em gramática, estudos literários e redação, o que levava à especialização do professor em alguma destas áreas; os estudos gramaticais estarem concentrados na nomenclatura e norma gramatical; o ensino da literatura que está voltada para a história literária somente e que privilegia em demasia o texto considerado "clássico", menosprezando os outros textos. "Assim pode ser caracterizado, em geral, o ensino de Língua Portuguesa no Ensino Médio: aula de expressão em que os alunos não podem se expressar" (PCN, 1999, pp. 34-35).

Segundo o texto do PCN, a resolução a estes problemas seria realizar um diagnóstico correto do conhecimento (ou a falta) do aluno como princípio de ações, mas cujo objetivo é um saber lingüístico amplo, tendo a comunicação como base de ações.

De acordo com o PCN, "comunicação aqui entendida como um processo de construção de significados em que o sujeito interage socialmente, usando a língua como instrumento que o define como pessoa entre pessoas. A língua compreendida como linguagem que constrói e 'desconstrói' significados sociais. A língua situada no emaranhado das relações humanas, nas quais o aluno está presente e mergulhado. Não a língua divorciada do contexto social vivido. Sendo ela dialógica por princípio, não há como separá-la de sua própria natureza, mesmo em situação escolar" (PCN, 1999, pág. 35).

Segundo as concepções descritas, o texto é a unidade básica da linguagem verbal – aqui compreendido como a fala e o discurso que se produz, e a função comunicativa, o eixo de sua atualização e a razão do ato lingüístico. "O texto só existe na sociedade e é produto de uma história social e cultural, único em cada contexto, porque marca o diálogo entre os interlocutores que o produzem e entre os outros textos que o compõem. O homem foi visto como um texto que constrói textos" (PCN, 1999, pág. 38).

Como se pode verificar, é uma concepção que destaca o aspecto social e interativo da linguagem e que vai contra as concepções tradicionais que vigoram na escola e que estão completamente deslocadas da realidade. A vantagem dessa abordagem é que os conteúdos como nomenclatura gramatical e história da literatura tendem a serem deslocados do pedestal em que estavam colocados na escola, o que é muito proveitoso.

Mas é necessário, a meu ver, destacar um aspecto e, para isso, desejo destacar um trecho do PCN. "A literatura é um bom exemplo do simbólico verbalizado. Guimarães Rosa procurou no interior de Minas Gerais a matéria-prima de sua obra: cenários, modos de pensar, sentir, agir, de ver o mundo, de falar sobre o mundo, uma bagagem brasileira que resgata a brasilidade. Indo às raízes, devastando imagens pré-conceituosas, legitimou acordos e condutas sociais, por meio da criação estética." (PCN, 1999, pág. 41).

Aqui busco registrar uma limitação à abordagem social da linguagem pois vemos que na citação do escritor Guimarães Rosa, o enunciado enfatiza de fato os vários aspectos sociais e positivos da obra do autor, mas não podemos ignorar o grande alcance metafísico, psicológico e filosófico de todo o seu trabalho literário. Por trás do ambiente sertanejo e rústico, com a linguagem coloquial de seus personagens, há dramas e reflexões que recorrem a um fundo mítico e profundo. Desprezar todo esse arcabouço é mutilar a própria obra literária e o seu poder encantatório.

Cabe citar um outro trecho que se encontra na conclusão do texto do PCN. "Ao ler este texto, muitos educadores poderão perguntar onde está a literatura, a gramática, a produção do texto escrito, as normas. Os conteúdos tradicionais foram incorporados por uma perspectiva maior, que é a linguagem, entendida como o espaço dialógico, em que os locutores se comunicam nesse sentido, todo conteúdo tem seu espaço de estudo, desde que possa colaborar para a objetivação das competências em questão" (PCN, 1999, pág. 46).

É louvável o esforço para que o ensino de língua portuguesa e literatura seja contextualizado e apresente sentido, principalmente em seu aspecto social. Com isso, os alunos tornam-se aptos a exercer a língua não como um saber isolado e infrutífero, mas sim como uma função social.

Torna-se necessário apenas frisar que toda iniciativa pedagógica, mesmo que teoricamente bem fundamentada, corre o risco de ser mal interpretada pelas instituições, principalmente as escolares, que se caracterizam para adaptar qualquer prerrogativa teórica para a sua própria conveniência. Ao se incorporar a literatura à perspectiva da linguagem, torna-se uma preocupação o fato do texto ser utilizado apenas como instrumento de aprendizado da língua e não como um enunciado literário. Não defendo com isso recolocar a literatura num patamar acima dos outros saberes, mas sim de que não podemos mutilar o potencial humanizador da literatura.

d) O texto, sem pretextos

Neste ponto, desejo recorrer ao artigo O texto não é pretexto, de Marisa Lajolo. O argumento básico da autora é o de que o texto existe apenas na medida em que se constitui ponto de encontro entre autor e leitor, reunidos pelo ato solidário da leitura. Segundo sua tese, nenhum texto literário nasceu, salvo algumas exceções, para ser objeto de estudo e análise, mas sim produto do trabalho individual de seu autor e também objeto de fruição pessoal do leitor.

No ambiente escolar, o texto se torna muitas vezes em pretexto, um intermediário de aprendizagem para outros saberes, que não apresentam nenhuma conexão com o propósito do próprio texto.

Segundo Lajolo, "é nesse sentido que a presença do texto no contexto escolar é artificial: a situação da aula é coletiva, pressupõe e incentiva a leitura orientada. Mais ainda: visa a uma relação do leitor/aluno deflagrada a partir das atividades cuja formulação parte de uma leitura prévia e alheia: a interpretação que o leitor/autor do livro acredita ser a mais pertinente, útil, adequada, agradável etc." (Lajolo, 1982, pág. 53). Assim, um procedimento saudável do professor é o de assumir com os alunos uma perspectiva que violente o texto o menos possível.

O professor, assim, não se coloca como um intermediário da interpretação do texto, mas sim também como um leitor, mas, mais do que isso, um leitor maduro, num sentido de que possui um cabedal de vivências e visões mais amplo, que torna mais profunda sua compreensão dos livros, das pessoas e da própria vida. Em resumo, se a relação do professor com o texto não tiver um sentido, isto é, se ele não for um bom leitor, as chances de que ele seja um mau professor tornam-se bastante reais. O professor deve portanto gostar de ler e praticar a leitura.

Nessa discussão, chegamos então ao livro didático. Ao que parece, tudo nos chega até a escola via livro didático se transforma em verdade absoluta, ponto inquestionável. Ao corroborar com estas pretensas "verdades", corre-se o risco do professor contribuir para o quadro de alienação que permeia o processo educativo. Ao fazer do texto pretexto para qualquer forma de dogmatismo, estará violentando o texto.

A presença dos textos nas salas de aula pode ser profunda e produtiva se eles forem utilizados como libertação de dogmatismos e espaço de resistência em sua prática que não se deseja ser autoritária.

Como afirma Lajolo, "ler não é decifrar, como um jogo de adivinhações, o sentido de um texto. É, a partir de um texto, ser capaz de atribuir-lhe significação, conseguir relacioná-lo a todos os outros textos significativos para cada um, reconhecer nele o tipo de leitura que seu autor pretendia e, dono da própria vontade, entregar-se a esta leitura, ou rebelar-se contra ela, propondo outra não prevista". (Lajolo, 1982, pág. 59).

A grande questão não repousa no nível da complexidade de um texto, mas sim na relação que o aluno estabelece com ele. A relação torna-se mais e mais complexa quanto maior for o nível de amadurecimento do leitor e melhor, literalmente falando, ter o texto. O melhor que um professor pode fazer é expor o aluno a uma gama variada de textos para que ele melhore a sua leitura, de modo que o aluno-leitor construa níveis sucessivas e simultâneas de significados para o textos apresentados.

Sendo assim, a cada novo texto, o aluno pode ser convidado a vivenciar de modo crítico e até a atitude do sujeito, não só de sua linguagem, mas de uma teoria e história literária de seu povo. Não sendo assim, a literatura não cumpre sua função de formação de indivíduo.

"É o propósito de literatura que a importância do sentido do texto se manifesta em toda a sua plenitude. E é essa plenitude de sentido e começo, meio e fim de qualquer trabalho com o texto. Todas as atividades escolares das quais o texto participa precisam Ter sentido, para que o texto resguarde seu significado maior", conclui Lajolo (Lajolo, 1982, pág. 62).

 

C) Pesquisa em campo

1. Introdução

O projeto de iniciação científica desenvolvido por mim, e sob supervisão da Prof.ª Dr.ª Mônica Amaral (Psicologia na Educação - FEUSP), tem como objetivo propor novos métodos de ensino de literatura com base em reflexões e análises elaboradas a partir das experiências obtidas em grupos de estudos literários realizados com alunos de uma escola pública. Para isso, foi escolhida a Escola Manoel Ciridião Buarque, que está localizada no Bairro da Lapa, na Rua Cerro Corá, 770. O projeto foi iniciado no segundo semestre de 2004 e está sendo realizado da seguinte forma: a Prof.ª Mônica iria desenvolver o trabalho com os professores por meio de reuniões e seminários de conscientização, enquanto que eu atuaria com um grupo de alunos formado para realizar atividades que iriam estimular a leitura de textos e o desenvolvimento de narrativas, visando o aprendizado da literatura e redação. Com essa atuação, poderíamos intervir na realidade da escola, tanto com os docentes, como os discentes.

Cabe descrever melhor a escola na qual temos realizado o trabalho de pesquisa.

1.1. A Escola

Segundo definição encontrada em seu site próprio, "a Escola Estadual 'Prof. Manuel Ciridião Buarque' foi fundada em 1965. Está situada na região oeste de São Paulo e é circundada pelos bairros de classe média e média alta como: Alto de Pinheiros, City Lapa, Vila Madalena, Vila Ipojuca, Lapa e Vila Leopoldina". A escola está localizada em um local central e estratégico na região. Além disso, o público atendido pela escola é formado exclusivamente por alunos do ensino médio, que se revezam em turnos de manhã e tarde. É em razão disso que os alunos do ensino fundamental de outras escolas, após concluírem este ciclo de ensino, se encaminham para esta escola para que possam iniciar sua nova fase estudantil.

Com base em minha vivência com a escola, pude observar ser ela diferenciada em relação a outras escolas públicas, devido aos recursos que possuía, ao seu corpo docente formado em grande parte por professores formados em universidades conceituadas e também por possuir um grupo de alunos diversificado, sendo parte deles provenientes em sua maioria de famílias da classe média que moravam nas redondezas da escola e outra parte proveniente de famílias que moravam em bairros mais periféricos da região. A escola também se destaca pelo grande número de projetos que são desenvolvidos com os alunos. Além disso, a escola é uma espécie de pólo de atividades extra-escolares de sua localização, abrigando shows e eventos culturais e esportivos,

Cabe inserir aqui o texto de apresentação da escola atribuído à sua diretora e que está presente no site da escola (http://www.ciridiao.cjb.net):

"A E.E. Professor Manuel Ciridião Buarque, Escola de Ensino Médio Regular, é considerada pelos Órgãos Centrais como uma Unidade de excelente qualidade. Os alunos que permanecem conosco durante os três anos conseguem sobressair-se em estudos posteriores e no mercado de trabalho.
A equipe docente formada em 2003, é muito capacitada e trabalha de acordo com as novas Diretrizes e Bases da Educação Nacional. A EE Professor Manuel Ciridião Buarque trabalha numa linha Construtivista Sócio-Interacionista - onde o aluno é acima de tudo o agente de sua aprendizagem. Os professores estarão em 2003 desenvolvendo projetos interdisciplinares para tornar o conteúdo mais significativo.
A Direção, Coordenação e o Corpo Docente têm a preocupação de formar CIDADÃOS CONSCIENTES E RESPONSÁVEIS, que tenham interesse e desejo de aprender e a capacidade de auto-avaliação, para que ao término do Ensino Médio apresentem significativa mudança de comportamento, através do aprendizado.
A escola como Instituição que é, inserida numa sociedade globalizada, precisa estar atenta aos novos paradigmas educacionais e trabalhar junto com os diversos setores da Comunidade Escolar. Este é o grande desafio do corrente ano - trazer a Comunidade Escolar e fazer Parcerias para formarmos uma equipe que dê condições de oferecer cada vez mais uma EDUCAÇÃO DE QUALIDADE.
Outro desafio - AVALIAÇÃO não é tida como fator de punição mas como mais um elemento de ajuda, no sentido de constatarmos as reais dificuldades dos nossos alunos e podermos realmente atuar. Os alunos necessitam compreender essa mudança de postura e atuar no sentido de avançar e não se acomodar.
A escola tem uma função essencialmente pedagógica, não pode perder de vista a realidade em que está inserida contudo, é essencialmente pedagógica".

Considerei a importância de inserir este texto para uma análise entre o discurso oficial e a realidade prática da Escola.

Para a apresentação do trabalho realizado no projeto, optei por fazer uma separação em três fases. Esta decisão foi tomada devido aos rumos que o projeto foi tomando em sua realização. Cada fase estará sendo detalhada nesta apresentação. A primeira fase do projeto, que denomino "Tentativas ", se constituiu pela tentativa, frustrada por diversas razões, de se formar um grupo de estudos com alunos do primeiro ano e que exigiu um redirecionamento dos planos; a segunda fase, que chamo "Em busca da necessidade dos alunos", se caracterizou pelo meu contato com os alunos do Grêmio estudantil, que expuseram suas necessidades acadêmicas, e que encaminhou o projeto para um novo caminho. A terceira fase, que se realizará no primeiro semestre de 2005 e que chamarei "Uma nova abordagem", se dará com a elaboração de um novo programa de ensino de literatura a partir da fundamentação teórica proposta no projeto e nas reflexões tecidas pela primeira e segunda fase.

2. Primeira fase do projeto - Tentativas

Em um primeiro momento, o projeto teria, como objetivo, alunos do 1º ano do ensino médio, sendo o alvo principal sensibilizá-los para leituras de textos e desenvolvimento de narrativas. Por serem estudantes provenientes do ensino fundamental e que estavam se inserindo na adolescência, consideramos ser este o grupo ideal para a pesquisa e realização de atividades. A intenção era de que a participação dos alunos seria motivada pelo interesse e não por qualquer tipo de imposição.

2.1. Primeira reunião com os professores

Em uma primeira reunião com os professores, eu e a Prof.ª Mônica buscamos nos apresentar e demonstrar nossos projetos e formas de atuação - eu, com os alunos e a professora, com o corpo docente. A reunião foi realizada em um espaço de tempo exíguo, no intervalo entre as aulas da manhã e a da tarde, e que ocupava parte do tempo de almoço dos professores. As reuniões com eles só poderiam ser realizadas nesse horário, o que não era exatamente um fator muito propício para a receptividade deles.

Uma vez apresentado o projeto, houve por parte dos professores alguns questionamentos, sendo o que mais me chamou a atenção foi a de uma professora que contestou qual seria a utilidade de tais atividades para ela. Pude notar, por meio deste questionamento, um ambiente de ceticismo em relação a projetos desenvolvidos dentro da escola. Sendo meu objetivo formar um grupo com alunos, essa mesma professora opinou de que seria melhor que estes fossem do primeiro ano do ensino médio, priorizando os que eram considerados os mais "indisciplinados". Para ela, de nada adiantaria realizar um trabalho com os alunos do 3º ano, uma vez que eles estariam se desvinculando da escola no próximo ano. O que estava por trás desta solicitação, pelo que pude entender, era de que meu grupo seria uma forma de disciplinar tais alunos para que se tornassem então alunos "comportados" em sala de aula. Uma visão, no mínimo, muito pragmática e utilitária. Foi necessária uma melhor explicação de nossa parte para que os objetivos do projeto fossem mais bem compreendidos - não um grupo para que os alunos se tornassem disciplinados, mas desenvolver neles o interesse por narrativas e leituras. E também que seria importante a formação de um grupo heterogêneo. Após um certo debate, ficou acertado então que os alunos seriam escolhidos pelos professores e a diretoria. Segundo minha sugestão, o número ideal de alunos seria entre 10 e 15. O horário das reuniões seria às 13h, justamente no intervalo entre um turno e outro, às segundas-feiras. O início das reuniões ocorreria no dia 22 de agosto.

2.2. Primeira reunião com os alunos

Cheguei à escola com muitas expectativas, esperando que o encontro com os alunos fosse um "grande" início de trabalho. Seria um desafio poder me colocar em uma situação aonde iria me relacionar com jovens que acabaram de ingressar na adolescência em um ambiente escolar.

Quando perguntei na secretaria a respeito da reunião com os alunos e do local onde poderia ser realizado, ninguém estava informado a respeito dela. Uma funcionária foi perguntar para a diretora e ela acabou por confirmar a atividade. A coordenadora Regina não estava presente e uma funcionária ligou para a casa dela, mas não a encontrou. Fiquei então esperando na sala dos professores. Foi interessante ver como certos alunos andavam constantemente pelo local. Pelo que pude constatar, havia uma grande quantidade de atividades acontecendo dentro da escola e fora dela.

Depois a funcionária foi à procura da lista dos alunos que foram convidados para a atividade e fiquei sabendo, surpreso, que foram chamados 18 alunos (pela minha contagem, 19 alunos - 14 homens e 5 mulheres). Verifiquei onde poderia ser feita a reunião e ficou decidido que seria na sala de vídeo. Na hora convencionada, pelo menos quatro alunos estavam esperando e fomos nos encaminhando para a sala de vídeo.

Fizemos um círculo para conversarmos. Havia um certo estranhamento no ar e um olhar um tanto desconfiado dos alunos. Depois de acomodados, perguntei o nome deles e me apresentei. A maioria se expressava com uma voz bem baixa. Perguntei como eles ficaram sabendo do ateliê e muitos disseram que não sabiam qual era o tema. Haviam sido chamados e decidiram aceitar. Falei um pouco de mim, qual faculdade fazia, disse que estava também na licenciatura e que tinha interesse em trabalhar com o ensino. Também discorri a respeito do tema que iríamos desenvolver - desenvolvimento de narrativas e de leitura. Perguntei quanto tempo eles estudavam no estabelecimento e então constatei que todos eles vinham de outra escola. Só então me lembrei que a escola era apenas de ensino médio. Portanto muitos alunos vinham de outras escolas das redondezas. Perguntei se eles gostavam de leitura - um deles disse que estava lendo Quincas Borba (1992), do Machado de Assis. Perguntei se era leitura de escola e ele disse que não, que era por iniciativa própria. Comentei que comecei a ler Quincas Borba, mas tinha parado na metade e que preferia Dom Casmurro (1992) e Memórias Póstumas de Brás Cubas. Uma aluna disse que havia lido todos os livros de Harry Potter no início do ano. Perguntei se havia lido Senhor dos Anéis e ela disse que não. Um deles disse que não gosta de ler muito. E o outro disse que não gostava muito de ler, mas interessantemente estava com um livro de Ganymedes José, Quando floresceram os ipês (1982). Pedi o livro, folheei e perguntei a respeito da estória e ele foi narrando resumidamente.

Pela lista, pude ver que havia vários alunos de uma sala só, enquanto que de outras, havia poucos. Então, como atividade inicial, separei-os em duplas para que pudessem se conhecer e se apresentar. Foram três duplas, sendo que uma delas foi formada por mim e um aluno. E assim fomos encaminhando a conversa. Ele me disse que sua mãe era professora e que ensinava também para excepcionais. Percebi então a razão do alto nível de leitura dele. Senti que não estava havendo uma interação muito boa entre as duplas. Logo chegou um outro aluno e ficou conversando com um deles. Foi interessante notar que ambos se pareciam muito - boné, camisa da mesma cor e calças parecidas. Até perguntei se eram irmãos. Decidi mudar as duplas então.

Nesse momento, a menina pediu para ir tomar água, parecendo um pouco entediada. Depois que ela chegou, solicitei que ela formasse uma dupla com o rapaz com o qual eu estava conversando. Desse modo, senti o diálogo fluir mais. Fui conversar então com as outras duplas para ver como as coisas estavam e também para conhecê-los melhor. As conversas estavam sendo a respeito dos professores - quais eles gostavam e quais não... Eles comentaram que uma das professoras fazia questão de dar notas baixas. Perguntei onde eles moravam e um deles disse que morava no Rio Pequeno, o que gerou risadas do outro.

Na outra dupla, a conversa não estava se desenvolvendo bem porque um deles não estava colaborando muito, pelo que pude sentir. Um deles parecia ter uma personalidade mais forte, declarando do que gostava e do que não gostava com todas as letras. Disse que havia chegado à escola por meio de uma amiga, que era sua professora e ela havia indicado a escola. Disse que estava sendo melhor do que ele esperava, mas comentou que achava que havia muitos alunos de outras séries com mentalidade de crianças ainda. Disse que escrevia e que o seu sonho era ser poeta, embora dizendo que isso não tinha lugar nos tempos de hoje.

Pedi para eles se apresentarem um ao outro. E eles foram fazendo isso, mas sem entrar em muitos detalhes. A maioria deles tinha 15 anos e vinham, de fato, de outras escolas de outros bairros. Uma das duplas entrou na questão da religiosidade - a menina era evangélica e deixou de ser e o rapaz era católico. Na outra dupla, os dois gostavam de rap e, como tinha dito anteriormente, se vestiam de modo muito parecido. A outra dupla - um deles, que parece ser o mais novo de todos - gostava de rap e tinha um cabelo encaracolado. Enquanto que o outro gostava dos Incríveis, de Erasmo Carlos e de músicas mais antigas. Ele comentou que os colegas comentavam que ele era o inverso de todos.

Após as apresentações, entrei na questão da narrativa. E disse que isso estava sendo cada vez mais raro. Perguntei se eles viam a figura do velho que reunia as crianças para contar histórias com freqüência e eles disseram que não. A menina disse que seu avô no interior costumava fazer isso e disse que ela gostava. Os outros responderam de fato que isso não era comum, mas que gostavam.

Um deles comentou que era importante a questão da interpretação de texto e a importância da expressão para um entrevista de trabalho. Comentei que a leitura e a narrativa eram realmente importantes para que pudéssemos nos expressar tanto na escrita como verbalmente. Para corroborar a idéia, mostrei uma revista na qual havia pessoas que saíam da adolescência e estavam buscando os gostos dos anos 80, como numa volta ao passado. E disse que isso tinha uma relação com a incerteza do futuro, do avanço da informática que exigia que tudo fosse rápido e que as pessoas estavam em busca do passado para ter "base para ir para frente". Senti uma certa inquietação neles e percebi que estava chegando o horário do início das aulas. Aí comentei que iríamos fazer muitas dinâmicas juntos e que isso seria feito em conjunto com eles. E então eles saíram. Alguns vieram me cumprimentar com um aperto de mãos.

Mesmo sendo um número pequeno de alunos, senti que havia um certo conflito ou uma certa inquietação e descontentamento com a escola. Entre os alunos, percebi que não eram alunos considerados "indisciplinados", alguns se mostravam muito aplicados, mas mesmo assim havia um sentimento indefinível de insatisfação, talvez por serem alunos do 1º ano e vindos de outras escolas. Mas achei que esta impressão mereceria uma consideração mais apurada.

2.3. Andamento da primeira fase

O primeiro encontro com os alunos se demonstrou como uma incógnita para mim. Não consegui definir se havia sido bem-sucedido ou se foi um início desalentador. Com o decorrer das atividades, pude analisar melhor a freqüência dos alunos e perceber como esta foi minguando atividade após atividade. De um total de 18 alunos, apenas sete haviam comparecido no primeiro dia, caindo para três na atividade seguinte e depois para dois alunos. Nas reuniões com a Prof.ª Mônica, buscávamos compreender as razões pelas quais o primeiro contato não estava sendo frutífero e como elaborar estratégias para reverter o quadro.

Nos primeiros dias de atividade, pude ter um pequeno contato com a realidade dos alunos e da escola. Aproveitei para perguntar como estava sendo o ensino da literatura na escola e os alunos comentaram que estava sendo fraco. Ficou claro que eles sentiam a necessidade, de fato, de ter o contato com o texto e não simplesmente aprender esquemas históricos e escolas literárias. Eles sentiam claramente a deficiência que possuíam em relação à interpretação de textos e desejavam suprir isso de alguma maneira. Uma das razões da dificuldade dos alunos de interpretar textos é justamente o distanciamento do texto. É visível que os alunos queriam ser desafiados intelectualmente, queriam ser exigidos, e não estavam satisfeitos com o que a escola estava oferecendo. Eles demonstraram também um certo sentimento de insatisfação com a escola, algo que, num primeiro momento, não pude definir claramente. Foi por meio de um aluno que tive conhecimento do Grêmio da escola, formado por alunos que se articulavam para elaborar as atividades dentro da escola. Pelo relato desse aluno, pude notar a conscientização dos alunos que o compunham e senti no Grêmio um caminho para um melhor contato com os estudantes da escola.

Após o terceiro dia de atividade, uma vez que a lista dos alunos não havia surtido efeito, em reunião com a Prof.ª Mônica, comentei sobre a baixa presença dos alunos e mostrei o programa que eu havia montado. A professora comentou que o programa estava muito além do que eles podiam captar. Comentei que havia formulado isso com base no que eles haviam sugerido, embora realmente estivesse muito além do que eles podiam absorver. Concluímos que era necessário mudar a estratégia. Eu iria pessoalmente nas salas de aula chamar os alunos para a atividade. Nessa primeira experiência com o grupo de adolescentes, percebi que uma grande parte da dificuldade relacionava-se com o fato do pessoal do 1º ano ser, de um certo modo, desarticulado, recente na escola e ainda não consciente das necessidades que iriam ter no futuro. Ficou combinado então que a Mônica falaria com a coordenadora e eu iria então na sexta-feira conversar com os alunos sala por sala. Comentei também que uma das vias era o contato com o Grêmio dos alunos, uma vez que com os professores não estava havendo muita colaboração.

Relatando o ocorrido, eu e a Prof.ª Mônica chegamos à conclusão de que a escola não estava oferecendo o que era necessário para os estudantes. A professora, em uma reunião com o corpo docente, presenciou um levante por parte dos alunos do 3º ano em relação à professora de português. Um evento sério, com os alunos xingando a professora no pátio da escola, quebrando câmeras de vídeo (para que não fossem reconhecidos) e usando até mesmo máscaras. Isso tudo para exigir mudanças em seu método didático. Isso corroborou a idéia de que os alunos estavam exigindo mais do que a escola estava proporcionando. Num primeiro momento, achamos que seria interessante formular atividades de acordo com o que eles estavam pedindo - isto é, leitura e interpretação de textos. A partir disso, iríamos trabalhar com os nossos objetivos - a construção de narrativas.

Uma vez combinado com a coordenadora da escola, fui fazer o anúncio das atividades nas salas. Tive um primeiro contato com dois alunos do Grêmio. Eles se mostraram muito receptivos, conversaram comigo, e me apresentaram a escola. Também surgiu por parte deles a idéia de eu dar aulas dos livros da FUVEST para o pessoal do 3º ano. Achei a idéia interessante e vi nisso uma oportunidade de ter um contato maior com os alunos. Em troca, os alunos do 3º me ajudariam a formar um grupo com os alunos do 1º ano.

Um dos alunos iria me acompanhar no anúncio nas salas. A coordenadora Regina pediu para sermos rápidos para que os professores não reclamassem. Fomos então para as salas do 1º ano. O aluno que me acompanhava demonstrava delicadeza nos gestos e, ao entrarmos na sala, o que ocorria é que os alunos faziam menção a isto e davam risadas por puro preconceito. Íamos passando pelas salas e isso se repetia. Fiquei um tanto constrangido por ele, pois era visível que era uma situação desagradável. Em algumas das salas, até algumas das professoras também riam e colaboravam com a situação. Em algumas salas, ouvíamos a professora gritar com os alunos para que ficassem quietos. Em outra sala, uma das professoras pediu para que os alunos ficassem quietos e disse abertamente que não éramos nós, eu e o aluno do Grêmio, que sairíamos prejudicados pelo tempo perdido. Todo esse clima criado não contribuiu nem um pouco para o chamado para as atividades.

Com havia previsto, não apareceu nenhum aluno no horário da reunião. Isso ocorreu mesmo parando de sala em sala, e até os que estavam comparecendo não estiveram presentes. Saí um tanto frustrado da escola e demonstrei isso na reunião com a Prof.ª Mônica. A professora tentou me animar e comentou que se eu estava me sentindo frustrado, era porque, de um certo modo, era um reflexo do que os próprios alunos estavam sentindo - a falta de perspectivas. E o modo pelo qual os alunos iriam expressar suas frustrações seria no adulto, ou alguém que, de um certo modo, representasse a autoridade. Ficou claro para mim que é necessário estar com a estima alta, caso contrário, iria me abater com as dificuldades de se lidar com os adolescentes. Chegamos à conclusão de que seria melhor atender primeiramente às expectativas dos alunos do 3º ano - trabalhar com aulas a respeito dos livros da Fuvest - e fazer uma adaptação dos objetivos do projeto. Quanto aos alunos dos 1º e 2º anos, os trabalhos ficariam prorrogados para o ano seguinte.

3. Segunda fase - Em busca da necessidade dos alunos

3.1. Introdução

Com o auxílio de um aluno do Grêmio para formar um novo grupo, agendei um dia para o início das aulas ou palestras. Em razão dos diversos feriados e atividades da escola nesse mês, ficou bastante difícil iniciar o programa para os alunos do 3º ano. Estando quase a ponto de desistir, fiz uma última tentativa de iniciar o programa ligando para o referido aluno no dia 21 de outubro para começarmos no dia seguinte. Se não desse certo, desistiria desta escola e iria tentar iniciar a atividade em outra escola, que estivesse mais receptiva. Após o contato, o aluno me informou que a turma estava formada e que eu poderia iniciar já no dia 22 de outubro.

3.2. Primeira reunião com os alunos

Uma vez combinado, direcionei-me no dia 22 de outubro para a escola. Estavam me esperando cerca de nove alunos. Fomos até a sala de vídeo e me apresentei aos alunos e lhes expus a minha proposta. Depois pedi para que comentassem o que esperavam das aulas/palestras. Pelo que eles comentaram, três coisas ficaram claras para mim. Eles expressaram a dificuldade que tinham de ler e interpretar os textos. Desejavam não apenas um estudo das obras, mas também saber mais a respeito dos movimentos que estavam relacionados a elas. E também queriam ver uma abordagem mais crítica das obras, mais relacionada com a atualidade.

Tinha dividido as obras da Fuvest em três módulos: Formação da sociedade brasileira (O Primo Basílio, Memórias Póstumas de Brás Cubas e Memórias de um Sargento de Milícias), o Mundo moderno (Macunaíma, Sagarana, A Hora da Estrela) e Poética Moderna (Alberto Caeiro - Fernando Pessoa e Libertinagem - Manuel Bandeira). Comentei sobre as relações entre os módulos e o intuito de ajudá-los a compreender como se sucedeu o processo de construção da sociedade brasileira e a relação que isso teria com a realidade contemporânea. Também disse que iria pedir uma redação com base na aula e que tivesse uma relação com a atualidade e a realidade deles. Com isso, disse também que iria ajudá-los na parte da redação. E que isso serviria também a mim como parte do projeto.

Eles concordaram com isso. Uma das alunas, em virtude de uma prova que ela teria na outra semana, pediu se eu poderia adiantar a aula de Memórias Póstumas, mas um dos alunos comentou que não seria legal alterar a ordem. E ficou decidido que as coisas iriam acontecer dessa maneira. Para um primeiro contato com o grupo, achei muito satisfatório. Com base nas conversas com os alunos, elaborei uma programação de atividades.

3.3. Andamento da segunda fase

3.3.1. Introdução

Pensando em uma melhor forma de trabalhar os livros do vestibular com os alunos, pude perceber depois que os assuntos tinham uma grande consonância com o andamento do projeto. Um dos objetivos do projeto era justamente verificar como os princípios constitutivos da sociedade brasileira estavam influenciando a juventude no atual momento, e os livros que faziam parte do cânone do vestibular tratavam justamente destes princípios. Pensei que seria interessante explorá-los de modo que pudesse criar uma consciência da realidade brasileira na qual estavam inseridos e também ressaltar a importância que a leitura e a literatura tinham na formação deles.

3.3.2. O primo Basílio - Eça de Queiroz

Estavam na sala, doze alunos, quatro não haviam estado na sexta-feira. Fui desenvolvendo a aula, explicando inicialmente a obra de Eça de Queiroz, o enredo de O Primo Basílio (2004) e todo o contexto histórico, cultural e filosófico da época. Os alunos estavam prestando atenção. Volta e meia tiravam dúvidas e parava também para perguntar se tinham alguma questão. Depois disso, pedi para que se separassem em três grupos e distribui três questões para desenvolver a leitura e interpretação do livro com textos específicos. Com isso, houve um estímulo para que eles pudessem dialogar a respeito do livro. Foi uma atividade interessante, pois desse modo eles poderiam ter contato com o texto (aqueles que não leram o livro), discutir e desenvolver a redação e a narrativa. Após o término das questões, pedi que eles dissessem em voz alta as respostas que tinham desenvolvido. Foi interessante pois havia um certo entusiasmo para responderem as questões. A maioria dos grupos conseguiu desenvolver bem a resposta mas sempre faltava algum detalhe, que eu complementava. Pedi como tema de redação como eles viam a literatura e se ela era útil e necessária a eles. No final da atividade, três alunas ficaram para tirar dúvidas a respeito do livro Memórias Póstumas de Brás Cubas (1992), pois teriam uma prova na semana seguinte. Como não teriam aulas na sexta-feira (dia 29 de outubro) em razão da votação do dia 31, elas iriam assistir o filme Memórias Póstumas, de André Klotzel. Expus a elas alguns detalhes do livro e o raciocínio desenvolvido por Machado de Assis na elaboração do livro. Não foi possível desenvolver os detalhes pela falta de tempo, mas elas acharam que foi proveitoso.

3.3.3. Memórias Póstumas de Brás Cubas - Machado de Assis

Alguns alunos que estavam na atividade anterior já estavam chegando e começaram a conversar comigo. Uma delas me disse que pretendia fazer Letras e me perguntou como era o curso, se eu aconselhava fazer... Expliquei um pouco como era o curso, a faculdade e estimulei-a muito a ingressar na faculdade. Uma das alunas chegou dizendo que não tinha tido tempo para fazer a redação. Pude perceber que poucos haviam feito o que tinha pedido e me perguntei se não deveria mudar de estratégia - se deveria pensar em uma atividade que cativasse a atenção deles. Encaminhamo-nos à sala. Havia cerca de nove alunos. Comecei a dar uma introdução à obra de Machado de Assis, explicando as duas fases literárias do escritor - a fase de aprendizagem e a fase literária. Um dos alunos parecia demonstrar muito conhecimento da área literária (em uma das aulas anteriores disse que tinha interesse por poesia), pois fazia comentários acima da média a respeito do Machado de Assis, perguntando alguns detalhes importantes. Alguns alunos tinham visto o filme Memórias Póstumas e questionavam certos aspectos da obra, como os personagens, e notaram a ausência de alguns destes no filme. A discussão envolvia praticamente todos os alunos e foi ficando cada vez mais interessante. Concentrei-me em um momento no título do livro e perguntei o que eles estranhavam a respeito dele. Eles disseram que era a questão do póstumo - as memórias escritas por um morto. Chamei a atenção para o fato de que o ponto de vista do morto como narrador colocava uma questão especial - o narrador era imparcial e confiável? Os alunos tinham dúvidas em relação a isso e mantive o suspense. Lemos então os três primeiros capítulos. Quanto à dedicatória, lembrei de sua forma e uma das alunas comentou que era muito forçado ver nela uma cruz. Mas lembrei que aquilo tinha o formato de um epitáfio. Alguns não sabiam o que era um epitáfio e expliquei. Usei um capítulo do livro chamado Epitáfio para efeito de comparação e os alunos comprovaram então a semelhança. Perguntei porque o autor tinha dedicado o livro a um verme e os alunos opinavam - chegamos à conclusão a respeito do pessimismo do narrador. Lemos então a dedicatória e fui chamando a atenção a respeito do caráter do narrador - as citações que demonstravam a alta educação e o caráter debochado. Isso gerou vários comentários. Lendo o terceiro capítulo, frisei ainda mais esses aspectos. Um dos alunos perguntou se era verdadeiro que a compreensão de Machado ocorreu somente na década de 60 - respondi que sim e que vários críticos estavam descobrindo aspectos da obra de Machado mas que foi na década de 60-70 que Roberto Schwarz conseguiu abordar uma nova faceta da obra. Fui demonstrando que o narrador era um membro participante da elite escravocrata da época e de como a mentalidade autoritária daquela elite estava sendo representada no próprio estilo e formato de Memórias Póstumas de Brás Cubas (1992). Muitos alunos tiveram uma reação de espanto diante do que foi apresentado. Muitos outros comentários foram surgindo e fiz um paralelo com as tendências ainda presentes na sociedade brasileira atual. Fiquei de fato muito satisfeito com o nível de discussão das aulas e a participação dos alunos.

3.3.4. Memórias de um Sargento de Milícias - Manuel Antonio de Almeida

Encaminhei-me mais cedo para a escola. Haveria uma palestra da Prof.ª Mônica às 10h na escola com algumas classes mas eu não poderia estar. Esperei no saguão e logo alguns alunos chegaram. Logo depois, a Prof.ª Mônica chegou com uma professora da escola. Elas tinham acabado de sair da palestra com os alunos. Segundo a Mônica, o contato com os alunos foi muito bom. Estavam presentes duas salas - havia uma sala com alunos críticos, embora mais quietos; outra com alunos mais barulhentos. A professora comentou que os alunos estavam ansiosos para falar e muitas vezes atropelavam uns aos outros. E disse por fim que estava um tanto esgotada; os alunos haviam exigido bastante dela. E comentou, entretanto, que o saldo foi muito positivo. Apresentei alguns alunos que estavam no projeto a ela.

Um outro aluno comentou que queria fazer Letras e veio me perguntar a respeito do curso. Ele gostava muito de poesia e comentou comigo sobre isso. Logo após isso, fomos à sala. Estavam presente 10 alunos. Na verdade, fico na dúvida se é correto apresentá-los como alunos e falar que as atividades são aulas, embora eles me chamem de professor. Começamos a falar então de Memórias de um Sargento de Milícias (1991). Fiz em formato de aula, achando que os alunos iriam participar como na vez passada, no caso, que foi o caso da aula anterior. Não houve muitas perguntas para tirar dúvidas e fui dando seqüência ao conteúdo. Lembrei-me que a Mônica tinha comentado em uma conversa por telefone que eu deveria dar mais espaço para os alunos comentarem e vi que isso realmente faltou.

No final da aula, quando comentei a respeito do retrato que o autor Manuel Antônio de Almeida havia feito da baixa burguesia, a classe média da época do Reinado, com sua dependência dos favores da elite escravocrata, isso gerou dúvidas e mais perguntas. Eles começaram a estabelecer relações com o livro Memórias Póstumas de Brás Cubas (1992) e isso deixou a aula mais interessante. Comentei como essa formação da sociedade brasileira causava impacto até hoje no Brasil, como, por exemplo, o clientelismo, o nepotismo e a dependência do Estado.

3.3.5. Alberto Caeiro (Fernando Pessoa) e Modernismo

Pensei em como fazer com que os alunos participassem mais com as leituras. A solução que encontrei foi o de eles entrarem em contato com os poemas, antes de qualquer explicação. Uma das alunas veio conversar comigo. Perguntei se havia muitos alunos que iriam prestar o vestibular nesse ano e ela comentou que, pelo que ela conhecia dos alunos do 3º ano, havia poucos que iriam de fato concorrer este ano. Ela também chamou a atenção do fato de que o pessoal do 3º ano era minoria nas minhas aulas. E embora ela não pretendesse ingressar na área de humanas, ela disse que a literatura era importante, embora a maioria das pessoas não desse o devido valor. Havia cinco alunos, creio que em virtude de ser uma sexta-feira, véspera de feriado.

Iria dar a aula a respeito de Fernando Pessoa, em especial, Alberto Caeiro. Pedi para que cada aluno lesse uma pequena biografia do heterônimo e seus poemas. Os heterônimos eram Alberto Caeiro, Álvaro de Campos e Ricardo Reis. Escrevi colunas com os heterônimos no quadro e eles iam me dizendo quais eram as características de cada heterônimo em cada coluna. Perguntei se eles sabiam qual era a diferença entre pseudônimo e heterônimo. Eles disseram que o pseudônimo era um nome falso. O heterônimo, disseram eles, que seria uma espécie de personagem por parte do poeta. Expliquei melhor a questão do heterônimo, dizendo que era uma personalidade literária criada pelo próprio escritor, com biografia própria. Para compreender melhor, sugeri que lêssemos um outro trecho que era um relato do próprio Fernando Pessoa a respeito da criação dos heterônimos. Disse a eles que era essencial compreender o fenômeno dos heterônimos de Fernando Pessoa e que, para isso, seria necessário compreender o contexto histórico e cultural da época de Pessoa, que era justamente o modernismo.

Então fiz uma introdução breve ao modernismo. Comentei a respeito do século XIX, época da razão, do progresso econômico e financeiro e da confiança no potencial do ser humano. Toda essa confiança estava gerando um desequilíbrio ainda imperceptível no ser humano, captado pelos artistas e filósofos, e que iria desembocar na 1ª Guerra Mundial. Com o abalo das certezas preconizadas anteriormente, ocorre a fragmentação do ser humano. Os artistas modernistas tentaram restabelecer a unidade perdida, conciliando as tendências contraditórias - tradição/modernidade, passado/futuro, pensamento/sentimento, ser/ter. Muitos deles acabaram pagando um alto preço nessa tentativa de conciliação, como no caso de Mario de Sá-Carneiro. Então disse que, ao invés de conciliar as contradições, Fernando Pessoa iria expô-las poeticamente por meio dos heterônimos. Eles seriam uma forma inteligente do poeta se manter contraditório em sua obra e em seu pensamento.

Então disse que cada heterônimo seria uma faceta do poeta - Alberto Caeiro (natureza), Álvaro de Campos (modernidade), Ricardo Reis (tradição).

Uma das alunas fez uma associação do momento no qual estávamos vivendo hoje com a manifestação dos heterônimos de Fernando Pessoa. Então disse que Pessoa estava, na época, antevendo muitas das contradições que se acentuaram intensamente em nossa época. No fim, perguntei se eu deveria adiar a aula de segunda para sexta e eles acharam melhor não, já que não tínhamos muito tempo até o dia do vestibular.

3.3.6. Macunaíma - Mario de Andrade

Algumas das alunas estavam em turmas ou conversando nos corredores. Novamente houve cinco alunos - uma nova aluna estava presente. Não sei se isso foi decorrente do feriado, mas fiquei me questionando como me ater ao interesse dos alunos em relação à literatura. Era evidente que os adolescentes prezavam muito mais o momento que estavam vivendo e não questões importantes, mas que exigiam um raciocínio mais abstrato, como no caso da literatura. Como então fazer para que ativessem sua atenção para o ensino da literatura? Isso não me desmotivou, pelo contrário, colocou-me uma questão importante a respeito do modo como devemos ensinar a literatura. Isso me ajudaria a refletir a como desenvolver uma didática que fosse atraente para eles e uma forma com a qual pudessem desenvolver narrativas e reflexões.

Comecei falando a respeito de Macunaíma (1987). Começamos lendo o parágrafo final do livro e iniciamos a discussão das definições de epopéia e rapsódia. Perguntei se eles tinham visto o filme Tróia e eles disseram que sim. Fiz um paralelo entre o filme e a epopéia.

Chamei a atenção deles Fiz então que prestassem atenção no subtítulo do livro - o herói sem nenhum caráter. Perguntei a eles qual era o estereótipo que eles tinham a respeito do herói. Disseram que era de alguém que defendia um ideal, que tinha superpoderes, que salvava os fracos. Comentei então que essa era uma concepção de herói do século XX, uma visão bem americana e moral por sinal. E que o herói que o livro estava aludindo era um herói de epopéia, um herói primitivo, que era anterior aos protótipos do século XX, e que por isso não seguia a moral correspondente a esta época. Mas que na verdade representava, no caso, muito mais o caráter de uma nação.

Desenvolvi a questão de que uma das vertentes do modernismo era justamente buscar o primitivo, em contraponto à racionalização vigente no século XIX e que essa tendência seria muito marcante a partir da década de 20. Mário de Andrade iria então realizar diversas pesquisas em busca das lendas indígenas, folclóricas e populares brasileiras. Encontrou um exemplar do livro do etnólogo alemão chamado Koch-Krunberg, que havia realizado diversas pesquisas na Amazônia e Venezuela, e que tinha resgatado diversas lendas indígenas. Nessa época, Mário de Andrade estava refletindo a respeito do caráter brasileiro, e encontrou na figura lendária do Macunaíma, "O Grande Mau", o correspondente ideal deste caráter. O escritor resgatou então a linha mestra da narrativa de Macunaíma e iria acrescentar muitas outras histórias de diversas fontes e até eventos de sua própria vida a ela.

Pedi para lermos então o comentário que Mário de Andrade faz a respeito da criação dos capítulos "Vei, a Sol" e "Ursa Maior" do livro. O escritor considerava "Vei, a Sol" como um dos capítulos principais de Macunaíma. Isso porque ele explicava que Macunaíma, ao se enamorar por uma portuguesa ao invés das filhas de Vei, estava na verdade desprezando as civilizações solares - China, Índia, México, Brasil incluso - e optando pela Europa. No capítulo "Ursa Maior", Vei, em vingança aos eventos acontecidos no capítulo anterior, preparava uma armadilha para Macunaíma, disfarçando a Uiara em uma européia e tentando-o a pular nas águas frias do lago (sinal do clima europeu). Uma vez que Macunaíma, após receber uma chicotada de calor, cai nas águas do lago, é desfigurado pelas piranhas e botos, perdendo braços, pernas e beiços, e, principalmente, a muiraquitã, que era a sua razão-de-ser na terra, além do símbolo que o ligava às suas raízes primitivas. Perdida a razão de estar no mundo, transforma-se então em uma estrela de brilho inútil no céu.

A leitura do texto gerou uma boa discussão a respeito do caráter brasileiro com os alunos. Eles compreenderam a razão de Mário de Andrade ter escrito o livro e começaram a questionar também o modo de ser do brasileiro, que despreza a sua própria cultura para importar a cultura de fora. Daí o subtítulo do livro ser um "herói sem nenhum caráter". Comentaram que a razão do brasileiro não ter um "caráter", isto é, uma "civilização" ou "cultura" formada, era em razão de ter desprezado as suas raízes primitivas e adquirir, sem questionamentos, toda uma cultura européia.

Após o término da aula, os alunos ficaram conversando comigo a respeito da literatura. Um deles disse que sentia falta de ter aprendido literatura mais cedo. Confessava a sua ignorância a respeito da literatura brasileira anterior ao romantismo. Uma das alunas comentou que ouviu de um professor de que a literatura hoje estava em declínio, sem grandes autores, mas eu disse a ela que as obras atuais ainda estavam sendo avaliadas e somente o tempo iria mostrar a importância de algumas delas. Uma das alunas observou que muitas das obras que lemos hoje não foram valorizadas na época que foram escritas, citando o exemplo das obras de Machado de Assis. A aluna perguntou se Machado não havia sido valorizado em sua época. Disse a ela que Machado começou a ser mais bem compreendido a partir de 1970, com os estudos de Roberto Schwarz e Antonio Candido. Com isso, pude avaliar com mais clareza, pelos comentários dos alunos, a importância da literatura para eles. E me ratificou a importância dela na educação e que valia a pena meditarmos e pesquisarmos mais a respeito de como criar caminhos para que a literatura se tornasse algo vivo para estes alunos. Sem dúvida, o declínio da leitura e da fruição da literatura estava empobrecendo ainda mais o sentido da "experiência" (no sentido benjaminiano) e a compreensão e interpretação dos textos para os jovens. Tornou-se para mim um ponto de honra buscar esses caminhos.

3.3.7. Sagarana - Guimarães Rosa

Em uma reunião anterior com a prof.ª Mônica, ela me disse que eu deveria dar mais espaço para os alunos se manifestarem e expressarem suas opiniões e me sugeriu que eu mostrasse o trecho inicial do filme Macunaíma, de Joaquim Pedro de Andrade, dando continuidade ao livro e a discussão. E que colocasse como tema de redação - "o caráter do brasileiro é preguiçoso?". Na aula, para minha boa surpresa, os alunos que não haviam aparecido nas outras aulas estavam presentes, totalizando nove pessoas. Havia, portanto, mais uma nova pessoa.

Como planejado, fomos na sala de vídeo e expliquei o que iríamos fazer. Eu iria mostrar as cenas iniciais do filme Macunaíma. Um dos alunos achou a atividade muito legal. Então comecei a passar o filme. Após dar uma pausa no filme, escrevi o tema na lousa e pedi para que escrevessem uma pequena redação a respeito. Disse para eles que poderia ser um texto curto mas alguns escreveram uma página inteira de caderno. Depois que todos entregaram, fiz uma breve explicação a respeito das frases "Ai, que preguiça..." e "Muita saúva e pouca saúde, os males do Brasil são" que atravessavam todo o livro e iniciei uma discussão a respeito do caráter do brasileiro. Eles foram expressando suas opiniões, pouco a pouco, até que a discussão começou a entrar na área da política - com alguns demonstrando suas opções. Quando falaram a respeito da implantação do comunismo no Brasil, um aluno se manifestou com muita ênfase. Uns consideravam o fato de que o brasileiro não era exatamente preguiçoso, porque penava muito para pagar as contas e enfrentava condições bastante adversas. Um dos alunos comentou que, na verdade, o problema do brasileiro era o comodismo. Aproveitei a deixa e fiz uma relação com as bases sociais brasileiras e a importação de uma mentalidade importada de fora e que isso teria, de fato, uma grande relação com o aspecto de comodismo do brasileiro, uma vez que este absorvia sem grandes contestações todo o tipo de pensamento das "metrópoles". A conversa estava fluindo bastante, mas um dos alunos pediu para que voltássemos à aula, já que precisaria sair mais cedo.

Comecei então a dar a aula de Sagarana (1983). Comentei a respeito do nome do livro, a história interessante de sua criação, os nomes dos contos. Os alunos iam perguntando a respeito dos aspectos do livro e ia contando os enredos dos contos. Fiz um paralelo com Macunaíma, dizendo que o personagem tinha saído de um mundo primitivo, indo para a civilização e, depois, perdia a sua integridade (representada pela muiraquitã) e sua integração com o universo e com o sagrado. Já no caso de Sagarana, era o escritor civilizado que se direcionava para um mundo rudimentar (representado pelo sertanejo) e encontraria um homem primitivo com a natureza e o sagrado, representado por uma religiosidade arcaica. Usei então os títulos dos livros para demonstrar isso. Os alunos começaram a entender com mais clareza as questões apresentadas pelo livro.

O que notei é que os alunos estavam sedentos de expor suas opiniões, de canalizá-las para uma discussão. Percebi que a sala de aula, em muitos momentos, não tem propiciado isso - uma abertura para que o jovem possa demonstrar suas idéias e opiniões. Eu mesmo pude perceber que o método expositivo que estava utilizando não estava abrindo esse espaço quando necessário.

3.3.8. A Hora da Estrela - Clarice Lispector

O livro a ser abordado seria A Hora da Estrela (1988). Clarice Lispector é uma escritora que apresenta muitos desafios para o professor, principalmente devido ao seu hermetismo. Achei interessante abordar aspectos da vida dela, principalmente o fato dela ter escrito o livro no mesmo ano de sua morte, já sabendo do câncer que iria matá-la. Pessoalmente vi no livro uma busca de aprendizagem da morte.Antes da aula, uma discussão estava sendo travada a respeito da qualidade do ensino. Um dos alunos disse que a solução seria a privatização do ensino, afirmação que foi prontamente refutada pelos outros alunos que estavam presentes. Eu dei minha opinião pessoal a respeito, dizendo que a privatização das escolas iria barrar o acesso dos alunos menos favorecidos ao ensino, além de uma violenta guinada das escolas para o mercado e para o vestibular, ao invés de se preocupar com a formação do ser humano. Essa opinião foi apoiada por um dos alunos.

Outro fato interessante foi que uma das alunas veio me perguntar a respeito da relação do escritor com o público. A pergunta era sobre o fato do escritor escrever para o seu sustento, se não era contraditório o fato do próprio escritor atacar as bases burguesas da sociedade uma vez que dependia exatamente deste público burguês. Disse que muitos dos escritores modernistas eram funcionários públicos e não escreveram exatamente para se sustentarem, embora isso fosse uma tendência que se acentuaria na modernidade. A própria Clarice iria escrever crônicas e artigos nos jornais para o sustento próprio. Coloquei essa questão para discussão com o grupo. E o questionamento ocorreu também entre alguns alunos.

Comecei a aula de forma expositiva, mas depois coloquei os pontos para discussão e isso foi muito mais interessante, pois eles iam comentando e perguntando a respeito de vários assuntos. A questão dos nomes dos personagens, o próprio título do livro, a questão do assunto central não ser o enredo, mas sim o próprio ato de criação literária. Apesar do calor da discussão, ficou o questionamento de como tratar a literatura de forma dinâmica.

3.3.9. Libertinagem - Manuel Bandeira

O último livro que estava faltando era Libertinagem (1991), de Manuel Bandeira. Tinha planejado algo bem descontraído, uma vez que muitos iriam prestar vestibular na semana seguinte. Com base nos poemas lidos, iria dar características do poeta - a humildade, a obsessão pela morte e a volúpia do desejo. Estavam sete alunos presentes, sendo que um deles nunca esteve em atividades anteriores. Achei interessante ver os alunos chamando outros colegas para participar.

Comecei então falando da vida e obra de Manuel Bandeira e de como a vida do poeta estava bem entranhada em sua poesia. Comecei lendo um estudo de Davi Arrigucci, que fazia uma apresentação do poeta e delimitei então os temas mais constantes. Logo partimos para a leitura dos poemas pelo próprio Bandeira e também pedi para os alunos lerem outros. Perguntava a eles quais eram os temas, as percepções que iam tendo a respeito do poeta e os alunos iam tecendo os comentários. Chegou o horário e os alunos foram se despedindo. No final, três alunos ficaram conversando comigo.

Eles começaram a falar a respeito da escola e da atual diretora, dizendo que ela não era muito atuante junto aos alunos, que não a viam na sala e nos corredores e fizeram comparações com o antigo diretor, que diziam ser mais ativo. Depois começaram a discutir a respeito da escola, do desinteresse dos alunos, que não davam importância às coisas que eram realmente essenciais. Uma das alunas estranhou o fato de haver, no universo da escola, poucos alunos realmente interessados em participar das aulas que vínhamos dando, pois as considerava importantes e não apresentavam custo algum. Os alunos também fizeram comparações entre a geração atual e a dos pais, dizendo que a geração anterior havia sido reprimida em sua educação e buscava poupar os filhos dos sofrimentos que haviam passado e que isso estava sendo prejudicial aos jovens. Por esses comentários, pude observar o quanto eles eram conscientes dos problemas da contemporaneidade que os atingiam.

Comentei que iria continuar as atividades no ano seguinte (2005) e que iria precisar da ajuda deles para montar um programa. Eles gostaram bastante da idéia e disseram que gostariam muito de participar e ajudar. Comentaram também que não gostariam de perder os laços com a escola e que gostariam de participar de minhas aulas do ano seguinte, uma vez que um deles era do 3º ano.

4. Terceira fase

Como objetivo de reflexão para a próxima fase estará a busca de uma metodologia que abarque o ensino de literatura e que também estimule a construção de narrativas dos alunos. Com isso, desejo estabelecer a leitura de cartas, críticas e crônicas dos próprios autores para os alunos e também estimular a redação de cartas e críticas por parte dos alunos. As leituras do primeiro semestre de 2005 irão alimentar também a pesquisa e reflexões para a construção desta metodologia.

Em virtude do redirecionamento do projeto e o objetivo de atender as necessidades dos alunos do 2º e 3º anos em relação ao vestibular, houve, por minha parte, um grande emprego de tempo e energia para a elaboração de um programa de aulas e que exigiram leituras além das que estavam planejadas. Desse modo, não pude fazer uma revisão bibliográfica apropriada, mas que será realizada com toda a minúcia e presteza na terceira fase do projeto e que irá enriquecer ainda mais as conclusões que serão feitas no final do projeto.

4.1. Andamento da terceira fase

Segunda-feira, 4 de abril de 2005.

Após conversar com a coordenadora da escola para retomar as atividades, tive um primeiro contato com os alunos. O caminho para retomar as atividades seria novamente pelo Grêmio, iniciativa que havia dado certo no ano passado. Mas estava ciente de que muitos dos que estavam no ano passado já não estariam mais, pois a maior parte deles havia se formado no ano anterior. Os alunos do grêmio que eram minha "ponte" com os demais estudantes da escola, como o Paulo e o Gabriel, já não estavam lá, eu teria de reconstruir os laços com os outros alunos. O Henderson ainda continuava, mas nos contatos iniciais ele estava ausente. Foram novos alunos que me receberam para discutir como dar início. Eles me disseram que haviam muitos alunos interessados e pedi que o número inicial seria de, pelo menos, 15 alunos. Eles disseram que iriam fazer uma espécie de seleção dos que realmente estavam interessados.

No primeiro contato com o grupo de alunos relacionados, estavam presentes aproximadamente 11 alunos, sendo que nenhum deles estava presente no ano passado. Interessante que, da mesma forma que no ano passado, haviam mais pessoas do 2º ano do que do 3º ano. Perguntei a eles a razão disso - eles me responderam que o pessoal do 3º já estava de "saco cheio", uma vez que estavam pressionados pelas obrigações do vestibular, enquanto que o pessoal do 2º não.

Além disso, percebi uma latente animosidade entre os alunos do 2º e do 3º. Uma das meninas que parecia ter assumido o Grêmio comentou que ela havia feito uma seleção dos alunos com critérios dos que eram mais comportados e interessados e os que "não iriam bagunçar". Um dos meninos fez um questionamento bem veemente: "Como é que você pode fazer isso?", referindo-se ao critério de seleção adotado. De fato, havia um clima diferente entre os alunos, mas eu não sabia distinguir o por quê.

Então expliquei quais eram as minhas idéias para eles e que gostaria de fazer algo bem aberto, contando com a colaboração deles, e que iria me concentrar na leitura de textos e no desejo de ajudá-los a criar narrativas. Ficou combinado que as atividades seriam todas às segundas-feiras, às 12h30. Saí da escola com a impressão de quebra de trabalho, uma vez que os alunos do ano passado não iriam participar deste ano.

Segunda-feira, 11 de abril de 2005.

Após contato com a minha orientadora explicando como foi o andamento do primeiro dia, comentei a respeito da seleção que eles fizeram dos alunos. O que se pode perceber é que mesmo os alunos incorporavam o é que os alunos Comentei também que não havia nenhum aluno do ano passado e a impressão é de que tinha havido uma ruptura do trabalho desenvolvido. Isso se tornou um indício claro das rupturas que existem nos projetos escolares e também dentro da própria escola. A professora me recomendou seguir em frente com as atividades e que deveria concentrar bastante no levantamento bibliográfico, que havia ficado em débito no ano passado.

Encaminhei-me à escola e ao direcionar-me à tradicional sala de vídeo, palco de nossas atividades, havia apenas quatro alunos. A sombra do início das atividades do ano passado passou por mim novamente, mas desta vez disse a mim mesmo que não iria me abater com o número dos alunos. Havia quatro meninas - a que havia organizado o início das atividades e três meninas - a Nayara, a Mariana e a Sabrina. Iniciei a atividade fazendo duas perguntas a elas: Você acha que a literatura é importante? e Você acha que a literatura é útil? Pedi para que escrevessem no papel as respostas. Depois disso, começamos a discussão a respeito do assunto. Elas comentaram que viam a literatura como uma passagem de conhecimentos anteriores e também como um registro histórico.

Utilizei como subsídio para a discussão os textos de Antonio Candido: A literatura e a formação do homem (1972); e o O direito à literatura (1995).

Iniciei tocando no assunto que a literatura era um bem essencial ao ser humano. Abordei três pontos que Candido aborda nos textos: a literatura como algo que proporciona a fantasia e o devaneio, sendo isto um aspecto tão necessário ao ser humano uma vez que ele não pode conviver 24 horas com a realidade concreta; a literatura como algo que irá humanizar o homem. Humanizar no sentido de torná-lo humano, quanto no sentido de levá-lo a conhecer as suas bases mais elementares e psicológicas como o conhecimento mais amplo, mas também no sentido de ser mais humano no trato com os outros de sua espécie; e, por fim, a literatura como transmissora de conhecimentos. Comentei que esta última era o conceito que as pessoas mais viam na literatura, mas que ela tinha uma função muito mais profunda e poderosa. Também comentei a respeito do afastamento das pessoas em relação ao texto e à narrativa e como isso estava fazendo com que as pessoas estivessem tendo cada vez mais dificuldades de interpretar os textos e fazendo com que ficassem presos cada vez mais no literal (manifesto).

No final da atividade, uma das meninas veio expressar sua opinião de que a literatura era importante nos pontos que eu tinha abordado, mas que não via utilidade para a área que ela iria prestar vestibular, no caso biologia. Isso gerou uma discussão interessante. Comentei que na Europa as faculdades de Medicina estavam incluindo a literatura em sua grade pois viam a necessidade de que os médicos buscassem mais a prática de ouvir os pacientes e a leitura de livros de literatura seria um grande estímulo para isso. Embora concordasse um pouco comigo, ela não saiu muito convencida da utilidade da literatura. Coincidentemente ou não, ela não apareceu mais nas atividades.

Segunda-feira, 25 de abril de 2005.

Estavam apenas três alunos desta vez. Havia comentado com os alunos na atividade anterior de que iria trabalhar com as idéias lançadas por Sérgio Buarque de Holanda, em seu livro Raízes do Brasil. Comentei isso com a orientadora e disse que tentaria passar um vídeo que abordasse a obra de S.B. de Holanda, e ela comentou que não deveria passar todo o vídeo, mas apenas um trecho, para que a atividade não ficasse enfadonha. No final das contas, não consegui encontrar o vídeo mas achei importante trazer esse livro para discussão pois ela se tornou uma base para que eu pudesse compreender com mais clareza os princípios constitutivos da sociedade brasileira. Além disso, os conceitos abordados pelo sociólogo dão base para muitas obras da literatura nacional. Para que a aula não se tornasse muito complicada, trouxe alguns trechos de textos do livro, outro de um noticiário, uma escalação de jogadores de futebol, um trecho de artigo. Com base nisso, fui desenvolvendo o raciocínio com os alunos e abrindo para discussões, principalmente na questão do homem cordial e na dificuldade do brasileiro de separar o público do privado. Foi muito interessante pois eles faziam conexões entre o que estava escrito com a realidade, principalmente com o que estava acontecendo na atualidade, marcado por muitas notícias de corrupção. Fiz então a afirmação de que as obras literárias brasileiras (principalmente os livros do vestibular) iriam abordar muitas destas idéias e que prestassem atenção nos encaminhamentos que iriam ocorrer nos livros.

Segunda-feira, 2 de maio de 2005.

Busquei dar uma introdução geral do livro Memórias de um Sargento de Milícias. Mostrei basicamente a construção do livro e a correspondência entre a obra literária e a realidade social da época. Comentei a respeito da fixação da obra na classe de homens livres da época (isto é, o romance não abordou nem a elite nem a classe dos escravos) e de como os membros desta classe social buscavam sobreviver em meio a um movimento de ordem e desordem, com base no favor. Fiz então paralelos entre Raízes do Brasil e a realidade brasileira atual. Busquei sempre fazer esse movimento de ida e vinda, de refletir a realidade, mostrando a atualidade da obra literária com os nossos dias. Isso foi uma tentativa de dar um sentido ao que estávamos discutindo nessas atividades. Conversando com Henderson, que estava assumindo a presidência do Grêmio, pude entender melhor o que estava acontecendo na escola - uma disputa política acabou acontecendo dentro do Grêmio, permeado de conflitos pessoais e políticos. Havia duas chapas concorrendo ao Grêmio, mas a chapa que estava sob a direção da menina que ajudou a organizar as atividades se desmantelou. E a chapa do Henderson acabou ganhando. Isso me forneceu chaves para a interpretação do meio estranho de nossas atividades e um pouco da evasão que ocorreu nelas. Logicamente há outros fatores, mas achei interessante essa dinâmica que estava acontecendo dentro desta escola. Comentei isso com a orientadora e ela observou que o Grêmio que tinha sido um apoio no ano passado, desta vez não conseguiu nos ajudar muito, talvez em razão da cisão entre os grupos de alunos que disputavam o grêmio.

Segunda-feira, 9 de maio de 2005.

Trouxe desta vez trechos do livro para uma discussão mais ampla a respeito do livro. Fazíamos a leitura dos trechos e abríamos para a discussão. Isso foi uma iniciativa de aproximá-los do texto. Uma tentativa de não ficar apenas em uma aula expositiva mas fazer com que buscassem entender o sentido no livro no próprio texto e não em informações vindas de fora. Senti que esta dinâmica foi acertada, pois havia uma certa dificuldade de apreender o que o texto queria passar. E o propósito do livro foi ficando mais claro a eles. Disse a eles, no final, que iria trabalhar agora com a questão da narrativa para estimulá-los a desenvolver a iniciativa de narrar. Eles gostaram bastante da idéia.

Segunda-feira, 16 de maio de 2005.

A idéia da atividade era trabalhar com haikais - poemas curtos japoneses. Trouxe os conceitos do haikai, os dez mandamentos da construção dele, e poemas de Matsuo Bashô, um dos mais famosos haicaistas japoneses. Trouxe um haicai famoso dele - o do pulo do sapo na lagoa. Fui lendo o haicai na grafia japonesa e a tradução para o português. Senti o entusiasmo deles crescerem cada vez mais. Perguntei se estavam gostando e elas comentaram que sim, que era algo diferente. Trouxe a eles então alguns haicais de Paulo Leminski e elas adoraram. Li alguns que eu tinha escrito também e estimulei-os a escreverem também. Mas isso teria que partir das vivências e das andanças deles. Não daria para fazer isso na sala de aula. Elas saíram estimuladas a escrever. Deixei-as livres para isso.

Segunda-feira, 23 de maio de 2005.

Desta vez, estavam somente a Nayara e a Isabel. Elas disseram que a Mariana estava sumida, que não aparecia há uma semana. Perguntei se elas sabiam o que havia acontecido. Fiz o mesmo procedimento da aula a respeito de Memórias de um Sargento de Milícias. Uma explanação geral a respeito da obra para depois explorá-los com outros textos do livro. Trouxe os primeiros capítulos do livro e iniciei uma discussão a respeito do caráter do narrador. Frisei a questão de que o narrador - um defunto autor - era um membro da elite escravocrata e de como era a sua mentalidade arbitrária e de como a forma como ele trata o narrador refletia o seu procedimento social e de como isso estaria repercutindo na sua obra. No fim da atividade, elas comentaram a respeito de fazer uma atividade com teatro, uma vez que muitos deles atuavam ou gostavam disso. Comentei que conhecia uma pessoa que trabalhava com teatro e que poderia trazê-lo para conversar com eles. Com esse interesse pelo teatro, não haveria uma tentativa de reapropriação das raízes das vidas deles?

São Paulo, 30 de maio de 2005.

No início, encontrei com os alunos fora da sala e comentei a respeito do amigo que trabalhava com teatro. O Henderson, que era o presidente do grêmio, estava entre eles e ele disse que isso ficaria a cargo da Nayara, pois ele não queria se comprometer. Mas disse que só faria alguma coisa se fosse a peça Eles não usam black-tie, de Gianfracesco Guarnieri. Não iria fazer uma peça burguesa. Perguntei o que estava acontecendo, porque estavam tão desestimulados, e ele fez um comentário interessante. "A liderança reflete as massas. Se a massa é assim alienada, não há como a liderança fazer muita coisa". Achei o comentário muito agudo e revelador de como estava a situação atual dos adolescentes e me trouxe bastante reflexão. A Nayara também comentou do receio de ter a iniciativa de algo e se chocar com a indiferença dos alunos.

Trouxe os trechos do livro Memórias Póstumas para discussão. Elas faziam as leituras dos trechos e abríamos para a discussão e buscávamos o sentido do texto e fazíamos a analogia com a questão do narrador. Disse a elas que eu estava apresentando uma interpretação bem social da obra e de que havia outras interpretações, mas de que esta visão trazia um sentido bastante coerente com a obra. Chamou a atenção a questão da atitude do escravo Prudêncio e de como o narrador era muito cruel e irônico no trato de algumas classes sociais. Perguntei se isso trazia uma compreensão clara da obra e elas respondiam que sim. Fiz paralelos com Dom Casmurro, abordando também a questão do narrador. Também comentei a respeito de um livro do Machado que eu havia lido, que era Casa Velha e de como a mudança de perspectiva do narrador era interessante. Uma das alunas pediu o livro emprestado para ler. Perguntei a respeito dos haicais e elas disseram que tinham escrito mas que estavam com vergonha de trazer. Disseram que tinham escrito e lido para as pessoas da família e elas tinham feito pouco caso. Estimulei-as a trazerem os poemas para a próxima atividade.

São Paulo, 6 de junho de 2005.

Hoje, como combinado, seria uma atividade de desenvolvimento de narrativas. Achei interessante trazer o livro "Minha vida de menina", de Helena Morley, para despertar neles o desejo de construir as narrativas. Cheguei à escola e me encaminhei para a sala de aula. Uma das meninas chegou e disse que as outras meninas não tinham percebido a minha chegada. Quando saí da sala para chamá-las, vi uma das meninas batendo de brincadeira em um rapaz. Elas então entraram na sala. O rapaz chegou e perguntou o que estávamos fazendo e disse que era uma atividade de literatura. Ele perguntou se ele poderia estar e eu disse que sim. Ele se chamava André e era bem desenvolto e expressava bastante as suas idéias, embora de forma desordenada.

Perguntei a respeito dos haikais para as meninas e a Nayara me mostrou os que havia escrito. Estavam muito bons na minha opinião. André perguntou o que eram os haikais e buscamos situá-lo. Ele disse que também havia escrito um poema e sacou seu caderno e mostrou um poema que tinha escrito, juntamente com algumas ilustrações. Ele disse como havia escrito o poema, dizendo que estava sentado perto do lago do Parque do Morumbi e ficou observando uma pessoa a beira do lago. E ficou escrevendo o seu poema, juntamente com as ilustrações. Ele buscava explicar cada verso do poema e muitas vezes não conseguia expressar seu raciocínio. Desse modo, ele foi monopolizando a atenção da aula. E mostrou também as ilustrações que havia feito, buscando explicá-los também. Disse que havia feito uma ilustração e mostrado ao seu pai - o pai viu o desenho e perguntou "Isso dá dinheiro?". E comentou a respeito dos pais, que ficavam aconselhando-o a buscar um trabalho que desse dinheiro e reconhecimento. Uma das meninas disse que seus pais faziam mesmo, tentando direcioná-la a fazer algo na faculdade que era desejo deles. Nayara havia dito que havia lido seus haikais para a família e a mãe havido praticamente ignorado e dito para ela ficar quieta. Também reclamou do fato de suas irmãs buscarem poemas "bestas" na Internet ao invés de ouvir os poemas que ela mesmo havia escrito. Ela aproveitou também para ler um dos poemas que havia escrito. Fiquei pensando no fato da reclamação dos alunos de hoje de que eles não terem iniciativa e não buscarem desenvolver nada, mas fiquei perguntando a mim mesmo se eles tinham esse estímulo por parte dos pais e da família. Como desenvolver o potencial artístico se o ambiente ao redor - as pessoas com os quais se convive - se atém a uma vida concreta e sem imaginação e poesia.

Em um certo momento, André começou a falar a respeito de um outro poema que escreveu a respeito de uma desilusão amorosa que teve. A menina a abandonou - ele então pegou uma espécie de estilete e fez um corte no braço, como numa tentativa de suicídio. Para disfarçar, comprou uma braçadeira. A menina então veio cumprimentá-lo e, nisso, ele observou o seu braço cortado e disse que se sentiu tão superior à menina, que praticamente a desprezou e a tratou friamente.

Uma das meninas estava ouvindo e disse também que já havia tentado se suicidar e mostrou os pulsos. E comentou que quando tinha sete anos, havia pulado do segundo andar. Fiquei observando aquele grupo que aparentava ser tão normal e pude notar que alguns dramas que eles passavam eram muitas vezes imperceptíveis para nós. Pude observar, na prática, todas as contradições que os jovens de hoje atravessam em uma sociedade tão perdida de lastro na qual vivíamos.

Sugeri então que fizéssemos a atividade da autobiografia. Li um trecho de "Minha vida de menina", muito engraçado por sinal, mas que senti que não foi tão adequado naquele momento. A alguns pedi que escrevessem um fato da vida deles, a outros pedi que desenhassem. O rapaz havia feito um desenho de um rosto sendo puxado por vários ganchos e explicou que tinha desenhado isso querendo mostrar que o rosto era a sua personalidade e os ganchos eram as pessoas que tentavam puxá-los para os seus desejos, descaracterizando-o. Assim foi a experiência deste dia.

São Paulo, 13 de junho de 2005.

Trouxe alguns textos do Primo Basílio - trechos do romance e da carta que o autor escreveu para Teófilo Braga e as críticas de Machado de Assis. Fiz uma explicação do contexto histórico do realismo e como foi que o movimento chamado Realismo se formou. O Primo Basílio era um romance de tese, no qual o autor buscava demonstrar como uma educação burguesa frívola e romântica leva a mulher portuguesa da época a uma vida vazia e medíocre e a própria destruição. Era uma crítica à família burguesa lisboeta, que, no romance, é representado por vários tipos no romance. A leitura dos textos foi suscitando dúvidas por parte dos alunos e gerando uma discussão interessante. A crítica de Machado de Assis trouxe mais incentivos à reflexão a respeito do romance. Machado de Assis coloca questões a respeito da estrutura do livro, da personagem Luíza (um títere, na opinião de Machado) e a respeito da própria escola do Realismo. Vemos então que, mesmo sendo associado ao Realismo, Machado não se pautava tanto pelos ideais desta escola literária, o que nos faz pensar se a concentração do ensino na literatura nas escolas literárias é realmente o melhor caminho. Isso é uma discussão que tem sido feita em cada atividade. Além disso, as críticas de Machado demonstram como ele iria desenvolver a sua obra posteriormente. Os alunos demonstraram não gostar de Eça de Queiroz e concordavam com Machado em suas críticas. Alguns não tinham lido o livro, mas disse a eles que deveriam ler para terem um juízo mais pessoal. Fiquei pensando se a forma como conduzi a atividade, mostrando a crítica de Machado, não estava induzindo a visão deles de forma negativa a respeito do livro, sem que eles desenvolvessem, nesse caso, uma visão pessoal. É uma coisa a se pensar. Conversei com eles a respeito da atividade da semana que vem - leituras dramáticas de peças teatrais. Perguntei a eles se eles gostavam da idéia e eles disseram que sim, mas não expressaram uma opinião maior. É como se eles não refletissem a respeito do que desejam em termos educativos, apenas esperando da minha parte as idéias e as atividades. Para mim, ficou claro que ainda hoje a figura do professor é importante para dar a uma sentido ao que irá estudar, mas também demonstra à passividade dos alunos ainda.

São Paulo, 20 de junho de 2005.

Trouxe para a atividade algumas peças teatrais, mas me concentrei em um trecho da peça Macbeth, de Shakespeare. Era o trecho da presença do diálogo entre as três bruxas e Macbeth. Pedi para escolhessem os diálogos para que pudessem lê-los. Iríamos fazer uma leitura dramática, não exatamente uma dramatização. Estavam presentes somente as alunas. André não estava presente desta vez, de modo que acabei por assumir o papel de Macbeth. Elas começaram tímidas, mas logo se soltaram e começaram até a entonar as vozes, a fazer brincadeiras, a simular as situações... Foi interessante observar como as alunas faziam a simulação das falas. Era uma forma de se expressarem, de extravasarem suas emoções, de agir... Seria um modo muito interessante dos adolescentes de atuarem, de ocuparem seu espaço... De transbordarem o que havia dentro deles para fora. Embora fosse uma experiência na atividade final, pude visualizar as leituras dramáticas como uma grande forma de auxiliar no aprendizado dos adolescentes, uma vez que eles poderiam elaborar o que se passa no íntimo deles. É algo a ser trabalhado em uma didática futura.

 

D) Considerações finais

Após realizar o levantamento bibliográfico e a pesquisa de campo na Escola Manuel Ciridião Buarque, considero-me apto a realizar algumas considerações finais a respeito da situação contemporânea do adolescente e do ensino de literatura.

Em minhas observações iniciais a respeito dos temas, tenho notado a escassez dos estudos a respeito da situação psicossocial do adolescente, principalmente no contexto escolar. Em minha opinião, iniciativas pedagógicas que não possuam uma profunda compreensão da complexidade que circunda a atual adolescência e suas demandas terão pouca efetividade e impacto. Nesse sentido, as leituras que realizei trouxeram um pouco de luz para uma melhor compreensão a respeito da situação contemporânea do adolescente. O declínio da narrativa em um contexto mundial, aliada às peculiaridades da formação do povo brasileiro, amplia em muito as problemáticas da adolescência. Os estudos de Phillipe Jeammet (2005) tornam-se importantes no sentido de estabelecer a necessidade que os adolescentes possuem de um ambiente externo que os apóiem em seu desenvolvimento. Torna-se primordial uma maior sensibilidade por parte do mundo dos adultos em relação ao aspecto comportamental dos adolescentes – por trás do "agir" dos adolescentes há uma gama de reivindicações que devem ser compreendidas e isso só ocorrerá por meio de um novo posicionamento ético por parte do mundo adulto, principalmente os pais e os docentes.

Abordando estes aspectos, busquei traçar alguns encaminhamentos no sentido de verificar o quanto a literatura e seu ensino poderiam contribuir para lidar com as problemáticas do adolescente de hoje. Fica evidente que o declínio da narrativa tem provocado efeitos na mentalidade dos indivíduos, e isso é também decorrente da distância que tem se estabelecido entre o estudante em geral e o texto, em especial o literário. São vários os fatores que têm conduzido a isso, mas é visível que é a perda do sentido de importância da literatura tem grande parcela nesse estado, o que nos remete ao declínio da narrativa. A questão não está no valor da literatura em si, mas sim em virtude do encaminhamento que a própria modernidade tem trazido à sociedade.

As experiências na escola confirmaram, em muito, as teses que foram sendo levantadas nas minhas leituras. Tenciono apresentar da melhor forma possível estas conclusões e levantamentos. Para isso, procurarei dividir minhas conclusões de acordo com o encaminhamento das fases de andamento do meu projeto na escola.

A primeira e segunda fase foram importantes no sentido de estabelecer uma comunicação com os alunos, de buscar caminhos para o atendimento da necessidade deles. Nessas fases, pude observar a situação dos alunos em um sentido mais amplo, em uma macrovisão, pois me relacionei com os estudantes tendo em vista a perspectiva do grupo.

Já na segunda fase, em virtude de diversos fatores, tive à minha frente um grupo reduzido de alunos, o que configurou um trabalho mais relacionado com uma espécie de oficina. No trato mais individual com os jovens, pude observar certas nuances que não seriam possíveis de ser visualizadas em grupo. Considerei isso positivo, pois assim pude ter uma visão mais personalizada dos alunos e buscar nisso uma visão mais psicanalítica.

Considerações da primeira fase

No que diz respeito à pouca assiduidade dos alunos no início das atividades, pude perceber a falta de comunicação entre a escola e os alunos, uma vez que os alunos compareceram ao primeiro dia sem saber com detalhes a natureza das atividades. Na realidade, uma vez realizada uma lista de alunos escolhidos pelos professores e pela diretoria, ficou evidente a arbitrariedade desta, pois os alunos foram convocados sem que se explicasse com detalhes a razão das atividades e sem que isso partisse do interesse deles. Por trás da sugestão desta lista, estava o desejo dos professores de que "disciplinássemos" os alunos, em vez de ajudá-los a construir um conhecimento junto com eles. Em uma situação dessas, haveria conseqüentemente a apatia e o desinteresse por parte dos alunos. Isso demonstra a pouca compreensão que a Escola possui em relação à situação do adolescente.

Além disso, era visível um grau de animosidade entre alunos e professores. Isso ficou evidente no levante que foi observado na escola em relação aos professores. Conversando com um dos alunos do Grêmio, ele disse que tais movimentos dos alunos eram comuns na escola - isto é, não eram fatos isolados. Havia nisso um certo oportunismo de alguns alunos dispostos a somente causar baderna, mas havia também uma reivindicação legítima por trás dele. Era um indicativo de como as necessidades dos alunos, autênticas por sinal, não estavam sendo atendidas pela escola. Os professores, por seu lado, uma vez que não estavam conseguindo reagir positivamente a esta demanda, exerciam a autoridade de uma forma arbitrária.

Pude observar, na prática, muitas das leituras que havia feito a respeito dos adolescentes e do atual momento histórico da sociedade. Foi nítido ver a queda da "experiência" dos jovens, segundo a concepção formulada de modo tão claro por Walter Benjamin e Theodor Adorno, aliada à configuração social decorrente das raízes aludidas por Sérgio Buarque de Holanda, em seu livro clássico Raízes do Brasil (1995), e também como isso estava repercutindo no emocional da juventude, demonstrada pela falta de interesse e concentração e ausência de objetivos concretos por parte dos adolescentes nos estudos.

Nessas leituras, pude vivenciar a questão do "cordialismo" que rege as relações que são estabelecidas pelos brasileiros embute um traço autoritário. Segundo Mônica Amaral, "o conhecido traço cordial do homem brasileiro, no qual se encontra presente a influência ancestral dos meios rural e patriarcal, ao invés de envolver um padrão de civilidade, demonstra, ao contrário, alto poder coercitivo, abrindo caminho para a adesão irrefletida a idéias e projetos que lhes são impostos heteronomamente" (2004). A classe dominante, por trás de pretensas relações de cordialidade, estabelecia um domínio autoritário sobre as outras classes na condução do Estado brasileiro. Um Estado de exceção, como o que foi estabelecido pela ditadura militar de 1964, foi o resultado da combinação dos traços autoritários do Estado brasileiro com a cultura de relações pessoais que invadem o espaço público, traço herdado desde a época da escravidão. Esta relação continua exercendo influências e trazendo conseqüências não apenas ao conjunto da sociedade, mas também individualmente, repercutindo na vida íntima do brasileiro, como podemos verificar nos casos crônicos de corrupção evidentes na condução do Estado brasileiro. A escola, como uma instituição que reproduz muitas vezes a ideologia dominante, ainda carrega hoje os traços de autoritarismo que herdou nesse período.

Com a crescente democratização política e desmilitarização das relações sociais, criou-se uma nova geração e um novo sujeito histórico no aluno. O aluno que está hoje na sala de aula não é o mesmo aluno de algumas décadas atrás. Ele apresenta uma outra complexidade e novas demandas. Diante de um quadro como esse, os professores têm adotado uma conduta moralizante sobre o aluno e a escola passou a agir com um objetivo normatizador, disciplinador e moralizador. O confronto tem se tornado inevitável.

A questão do levante dos alunos traz algumas ressonâncias. A indisciplina por parte do aluno acaba sendo gerada como um fruto natural de todo esse processo, muitas vezes tomando a forma de uma espécie de protesto mudo diante dessa realidade e sendo, em muitas situações, uma forma legítima de resistência para que ocorra a produção de novos significados e funções por parte da escola. Isso deve gerar uma grande reflexão a respeito do próprio ato educacional.

Para uma melhor compreensão dessa questão, desejo remeter ao estudo de Phillipe Jeammet. Segundo o psicanalista, é vital que as primeiras trocas, que são consideradas fundamentais para o futuro das crianças, estejam se desenvolvendo em uma indistinção sujeito e objeto progressivamente decrescente que permite que a criança se alimente da qualidade da troca, interiorizando-a e permitindo que se torne sua, mas de um modo que o peso do objeto de intercâmbio afetivo não seja sentido nem reconhecido. A isso podemos denominar de bases narcísicas e são elas que irão dar o sentido de segurança e continuidade internos para o indivíduo. A construção da personalidade está vinculada a um sistema que se pauta por um determinado raciocínio:

Identifica-se aí uma contradição em potencial na adolescência. O indivíduo, ao viver a imposição do desenvolvimento, sente isso como uma contradição insolúvel, um paradoxo que necessita ser pensado ou mentapensado.

É essa relação de dependência com o objeto que necessita ser gerenciada e as perturbações do comportamento e a patologia do agir são claras manifestações desse processo. As mudanças de atitudes do adolescente são a exteriorização das tensões e do trabalho de adaptação que são requisitados ao aparelho psíquico. O agir, que é o oposto da ação (prolongamento do trabalho psíquico da elaboração), oferece uma via de descarga que substitui este trabalho psíquico. "Podemos interpretar assim o recurso ao agir como um sinal da dificuldade de uma representação puramente mental dos fenômenos psíquicos que o provocaram" (Jeammet, 2005, pág. 73). A utilização do espaço faz parte deste movimento de exteriorização. O adolescente utiliza esse recurso como uma forma de concretização de um pensamento que não tem mais à sua disposição os meios de representação suficientemente claros e diferenciados, mas também o utiliza como um modo de exercer o domínio sobre o objeto.

Para o adolescente, torna-se mais fácil controlar a distância dos objetos externos do que a relação de desejo em relação aos objetos interiores. Uma atitude de oposição proporciona um recurso mais facilmente negociável entre o desejo de aproximação e a necessidade de diferenciação do que a conscientização de uma relação de ambivalência. O espaço torna-se então parte desta realidade externa, localizado sobre o controle do plano perceptivo-motor e, portanto, da consciência, do Ego e da ação voluntária.

Assim, a conduta de oposição é uma variante mais simples da organização desse tipo de situação. Segundo Jeammet, "opondo-se, o adolescente apóia-se sobre o adulto ao qual ele se confronta, sem ter que tomar consciência deste apoio e arranjando seu narcisismo e sua autonomia por meio da afirmação de sua diferença" (Jeammet, 2005, pág. 74). Neste tipo de relação, a busca do limite e as aparências prevalecem sobre a mudança e a interioridade. A ruptura demonstra um claro exemplo do modo como é possível ao adolescente se aproximar diferenciando-se e marcando os limites. A agressividade testemunha um vínculo, ao mesmo tempo em que o preserva. Há nela tanto um trabalho de vinculação, como também de perda de vínculo com o objeto, mas que tem sentido de restauração e proteção da identidade do sujeito.

O levante dos alunos deve ser considerado com a perspectiva de ser uma forma de exteriorização das tensões e do trabalho psíquico realizado internamente pelo adolescente. O estopim para a manifestação violenta foi uma expectativa não atendida das necessidades dos alunos por parte de uma das professoras. Não foi uma atitude gratuita, mas sim o desejo de expressar uma necessidade.

Uma vez que o jovem possui dificuldades de representar mentalmente o paradoxo da dependência ao qual está submetido, ele irá utilizar o espaço para marcar uma oposição, impor limites e estabelecer uma diferenciação com o adulto. Mas irá também fazer isso para se apoiar no próprio adulto e buscar uma autonomia que ainda não possui. Na realidade, essa atitude de oposição é um claro indicador de que ele quer manifestar uma necessidade e de que precisa de um ouvido sensível às suas reivindicações. É uma expressão de que necessita do outro para o seu próprio desenvolvimento. A reação dos adultos a esse quadro é que irá determinar, em muito, a qualidade do desenvolvimento dos adolescentes. E, na realidade, a escola e seu corpo docente não se mostraram sensíveis ou atentos a este desdobramento.

De minha parte, confesso que me senti inicialmente desestimulado em virtude do escasso comparecimento dos alunos. A falta de interesse dos alunos havia frustrado minhas expectativas, mas era necessário reconhecer a arbitrariedade da relacionamento da escola com o aluno marcou o início das atividades. O desinteresse era também uma manifestação de oposição e de ruptura com o mundo dos adultos. Mas pude reconhecer o quanto um adulto precisa estar estruturado para suportar tal oposição dos adolescentes. De acordo com Jeammet, os adultos que irão auxiliar o desenvolvimento dos adolescentes precisam se fazer esquecer de sua realidade física e sexual, de modo a permitir a expansão harmoniosa das funções do adolescente. O adulto, como objeto, deve estar presente para oferecer ao jovem a possibilidade de expansão e conferir a ele uma dimensão libidinal e humanizadora, evitando manifestar uma presença que marque a diferença, e que suscite desejo e dependência, tornando-se excitante e intrusivo. Um novo procedimento ético por parte dos adultos é necessário para que o adolescente possa alcançar seu desenvolvimento e sua posterior autonomia. Isso quer dizer que os professores necessitam de novos paradigmas no trato com os adolescentes, abandonando a postura moralizante e buscando ter sensibilidade às necessidades dos adolescentes.

De um certo modo, também pude ver nesse aspecto a desvalorização que a literatura vem sofrendo no meio estudantil. Em uma tentativa de trazer mais alunos à atividade, percorri todas as salas do 1º e 2º ano com um aluno do Grêmio e senti por parte dos alunos um sentimento de chacota. O desinteresse pela literatura tem uma relação com o declínio da narrativa, uma vez que a fabulação tem passado por uma crise no mundo contemporâneo.

O meu relacionamento com os alunos da escola só passou a ter uma significativa mudança quando tive contato com os alunos do Grêmio e procurei atender a uma necessidade que eles estavam expressando - oferecer aulas a respeito dos livros do vestibular. Nesse caso, o que fizemos foi buscar o relacionamento com os alunos sem a mediação da diretoria e dos professores, e isso acabou por se mostrar o melhor caminho e o que produziu mais frutos.

Considerações da segunda fase

Considerei esta segunda fase do projeto como uma "virada" em relação à 1ª fase. Ao invés de depender da estrutura da escola ou do apoio de professores, busquei me encaminhar em direção aos alunos, buscando suprir as necessidades que eles apresentavam. Foi a partir disso que pude estabelecer um diálogo maior com eles e adentrar no universo no qual eles estavam inseridos.

Este encaminhamento me fez ver a necessidade de avaliar, na prática, o método de ensino de literatura no ensino médio e me fez enxergar o quanto era preciso buscar novos caminhos para uma didática literária. A metodologia adotada pelas escolas, ao dar ênfase às escolas literárias e às suas características, tem, na realidade, afastado o aluno da leitura dos livros propriamente ditos. E isso tem contribuído para a queda da "experiência" e da "narrativa", tão bem conceituada por Walter Benjamin (1969).

Percebi que era necessário que houvesse uma aproximação do aluno com o texto literário e um novo método que tornasse mais dinâmico o processo cognitivo do aluno em relação aos livros - utilizando elementos da própria e atual realidade dos alunos. Uma didática que envolvesse filmes, músicas e outros elementos que pudessem trazer um maior dinamismo aos alunos. Além disso, era evidente que os jovens necessitavam expor suas opiniões, precisando canalizar suas energias de modo sadio. Devemos refletir se a sala de aula, os professores e a escola estão abrindo realmente esse canal de diálogo. Se não, é evidente que os jovens irão utilizar outros meios para comunicar suas carências e posições, como pudemos observar na própria escola.

Também pude construir, com as aulas a respeito dos livros abordados, uma maior consciência nos alunos a respeito da constituição da sociedade brasileira e trazer essa discussão para os dias de hoje. Pude notar que esta maior conscientização foi muito importante para a abertura dos alunos para novas reflexões e perspectivas.

Mas devo considerar também meu sentimento de me deparar com um certo dilema. A literatura deve ser ensinada apenas para efeitos práticos, como o vestibular? Isto é, o vestibular deveria ser o único estímulo para que houvesse ensino de literatura na escola? De um certo modo, ao buscar atender aos interesses dos alunos, estava ensinando a literatura como um fim bastante pragmático, mas era necessário que houvesse essa etapa para que pudesse encaminhar o ensino de modo a causar uma diferença na percepção dos alunos a respeito da literatura. Ao menos nessa fase, sinto que uma parte desse objetivo foi cumprida, mas que era necessário buscar outros caminhos.

Considerações da terceira fase

O trabalho relativo à terceira fase foi marcado por uma ruptura, pois houve uma renovação completa dos alunos que estavam nas fases anteriores, o que demonstrou as dificuldades que envolvem o trabalho de projeto dentro das escolas.

Na nova turma, nenhum dos alunos das outras fases estava presente, pois alguns haviam se formado e outros estavam agora envolvidos em outras atividades. O Grêmio, que havia sido um apoio para as minhas atividades, também havia passado por eleições e também havia se renovado.

O trabalho de contato com os alunos havia sido feito novamente por meio dos novos membros do Grêmio. Os contatos foram difíceis e não pude reconhecer claramente o que estava acontecendo. Na realidade, pude perceber depois que houve uma disputa política pela posse do Grêmio e isso me chamou muita atenção, pois demonstrava um grau de politização que não havia visto em outras escolas.

Na primeira atividade com a turma, também senti um clima de hostilidade entre os alunos. A razão era porque a seleção dos alunos foi realizada por uma das alunas do Grêmio e o critério utilizado foi o grau de comportamento dos alunos, isto é, os "menos bagunceiros" ou os "mais interessados". Isto é, mesmo que tivessem sido os próprios alunos que haviam organizado a turma, houve uma reprodução dos critérios de seleção do corpo docente. A hostilidade ficou patente quando a aluna explicou aos outros alunos o critério utilizado e um outro aluno explicitou o seu descontentamento, com uma frase: "Como é que você foi capaz de fazer uma coisa dessas?". Toda essa situação não me despertou tanta atenção naquele momento, mas depois, em conversas com a professora, pude compreender como a escola tinha tal poder de determinação ideológica e autoritária, a ponto de reproduzir nos próprios alunos critérios que eram excludentes. Na realidade, essa visão ideológica estava embutida também em mim, pois não me manifestei sob nenhum aspecto a respeito do acontecido na sala de aula e me provocou uma auto-reflexão.

De qualquer modo, enfrentei os mesmos problemas de freqüência de alunos do início do semestre. Mas o fato de haver poucos alunos também não era de certo ruim, pois poderia me concentrar na história pessoal deles, ajudá-los a retomar a narrativa da vida deles, o que, de certo modo, seria mais difícil em um grupo grande.

As primeiras atividades foram de preparação para a conscientização dos alunos a respeito da importância da literatura e a exploração dos princípios que constituem a sociedade brasileira, abordando a questão do "homem cordial".

Nas primeiras aulas, solicitei aos alunos que escrevessem a respeito do que achavam da literatura e qual era a sua utilidade, segundo a opinião deles. Pelo que pude ler nos textos apresentados (os textos se encontram no anexo Literatura), eles encaravam a literatura como uma forma de transmissão de conhecimentos. Era nítido ver que, em razão de anos de ensino de história da literatura e não da literatura em si, eles encaravam o texto literário como uma ferramenta para conhecer épocas antigas, mas não o encaravam como algo que tivesse a ver com a própria realidade que estavam vivendo. Uma das alunas comentou que a literatura era realmente importante da forma como eu havia abordado, mas que não via como algo útil para o que ela iria estudar na faculdade, que era a biologia. Como uma resposta a este questionamento, comentei que os primeiros tratados científicos foram escritos por cientistas que não desprezavam a literatura e que escreviam seus enunciados de uma forma poética. E que as faculdades de medicina da Europa estavam adotando a literatura em seus currículos como um meio para os futuros médicos ouvirem com mais atenção ao paciente.

Nesse caso, era evidente para mim a realidade colocada por Citelli, ao citar Lucien Goldmann, ao definir um trabalhador altamente especializado: "o homem que conhece muito bem um domínio de produção, que possui alta qualificação profissional que lhe permite executar de modo satisfatório e mesmo notável tarefas de que o incubem, mas que perde progressivamente todo contato com o resto de vida humana e cuja personalidade assim se limita e deforma no mais alto grau" (Citelli, 1981, pág. 78). O aspecto humanizador da literatura estava sendo mutilado pelo atual ensino e o aluno não estava em contato com seu grande potencial de educação e conscientização. Era necessário vincular a literatura com a realidade vista e vivida pelos alunos, para que eles pudessem ver um sentido no que estudavam a respeito dela. E também não ser um intermediário entre o aluno e o texto, mas sim me colocar como um leitor como o próprio aluno, mas mais consciente das potencialidades do texto. O risco de um ensino de literatura arcaico e petrificado é justamente de formar personalidades altamente especializadas no futuro mas deformadas, limitadas e alienadas.

Por outro lado, pude perceber no andamento de meus estudos que grande parte da literatura brasileira é, na realidade, uma discussão a respeito da constituição dos fundamentos que marcam a constituição do homem brasileiro. É por isso que considerei vital apresentar aos alunos as conclusões de Sérgio Buarque de Holanda a respeito das raízes brasileiras (1995). Desse modo, pude fazer uma aproximação com a atualidade, uma vez que os casos de escândalo e corrupção que pontuavam a realidade nacional eram a manifestação visível do quanto é difícil para o brasileiro fazer uma distinção clara do que é público e do que é privado.

Para o trabalho de resgate da narrativa, desenvolvi atividades com o haicai (poema curto japonês). Ao expor o trabalho de haicais para os alunos, surpreendi-me com a adesão deles. Havia nessa iniciativa uma forma de aproximar a poesia do cotidiano deles, mostrando que ela estava presente nas pequenas coisas. Em um momento posterior, uma das alunas mostrou os haicais que havia escrito e comentou que os havia lido para os familiares, mas que eles haviam tratado com desdém o que tinha feito (estes haicais estão presentes no anexo Haicai).

Em outras atividades também busquei estimulá-los a construir suas próprias narrativas. A partir da leitura de um trecho do livro Minha vida de menina, de Helena Morley, pedi a eles que desenvolvessem narrativas de suas próprias vidas, seja em texto ou em desenho. A leitura das narrativas me mostraram adolescentes em busca muitas vezes angustiante de constituição de identidade (os textos e o desenho estão no anexo Narrativas).

Depois dessas atividades, os alunos vieram conversar comigo do quanto desejavam realizar apresentações cênicas. Todos eles se interessavam por teatro. Pareceu-me um indício de que, depois de exercitarem o exercício das narrativas, buscavam constituir também uma manifestação corporal para a sua busca de identidade. Em ocasião posterior, comentei que poderia trazer um amigo que trabalhava com teatro para orientá-los, mas senti que estavam desestimulados. Ao perguntar a razão pela qual estavam assim abatidos, responderam- me que não se sentiam estimulados pela Escola e pelos colegas de tomar alguma iniciativa nesse sentido. Henderson, presidente do Grêmio, comentou: "A liderança reflete as massas. Se a massa é assim alienada, não há como a liderança fazer muita coisa".

A grande questão presente a mim foi como desenvolver o potencial criativo dos jovens se o ambiente ao redor se atém apenas a um sentido manifesto, sem imaginação e poesia. Ficou premente para mim que, no mundo contemporâneo, nem a escola nem a família estavam, em sua grande parte, se constituindo como um ambiente externo adequado para o desenvolvimento das potencialidades do jovem. Mas, mesmo assim, estes adolescentes, embora não recebendo nenhum estímulo e não tendo um ambiente propício, estavam desenvolvendo um caminho próprio de criação e não de autodestruição.

Um fator surpreendente no andamento das atividades foi a chegada de um aluno chamado André, que começou a freqüentar as atividades por acaso. Ele expressava suas opiniões de uma forma muito contundente e aberta, dando a impressão que não havia espaço para ele manifestar suas opiniões na sala de aula comum, e que estava encontrando um espaço para isso nas atividades que estávamos desenvolvendo. Desse modo, ele foi monopolizando a atenção da atividade. Mostrou as ilustrações que havia feito anteriormente e disse havia exibido um deles ao seu pai; este, ao ver o desenho, perguntou: "Isso dá dinheiro?". E comentou que seus pais ficavam aconselhando-o a buscar um trabalho que desse recursos financeiros e reconhecimento.

Em um caso específico que comentou na atividade, André comentou um outro poema que escreveu a respeito de uma desilusão amorosa que teve. A menina a abandonou - ele então pegou uma espécie de estilete e fez um corte no braço, como numa tentativa de suicídio. Para disfarçar, comprou uma braçadeira. A menina então veio cumprimentá-lo e, nisso, ele observou o seu braço cortado e disse que se sentiu tão superior à menina, que praticamente a desprezou e a tratou friamente. Uma das alunas, aproveitando o ensejo, comentou também que já havia tentado se suicidar e mostrou os pulsos. E comentou que quando tinha sete anos, havia pulado do segundo andar. Fiquei observando aquele grupo que aparentava ser tão normal e pude perceber como alguns momentos dramáticos que se passavam em suas vidas eram muitas vezes imperceptíveis para os adultos.

Neste caso, retomo novamente os estudos de Philippe Jeammet para analisar estas questões. Constantemente atingida por seus conflitos e dependência profunda às imagens parentais, o que vemos é que a identidade busca se afirmar por meio de uma reivindicação do direito da diferença. Se nas décadas anteriores, esta reivindicação estava direcionada à sexualidade, hoje ela se descola para o direito de dispor seu corpo ao seu próprio modo, chegando ao recurso de recorrer a atos extremos que representam o direito ao domínio ao corpo ou mesmo a sua destruição. Como exemplo, temos o direito ao suicídio, a anorexia nervosa, as formas de submissão e de mutilação do corpo.

Isso é claro nos desenhos que André apresentou (anexo Desenhos). Em um deles, vemos um rosto com olhos enormes de espanto e uma série de ganchos que o puxam para várias direções. A sua explicação para o desenho era de que os ganchos eram as pessoas que queriam trazê-lo para onde eles queriam. E que era assim que ele se sentia, conduzido ao mesmo tempo para várias direções. Em meio às exigências, está um adolescente que busca manter sua própria identidade, sentindo-se dono de si ao infligir a dor e marcas em seu próprio corpo.

Devemos nos lembrar que é no corpo onde se concretiza e se exibe a herança genética e a semelhança física com os pais. É em virtude dessas semelhanças que o adolescente sente que o corpo não lhe pertence. Em razão disso, o adolescente busca se apropriar de seu corpo, impondo sua própria marca e o direito de propriedade sobre o mesmo. O corpo, apesar de toda a turbulência, é também um sinal de continuidade do, pois lhe oferece uma certa constância e lhe garante um sentido de continuidade para sua existência.

Também se torna necessário remeter à questão do masoquismo, que é um representante das modalidades de vínculo marcados pela agressividade e violência voltada contra si mesmo. Quando o Ego é ameaçado de transbordamento, isto é, quando se vê às voltas com a ameaça de se render passivamente ao objeto, o adolescente se utiliza do masoquismo como um meio de defesa possível e disponível. Por ser um mecanismo de defesa arcaico, a conduta masoquista oferece ao sujeito a possibilidade constante de libertação do domínio do objeto e também a possibilidade de retomar uma posição ativa de controle, mesmo que isso seja pago com o preço do sofrimento. O dano e o sofrimento auto-inflingidos estão sob a posse do próprio indivíduo, escapando assim do poder do outro, tornando-o importante e mesmo dependente da boa vontade daquele a quem se faz mal. "Encontra-se como sempre esse movimento de transformação da decepção sofrida em seu contrário, o poder de decepcionar e do retorno contra si da violência dirigida ao outro" (Jeammet, 2005, pág. 84).

O que podemos verificar é que novamente observamos a expressão das necessidades dos adolescentes de diferentes formas. O que se torna evidente é que as bases narcísicas dos jovens estão muito frágeis. Em meio a ambientes sufocantes e tão pouco atentos às suas demandas, os adolescentes com os quais convivi têm buscado trilhar um caminho de auto-afirmação e busca de identidade. Alguns deles buscam tal afirmação por meio do agir criativo e elaboração psíquica, mas muitos outros recorrem às passagens ao ato – as denominadas patologias do agir – como tentativas de se reafirmarem em suas identidades.

O mundo dos adultos necessita disponibilizar seu apoio ao desenvolvimento destes adolescentes, uma vez que a modernidade e suas complexidades têm acentuado o narcisismo, a perda dos limites, a liberalidade dos costumes e o declínio progressivo do dever, deixando o adolescente ao seu próprio abandono. Se observamos estas questões em uma escola freqüentada por alunos de uma classe média, nas classes de recursos menores, tais problemáticas têm a tendência de só se acentuarem. A delinqüência, a alta mortalidade dos jovens no país, a toxicomania, os níveis de "indisciplina" e violência nas escolas e outros distúrbios são sintomas claros da necessidade de mobilização dos adultos.

Em relação aos aspectos pedagógicos e em especial ao ensino da literatura, vemos a grande necessidade de se retomar a questão da narrativa aos adolescentes. Nas práticas que desenvolvi, embora de curto alcance - é bom ressaltar -, demonstraram a grande demanda de uma retomada de uma narratividade por parte dos jovens, uma vez que eles têm perdido progressivamente os lastros que poderiam reafirmar suas identidades. A literatura pode ser um grande instrumento para esse fim. Torna-se primordial então rever o ensino de literatura de modo que ele possa suprir essa requisição. Aproximar novamente o aluno do texto literário, sem intermediários, ajudá-lo a desvendar seu potencial de humanização e conscientização torna-se um objetivo que os educadores devem trabalhar com afinco. Uma nova metodologia que retome a importância da leitura e que abandone uma abordagem historicista e positivista da literatura se torna necessária. É meu desejo retomar essas reflexões com mais profundidade e extensão em trabalhos de investigação posteriores.

 

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