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An. 1 Simp. Internacional do Adolescente Mayo. 2005

 

Abrigos para adolescentes: função de lar – transitório?

 

 

Oliveira, Ana Paula Granzotto; Milnitisky-Sapiro, Clary

UFRGS – Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Programa de Pós-Graduação em Psicologia Social e Institucional Porto Alegre, Rio Grande do Sul

 

 

Refletir sobre o longo processo de institucionalização de crianças e adolescentes em nosso país é se reportar a uma história constituída como uma das principais práticas no atendimento à infância pobre. A promulgação da Lei do Ventre Livre, em 1871, pode ser citada como o momento histórico que deu iniciou a institucionalização de crianças vítimas de abandono no Brasil (Benites, 1998). Esta institucionalização pode ainda ser refletida como prática assistencial voltada para a contenção do desvio, caracterizada como discriminatória e estigmatizante.

Atualmente, a irrefutável maioria destes sujeitos provém de famílias tidas como desestruturadas. Famílias estas, cruelmente submetidas às mazelas da pobreza que explicita uma política social injusta, legitimada no país.

Pode-se então pensar que a institucionalização de crianças e adolescentes surge como resultado de uma demanda, produzida pela própria organização social, onde o crescimento das cidades e a complexidade da vida social exercem significativa importância. O que se constata com isso, são inúmeras instituições sendo constituídas com a finalidade de acolherem crianças e adolescentes que vão para as ruas ou são retirados de suas casas, tendo, muitas vezes, o poder familiar sido suspenso devido a situações caracterizadas como negligência e maus tratos.

Segundo dados estatísticos publicados recentemente alguns dos principais motivos para o ingresso de crianças e adolescentes, na região sul do Brasil, nos abrigos tem sido: "21,6%, o abandono pelos pais ou responsáveis, seguido de15,5% devido à violência doméstica (maus-tratos físicos e/ou psicológicos praticados pelos pais ou responsáveis), 12,6%, pais ou responsáveis dependentes químicos/alcoólicos e 11,3%, carência de recursos materiais da família/responsável (pobreza)" (IPEA, 2004, tabela pag. 56).

Um outro aspecto observado na prática à infância e a adolescência é a questão da violência produzida pela sociedade e que muitas vezes, pode ser observada também no interior das instituições de abrigo como nos aponta Marin (1998), uma vez que, estes não conseguem proporcionar um espaço referencial e reorganizador para as inúmeras crianças e adolescentes que necessitam.

As instituições – neste caso os abrigos, na atualidade, são concebidas com o objetivo de proporcionarem proteção, apoio e amparo a inúmeros sujeitos necessitados. Porém, faz-se imperativo questionar: Quem concebe tais instituições? Com que diretrizes e objetivos elas são constituídas? Para quem elas são concebidas?

Em seu livro Privação e Delinqüência, Winnicott (1999) salienta a importância do trabalho com crianças e adolescentes que apresentam manifestações de privação e delinqüência, e das graves conseqüências que a ausência de tal preocupação podem proporcionar a uma sociedade. Clare Winnicott, na introdução deste livro, compara a gravidade do problema à bomba nuclear. Não oferecer amparo às crianças e adolescentes pode significar, no futuro, ter que lidar com um "potencial destrutivo no seio da sociedade".

Winnicott inicia seu trabalho sobre privação e delinqüência com as crianças evacuadas durante a Segunda Guerra Mundial. Ele constata que a evacuação, para algumas crianças, era problema secundário se comparado com os problemas enfrentados em seus próprios lares. Assim, passa a trabalhar com estas crianças em alojamentos, centrando-se no cuidado e manutenção destes. Segundo Winnicott, esses alojamentos, muitas vezes, proporcionavam as crianças auxílio e alívio frente a uma situação que se apresentava intolerável.

Para Winnicott e sua equipe, o ponto central era como gerir um ambiente "suficientemente humano e suficientemente forte, para conter, os que prestam assistência e os destituídos e delinqüentes, que necessitam desesperadamente de cuidados e pertencimento, mas fazem o possível para destruí-los quando encontram" (Clare Winnicott, 1999, XVI.).

Após a implementação do ECA, os abrigos passam a ser designados como instituição destinada a acolher crianças e adolescentes como medida de proteção. Crianças e adolescentes em situação de vulnerabilidade social ou pessoal (negligência, maus tratos, abandono, abusos, mendicância, entre outros) passam então a ter o abrigo como lar até que sua situação jurídica seja definida e que possam retornar aos seus lares de origem. Este é o caminho ideal, que todos gostariam que acontecesse, porém, freqüentemente, o abrigo acaba se tornando um lar permanente, constituindo um espaço onde estas crianças e adolescentes viverão até completarem a maioridade; um espaço onde deveriam ter a oportunidade de sentirem-se pertencentes.

Assim, a temática da abrigagem, a partir deste ponto, será refletida a partir de uma descrição e análise dos ambientes de abrigo para adolescentes, buscando contextualizar como ocorrem as relações dentro destas instituições e como as políticas públicas, destinadas a estes jovens, estão contribuindo ou não para a real possibilidade de execução das práticas cotidianas.

Neste contexto, será importante pensar o termo ambiente, anteriormente citado, não somente no sentido do espaço físico da instituição onde acontecem as práticas cotidianas, mas no espaço onde se estabelecem relações e interações sócio-afetivas entre os adolescentes e os adultos que compõem a instituição.

Uma das diretrizes do ECA – Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei Federal nº 8.069/1990), particularmente o que versa o seu artigo 92, inciso III é que o abrigamento deveria oferecer "atendimento personalizado e em pequenos grupos". Como, historicamente, instituições que acolhem crianças e adolescentes são equipamentos grandes, é comum observar um movimento de reordenamento1, onde a instituição passa a deixar de ser uma instituição monolítica e se começa a ser divida em espaços menores.

Em Privação e Delinqüência, Winnicott (2002) relata os objetivos de instituições de grande porte:

"(... ) as crianças numa grande instituição não estão sendo cuidadas com a finalidade de cura de suas doenças. Os objetivos são, em primeiro lugar, prover teto, comida e roupa a crianças que foram negligenciadas; em segundo lugar, criar um tipo de vida em que as crianças tenham ordem em vez de caos; e, em terceiro lugar, impedir, para o maior número possível de crianças, a ocorrência de um choque com a sociedade, até que se soltem no mundo por volta dos 16 anos de idade"(p.207).

Um outro autor que reflete sobre grandes instituições é Goffman (1961). Ele adota o termo "Instituições Totais" e as define como "um local de residência e trabalho onde um grande número de indivíduos com situação semelhante, separados da sociedade mais ampla por considerável período de tempo, levam uma vida fechada e formalmente administrada" (p.11).

Inegavelmente, há uma mudança no paradigma de acolhimento de crianças e adolescentes nos últimos anos; um movimento de transformação que visa tornar as instituições mais integradas na vida da comunidade local e remover o estigma de "depósitos humanos". Muitas crianças e adolescentes, antes isoladas em instituições totais, passaram a entrar em contato com a comunidade onde estão inseridas, a usufruir de escolas, atendimento médico, esporte e lazer. Porém, o que precisa ser avaliado é se esta "abertura" e redução em unidades menores já são suficientes para caracterizar um atendimento fundamentado na Doutrina de Proteção Integral, um atendimento que garanta a efetivação dos direitos previstos no ECA, principalmente os previstos pelo artigo 92. Além disso, é importante também refletir se somente estes aspectos são suficientes para atender crianças e adolescentes que foram privados da vida familiar, muitas vezes, após experienciar precoces rompimentos de vínculos e intenso sofrimento psíquico. Que instituição é essa que se propõe a receber esse adolescente? Como está se organizando para acolher os inúmeros indivíduos que nela ingressam ou reingressam, diariamente? Qual é a sua real função?

Muito tem se debatido sobre estratégias para elevar a qualidade do atendimento a crianças e adolescentes. Porém, é simplista a idéia de que apenas reduzindo o tamanho das instituições ter-se-á uma melhor qualidade no atendimento. Parece ser possível afirmar que um passo foi dado. Resta saber, agora, em que direção.

Com a redução do número de crianças e adolescentes, existem mais chances de que se possa viabilizar um atendimento individualizado, não massificado, onde as singularidades poderão ser contempladas e as necessidades individuais dos abrigados terão mais possibilidades de serem trabalhadas.

Sobre a organização de instituições em pequenas residências, espaços menores com um número reduzido de indivíduos e um novo suprimento ambiental mais estável, Winnicott (2002) ressalta que isto poderia, por si só, constituir-se em um momento terapêutico.

Assim como Delgado (2000), acredita-se que não existe muito valor em realizar apenas "transformações cosméticas" nas velhas instituições, "dotando-as de atendimento externo de cunho modernizante", principalmente quando essa transformação ignora o "produto de longos anos de segregação" (p.189). Nesta mesma direção, Rizzini (1996) questiona até que ponto a divisão das instituições em pequenos grupos e um sistema semelhante ao familiar é suficiente para distinguí-las do internato típico.

Este parece ser um ponto crucial no que se refere ao acolhimento de crianças e adolescentes. O que realmente tem sido feito no cotidiano destas instituições para abolir práticas arcaicas, violentas e exclusoras do passado e dar conta das singularidades dos adolescentes abrigados? O que tem sido feito – além do fornecimento de alimentação e moradia –para permitir que esses indivíduos possam resignificar suas experiências e caminhar em direção à Doutrina da Proteção Integral?

Para Winnicott (2002)2, a base da saúde mental adulta é constituída ao longo da infância e da adolescência. A grande maioria das crianças e adolescentes abrigados já vivenciou alguma situação grave de vulnerabilidade pessoal ou social. Muitos possivelmente já tiveram uma experiência de desintegração familiar ou viveram em famílias que, por diferentes razões, não conseguiram cumprir sua função provedora e formadora. Neste contexto cabe citar, por exemplo, o pensamento de Winnicott (2002) que acredita que por mais simples que seja um lar, ele é mais importante para o sujeito do que qualquer outro lugar e, prossegue afirmando que se deve sempre ter o cuidado de jamais interferir em um lar que esteja funcionando, nem mesmo em nome de seu próprio bem. Evidentemente, existem situações em que o adolescente "não pode ou não deve ficar com seus pais biológicos" (Fonseca, 2004, p.1). Esse conceito pode ser estendido para situações onde o adolescente não pode ficar com seus cuidadores.

Para Winnicott (2002), a possibilidade de sentir-se pertencente à segurança de um lar é condição fundamental para o saudável desenvolvimento da personalidade de um indivíduo. "A unidade familiar possibilita uma segurança indispensável à criança pequena. A ausência dessa segurança terá efeitos sobre o desenvolvimento emocional e acarretará danos à personalidade e ao caráter" (p.18).

Apesar da importância da experiência de um lar satisfatório, esta não é uma realidade para muitas crianças e adolescentes. Winnicott (2002) define sabiamente o conceito de experiências de lar primário como um "ambiente adaptado às necessidades especiais das crianças e adolescentes, sem o que não podem ser estabelecidos os alicerces da saúde mental".(p.63)

Muitos dos intensos conflitos entre crianças e adolescentes experienciam dentro do ambiente de abrigo provêm diretamente de experiências significativas de lares instáveis, ou seja, crianças e adolescentes que nunca tiveram, em seus próprios lares, um ambiente suficientemente bom (Winnicott, 2002). Winnicott afirma ainda que se o ambiente familiar foi frustrante, esses indivíduos precisam ainda mais de um ambiente capaz de proporcionar-lhes "estabilidade ambiental, cuidados individuais e a continuidade desses cuidados" (p.82).

Winnicott (1983) adota o termo holding e o define como amparo e sustentação. No início da vida, este é simbolizado pela mãe, ou seja, mãe e lactente vivendo juntos. "(...) holding é utilizado para significar não apenas o segurar físico de um lactante, mas também a provisão ambiental total anterior ao conceito de viver com" (Winnicott, 1983, p.44). Porém, ao longo de sua obra, Winnicott amplia o conceito de holding à criação de um lugar psíquico. Da dependência absoluta entre lactente e sua mãe a um caminho em direção à independência, onde o lactente irá desenvolver maneiras para viver sem cuidado real. Segundo Winnicott (1983) isto poderá ser conseguido através do "acúmulo de recordações, do cuidado, da projeção de necessidades pessoais e da introjeção de detalhes do cuidado, com o desenvolvimento da confiança no meio"(p.46).

Assim, pode-se pensar que o holding exerce diferentes funções nos distintos momentos da vida de um sujeito, porém este não deixa de ser menos importante durante toda a vida, uma vez que sustentação e reconhecimento são elementos imprescindíveis do permanente "processo de subjetivação".

Reconhecida a importância dos cuidados maternos, faz-se imperativo acrescentar a relevância da provisão ambiental e das possíveis conseqüências de falhas nessa provisão. Com relação a este segundo aspecto, um processo de identificação com as reais necessidades da criança (experiência de lar primário) e, posteriormente, do adolescente, tem papel central, uma vez que sem tal identificação os cuidadores não seriam capazes de prover tais necessidades.

Para Winnicott (2002), um ambiente suficientemente bom pode ser definido em termos da segurança e continência com que consegue se apresentar frente às crises e testes pelo qual passará e pela capacidade de permitir que estes aconteçam e, mesmo assim, continuar estável. Esta definição complementa o conceito de "experiência de lar primário", anteriormente apresentado, e pode ser utilizada para que pense sobre a real função que um ambiente de abrigo poderia vir a ter. Um ambiente adaptado às necessidades dos adolescentes, não deixando de ser seguro e continente frente aos obstáculos enfrentados. Contudo, esta reflexão não é uma tarefa fácil, uma vez que diversos aspectos – sociais, culturais, históricos e econômicos – estarão, constantemente, atravessando estes ambientes.

Santos (2004) traz uma definição importante para o termo lugar que é fundamental para o contexto deste projeto. Segundo ele, uma experiência "(…) antes de ser uma experiência espacial, é uma experiência em que o indivíduo sente que existe na subjetividade do outro. Ter um lugar é existir no meio ambiente humano" (p.423). Assim, vê-se o quanto ter um lugar, ser acolhido (mesmo apenas enquanto resultado de uma medida de proteção), é, não apenas importante, mas fundamental. De fato, o acolhimento tem uma função muito mais ampla e significativa do que normalmente se percebe. Pode-se então repensar a abrigagem também como uma experiência vinculada a um lugar, sendo este, fundamental enquanto espaço de acontecimento, de significação ou resignificação das experiências vividas ou mesmo de existência.

Winnicott relata sobre o êxito do trabalho em abrigos:

"O êxito no trabalho no alojamento deve ser considerado, portanto, em termos de reduzir o fracasso do próprio lar da criança. O corolário é que um bom trabalho no alojamento deve necessariamente aproveitar tudo o que tiver restado de bom do lar verdadeiro da criança" (Winnicott, 2002, p.64).

Acolher o adolescente, identificar-se com suas necessidades e ainda, oferecer-lhe um ambiente suficientemente bom e continente parecem ser algumas das possíveis possibilidades para um atendimento mais humano, onde estes adolescentes possam reencontrar um espaço de subjetivação.

Para Winnicott, dois aspectos relacionados à estabilidade de um ambiente são fundamentais para que um indivíduo possa se sentir pertencente a ele: a estabilidade gerada pela continuidade da permanência do sujeito no ambiente e a estabilidade do ambiente enquanto lugar continente.

Um aspecto central para esta reflexão é a questão da transitoriedade, preconizada pelo ECA em seu artigo 101, parágrafo único3. Se por um lado, conforme Winnicott, a continuidade da permanência do sujeito no abrigo é importante, por outro lado, a permanência indeterminada em uma Instituição sem planejamento ou motivos também pode ser um grave problema. Na verdade, grande parte da preocupação do ECA com o caráter provisório da medida de abrigamento parece estar intimamente ligada à história passada, onde inúmeras crianças e adolescentes eram abrigados por tempo indeterminado e não se observava práticas que levassem em consideração as singularidades e necessidades de cada um. Como exemplo disso, Rizzini (1996) relata:

"Diversos estudos sugerem que a internação, salvo em situações excepcionais, causa mais danos do que beneficia aqueles que a ela recorrem. (...) As pesquisas revelam que a vida institucional, por suas características de rotinização, massificação e rígida disciplina, cria um ambiente de impessoalidade e falta de afeto, que pode prejudicar o indivíduo de várias maneiras"(p.73).

Com esse tipo de prática, as instituições muitas vezes parecem tornar-se uma lacuna na vida dos adolescentes. Uma pausa antes que estes então retornem "à guerra, ao crime, à vida, à morte".

Na grande maioria das instituições que acolhem adolescentes, é muito comum observar o não estabelecimento de uma relação afetiva entre o sujeito e o lugar. Não há também, possibilidade de construção de uma referência entre o adolescente e o ambiente, representado pelos adultos cuidadores. Um agravante para este fato é o uso puramente utilitário que muitos destes equipamentos se dispõem a ter. Assim, espaços completamente destruídos pelos próprios adolescentes que os utilizam, não é um cenário incomum. "Não significa que eles não dão valor ao que lhes é oferecido, mas que ali, onde a transferência tornou-se possível, eles trazem a repetição"(Ferreira, 2000, p.8).

Como estabelecer uma relação de confiança, de tolerância e de constância com os adolescentes quando a transitoriedade se faz ser imperativa para a própria avaliação da instituição? A ordem do dia acaba sendo transferir ou desligar os adolescentes; circular os casos ao invés de tentar resolvê-los.

Marin (1998) destaca a importância da constância e da tolerância "aos investimentos impulsivos dos adolescentes". Para ela, essa tolerância é "condição primeira para que eles possam novamente confiar numa relação humana, e quem sabe aí tolerar a longa espera até a maturidade". Marin complementa: "podemos imaginar o desastre que é a incerteza cotidiana que todos vivem nessas instituições" (Marin, p.111).

Assim, se o encaminhamento de uma criança ou adolescente para um abrigo é realizado com o objetivo de protegê-lo de uma situação de vulnerabilidade social ou pessoal, parece que, temporariamente, este objetivo está sendo alcançado. Porém, se o objetivo é maior, se é também lhe proporcionar novas experiências para que ele possa resignificar sua história, parece que esta é uma realidade ainda distante na prática.

Observando as práticas cotidianas das instituições de abrigo constata-se, muitas vezes, que estes são ambientes regrados por um grande número de normas: horário para acordar, horário para realizar as refeições, horário para organizar os espaços, horário para sair, para chegar, horário para tomar banho, horário para falar ao telefone e até horário para se relacionar, já que situações que poderiam promover relacionamentos, só ocorrem dentro de horários e lugares determinados pelas normas. O excesso de normas, muitas vezes configura uma rotina de práticas cotidianas desprovidas de sentido e significado.

Conforme relatado por Rizzini (1996), freqüentemente, os monitores – pessoas que, a princípio, deveriam ter sido contratadas para "cuidar" das crianças e dos adolescentes abrigados – são os principais encarregados do cumprimento destas normas, tornando-se assim, pessoas extremamente sérias, ríspidas e autoritárias. Assim, o ambiente de abrigo acaba se configurando como um ambiente extremamente controlador, um ambiente que dita o padrão de comportamento e as regras de conduta para todos que ali vivem.

A necessidade de estabelecer certas regras e horários para que um ambiente não se torne caótico não pode ser questionada. O que, do ponto de vista das autoraa, pode e deve ser questionado, entretanto, é a forma como essas regras têm se efetivado na prática. É fundamental analisar se estas práticas estão sendo executadas de maneira automática ou violenta (explícita ou implicitamente nas rotinas) e como têm afetado a formação do sujeito abrigado. Um ambiente pode ter uma certa severidade, quando se considera severidade o sinônimo de estabilidade e não de rigidez, moralismo ou autoritarismo. Um ambiente que admita e inclua também momentos de maior benevolência, tolerância e compreensão é fundamental para a construção de um processo significativo e com possibilidades de transformação (Winnicott, 2002).

O que se observa de maneira intensa nestas instituições é que não existe espaço para a diferenciação, para uma escuta atenta das necessidades dos adolescentes acolhidos. O que existe é uma necessidade constante de regularidade e ordem (por sinal, significativa enquanto expressa valores da classe dominante) que parece ir de encontro à constituição de subjetividades.

Um ambiente de abrigo realmente preocupado em desenvolver emocionalmente e socialmente os adolescentes que ali residem, deveria oferecer-lhes a experiência de um lar primário. Um ambiente com regras e limites, mas também um ambiente comprometido com o cuidar. Um ambiente que consiga minimamente compreender e tolerar o processo adolescente. Os abrigos podem e devem se tornar ambientes estáveis. Lugares onde crianças e adolescentes poderão conhecer e testar ambientes para, posteriormente, confiar neste como um lugar bom para poderem viver. Para Winnicott (2002) "é a natureza permanente do lar que o torna valioso, mais do que o fato de o trabalho ser realizado com inteligência" (p.77).

Tão importante quanto construir e manter normas é ter pessoal que possa se envolver emocionalmente com o indivíduo abrigado. Observa-se porém, na maioria das instituições, uma lógica normatizadora de comportamentos que impede outras formas de agir, de sentir o cotidiano apresentado, que considere as reais necessidades das crianças e adolescentes.

Um outro aspecto crucial do ambiente de abrigo, que não costuma ser priorizado, embora seja fundamental para que a Instituição possa oferecer um acolhimento mais humanizado é a questão dos modos de trabalhar dos monitores. Monitores desempenham um papel primordial, uma vez que estão em contato diário e permanente com os adolescentes que ali residem e, no entanto, não costumam ser valorizados diante da importância e significado da sua função. Selecionar pessoas preocupadas e que se sintam comprometidas com as vidas e o desenvolvimento do indivíduo abrigado parece ser um ponto que faz importante diferença. Guará, sobre este aspecto, relata:

"Entre os critérios podemos destacar a experiência no trabalho com crianças e jovens (...) e, sobretudo, a disponibilidade dos candidatos para o trabalho educativo. É recomendável também que se observe sua flexibilidade no trato pessoal, sua atitude participativa e positiva frente aos conflitos e situações-limite. A capacidade de tolerância não deve ser confundida com permissividade e pode ser associada à firmeza e à segurança. Isto exige dos educadores sociais uma formação que os ajude a desenvolver a crítica sobre suas ações e os sujeitos de seu trabalho, uma capacidade de ser um agente estimulador da criatividade e da independência das crianças e, principalmente, uma crença na possibilidade de sucesso de sua função educativa".(Guará, 1998, p.46)

Neste ponto, é importante refletir sobre a necessidade de aprofundar os estudos relacionados com a qualidade entre os vínculos que podem ser estabelecidos entre cuidadores e abrigados. Para Winnicott (2002) :

"em todo trabalho que envolva cuidar de seres humanos, são necessárias pessoas dotadas de originalidade e de um senso agudo de responsabilidade. Quando esses seres humanos são crianças, crianças que carecem de um ambiente especificamente adaptado às suas necessidades individuais, a pessoa que tem preferência por seguir um plano rígido não é adequada a tarefa. Qualquer plano amplo que envolva cuidados para com crianças privadas de uma vida familiar adequada deve, por conseguinte, permitir e facilitar ao máximo a adaptação local, atrair pessoas de mente aberta para trabalhar nele".(p.81)

É importante enfatizar o quanto aspectos históricos e culturais das instituições e da história da assistência a criança e ao adolescente atravessam a maneira como se pensa e age sobre os cuidados com estes. O cuidado com estas crianças e adolescentes acaba sendo negligenciado na sua efetivação. Estas inúmeras crianças e adolescentes são apenas mais um número, mais um caso, com objetivo de serem agenciadas, de estarem em trânsito. As histórias individuais, os sofrimentos e o contexto familiar são, muitas vezes, menosprezados em detrimento apenas de poder fazer circular os casos. A circulação é um procedimento legitimado com base no conceito dúbio de que o abrigamento é uma medida de proteção excepcional e transitória. Curiosamente, nestes casos, a transitoriedade é defendida como sendo um aspecto positivo tanto para os adolescentes, quanto para a instituição.Porém, em muitos episódios, o que se observa, é que crianças e adolescentes são transferidos ou desligados não porque novamente possuem um lugar para irem ou voltarem, mas porque simplesmente não cumpriram as regras de uma determinada instituição. Assim, diversas crianças e adolescentes que estão privadas da oportunidade de viverem em seus lares, junto de sua família e da comunidade, continuarão sendo excluídas, nesse círculo perverso, com pouquíssimas possibilidades de saída. Fonseca (2004) também se impressiona com esse aspecto "transitório" do abrigamento. Para ela, "além do ‘bem-estar da criança‘, podem existir outros motivos – de natureza orçamentária – agindo em favor da transitoriedade" (no prelo).

Os problemas, os sofrimentos e as angústias trazidos para a instituição no momento da abrigagem, serão "resolvidos" desde que não seja necessário adaptar a instituição às necessidades dos abrigados.

Para Bowlby (1995) crianças e adolescentes "não são lousas das quais o passado pode ser apagado com um espanador ou uma esponja, mas seres humanos que trazem em seu íntimo essas experiências anteriores e cujo comportamento no presente é profundamente afetado pelo que aconteceu antes" (in Winnicott, p.192).

Um dos aspectos que deve ser melhor refletido nos abrigos é a questão das evasões que acontecem durante um período de abrigamento. Como este aspecto está intimamente presente no cotidiano das instituições ele exerce, também, grande influência na organização do ambiente.

Para Winnicott (2002), por exemplo, a fuga significa a busca por um lar que ainda não foi possível encontrar:

"Uma vez que as crianças e adolescentes não conseguem experienciar um ambiente estável e seguro em seu lar primário, que consiste em fornecer algo positivo na vida da criança, tendem a buscá-lo incansavelmente e, não sossegarão até encontrá-lo" (p.).

Ainda em relação às evasões, uma hipótese que precisa ser cuidadosamente investigada é a possibilidade de que estas tenham, também, determinadas características positivas. Pode a evasão representar uma confiança crescente do indivíduo na instituição ou nas pessoas, que as acolheriam de volta mesmo após um comportamento "não-aceitável"?

Mais importante do que compreender porque os adolescentes evadem, talvez seja entender e mapear como as instituições têm lidado com essas evasões. A prática da autora, por exemplo, confirma o inquietante fato de que inúmeros adolescentes que estão vivendo nas ruas, possuam vagas em instituições de abrigo.

As autoras partilham do pensamento de Costa (2004), que sustenta que se construa um novo olhar e uma nova escuta. Os ambientes destinados a acolher os adolescentes deveriam proporcionar espaços com "maior intimidade e confiança", ambientes que propiciem "outras formas de relacionamento com os adolescentes, criando condições ambientais para que desenvolvam suas potencialidades e habilidades, proporcionando-lhes uma maior sustentação subjetiva, vincular e social". Para Costa, o acompanhamento ao adolescente nesses espaços deveria envolver "um novo olhar e uma nova escuta que poderiam resignificar a história do sujeito, à medida que a subjetivação e a historicização contribuem para atenuar a necessidade de atuar, possibilitando uma maior capacidade de reflexão e de simbolização". (p.317)

Para encerrar essa reflexão acreditamos ser oportuno citar mais uma vez Winnicott (2002), que discorre sobre o que observamos ser o momento vivido atualmente por milhares de crianças e adolescentes que residem em abrigos e que dependem que o abrigo lhes assegure seus direitos:

"O provimento de coisas materiais, de alimentação entre outros são aspectos importantes para o desenvolvimento de crianças e adolescentes, porém, mesmo que sejam fornecidas em abundancia, o essencial estará faltando se os próprios pais, ou os pais adotivos, ou os guardiões da criança não forem pessoas que assumam a responsabilidade pelo seu desenvolvimento" (Winnicott, 2002, p.57).

 

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* Baseada na NBR-6023 de Agosto de 2000, da Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT). Abreviatura dos títulos e periódicos em conformidade com o MEDLINE.
1 Para exemplos de reordenamento, ver Dissertação de Cardarello, Andréa, da UFRGS, Departamento de Antropologia, NACI.
2 Winnicott elaborou suas teorias iniciais "centradas na pessoa da mãe e na relação entre os dois: holding, mãe suficientemente boa, preocupação materna primária, mãe ambiente e mãe objeto" (Filho, 2004, p.7) para, posteriormente, se dedicar na questão da provisão ambiental (e suas patologias).
3 "Parágrafo único. O abrigo é medida provisória e excepcional, utilizável como forma de transição para a colocação em família substituta, não implicando privação de liberdade."