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An. 1 Simp. Internacional do Adolescente May. 2005
Experiência de atendimento da família e do adolescente: Projeto Prisma- uma alternativa de trabalho com crianças, adolescentes e famílias com queixa escolar
Pereira, María Liliana Inés Emparan Martins
Pesquisa realizada em um Espaço Gente Jovem da cidade de São Paulo. Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo. Programa de Pós-Graduação: Mestrado. São Paulo-SP
RESUMO
O propósito deste trabalho é analisar um projeto de intervenção psicopedagógico com crianças com queixa escolar, denominado "Projeto Prisma – o desafio de um novo olhar". Nosso objetivo pautou-se no estudo das dificuldades de aprendizagem de um grupo de nove crianças de camadas populares. O material coletado foi objeto de análise qualitativa, aonde se buscou identificar as concepções sobre as causas das queixas escolares presentes nos instrumentais do projeto analisado: nas entrevistas, nas avaliações e na proposta de trabalho desenvolvida com as crianças e suas famílias. O suporte teórico-metodológico foi trazido pelas contribuições dos trabalhos de Heller (2000) e, Patto (1990). As análises do material mostraram a convivência entre diferentes concepções sobre as causas dos problemas escolares das crianças. De um lado, constatou-se que, os preconceitos contra as crianças pobres e suas famílias que atribuem as causas das queixas às supostas deficiências, não só estavam no discurso da escola, como eram reforçados pelo próprio modelo diagnóstico usado no Prisma. Por outro lado, as novas contribuições teórico-metodológicas trazidas por um novo referencial permitiram identificar na pesquisa alguns paradoxos: apesar do Prisma atribuir deficiências e dirigir seu trabalho buscando saná-las, o que na verdade produziu, foi situações de aprendizagem e ensino que permitiram às crianças usarem todo seu potencial e aprenderem. Além do mais, o Prisma, sem se dar conta, ensinou aquilo que a escola não havia ensinado, permitindo, por exemplo, que elas escrevessem e solucionassem problemas de matemática e revelando que não têm problemas de aprendizagem, mas de escolarização. A partir disto, tornou-se possível discutir e analisar especificamente a função do trabalho psicopedagógico desenvolvido, na tentativa de compreender e intervir nos problemas escolares.
Palavras-chave: queixa escolar, camadas populares, psicopedagogia grupal, preconceito, fracasso escolar, projetos de trabalho.
ABSTRACT
The aim of this paper is to analyze a psycho pedagogical intervention Project about children with school complaint named "Prisma Project: the challenge of a new viewing". Our objective was supported by a study of the learning difficulties within a group of nine lower-class children. The research material was analyzed in a qualitative manner, aiming identify the concepts of school problems causes which were present in the instruments of the analyzed project: interviews, evaluations and a work proposal developed with the children and their families. Contribution of Patto (1990) and Heller’s (2000) papers brought the theoretical-methodological support. The analysis showed the co-existence of different conceptions about the causes of children’s school problems. It was observed the repetition of the prejudiced views that point the origins of school complaints to the children and their families. On the other hand, the new theoretical-methodological contributions allowed identifying some paradoxes: though Prisma attributed some deficiencies and worked in order to resolve them, children could use their all potential to learn in the situations that have been proposed. Besides, Prisma, with no conscious, learnt what the school did not do and this allowed children, for example, to write and to solution mathematics problems. This situation has disclosed children do not have learning difficulties, but the school has teaching difficulties. As from this conclusion, it became possible to discuss and analyze specifically the function of the psycho pedagogical work that has been developed, in order to comprehend and interfere in school problems.
Key Words: school complaint, lower-class, group psycho pedagogical, prejudice, school failure, work's projects.
INTRODUÇÃO
Este artigo propõe-se a relatar um trabalho de pesquisa de campo realizado em 2002 que faz parte de uma dissertação de mestrado concluída em 2004. O objetivo principal deste trabalho foi analisar um projeto de atendimento a crianças, adolescentes e suas famílias portadores de queixa escolar que tinham sido aconselhados pelos seus professores e/ou coordenadores a que procurassem um trabalho especializado fora da escola, devido a seu baixo desempenho escolar. O projeto de atendimento desenvolvido em um Espaço Gente Jovem da cidade de São Paulo se constituiu a partir da constatação de problemas de escolarização de uma parcela significativa desta população. O grupo analisado era composto por crianças e adolescentes de camadas populares, população que é comumente portadora de queixa escolar. Cabe destacar, no entanto, que o problema não aparece somente neste grupo de indivíduos específico; todavia, os dados oficiais demonstram a existência de problemas no processo de ensino-aprendizagem dos nossos alunos, especialmente os que freqüentam escolas públicas. Desta forma, temos assistido nos últimos anos há várias discussões sobre queixa escolar, o que inclui uma gama variada de formas de definir e/ou descrever esta problemática. Freqüentemente ouvimos comentários sobre evasão, reprovação, distorção idade-série e baixa qualidade de ensino, tanto por parte de professores, coordenadores e pais de alunos, quanto pela sociedade de forma geral. Existe, portanto, um mal-estar que vem se instalando nas escolas brasileiras frente a alunos que não apresentam um bom desempenho escolar. A preocupação com o tema tem fomentado a publicação de produções leigas e acadêmicas, tais como: notícias, investigações e artigos sobre esta problemática. No Brasil, o discurso pedagógico já se refere a "problemas de aprendizagem" na segunda metade do século XX – desde 1934 conforme CARDOSO (1939, apud PATTO, 1984) – e passa a ser motivo de preocupação mais intensa, mais exatamente a partir da democratização do ensino e a expansão do ensino ginasial em 1968, o que culminou na instauração da escola obrigatória de oito anos, com a Lei n. 5692/71. Entretanto, paralelamente à expansão do ensino fundamental cresciam os índices de evasão e repetência, o que ocorria freqüentemente nas primeiras e quintas séries. As influências de concepções provenientes da medicina para explicar os problemas de aprendizagem das crianças pobres, também foram marcantes no discurso pedagógico e termos usados como, por exemplo, "dislexia" e Disfunção Cerebral Mínima – DCM foram emprestados da área médica. Assim, os alunos eram encaminhados aos serviços de neurologia para a detecção de distúrbios. A tendência a desconsiderar os fatores inerentes à escola como causadores dos problemas de aprendizagem levou à procura de especialistas e a uma grande quantidade de encaminhamentos. As dificuldades de alguns alunos eram fruto de problemas neurológicos, psicológicos, sociais, etc., e à escola só restava encaminhar a outros especialistas. Patto (1990) – autora que faz um estudo extenso sobre o tema – observou que existem duas correntes explicativas básicas para o fracasso escolar: a que acentua os aspectos mais estruturais do sistema educacional e a que defende a influência das características biológicas, psicológicas e sociais como causadoras do fracasso escolar, isto é, as características centradas no aluno. Atualmente, a problemática da queixa escolar, ainda, continua dominando o cenário educacional. Pesquisas oficiais vêm sendo realizadas com o objetivo de elucidar o problema e os dados obtidos revelam uma série de distorções em relação ao acesso, permanência e qualidade do processo de ensino-aprendizagem dos alunos brasileiros. Foi justamente a tentativa de compreender a queixa escolar endereçada, prioritariamente, aos alunos de camadas populares, que se constituiu em um dos principais objetivos da pesquisa. Paralelamente, procurou-se analisar um programa criado especialmente na tentativa de reversão do problema. A discussão proposta por este artigo aponta para a importância e necessidade de mais estudos sobre o tema.
A QUEIXA ESCOLAR SEGUNDO OS DADOS OFICIAIS
Os estudos realizados pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas –INEP – do Ministério de Educação no período 1980-1999 demonstram a necessidade de se analisar e discutir os baixos índices de rendimento escolar de um grande contingente de alunos do ensino fundamental. Estes dados apontam não somente para os aspectos quantitativos do problema, mas principalmente para a qualidade do ensino-aprendizado da nossa população. Em relação aos aspectos quantitativos, os números sinalizam um crescimento acentuado da taxa de escolarização brasileira no ensino fundamental: de 80,1%, em 1980 para 95,4%, em 1999. Dados obtidos pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE – complementam a pesquisa do INEP, apresentando queda na taxa de analfabetismo. Entre as pessoas com 10 anos ou mais, a taxa caiu de 13,9% (1996) para 11,4% (1999); as pessoas entre 10 a 14 anos apresentaram queda mais acentuada: 8,7% (1996) para 4,2% em 1999. Por outro lado, em relação aos aspectos qualitativos, os dados do INEP revelam uma grande preocupação com as taxas de promoção, repetência, evasão e, principalmente, distorção idade-série. Analisando os períodos 1995-1996 e 1999-2000, alguns dados do ensino fundamental foram obtidos. As taxas de promoção foram aumentadas de 64% (1995-1996) para 73,8% (1999-2000). Os números em relação à repetência e evasão – no mesmo período – caíram: de 30,2% para 21,6% (1995-1996) e de 5,3% para 4,8% (1999-2000). Apesar destes dados positivos, a distorção idade-série continua elevada, apresentando um declínio pouco representativo, de 47,7% para 41,7%. Este último indicador é o que mais preocupa as autoridades, significando que os alunos, ainda, são retidos de várias formas no ensino fundamental, seja por meio da repetência ou da participação em classes especiais, de aceleração, classes-projeto, etc., o que aponta para problemas na qualidade de ensino. São Paulo é o estado que revela a menor taxa na distorção idade-série, com 19,1% (2000); na outra ponta, com a maior taxa, encontramos a Bahia com 64,9% (2000). No artigo Nível de leitura e matemática da maioria dos alunos é crítico – publicado pelo INEP em 22/04/2003 – apresentam-se e discutem-se dados do estudo realizado com alunos de 4ª. série do ensino fundamental em todo o país, obtidos através do Sistema Nacional de Avaliação da Educação Básica – Saeb, de 2001. Este estudo denominado Qualidade da educação uma nova leitura do desempenho dos estudantes da quarta série do ensino fundamental analisa o desempenho qualitativo dos alunos em Português e Matemática. Os indicadores de leitura foram verificados mediante textos simples como, por exemplo, um convite feito pela escola para a festa junina. Contudo, os alunos não conseguiram ler, localizar informações e entender o tema do texto. Os estudantes que representavam 59% da matrícula do final do 1° ciclo da educação obrigatória obtiveram níveis de rendimento considerados crítico ou muito crítico. Apenas 5% leitores competentes. Em matemática, os alunos não conseguiram resolver problemas através de operações elementares compatíveis com a 4ª série. Do total, 52% dos estudantes foram considerados em situação crítica ou muito crítica. Apenas 7% sabem resolver problemas de forma competente. Paralelamente, outro estudo realizado pelo INEP aponta que, de cada grupo de 100 ingressantes na 1ª série do ensino fundamental, apenas 59 conseguem terminar a 8ª série, enquanto os outros 41 param no meio do caminho. De acordo com o presidente do INEP, Prof. Otaviano Helene, a situação é muito preocupante, já que:
O tempo que os estudantes brasileiros ficam na escola seria suficiente para a conclusão das oito séries do ensino fundamental e das três do médio. Eles passam, em média, 8,5 anos no primeiro nível e 3,2 no segundo. Mas as taxas de repetência e evasão ainda são significativas, o tempo de permanência não corresponde à quantidade de anos de estudo. No fundamental, os alunos concluem, em média, 6,6 séries e, no médio, 2,6. (INEP, 2003, p. 1).
Outro aspecto discutido por Helene diz respeito à desigualdade social do Brasil "que se manifesta de forma perversa no sistema educacional" (INEP, 2003, p.1). Um dos principais fatores desta desigualdade é revelado no investimento dos recursos para os alunos pobres e ricos. Enquanto para o primeiro grupo, na rede pública, o custo por aluno não passa de R$ 500,00 ao ano e, considerando-se que sua média de permanência é baixa, o aluno custa R$ 2.000,00 ao longo de sua vida escolar. Na outra ponta, o aluno rico da rede privada de ensino, permanece os 11 anos do ensino regular, faz curso superior e tem acesso a: apoio psicológico, cursos de línguas, de natação, aulas particulares, materiais educacionais e paradidáticos, etc. Este investimento reflete-se, segundo Helene, nos resultados apresentados no Saeb, cujo pior desempenho é conferido aos alunos da rede pública de ensino. Como já citado, a análise dos dados colhidos pelo Ministério de Educação, através do INEP, sinaliza a importância que os problemas de escolarização vêm adquirindo em todas as discussões sobre educação. Sendo assim, avaliar e propor soluções efetivas para a reversão deste problema, significaria uma tentativa concreta de resolução da evasão, repetência, distorção idade-série e baixo desempenho dos alunos. Contudo, não há unanimidade na literatura educacional na maneira de investigar e explicar o problema da baixa qualidade do ensino e nem nas estratégias de encaminhamento de suas soluções. A questão é complexa e como veremos, as abordagens que centram as explicações da baixa qualidade do ensino apenas na precária formação do professor e/ou nas dificuldades de aprendizagem do aluno, acabam não levando em conta os fatores intra-escolares produtores de dificuldades no processo de ensino-aprendizagem nas instituições escolares brasileiras. Dentre os motivos de não se investigar em profundidade a realidade escolar – onde os problemas escolares surgem – estão as próprias estratégias usadas na investigação das queixas escolares de que os alunos são portadores e as concepções teóricas que as sustentam em seus encaminhamentos para, por exemplo, os serviços de psicopedagogia, fora da escola.
O TRABALHO PSICOPEDAGÓGICO DO PRISMA
O projeto analisado consistia em um programa de atendimento para crianças, adolescentes e famílias de camadas populares com queixa escolar em um Espaço Gente Jovem da cidade de São Paulo entre 1999-2003. O programa chamava-se "PROJETO PRISMA- o desafio de um novo olhar" e tinha como foco o trabalho psicopedagógico grupal com crianças e adolescentes e, encontros com suas famílias. O trabalho com as crianças baseava-se na construção de projetos e no trabalho das relações grupais. Os projetos eram escolhidos pelo grupo nos próprios encontros mantidos 2 vezes por semana. Tinham como objetivo o desenvolvimento de temas significativos, abordados de forma interdisciplinar, o que enriquecia o trabalho como um todo e tornava a aprendizagem mais significativa e prazerosa. A partir do estabelecimento de um clima de confiança entre os integrantes do grupo, discussões acerca das rotulações, mitos de incapacidade e exclusão surgiam espontaneamente e eram analisadas criticamente pelo grupo. Muitas vezes, inclusive se apelidavam pejorativamente, projetando a própria situação de exclusão que vivenciavam no cotidiano escolar. O trabalho grupal com as famílias baseava-se na proposta de grupos operativos. Os encontros eram realizados 1 vez por mês com as famílias de todos os grupos. No início, começávamos discutindo o que esperavam do trabalho psicopedagógico. Os pais expressavam seu interesse pelo trabalho no sentido de reverter a dificuldade manifestada pela escola do filho. Esperavam, portanto, ajuda nas matérias apontadas como difíceis, orientação para as tarefas de casa, melhoria no aprendizado etc. O clima de confiança construído ao longo dos encontros fez surgir questionamentos à queixa da escola e, até mesmo, críticas à forma de ensinar e avaliar dos professores e, à própria infra-estrutura escolar. Tudo isto permitiu que os pais se atrevessem a nos relatar situações aonde seus filhos apresentavam qualidades, eram inteligentes e afetivos. O grupo procurava encontrar soluções para as dificuldades, restabelecendo a "autorização" para acreditar no potencial de aprendizagem dos filhos.
METODOLOGIA
A investigação partiu de uma pesquisa de campo realizada com um grupo de 9 crianças e adolescentes de camadas populares com queixa escolar que participavam de este projeto psicopedagógico e, pautou-se no estudo das dificuldades de aprendizagem deste grupo, localizado em um Espaço Gente Jovem (EGJ) da cidade de São Paulo. O material coletado foi objeto de análise qualitativa, aonde se buscou identificar as concepções sobre as causas das queixas escolares. O suporte teórico-metodológico foi trazido pelas contribuições dos trabalhos de Heller (2000) e Patto (1990). O projeto constituiu-se, inicialmente, para atender a demanda das famílias por um trabalho psicopedagógico, tendo em vista as indicações realizadas pelos professores para que encontrassem algum especialista que pudesse resolver as dificuldades dos alunos. A medida que estas crianças passavam a participar do trabalho psicopedagógico, procurava-se analisar criticamente e compreender o encaminhamento da escola e a posição da família frente ao encaminhamento. Para tanto, foram realizadas entrevistas com os pais/ou responsáveis pelas crianças e/ou adolescentes. Também foram entrevistados os seus professores. O projeto tinha como meta, por um lado, compreender a queixa escolar e, por outro, oferecer um espaço para estas crianças e adolescentes onde sua capacidade de aprendizagem pudesse ser valorizada e resgatada e para os pais, encontros onde fosse possível questionar certos pressupostos da incapacidade dos filhos e apresentar sua própria versão sobre a dificuldade. A hipótese inicial do trabalho de pesquisa era a de que as queixas escolares trazidas pelas crianças, adolescentes e suas famílias pudessem ser compreendidas em toda a sua complexidade, voltando-se apenas para a análise das próprias crianças e adolescentes – através de testes e da análise das atividades propostas no Projeto Prisma nas avaliações: sua produção escolar na alfabetização e na matemática, sua forma de brincar e sua produção gráfica e plástica, e de suas famílias (através de anamnese). E por fim, pela análise dos discursos de pais e professores sobre as queixas escolares dessas crianças, recolhidos em entrevistas semi-estruturadas. Desse modo, a pesquisa tinha como objetivos iniciais poder analisar os resultados dos projetos realizados na instituição, na sua reversão dos problemas de aprendizagem, pressupondo que o trabalho realizado solucionaria os problemas dessas crianças na escola. No entanto, uma primeira análise do material coletado, qual seja, o discurso das mães e das próprias professoras sobre os problemas de aprendizagem das crianças e suas causas, apontavam que, ao invés de trazerem explicações que pudessem elucidar os problemas de aprendizagem, eram portadores de vários preconceitos contra as crianças e suas condições de vida. Ou seja, os discursos de pais e professores acerca da problemática escolar de seus filhos e alunos estavam fundados em juízos de valor sobre o desempenho deles que, inclusive não se confirmavam quando essas crianças eram avaliadas nas propostas de matemática, escrita e leitura, e nas atividades plásticas, lúdicas e gráficas propostas no âmbito do Projeto Prisma e suas atividades educativas. Portanto, via de regra, o motivo da queixa apontava para a visão preconceituosa do professor em relação ao aluno de camadas populares com dificuldades de aprendizagem, o que significava o uso de argumentos estereotipados para explicar esta situação. Estes argumentos podiam ser variados, mas a família e o aluno eram sempre vistos como os maiores responsáveis. O paradoxo consistiu em perceber que, muitas vezes, a atitude preconceituosa partia tanto dos professores, quanto da própria família da criança. Desta forma, mesmo nos casos em que pais acreditavam na sua responsabilidade frente ao baixo rendimento apresentado pelo filho -e apoiavam a opinião dos professores-, esta "aliança" não os permitia nem entender, nem encontrar soluções de fato para o problema. Na verdade, isto agravava a situação, já que as famílias ao se sentirem culpadas e impotentes passavam a acreditar que seus diversos arranjos familiares –distantes dos da família nuclear burguesa (pai-mãe-filhos) – seriam a causa do problema. Diante disto, nada poderiam fazer e a criança ficaria, assim, acusada e criticada por todos, sem que seu problema fosse solucionado. A pesquisa qualitativa teve como grupo-alvo a análise de 9 crianças e adolescentes e suas famílias ao longo de 2002. Começávamos o trabalho a partir de uma entrevista de anamnese com os pais. Nesta conversa, as famílias se mostraram solícitas – apesar da forma como fizemos esta primeira entrevista de anamnese– tentando encontrar problemas ou "distúrbios" no desenvolvimento de seus filhos. Em alguns momentos, inclusive, forneceram-nos pistas sobre onde deveríamos colher informações: na escola e com a professora. Após a anamnese, realizávamos uma avaliação com as crianças e adolescentes. Durante a avaliação, observamos que as crianças puderam se manifestar de um modo diferenciado para além do teste e do formato do estritamente normal e/ou anormal. É provável que isto tenha ocorrido devido ao tipo de relação estabelecida com estas crianças, onde sempre houve respeito e confiança. Através da análise de todos estes instrumentais de avaliação do Prisma pudemos concluir que não existiam problemas graves na criança e na família. Ao longo do trabalho também realizamos entrevistas semi-estruturadas com os professores e os pais das crianças. As entrevistas com os professores não nos trouxeram uma visão mais ampliada da criança daquela veiculada através da anamnese pelos pais. No entanto, por meio das suas respostas, pudemos entrar em contato com um cotidiano repleto de entraves para o bom desempenho do aluno. Este conhecimento da rotina escolar – via discurso – nos ofereceu uma visão menos parcial sobre as crianças que atendíamos. Percebemos que, atrás de uma visão que responsabilizava o aluno e sua família pelos problemas do primeiro, havia um contexto onde isto acontecia que não podia ser desprezado. Constatamos, assim, que o espaço escolar era afetado por outras relações que não apenas as surgidas a partir de determinadas atitudes do aluno. Políticas educacionais, instâncias institucionais, problemas do dia-a-dia, relacionamentos entre professores e direção, entre os próprios professores, projetos pedagógicos, etc., influenciavam diretamente a produção dos alunos, atravessando e delineando as práticas e relações docentes. Contudo, todo este leque de interferências não era percebido, dessa forma, pelo professor. De posse destes novos dados, conhecendo agora, um pouco mais sobre o professor, resolvemos ouvir novamente a família e entender o que tinha a nos dizer sobre seu filho, sobre a escola e sobre o professor. Que outros elementos teriam os pais para nos revelar sobre a queixa? Fomos assim em busca de mais dados que nos permitissem compreender melhor o nosso objeto de investigação e foi esta conversa a que abriu nossa perspectiva de entendimento da queixa. Ao ouvir as famílias, superamos nossos próprios preconceitos. Encontramos desta forma, fraturas, críticas, ambigüidades e, sobretudo, a certeza de que tínhamos finalmente conquistado uma relação com as mães de confiança, que lhes permitisse discordar, criticar, mostrarem-se ativas, sujeitos com idéias próprias. Inicialmente fomos ouvindo as mensagens enviadas nas entrelinhas do discurso. Aos poucos, as falas se tornaram mais diretas e questionadoras. Então, notamos que elas não aderem totalmente à fala do professor, possuem suas próprias opiniões. Por outro lado, sua visão sobre a queixa ultrapassa o preconceito, rodeando a dúvida, a incerteza e o questionamento e, alcançando um posicionamento crítico. Ouvimos mães que lutam e querem que seus filhos realmente aprendam. Cidadãs que são pobres, mas que sabem que têm direitos. Vislumbram na educação uma possibilidade de mudança, de acesso a melhores condições de vida, por isso insistem para que seus filhos permaneçam na escola a qualquer custo. Sua crença nas qualidades do filho as fazem duvidar de sua incapacidade para aprender e isto as impulsiona a tentar entender e reverter este quadro. O pedido para que ajudemos seu filho vai, aos poucos, se convertendo na confiança de que também possuem recursos para ajudá-los, apesar de sua pouca escolaridade. E, sobretudo, a certeza de que a escola e os professores contribuem para que seu filho não aprenda tudo o que poderia. Ao longo de todo o trabalho de análise do instrumental de avaliação do Prisma, observamos que o conhecimento das características da criança como filho, irmão, aluno, etc. – reveladas, seja pela anamnese, seja pela avaliação, seja pela fala dos professores – nos ofereciam uma visão parcial do sujeito, já que não podíamos, através desses dados exclusivamente, compreender como o aluno agia com aquele professor naquela escola. Em outras palavras, seus recursos, dificuldades e tendências poderiam ser vivenciadas e mostradas de forma diversas, dependendo do sujeito com o qual estabelecessem determinada relação, neste caso, o professor e o contexto em sala de aula. Assim, algumas características poderiam ser aumentadas, inibidas ou não consideradas dependendo da relação estabelecida entre professor e aluno. Estas conclusões reforçam a necessidade de conhecer o cotidiano escolar in loco e, não somente, através dos discursos obtidos nas entrevistas. Fomos ouvir os professores sabendo que não encontraríamos somente preconceitos. Sabíamos que a compreensão da queixa não poderia ser simplista, nem composta por apenas um elemento. Encontramos, assim, ambigüidades, fraturas, dúvidas, comportamentos e ações duais, acertos e desacertos, todos componentes de uma relação de ensino-aprendizagem onde há, no mínimo, dois sujeitos, um cenário específico e uma história de aprendizagem a ser construída. Percebemos que tínhamos muito a aprender com aquele professor sobre as dificuldades de seu dia-a-dia e sobre a importância de seu ofício. Conhecê-lo também teria implicado a compreensão das relações institucionais e a análise das suas práticas pedagógicas. Ele é fruto de sua história profissional e pessoal, mas também das relações daquela instituição, isto é, do lugar que ocupa naquela escola. Como vimos, as entrevistas com pais e professores nos forneceram uma inteligibilidade maior sobre a queixa, propiciando, de certa forma, a distinção entre a queixa da escola e a dos pais sobre a problemática do filho. Observamos, também, nas entrelinhas das entrevistas e, em alguns casos de forma mais direta, trocas de acusações entre escola e família. Pensamos, contudo, que existem aspectos subjacentes, não formulados explicitamente, sobre a relação e o posicionamento de pais e professores que precisariam ser analisados. Consideramos que estas questões dizem respeito à diferenciação entre educação familiar e escolar. Os professores reclamam que "os alunos não têm educação, limites e assim não dá para ensinar"; os pais se queixam que "os professores cobram constantemente e nem sempre eles têm tempo e condições de acompanhar as lições". Neste jogo de forças, o que observamos é que há uma confusão de papéis que, às vezes, inclusive se sobrepõem. Em outras palavras, a distinção de funções educacionais entre família e escola não é sempre nítida, já que, muitas vezes, a família delega esta tarefa à escola ou vice-versa. Contudo, a educação oferecida por ambas as instituições não é a mesma. Atualmente, observamos no discurso de professores e da sociedade de forma geral, uma reedição desta queixa: a escola considera que a família tem se omitido de certas funções, ou, ainda, que os pais não o fazem de forma competente. Percebemos que não há total clareza e diferenciação no que diz respeito às responsabilidades de cada um. Contudo, consideramos que ambas as instituições exercem grande influência na vida da criança e tem seus papéis específicos não intercambiáveis. Esta situação atual onde – escola e família – acusam-se indiscriminadamente merece um aprofundamento para uma melhor compreensão. Paralelamente, os professores não podem ser responsabilizadas por tudo que ocorre com a educação, como se a escola fosse uma instituição descontextualizada da sociedade. Precisamos reconhecer que os docentes são submetidos, em muitos casos, a uma dupla jornada laboral, recebendo baixos salários e falta de condições de trabalho, desprestígio social, críticas constantes, entre outros aspectos. Acreditamos que as acusações são sintomas de um mal-estar. Talvez seja um pedido de socorro. Portanto, a questão da queixa é complexa e preocupa, especialmente pela sua incidência sobre as camadas populares. Consideramos, assim, que uma intervenção é necessária. O Projeto Prisma, apesar das críticas – das quais, inclusive, fomos portadores – tem como objetivos ajudar a compreender a queixa e criar outros espaços formativos para essas crianças, além da escola, onde possam ter sucesso, objetivos que, de alguma forma, foram alcançados.
RESULTADOS
Ao entrarmos em contato com os primeiros dados das entrevistas dos pais e professores em que contavam sobre as queixas escolares das crianças, percebemos que a queixa era difusa, pois quando, por exemplo, alguns professores tentavam explicitar os motivos da reprovação, recuperação ou encaminhamento para a classe especial e/ou atendimentos especializados, utilizavam argumentos muito genéricos, tais como: falta de interesse, de concentração, dificuldade de raciocínio, de interpretação e de produção de texto, indisciplina, falta de iniciativa/imaginação, família desestruturada, etc. Ou seja, as explicações para os problemas de aprendizagem das crianças, seja no discurso dos professores, seja nos discursos dos pais traziam poucas informações sobre o que de fato se passava na escola e sobre as produções escolares. E mais, estavam centradas em explicações que a literatura educacional crítica já havia apontado como centradas em afirmações que não tinham sustentação científica. Então, como entender os problemas de aprendizagem dessas crianças já que as explicações, presentes nos discursos de pais e professores, estavam baseados em preconceitos, ou seja, pouco explicavam o que de fato apresentavam como problema na escola? Encontramos resposta no estudo bibliográfico em psicologia da educação que apontava outros rumos na análise dos problemas escolares das crianças de camadas populares no Brasil.
DISCUSSÃO
Desta forma, as teses que promoveram uma virada nos rumos das investigações e explicações sobre os problemas de aprendizagem dos alunos de camadas populares foram lançadas por um conjunto de estudos: Rockwell e Ezpeleta (1987), Mello (1992), Carraher (1995), Patto (1997), Cagliari (1997) e Moysés e Collares (1997), o que representou uma mudança, seja nas concepções teóricas das explicações para os problemas escolares das crianças de camadas populares, seja nas maneiras de investigar esses problemas. Estes textos mostravam que as antigas concepções sobre problemas escolares estavam baseadas em juízo de valor, ao atribuírem o baixo rendimento escolar das crianças de camadas populares a existência de deficiências em seu desenvolvimento geral, intelectual, lingüístico e afetivo, decorrente das precárias condições de vida. Indicavam, também, através de uma série de evidências empíricas que essas explicações estavam baseadas em uma série de preconceitos contra as populações pobres. O preconceito lingüístico em relação ao seu modo de falar é uma posição muito freqüente (Cagliari, 1997). Para o autor, a aquisição da linguagem seria a aprendizagem mais complexa e abstrata realizada pelo homem; sendo assim, as argumentações que se baseiam na impossibilidade de abstrações das crianças que apresentam dificuldades escolares seria inválido. Em relação à escrita, o autor faz uma ressalva que diz respeito à sua característica de representação da linguagem oral e à sua complexidade, justamente pela necessidade de programação e análise da linguagem. Um outro argumento analisado pelo autor diz respeito ao uso reduzido de vocabulário por parte das crianças de baixa renda, assim como o fato de não terem fluência/concordância, não usar regras sintáticas etc. Assim, Cagliari (1997) volta a fazer referência a diferença e ao uso que cada um faz da língua portuguesa nas situações cotidianas, de forma tal que, na verdade, existem muitas formas de língua portuguesa e os verdadeiros erros seriam os desvios das regras dessa língua. O preconceito contra as formas de organização familiar das camadas populares (Mello, 1992) demonstra a idealização de um modelo de família nuclear e monogâmica, com papéis fixos que não apresentam conflitos: a mãe que cuida da casa, o pai que trabalha fora e dois lindos filhos. O problema desse modelo é o de ser utilizado como padrão normativo, cujos desvios seriam, então, anormalidades, problemas, etc. Essas "quebras de normalidade" (MELLO, 1992, p. 127) seriam as responsáveis pelo fracasso escolar das crianças. A preconceituosa relação estabelecida entre desnutrição, alterações cerebrais e baixo desempenho escolar (Moysés e Collares, 1997) e um profundo desconhecimento sobre as condições em que se dá o desenvolvimento motor, afetivo e intelectual em seu contexto de vida seriam outras argumentações freqüentes. Os estudos chegaram, até mesmo, a mostrar que a queixa escolar de muitas crianças que não apresentavam resultados satisfatórios em matemática na escola – por serem "destituídas" de raciocínio lógico – não se sustentava já que, em outras situações, eram capazes de realizar contas de cabeça, o que lhes garantia, por exemplo, um emprego na feira (Carraher, 1995). Toda esta literatura apontou principalmente para o fato de que os problemas de aprendizagem das crianças de classes populares são produzidos por processos intra-escolares. Isto é, por concepções, práticas e relações escolares produtoras de dificuldades nos processos de ensino aprendizagem. Assim, o problema do fracasso escolar é pedagógico, político e social e não um problema de saúde. Portanto, a estereotipia com que se designa a situação de queixa escolar faz com que as palavras empregadas passem a designar uma "categoria". O discurso reflete uma situação retratada apenas de forma unidimensional, isolando os vários componentes do problema. Em outras palavras, os estereótipos funcionam como "biombos entre os diversos atores da situação". (AMARAL, 2002, p. 237). Por outro lado, os professores raramente referiam-se a práticas ou ações pedagógicas que pudessem influir no quadro apresentado pelo aluno. Esta omissão chamava a atenção. Por que os professores recorriam a explicações sobre a queixa fora do âmbito escolar? Por que não se incluíam no quadro apresentado pela criança? Se a queixa escolar tinha como cenário a escola e, especificamente, a classe, por que não falar diretamente do que ali se passava? Por que não avaliar as práticas pedagógicas, o conteúdo escolar, a metodologia, os objetivos da escola, a relação professor-aluno, o relacionamento entre os colegas, as formas de avaliação do aluno, etc.? A partir destas constatações sobre os discursos e sobre as contribuições fornecidas pela bibliografia consultada, tivemos que analisar se -as formas pelas quais vinha sendo feita a escuta de pais e professores pelo Projeto Prisma- conseguiriam levantar os fatores internos à escola na produção dos problemas das crianças e, percebemos que não seriam suficientes. Havia, portanto, determinadas ações e práticas escolares, produtoras da queixa que precisavam ser conhecidas. Desta forma, nossa hipótese inicial foi modificada. A queixa escolar seria, então, produto de determinadas ações, práticas e concepções da relação pedagógica. Pretendíamos, assim, ir em busca de um entendimento mais complexo sobre a queixa escolar que incluísse a inter-relação entre os vários aspectos que a compõem. O objetivo desta análise crítica era poder ultrapassar o circuito de causa ou agente causador da queixa escolar, seja a família, o aluno ou o professor. Esta forma de pensamento acredita que diante de um fato acontecerá determinado efeito, desconsiderando a complexidade das relações entre os sujeitos. As contribuições teóricas de Morin (2002) ofereceram um embasamento problematizador da premissa linear (causa ® efeito), ao conceber que existe uma inter-relação entre os aspectos de uma situação, propõe-se uma forma de pensar mais complexa, sintetizada na formulação: "Quais são as maneiras de pensar que permitem conceber que uma mesma coisa pode ser causada e causadora, ajudada e ajudante, mediata e imediata?" (2002, p.25-26). O autor discute, portanto, a complexidade das relações que passariam a entender a contradição como algo intrínseco. Desta forma, poderíamos pensar no tipo de contato estabelecido entre escola, família e criança, cujos efeitos são produtos e produtores da queixa. Em outras palavras, as ações não se imprimem no sujeito de forma espelhada, mas são frutos de uma relação. Desta forma, o preconceito dos professores diante dos alunos poderia revelar as críticas da escola a que os próprios docentes são submetidos, assim como, os preconceitos dos pais poderiam funcionar como denúncia diante do preconceito a que seus próprios filhos são submetidos. Desta forma, aquilo que pareceria ser um problema, seria, na verdade, um sintoma produzido e produto do preconceito e da queixa. Rego esclarece esta questão, apontando um outro aspecto de sua complexidade. "Por mais que um projeto pedagógico se assemelhe, ele nunca produzirá efeitos totalmente semelhantes nos sujeitos participantes". (2002, p. 66). Percebe-se então, que não há uma única causa para a queixa apresentada pela criança e sim relações estabelecidas de forma não-linear. Reconhecemos assim, a importância que adquire o conhecimento das relações estabelecidas no cotidiano escolar para o entendimento dos problemas escolares, o que demandaria um estreito contato com o cotidiano escolar. Paralelamente, determinadas perguntas não poderiam ser respondidas por meio de práticas como a anamnese e a avaliação, instrumental do Prisma. Perguntamo-nos: O que aprende uma criança que não aprende? Onde aprende uma criança que não aprende na escola? Como ensina o professor à criança que não aprende? O que a criança lhe ensina? Por que a escola não ensina esta criança? Quais os mecanismos institucionais que produzem este quadro? Quais práticas de ensino levam a não aprendizagem? Sabemos que este tipo de questionamento só poderia ser respondido mediante o conhecimento e a análise das práticas do professor no espaço de sala de aula. Portanto, o espaço privilegiado seria a escola, cenário da queixa. Ouvir a equipe educativa torna-se fundamental. Oferecer à escola "espaços de fala", isto é o que aponta Sawaya ao propor uma análise das práticas cotidianas da instituição escolar na produção da queixa escolar,
[...] permitindo que os vários agentes educacionais – equipe técnica, professores, alunos, pais e funcionários – possam expressar suas concepções, práticas e relações escolares, e assim explicitar as contradições que as caracterizam, bem como expressar as práticas alternativas que, comprometidas com os alunos e com as tentativas de superação das contradições, não encontram canais de expressão. (SAWAYA, 2002, p. 210).
O objetivo de ouvir o professor, no entanto, não é apontar mais um culpado. A questão que se coloca como desafio é a de poder apreender a diversidade de sujeitos, sentimentos, conceitos, situações, ações, etc. que estão envolvidas no espaço de ensino-aprendizagem, compondo-o de formas tão variadas. Desta forma, é necessário compreender o que está por trás da queixa e dos encaminhamentos. Neste sentido, concordamos com Souza (2002) na discussão acerca da (in) competência do professor. Este argumento tem sido apontado como o agente causador dos problemas de aprendizagem, localizados agora, no interior da escola. Considera-se que as "deficiências" do professor por não estar atualizado, não possuir uma formação adequada, não dominar recursos didáticos, etc. comprometeriam, irreversivelmente, seus alunos. Desta forma, a "falta" de qualidade da escola estaria diretamente relacionada à "falta" de formação e competência do professor. Esta "sentença matemática" esqueceu de incluir todos os sujeitos envolvidos na aprendizagem ("elementos a, b, c..."), assim como, de considerar as inter-relações entre estes "elementos", rompendo com o pensamento linear (a = b) ao levar em conta a complexidade das relações.
O argumento da incompetência, com sua lógica simplificadora, linear e homogeneizante, não é um conceito fértil para fundamentar uma proposta que vise melhorar a qualidade do ensino oferecido em nossas escolas (SOUZA, 2002, p. 258).
Partindo do pressuposto que os preconceitos sociais contra as populações pobres e suas crianças, ao estarem presentes nas instituições escolares, têm papel estruturante nas percepções e nas práticas escolares (PATTO, 1997) – que culminam com a produção das dificuldades de aprendizagem – procuramos entender o que realmente significam e como se constroem os preconceitos. Portanto, o nosso propósito foi poder analisar de forma crítica os argumentos usados para explicar as queixas, procurando demonstrar porque não dão conta do entendimento da complexidade da problemática escolar das crianças de classes populares. Assim, ao tentar compreender o uso dos preconceitos e estereótipos nas explicações sobre queixa escolar e o seu uso na vida cotidiana das pessoas, recorremos à procura de um significado mais amplo sobre este conceito. Conseqüentemente, o uso de preconceitos deixou de ser analisado, neste artigo, como produto da falta de compreensão ou conhecimento da realidade do aluno por determinado professor, isto é, como algo individual que levaria a ser preconceituoso por alguma "limitação" ou "defeito". Antes, estes passarão a ser entendidos como efeito de uma organização social, instituída a partir de certa estruturação política que entende os grupos dominantes, ou seja, os representantes do poder econômico como aqueles aptos a definir padrões. Dessa forma, quem não se encaixe neles será considerado anormal. Diante deste quadro, haveria tentativas de explicação para esta situação. O professor – como participante da sociedade – poderá representar ou não os interesses deste grupo dominante, mas sempre sofrerá – como qualquer outro cidadão – o efeito desta estrutura. Entretanto, ao se partir do pressuposto que só um modelo é aceito como normal ou correto, recorre-se, obrigatoriamente, ao uso de preconceitos. Para além destas definições, apoiamos nossa discussão em certos pressupostos teóricos fundamentados na teoria do cotidiano apresentada por Agnes Heller. Na sua fundamentação teórica Heller (2000) considera que o pensamento cotidiano é carregado de fragmentações e preconceitos. Isto ocorre porque atua como projeção dos interesses de um grupo ou classe social. Abandonar este tipo de postura é conseqüência de um processo. Segundo Heller, os preconceitos são categorias de pensamento e comportamento cotidiano das quais, muitas vezes, não se tem consciência crítica.
[...] por um lado, assumimos estereótipos, analogias e esquemas já elaborados; por outro lado, eles nos são "impingidos" pelo meio em que crescemos e pode-se passar muito tempo até percebermos com atitude crítica esses esquemas recebidos, se é que se chega a produzir-se uma tal atitude. (HELLER, 2000, p. 44).
Patto (1990) constatou que era muito comum as professoras emitirem considerações negativas sobre seus alunos e os pais as aceitarem passivamente, repetindo uma postura semelhante à dos filhos. Às vezes, a escola se apropriava de discursos que mais lembram "laudos médicos", já que o objetivo era encontrar explicações "científicas" que confirmassem a "deficiência" dos alunos. Diante disto, as famílias, apesar de inicialmente construírem críticas à escola em relação aos professores e aos conteúdos abordados, aos poucos, vão abandonando essa linha de idéias, passando a considerar coerente a explicação do professor.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Apesar dos trabalhos realizados por Patto (1984, 1990, 1997), Cagliari (1997), Mello (1992), Moysés e Collares (1997), Carraher (1995) entre outros, ainda existem preconceitos em relação à capacidade de aprendizagem de crianças e adolescentes de camadas populares, atribuindo as causas das queixas escolares às supostas deficiências. Este tem sido um movimento, tanto constatado no discurso de professores, quanto de especialistas. Contudo, é inegável que a escola passa por problemas em relação à qualidade de ensino oferecido aos seus alunos, situação que deve ser compreendida de forma ampla, e não isolando variáveis, como: o professor, o aluno e sua família, a formação dos professores, as condições de trabalho etc. Ou seja, como já explicitamos devemos complexizar a problemática da queixa escolar. O Projeto Prisma, inicialmente, tentou compreender esta temática de forma simplificada. Aos poucos, percebeu que este quadro é complexo, e que é fundamental compreendê-lo, analisando criticamente os fatores intra-escolares, ou seja, as ações, práticas e concepções da relação pedagógica. Na tentativa de reverter a queixa criou um programa que também se apoiava em um referencial teórico baseado em preconceitos e padrões de normalidade. Isto ficou evidenciado na escolha dos instrumentais de avaliação, quais sejam: as anamneses, as avaliações e os testes. Em relação ao trabalho psicopedagógico realizado com as crianças, adolescentes e suas famílias, constatamos que ele foi criado na tentativa de reverter o quadro da queixa escolar. A contribuição deste projeto foi a oferta de um espaço onde as relações educacionais eram mais preservadas, tanto devido ao tipo de proposta de trabalho pedagógica (projetos), quanto ao cuidado com as relações entre os integrantes do grupo e entre o grupo e a psicopedagoga. Ao longo dos encontros, as crianças e adolescentes iam reafirmando sua capacidade de aprendizagem devido à participação ativa durante a construção dos projetos. Paralelamente, o próprio grupo era capaz de discutir criticamente o papel da escola e suas formas de ensino ao se defrontar com uma proposta pedagógica diferente, onde sua participação era valorizada. Situação semelhante ocorria nos encontros com os pais que, aos poucos, resgataram seu espírito crítico em relação à queixa da escola, restabelecendo a crença na capacidade de aprendizagem de seus filhos. No entanto, o programa teve a ilusão de acreditar que seria possível solucionar o problema da queixa do professor quando, na verdade, o que ocorreu foi a criação de outras formas de trabalho com esta população, o que lhes permitiu aprender ou resgatar o que já sabiam. O projeto, sem se dar conta, ensinou aquilo que a escola não havia ensinado, permitindo, por exemplo, que elas escrevessem e solucionassem problemas de matemática, revelando, assim, que não têm problemas de aprendizagem, mas de escolarização. A partir destas constatações, observamos um movimento da escola de delegar sua tarefa de ensinar a especialistas. Os encaminhamentos apressados de seus alunos têm provocado efeitos negativos nas escolas, e nas crianças e suas famílias. A escola precisa, também, reassumir sua função educadora e acreditar na importância de seu papel, avaliando suas metodologias, concepções e relações de ensino-aprendizagem, promovendo, assim, soluções para seus próprios problemas.
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