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An. 1 Simp. Internacional do Adolescente May. 2005

 

Lavorando sobre o arcaico: o trabalho psíquico da adolescência

 

Ana Paula Rongel Rocha

Mestre em Psicologia Clínica pela PUC-RJ. Secretaria Municipal de Queimados, RJ

 

 

A idéia de adolescência, recente em nossa cultura ocidental, foi teorizada pelas ciências humanas e sociais, incluindo a psicanálise, como uma operação psíquica permeada pelo encontro recorrente com o mal-estar, fazendo com que sobre ela recaia significações como "momento de crise", "período de transição", "de dificuldades", "de impasses", "trabalho de luto", teorizações essas que foram aceitas pela cultura moderna de um modo geral. Romances que tratam de personagens adolescentes trazem em seu bojo concepções como essas, como podemos observar em O Jovem Torless (1906), de Musil ou a famosa peça de Wedekind, O Despertar da Primavera (1891), para citar os mais no meio psicanalítico (cf. Alberti, 1996). Porém, não foi só nos romances que esse tema foi tratado, mas também em outras manifestações culturais, como no cinema, por exemplo, o que demonstra que a sociedade se preocupou e se preocupa com a adolescência como um dos vetores do mal-estar na cultura, tratando de elaborar respostas e representações sociais ao que se convencionou chamar de conflito de gerações. Assim, podemos listar inúmeros filmes que tratam a adolescência desde Juventude Transviada até Kids, ou, mais recentemente Aos Treze, que sempre representam esse momento da vida como um momento delicado de tormenta e mal-estar, que acomete não só o sujeito, mas os que estão à sua volta.

Considerada como um dos termômetros da sociedade, a adolescência constitui-se em objeto de interesse para os diversos campos que se dedicam a estudar a cultura, de forma que uma das grandes questões atuais é comparar as diferenças entre a adolescência tal foi como teorizada nos primórdios da construção do conceito com a adolescência atual, impregnada de outros valores, representações sociais, e inserida num contexto social onde prevalece um cenário de complexificação e fragmentação dos ideais. Qual o trabalho psíquico requerido do adolescente de hoje em dia? Tendo tal trabalho psíquico sido preconizado principalmente pela psicanálise e, considerando ainda válida a teorização sobre a adolescência, quais são as matizes atuais do mal-estar na adolescência?

Sem deter-se na discussão sobre as diferenças entre a adolescência passada e atual, esse trabalho visa, no entanto, aproximar a psicanálise e a literatura na discussão sobre o mal-estar inerente à passagem adolescente, cotejando a teorização psicanalítica sobre o assunto com a história da André, personagem do romance Lavoura Arcaica, escrito por Raduan Nassar em 1975, e transformado em um belíssimo filme em (ano), sob a direção de Luiz Fernando Carvalho. Lavoura arcaica é um romance narrado em primeira pessoa pelo personagem-chave André, filho desgarrado de uma família libanesa, religiosa, patriarcal, que valoriza em primeiro lugar um modo de vida austero, centrado na união da família em torno do trabalho, da lavoura, do amor, mas principalmente em torno da figura do pai, transmissor de sua cultura ancestral através dos sermões que prega em voz calma e serena.Talvez por esse motivo, a narrativa assume um tom de revolta, de contestação, beirando por vezes a cólera, pois se trata sobretudo de um conflito de gerações. A rebeldia angustiada de André visa desorganizar a ordem estabelecida pelo pai em seu discurso, profanando, com sua lavoura, o sagrado de sua cultura, pois lavorar sobre o arcaico é revolver o caos enterrado sob a ordem estabelecida, é revolver o que deveria estar recalcado.

O romance começa com o encontro entre Pedro, o irmão mais velho, e André, o filho que partiu, num quarto de pensão. Pedro, substituto do pai, de quem imita os sermões, tem como missão levá-lo de volta ao lar. Enquanto ele dita sua prece, André aos poucos vai revelando a causa de sua partida: a angústia chegada a um grau insuportável ao ter que conviver entre o peso da lei paterna e a sufocante ternura materna. Com efeito, ao relatar sua angústia, sua raiva e questionamentos face à suposta consistência dos sermões paternos, seu discurso é entremeado de lembranças felizes de infância ao lado da mãe. Chegada a adolescência, porém, essa felicidade deu lugar ao tormento, e o sono infantil deu lugar ao despertar: "que sopro súbito e quente me ergueu os olhos de repente? que salto, que potro inopinado e sem sossego correu meu corpo em galope levitado?" (p51)

A angústia advém quando a puberdade toma seu corpo de assalto e a sexualidade transforma o que antes era claridade em estranheza e mudez, prostrando-o "na cama como um convalescente" (p28). André sabe que o que agora brota em seu corpo teve a semente plantada na infância, na sua relação com a mãe, desejo recalcado que se atualizou de forma imperativa no incesto cometido por ele e sua irmã Ana. A puberdade o fez profanar aquilo que é sagrado para a família, mas porque esta não é exatamente o que o pai apregoa: a cama em que dormia era também um campo de estrume "ali onde germina a planta mais improvável, certo cogumelo, certa flor venenosa, que brota com virulência rompendo o musgo dos textos dos mais velhos"(p.52)

Era nessa mesma cama, porém, que comungava com Deus, num gozo supremo, quando acordava de madrugada e esperava a mãe vir acordá-lo para a missa. Enquanto os irmãos dormiam e ele fingia dormir, entregava-se a um jogo de sedução com a mãe, que o acordava carinhosamente com muitos toques e carícias: "era então um jogo sutil que nossas mãos compunham embaixo do lençol"(p27). André esperava que ela o tocasse muitas vezes para só então fingir acordar, sem que nesse jogo os irmãos participassem. Levantava-se com Deus a seu lado no criado-mudo, um Deus que podia pegar, e ia receber o alimento diretamente levado à sua boca pelos "dedos grossos da mãe". Tais experiências, que escapam à sabedoria do pai, estão no cerne da desunião da família, como revela ao irmão: "a nossa desunião começou muito mais cedo do que você pensa, foi no tempo em que a fé me crescia virulenta na infância e em que eu era mais fervoroso que qualquer outro em casa" (p26).

Tudo na experiência adolescente de André contrasta com os ensinamentos do pai. Seu corpo agora é um corpo possuído, epiléptico, demoníaco, regido pela raiva e pela impaciência, ao contrário do pai que tem o corpo retilíneo, rijo com "o peito de madeira debaixo de um algodão grosso e limpo" (p.62) Na mesa da família, o pai sentado à cabeceira transmitia seus ensinamentos, o relógio de parede às suas costas, "cada palavra sua ponderada pelo pêndulo" (p.53). O pai, ao ler, nunca perdia a solenidade, abria sua brochura e começava: "era uma vez um faminto"...

Como lembra Perrone-Moisés (1996), o corpo é um tema que surge para representar a revolta, a contestação e a subversão aos preceitos do pai. O corpo colérico, impaciente de André contrasta com o corpo enrijecido do pai; seu silêncio ("tinha contundência o meu silêncio! tinha textura a minha raiva") contrasta com a promiscuidade dos sermões paternos; seu corpo cheio de libido, com sede e faminto, grita face à precariedade da história do faminto que deixa de ter fome, parábola que o pai sempre repete em seus sermões, tentando transmitir os preceitos da paciência e da prudência. Nesse sentido, André também guarda do corpo da família contra o sermão mortífero do pai, mantendo-o vivo com sua libido:

alguma vez te passou pela cabeça, um instante curto que fosse, suspender o tampo do cesto de roupas no banheiro? alguma vez te ocorreu afundar as mãos precárias e trazer com cuidado cada peça ali jogada? era o pedaço de cada um que eu trazia nelas quando afundava minhas mãos no cesto, ninguém ouviu melhor o grito de cada um, eu te asseguro, as coisas exasperadas da família deitadas no silêncio recatado das peças íntimas ali largadas, mas bastava ver, bastava suspender o tampo e afundar as mãos pra conhecer a ambivalência do uso (...) era preciso conhecer o corpo da família inteira, ter nas mãos as toalhas higiênicas cobertas de um pó vermelho como se fossem as toalhas de um assassino (...) ninguém afundou mais as mãos ali, Pedro, ninguém sentiu mais as manchas da solidão, muitas deles abortadas com a graxa da imaginação, era preciso surpreender nosso ossuário quando a casa ressonava, deixar a cama, incursionar através dos corredores, ouvir em todas as portas as pulsações, os gemidos e a volúpia mole dos nossos projetos de homicídio, ninguém ouviu melhor cada um em casa, Pedro, ninguém amou mais, ninguém conheceu melhor o caminho da nossa união. (p.44-45)

André com essa passagem revela seu ato de amor para com a família, mostrando, no entanto, a inconsistência do pai. Se o corpo familiar deve portar os ideais ancestrais, é também um corpo vivo, sedutor, que aprisiona por ser totalizante.

A adolescência de André, narrada por ele mesmo muitas vezes em tom colérico e com muita angústia, num tempo narrativo que remete ao tempo atual e também arcaico, remete-nos à teorização psicanalítica da adolescência pela qual nos interessamos. Veremos que o trabalho de luto e separação, bem como a reelaboração dos conflitos edípicos e dos ideais estão presentes na trajetória de André.

No texto Três ensaios sobre a teoria da sexualidade (1905), Freud trata das modificações pulsionais da puberdade que ocorre ao término da latência e no início da sexualidade adulta. Para ele, a puberdade não só incide sobre o corpo biológico, mas também motiva todo um trabalho psíquico proveniente do novo encontro com o sexual, de maneira que o termo puberdade não está alijado de adolescência, indicando que as transformações pulsionais vêm sempre acompanhadas de transformações psíquicas. Assim, em primeiro lugar a puberdade deve acarretar mudanças no erotismo infantil, de forma que a meta sexual auto-erótica passe a se dirigir a um novo objeto sexual, devendo o sujeito unir as correntes pulsionais terna e sensual, separadas inicialmente pela interdição edípica. Face à tarefa de unir as duas correntes em direção ao objeto e à meta sexual, as pulsões sexuais acabam por seguir trilhamentos anteriores e buscam reinvestir os primeiros objetos de amor do sujeito, o que traz novamente à tona as vivências e fantasias edípicas infantis.

André encontra-se nessa situação, pois as novas moções pulsionais o fizeram retomar o desejo pelo primeiro objeto de amor, a mãe, e, em seguida, substituí-lo pela irmã, Ana, agora objeto de um desejo incestuoso intenso, posto que encarna unificação do sexo e da ternura materna. O personagem levará às últimas conseqüências essa retomada das experiências edípicas, através da consumação do incesto com a irmã, fato que o impulsionará a realizar os dois trabalhos psíquicos mais importantes da puberdade, segundo Freud: a subjugação e o repúdio às fantasias incestuosas e o desligamento da autoridade dos pais (Freud,1905).

Repudiar e subjugar as fantasias incestuosas implica reaver-se com a castração e a interdição. Na infância, o sujeito resolveu seu complexo de Édipo através do recalcamento e do período de latência, mantendo a crença de que ao crescer a ameaça de castração não incidiria mais sobre ele assim como não incide sobre o pai, imaginariamente detentor do falo. O adolescente, porém, ao reviver suas fantasias edípicas, não deve manter essa crença, mas se confrontar com o fato de que a Lei da castração incide para todos, devendo separar a interdição imaginária da castração simbólica (cf. Lambert, 1997). Segundo Lambert (1997), buscar uma outra resposta ao que se apresenta como repetição, ou seja, lidar de outra maneira com a castração e a interdição, tirando-lhes o caráter de ameaça, é o que fundamenta a "modificação subjetiva" que deve operar na adolescência. Para a autora, tirar da interdição seu caráter de ameaça é passar do registro do imaginário, onde o pai continua sendo o rival que interdita o sujeito, para o registro da castração simbólica, onde o pai submete-se como todos à castração, de modo que a satisfação e a complementaridade sexual, sonhada na infância, se revela impossível.

André ainda não sabe desse desencontro, desse impossível, pois o poder de seu desejo incestuoso segue a trilha dos ensinamentos do pai, onde nenhuma felicidade deve ser buscada fora do seio da família. Apesar de sua força de lei, os sermões do pai reforçam um imaginário de que tudo é possível dentro do âmbito da família, de que dentro da família não haverá fome, não existirão famintos. A família de André é uma família que basta a si mesma, não admite separações, seus membros devem complementar-se uns aos outros, seu corpo deve ser um só. O impulso do desejo associado ao ideal do pai desemboca no caminho do incesto:

foi um milagre, querida irmã, descobrirmos que somos tão conformes em nossos corpos, e que vamos com nossa união continuar a infância comum, sem mágoa para nossos brinquedos, sem corte em nossas memórias, sem trauma para nossa história; foi um milagre descobrirmos acima de tudo que nos bastamos dentro dos limites da nossa própria casa, confirmando a palavra do pai de que a felicidade só pode ser encontrada no seio da família (p.120)

Imbuído dessa fantasia, espera que seu ato o faça, então, se redimir do afastamento que tem da família, remova as olheiras e as marcas de angústia de seu rosto adolescente, fazendo-o finalmente parte da família:

estou cansado querida irmã, quero fazer parte e estar com todos, não permita que eu reste à margem, e nem permita o desperdício do meu talento" (...) tudo vai mudar, querida irmã, vou amaciar minhas faces, abandonar meu isolamento, minha mudez, o meu silêncio, vou estar bem com cada irmão, misturar minha vida à vida de todos eles, hei de estar sempre presente na mesa clara onde a família se alimenta... (p.127)

Dessa forma André tenta levar ao ápice sua crença na complementaridade sexual, mostrando à irmã que os dois formam um só corpo, sendo a separação uma mutilação. São um só corpo porque vieram da mesma raiz, frutos da mesma sedução arcaica:

entenda, Ana, que a mãe não gerou só os filhos quando povoou a casa, fomos embebidos no mais fino caldo dos nossos pomares, enrolados em mel transparente de abelhas verdadeiras, e, entre tantos aromas esfregados em nossas peles, fomos entorpecidos pelo mazar suave das laranjeiras; que culpa temos nós dessa planta da infância, de sua sedução de seu viço e constância? que culpa temos nós se fomos duramente atingidos pelo vírus fatal dos afagos desmedidos? que culpa temos nós se tantas folhas tenras escondiam a haste mórbida desta rama? que culpa temos nós se fomos acertados para cair na trama desta armadilha? (p.130)

O que tenta justificar agora, ainda imbuído da crença em um gozo inatingível, se depara com um vazio, à medida que Ana não responde e o real se descortina à sua frente. André desperta de seu sonho infantil, tal como Lacan designa esse encontro com o traumático da sexualidade humana, fazendo referência à obra de Wedekind O despertar da primavera. Para Lacan, a adolescência seria um momento de despertar dos sonhos infantis, o despertar da fantasia para o 'real' que constitui o desencontro que caracteriza o sexual. Na teoria lacaniana, o registro do real, tal como a noção de trauma para Freud designa o que não pode ser integrado pelo simbólico, escapando ao discurso e à significação. Aponta a falha estrutural representada pela castração, falha que não pode ser suportada nem contornada pelo sujeito, mas que o constitui. Assim, a castração simbólica remete a um real incontornável, do qual o sujeito nada quer saber e é nesse sentido que Alberti (1996) coloca que a adolescência condensa uma crise que é própria de todo sujeito:"(...) se existe crise de adolescência, ela existe porque o sujeito humano é um sujeito em crise, e essa crise se dá pelo fato de que, como diz Lacan, a sexualidade, muito antes de fazer sentido, faz furo no real."(p.121)

Despertando de seu sonho, o adolescente é convocado a elaborar e dar um outro destino a seu mito edípico, através do reconhecimento da castração do Outro como Lei simbólica que abarca a todos, evitando ir pela via do recalcamento neurótico. Sabemos, pela teorização lacaniana do complexo de Édipo, que a Lei simbólica da castração é transmitida através da função paterna, fundamental na estruturação do sujeito, pois é o pai quem barra a relação incestuosa entre a mãe e o bebê e transmite a lei de interdição do incesto. Mais do que o pai da realidade, porém, é o pai simbólico que deve operar como o significante que, através da metáfora paterna, divide o sujeito e o constitui como desejante, fazendo-o aceder à linguagem. Assim, na adolescência o sujeito se vê efetivamente diante da tarefa de ter que questionar a lei do pai e seu próprio ser enquanto marcado pela linguagem. É um momento de formação de sintoma e mal-estar porque a relação idealizada que a criança mantinha com o pai, imaginariamente não castrado, fica abalada. Para Alberti (1999), o sofrimento dessa passagem articula-se com o desligamento dos pais, realização psíquica que Freud (1905) postula como uma das mais importantes e dolorosas da puberdade. Separar-se dos pais implica ressignificar as referências identificatórias determinantes na infância, inclusive a mais importante de todas: a identificação com o pai, que no texto freudiano é correlata à constituição do supereu e à dissolução do complexo de Édipo. Com efeito, Alberti (1996) coloca que se separar dos pais na adolescência pode ser interpretado como uma elaboração do supereu, tarefa que não é realizada sem uma dose de recordação e repetição. O adolescente deve elaborar a injunção paradoxal do supereu que denota a identificação com o pai ("você deve ser como seu pai") e a interdição ("você não deve ser como seu pai"). Esse paradoxo pode ainda encobrir a interdição simbólica, uma vez que ainda resta ser imaginariamente como o pai detentor do falo. Segundo Lambert (1997), o imperativo superegóico continua atribuindo ao pai o poder de interditar o sujeito, colocando-o como "impotente" diante da proibição (não poder ser como o pai) ou onipotente ao lado do ideal (ter prerrogativas tal qual o pai). Dessa forma, sem o trabalho psíquico da adolescência, o supereu não daria a dimensão da castração do Outro, servindo, ao contrário, para velá-la. Para haver uma saída desejante, é preciso, portanto, que o ideal do pai estremeça, mas, por outro lado, que a inscrição simbólica do pai – na terminologia lacaniana o Nome do Pai – se faça representar de outras maneiras.

Sem as respostas que procura em seu mito edípico, André parte faminto. Seu corpo maldito não cabe mais nos ideais da família, mesmo que tenha tentado seguir os preceitos paradoxais do pai. O Um que o pai almeja não comporta castração, é sedutor, leva à fantasia de um gozo possível. Por isso, precisa se haver agora com o que o pai omitiu e saber que o faminto nem sempre recebe o seu bocado, "muitos trabalham, gemem o tempo todo, esgotam suas forças, fazem tudo o que é possível, mas não conseguem apaziguar a fome" (p.159). A relação idealizada que mantinha com o pai está estremecida, seus sermões mostram-se promíscuos, e essa profusão de palavras do pai não serve para contornar seu desejo. Os sermões do pai não são como a injunção superegóica do avô que, diante das tormentas e tempestades, se resignava: "Maktub" (está escrito). André se ressente de uma palavra mais contundente. Diante da queda do ideal do pai, André sente-se desamparado e faminto e a parábola do faminto não o conforta, pelo contrário, desperta sua cólera. O pai não percebe que ele só pode falar do faminto porque não o é, o pai imaginário tem a mesa farta, não tem fome como ele. Como bem lembra Perrone Moisés (1996) a cólera é tributária de uma frustração, de uma demanda não satisfeita: "Pai, não vês que estou faminto?" é esse apelo que dirige ao pai, "dê-me algo que me alimente, algo que não seja esse ideal seco e inconsistente, algo que dê sentido ao meu delírio". Mas o sujeito deve agora buscar, para além do imaginário, a inscrição simbólica do pai.

André vai embora de casa, busca uma separação, busca matar sua fome em outras paisagens, sabendo que qualquer caminho o leva de volta para casa. Coleciona objetos, quinquilharias pertencentes às diversas prostitutas que encontra pelo caminho e que tenta manter para além das divisas do pai. Busca outros objetos para saciar sua fome, "outros sonos que me dormiam", uma saída desejante, portanto. O Nome do Pai se faz presente de outras maneiras, travestido de injúria, escárnio, mas terreno de toda sua reflexão. Ao voltar para casa, cedendo aos apelos da família, sabe agora que a palavra não diz tudo, "que toda ordem traz uma semente de desordem, que toda clareza, uma semente de obscuridade" (p.160). Mantém uma postura de desafio, mas coloca ao pai que jamais o abandonou "tudo o que eu quis, ao deixar a casa, foi poupar-lhes o olho torpe de me verem sobrevivendo à custa das minhas próprias vísceras" (p..

Com sua verdade, pode agora retornar à casa, com sua recusa, pode agora ocupar seu lugar na família: "não trago o coração cheio de orgulho como o senhor pensa, volto para a casa humilde e submisso, não tenho mais ilusões, já sei o que é a solidão, já sei o que é a miséria, sei também agora, pai, que não devia ter me afastado um passo sequer da nossa porta" (p.170)

Mas nada pode ser como era antes. O seu despertar já despertou a família, seu mal-estar já marcou o corpo da família, todos estão mudados e o tempo, para completar seu trabalho de elaboração, traz um último elemento de repetição: Ana, como no início do romance - numa passagem que repete quase que literalmente as palavras do início - dança para a família na festa em comemoração ao retorno do filho pródigo, mas dessa vez grosseiramente travestida dos objetos que compunham o tesouro das experiências sexuais de André. Como depositária da revolta do irmão, faz cair o pai, e as verdades ancestrais do círculo familiar.

Esse trabalho teve como objetivo discorrer, através de um personagem da literatura, sobre os principais elementos que designam a adolescência como uma operação psíquica que envolve um trabalho de luto, elaboração de perdas e mal-estar. Vimos que ao decidir ir de encontro às suas raízes, lavorar sobre o arcaico, André realizou um atravessamento da adolescência, difícil de ser realizado por qualquer sujeito. Segundo Alberti (2001), enfrentar essa crise é uma tarefa para poucos, pois há diversas maneiras do sujeito contornar a castração e o impossível da adequação sexual, ou seja, há diversas maneiras de não ver o que não se quer ver. É fácil voltar a dormir diante do horror do despertar, e muitos o fazem, haja vista o esquecimento que acomete muitas pessoas a respeito das angústias enfrentadas na adolescência. É preciso ter coragem para lavorar sobre o arcaico, pois ao fazê-lo se revolve o inconsciente e, como vimos, isso não se realiza sem muita angústia e muito tormento. Apesar disso, a trajetória de André só foi possível devido à sua sustentação no ideal do pai que, embora revolvido, lavorado e mexido, possibilitou uma ancoragem e uma saída para o sujeito, mesmo que tenha sido preciso despertar o mundo com seu mal-estar: "é próprio da adolescência fazer aparecer o real necessário para o desencadeamento de um conflito, acordando às vezes de sopetão o mundo inteiro" (Alberti, 1996, p.118).

Essas considerações nos remetem à uma última questão, quem sabe mote para um próximo trabalho: qual viés do mal-estar na adolescência contemporânea, inserida que está em uma sociedade do mais-de-gozar e da fragmentação dos ideais? Haveria espaço psíquico para uma Lavoura Arcaica?

 

BIBLIOGRAFIA

ALBERTI, S. (1996). Esse sujeito adolescente. Rio de Janeiro: Relume-Dumará.

__________ . (1999). "Atravessando um túnel" in O adolescente e a modernidade. Congresso Internacional de Psicanálise e suas Conexões. Rio de Janeiro: Companhia de Freud.

__________ . (2001). "O adolescente, o discurso do mestre e o discurso do analista" in Marraio. Rio de Janeiro: Revista das Formações Clínicas do Campo Lacaniano, n.1, pp. 49-56.

FREUD, S. (1905). Três ensaios para a teoria da sexualidade. ESB, vol. VII. Rio de Janeiro: Imago, 1989.

_________ . (1924). A dissolução do complexo de Édipo. ESB, vol. XIX. Rio de Janeiro: Imago, 1989.

LACAN J. (1974). "O Despertar da Primavera" in Shakespeare, Duras, Wedekind, Joyce. Portugal: Assírio&Alvim, 1989.

LAMBERT, A. C. (1997). A modificação subjetiva na adolescência. Rio de Janeiro: PUC-RJ/ Departamento e Psicologia, Dissertação de Mestrado.

PERRONE-MOISÉS, L. (1996). "Da cólera ao silêncio" in Cadernos de Literatura Brasileira – Raduan Nassar. São Paulo: Instituto Moreira Salles.

NASSAR, R. (1975). Lavoura Arcaica. São Paulo: Companhia das Letras, 3ª ed, 1989.

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