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An. 1 Simp. Internacional do Adolescente May. 2005

 

Mundo moderno e cena juvenil

 

 

Rodolpho Ruffino

Psicanalista, Psicólogo, Mestre em Psicologia (IPUSP). Membro da APPOA (Associação Psicanalítica de Porto Alegre). Exerce a clínica psicanalítica com adultos e adolescentes em São Paulo, SP, desde 1978. É autor de diversos ensaios psicanalíticos, a maioria sobre a adolescência, em publicações especializadas. R. Curt Nimuendaju, 58 – Perdizes – 05015-010 – São Paulo – SP. e.mail: rodruf@terra.com.br – tel.: (0**11) 3871-4501

 

 

1. INTRODUÇÃO

O texto que serve de convite a este Simpósio aponta, muito acertadamente, que, no tempo presente, predomina a visibilidade como valor e lembrava o quanto hoje se desconfia de tudo e de todos que pretendam permanecer ocultos; ele denuncia, assim, que, em nossos dias, nem mesmo para a construção de objetivos a longo prazo, quase já não há mais espaço para o segredo, a solidão e a intimidade; e – considerando que para o sujeito humano a construção de objetivos pessoais de longo prazo exige, ao menos em um primeiro momento, o contrário da visibilidade, ou seja, um certo refúgio íntimo – ele prossegue se perguntando como, na contra-mão dessas tendências, preservar a construção do espaço psíquico para o jovem.

Nosso trabalho, mobilizado pela interrogação ali posta, decidiu por apresentar o acontecimento das cenas urbanas produzidas pelas sub-culturas1 juvenis como uma saída possível pela qual, no limite e não sem riscos, aquilo mesmo a que uma exigência de visibilidade parecia pretender impedir – a construção do espaço psíquico para o jovem – pode hoje fazer encontrar, ao contrário, o caminho para a sua própria possibilidade de realização, muito embora sob as condições da contemporaneidade.

As cenas urbanas produzidas pelas sub-culturas juvenis,

Simultaneamente vitrine de exposição ao olhar do mundo – inclusive à intervenção midiática – e espaço de auto-reflexão prática de jovens inquietados com os enigmas e com a construção de sua identidade, a cena urbana produzida por uma dada sub-cultura juvenil é uma realidade moderna paradoxal: obediente ao imperativo contemporâneo que impõe a exposição de si, ela surge também como o meio para a construção viável de um espaço de vida compatível com o estilo de vida sonhado pelos jovens que compõem essa sub-cultura.

Dada a sua condição híbrida – uma formação de compromisso psíquica e cultural produzida entre a imposição de visibilidade exigida pela contemporaneidade e a exigência subjetiva de construção psíquica requerida pelo trabalho da adolescência –, queremos apreciar aqui as condições facilitadoras do trabalho psíquico da adolescência que possam, por ventura, estar presentes em meio a esses cenários estéticos instados no espaço urbano por obra das sub-culturas juvenis. Se puder sob estas condições a exigência contemporânea pela visibilidade vir não apenas a não se opor à construção do espaço psíquico para os jovens, mas ainda lhes facilitar, no interior das exigências inter-subjetivas da contemporaneidade, o trabalho de empreender tal construção, então teremos encontrado uma das formas possíveis por onde ser moderno poderá não se opor às exigências da subjetividade.

 

2. A MODERNIDADE E O LAÇO SOCIAL NA CONSTITUIÇÃO DO SUJEITO

A modernidade é um acontecimento cultural cujos desdobramentos vêm se efetivando nas sociedades humanas ao longo história, mas esse fenômeno não se reduz a uma idade da história. A modernidade é uma modalidade de funcionamento imposta aos laços sociais que se tornou necessária em função de certas "escolhas" que as organizações sociais foram fazendo para caminharem em direção ao que julgaram dever ser o seu progresso. Chamamos de comunidade tradicional a ordem social que não foi afetada pelo acontecimento da modernidade e de sociedade moderna a ordem social que veio a se estabelecer como efeito desse acontecimento. Deste modo, podemos considerar que a modernidade é uma instalação cultural que altera e se sobrepõe à ordenação tradicional da sociabilidade em função das exigências de progresso que uma organização social "decidiu" adotar ou foi forçada a isso ver a se submeter por outra força social mais poderosa que ela.

O surgimento do Estado, como uma organização que se põe acima da sociedade para geri-la ou a dominação de um povo por um Império supra-nacional ou estrangeiro são exemplos de organizações sociais que, na história, tendem a forçar com que a ordem que rege o laço social tradicional de um povo, remontando a épocas cujas origens – reais ou míticas – se perdem no tempo e que lhe definem uma especificidade nacional entendida como família expandida, venha a ser degenerada para que uma nova ordem, cujo interesse político em faze-lo vitorioso é supra social, possa se apresentar. A representação de progresso que na história animou não só essa imiscuidade do Estado ou do Império sobre os povos e sua ordem social tradicional, mas a própria formação dessas organizações supra-sociais, nunca esteve primariamente associada com a idéia da otimização da qualidade da vida social, mas sim com o desenvolvimento do nível comercial, técnico e militar do Estado ou do Império para que este pudesse elevar o seu poder acima do poder dos Estados ou Impérios vizinhos, com ambições semelhantes às suas, com os quais ele haveria de se confrontar.

As primeiras formas de confronto entre Estados, ou entre um Estado e pequenos reinos ou mesmo entre um Estado e pequenas comunas independentes foram guerras que visavam a conquista de terras, de pilhagem de bens materiais, de servos a quem cobrar impostos por proteção, de escravos, de mulheres para os haréns e de órfãos (filhos dos homens adultos exterminados) para a constituição do corpo das guardas pessoais dos senhores da guerra – assim se formaram os Impérios. O desenvolvimento do comércio, posteriormente, iria possibilitar o surgimento de um outro modo de imperialismo, mais barato para os poderosos e mais sutis para os demais, que dispensaria em parte o uso do esforço de guerra e os custos para a ocupação de um território hostil e que se tornaria mais exeqüível em períodos mais avançados da marcha da história, incluindo os da nossa contemporaneidade.

Se levarmos em conta que as figuras históricas do pequeno reino, da comuna independente e das federações pré-estatais não teriam alcançado otimização alguma na qualidade de vida de sua população, pois sequer teriam sobrevivido na história diante da expansão das figuras do Estado e do Império, verificaremos que a "escolha" pela forma Estado adotada por muitas comunidades tradicionais nem sempre foi uma submissão ao mal, muitas vezes foi a estratégia para poder sobreviver, exibindo alguns meios internos de governabilidade formalizados e, com isso, podendo manter para os seus uma relativa autonomia nacional, cultural ou religiosa, diante da eventualidade de sua inclusão num Império supra-nacional em expansão nas suas fronteiras. Deste modo, a generalização da forma Estado foi o produto híbrido das exigências de aceleração, expansão e eficiência com que a história pressionava um povo e da preservação das formas próprias e específicas de lei e sociabilidade que caracterizava esse povo enquanto tal.

Assim, nem a modernidade encarnaria o mal absoluto e nem a insistência na tradição materializaria absolutamente a causa do bem; mas, em cada sociedade humana haveria transfiguração, renovação ou degeneração variadas na ordenação dos laços sociais e na formação das subjetividades. Mesmo o descaso inicial com a qualidade de vida e com a riqueza dos laços sociais demonstrado pelas razões de Estado, algumas vezes poderia, malgrado aa intenções dessa razão, produzir, a fortiori, mais significativos avanços nessas realidades sociais do que teriam, em alguns casos, produzidos os ideais tradicionais dos povos mesmo se estes fossem absolutamente hegemônicos e reinassem sem a ameaça da dominação alienígena. De outro lado, a rigidez, a estereotipia, o obscurantismo e o despotismo intra-familiar que reinavam na grande maioria das comunidades tradicionais do passado, aliados à aposta de que sua ordem espelhava a ordem de um mundo transcendente supra-humano e a sua inclinação para identificar todo elemento estranho como inimigo ameaçador, se isso assegurava, pela inserção de cada um numa filiação supostamente indubitável, um conforto psíquico invejável aos olhos de nossos contemporâneos, essas forças estavam desde o começo longe de assegurarem o equilíbrio entre o bem-estar comunitário e o reconhecimento do valor da subjetividade individual que os nossos contemporâneos mais lúcidos gostariam de alcançar numa sociedade justa.

Se exemplos há na história – e isso existe – da existência de comunidades humanas nas quais um ímpeto pela renovação caminhou lado a lado com o respeito e o diálogo com os ideais históricos que presidiram a sua formação, esses casos são como jóias raras e a formação e preservação desses grupos sempre se deram sob condições muito específicas – e também raras – desenvolvidas na vizinhança de tensões cujos efeitos, para essas comunidades, em muitos momentos de sua história passada, não se apresentou com experiências agradáveis.

A modernidade, então, é o efeito de uma transformação que vem operando ao longo da história nos laços sociais das sociedades humanas e que funcionam sobre elas produzindo, simultaneamente, dois tipos de efeitos contraditórios: por um deles, as populações humanas vão sendo emancipadas da coerção dos mitos milenares que as aprisionavam a uma modalidade de existência que não as teriam preservadas vivas sem que os princípios que regiam essa coerção mesma não tivessem sido desrespeitados – essa é a face emancipadora e libertária da modernidade; pelo outro deles, temos que a sobrevivência humana trazida pela modernidade implicou num esgarçamento tal dos laços sociais que ela redunda, em nossos dias, numa sobrevivência apenas de um amontoado de indivíduos quase sem filiação e quase sem laço social significativo com o seu semelhante a não ser por meio de acordos formais e em nome de abstrações produzidas pelo pensamento para poder manter a continuidade da vida minimamente possível – essa é a face devastadora da modernidade.

Então a modernidade não é apenas uma idade da história, mas o nome daquilo que na história fica marcado como efeito das forças de expansão, aceleração que caracterizou a tendência das organizações supra-sociais que vieram, em qualquer idade da história, a sobrepor, para o melhor e para o pior, as sociedades humanas. Aquilo a que os manuais de história chamam de Idade Moderna, por sua vez, longe de ser o nome do período em que a modernidade se pôs na história, nomeia apenas a idade da história em que a modernidade, como definida acima, veio a se tornar definitivamente hegemônica no Ocidente. O nosso presente, longe de ser pós-moderno como muitos pensam2, deve ser considerado, como nos indica Anthony Giddens3, hiper-moderno, pois foi nele, ao longo do século XX recém-findado, que a modernidade, ao menos no Ocidente, terminou por ocupar todos os espaços em que, até há pouco, sobravam vazios em que formas pré-modernas ou tradicionalistas ainda gozavam de alguma função, restrita, porém efetiva.

Durkheim distinguia com simplicidade e elegância a ordem da modernidade da ordem tradicional ao dizer que na sociedade moderna o que vige é a precedência da funcionalidade sobre a forma, enquanto que na comunidade tradicional o que vige é a precedência da forma sobre a funcionalidade.

Tomemos como exemplo um ato humano qualquer, por exemplo, o ato de alguém servir uma xícara de chá a quem o visita. Como a forma desse ato não é o que se faz ou o que esse fazer realiza, mas o modo como ele se apresenta, a forma seria isso que distingue o ato singular desse anfitrião de todos os demais modos de se servir chá a um visitante. No mundo humano em que os modos de fazer além de designarem a singularidade de um sujeito, também poderiam, desde que eles individuassem uma forma reconhecível e especificada, marcar a cultura na qual ele foi formado, se não serviam para nada em relação ao resultado ou à eficiência da ação, servem para indicar a procedência do sujeito que o realizou. E se isso, na modernidade, é acessório ou ilustração, no mundo tradicional isso seria uma moeda cujo valor objetivo não seria menosprezada.

Assim, o chá das cinco à inglesa ou a cerimônia japonesa do chá distinguem-se mais pelo modo como se realizam do que pelo líqüido (extraído de efusão de ervas tomadas, afinal, da Índia) de que se usam. Aqui, a forma, equivalente da assinatura da origem que caracteriza o ato, ela é a referência paterna (enquanto designação da origem cultural do ato) que nomeia o ato, incluindo-o no rol dos costumes pelos quais um povo pode ser reconhecido. Daí Lacan ter caracterizado, em 19384, a contemporaneidade, como que indicando esse rebaixamento nela realizado do valor das formas em favor da funcionalidade como um tempo em que vem se dando o declínio da função social da imago paterna. Ao nomear como função paterna, utilizando-se assim do termo que nomeia o protagonista da organização familiar que se situa em posição de terceiro na constituição da subjetividade da criança humana para designar a fonte instituinte da forma na atividade humana que se expressa no social, Lacan põe todo o peso no efeito que a passagem do que restava da tradicionalidade para a hiper-modernidade veio a ter sobre a constituição do sujeito contemporâneo.

Mas antes de adentrarmos ao campo propriamente psicanalítico, seria interessante destacarmos, sobre a hiper-modernidade como caminho à hipertrofia do regime de funcionamento moderno do laço social, alguns dos princípios regenciais desse regime que já foram individuados e nomeados por alguns estudiosos do fenômeno da modernidade, dentre os quais mencionaríamos aqui Walter Benjamin e Hannah Arendt.

Walter Benjamin diz-nos que ficou patente desde a Primeira Guerra que houve um enfraquecimento de nosso poder narrativo sobre a nossa experiência. Ora, uma experiência impedida de narratividade é uma experiência não compartilhável e a falta de experiência compartilhável destrói a realidade de um mundo que possa ser comum entre os sujeitos. Usando do fato de que há dois termos para a noção de experiência em sua língua – o alemão –, Erfahrung (que designa a experiência compartilhada) e Erlebnis (que designa a vivência privada individual, a qual, mesmo podendo ser comunicável em boa parte, jamais será experiência para algum outro), Benjamin cria uma polarização entre essas duas formas de experiência e diz que houve no mundo contemporâneo o enfraquecimento da Erfahrung em favor simplesmente da Erlebnis5.

Essa idéia de empobrecimento da experiência compartilhada na contemporaneidade de Walter Benjamin encontra importante ressonância num conceito de Hannah Arendt forjado também para caracterizar os nossos tempos, o conceito de isolamento, só que com este conceito Arentd enfatizará o seu foco sobre a limitação do alcance político do sujeito contemporâneo – a destruição impetrada contra a faculdade de agir dos homens –, que é a base para a instauração da tirania. Mas Hannah Arendt ainda acrescenta um outro impedimento instaurado pela contemporaneidade na liberdade humana, o desenraizamento – a desagregação da vida privada e a destruição das ramificações sociais – cujo perigo repousa no fato de ele ser a base para a instauração do regime que além de ser tirânico, possa pretender ser também totalitário. Se o isolamento corta o laço entre os sujeitos e seus contemporâneos, o desenraizamento corta os laços entre o sujeito e sua origem e entre o sujeito e seus destinos.6

A importância para nós dos conceitos trazidos por esses dois autores está no fato de eles, querendo-o ou não, trazerem à tona os fenômenos das duas modalidade de transmissão pela qual o sujeito é constituído, a intersubjetiva e a transgeracional. É por essas vias que o que se dá no laço social vai sendo lentamente apropriado pela subjetividade e também é por essas vias que a subjetividade do sujeito humano pode vir a adquirir a vocação para algumas novas tarefas que tentarão dar alguma resposta psíquica – de submissão ou de afrontamento – ao que vai se transformando na socialidade. A alteração no regime do laço social sempre implicará na alteração nos modos e nos objetivos de formação dos sujeitos, logo, a família e a infância – muito embora seja o espaço social da família, ao menos durante a infância de suas crianças, o espaço em que, paradoxalmente, mesmo na mais modernistas das famílias, mais se tenta encenar nos dias de hoje, visando-se com isso as crianças, uma modalidade tradicionalista de sociabilidade – serão sempre os alvos preferenciais dessa empreitada, quer haja, quer não, alguma consciência disso, ou desses propósitos, nos agentes que operam essas alterações. Como é, então, o sujeito da hiper-modernidade? Como é a subjetividade revelada na hiper-modernida que a modernidade veio a instituir?

A modernidade, tal como seus efeitos se revelam hoje na hiper-modernidade que nos é contemporânea, entendida como um regime de organização do laço social, ainda nos esclarece a junção que articula o aparelho psíquico, tal como postulado por Freud, e o horizonte histórico-social no qual se apresenta a realidade humana. O horizonte histórico-social se presentifica no aparelho psíquico freudiano e o aparelho psíquico freudiano se expressa no horizonte social pela articulação entre esses domínios possibilidade pelo tecido dos laços sociais e pelo poder de transmissibilidade de dupla via que esses laços instauram, que além disso são o suporte do real que se apresentas como linguagem.

A criança não sobreviveria na modernidade se a família, ou as demais instituições que hoje a substituem ou a complementam, não psicodramatizassem em seu interior, ao menos enquanto nela existir uma criança em crescimento, um simulacro mais ou menos verossímel – e mesmo autêntico do ponto de vista de seus protagonistas – da ordem tradicional do laço social. O adulto, no mundo mundano e extra-familiar, é a criança já crescida que, bem ou mal, aprendeu a sobreviver como indivíduo num mundo pobre de laços sociais orgânicos que o conectem com o que está além de si para além dos vínculos formais e abstratos. Já o púbere, o adolescente e o jovem adulto são aqueles que atravessam esse deserto em que, por um lado, já não há quem lhes represente aquele psicodrama familiar e em que, por outro, não é possível a ilusão de se crer em si mesmo como indivíduo.

O aparelho psíquico tal como foi pensado por Freud e retomado por seus continuadores é uma composição formada pelo jogo complexo e pela história que vai se desenhando entre as intensidades somáticas que constituem o substrato que o vivente traz ao mundo e o impacto que esse mundo apresenta a esse vivente. Na interface entre ambos, o laço social, a linguagem e a fantasia instituem a realidade humana nesse espaço que não é nem exclusivamente subjetivo e nem exclusivamente objetivo, nem exclusivamente interior e nem exclusivamente exterior, nem exclusivamente individual e nem exclusivamente coletivo. Foi desse mundo intersubjetivo e transindividual que o sujeito humano surge e habita que grosseira e ligeiramente traçamos a história nos parágrafos precedentes. A condição moderna e a mutabilidade que a caracteriza no presente produz tensões específicas nos laços sociais que, por sua vez, exigem tarefas específicas ao aparelho psíquico do sujeito contemporâneo. Daí a necessidade teórica de alcançarmos alguma inteligibilidade relativa à ordem sob a qual se organiza o laço social hoje e sua efetividade sobre o sujeito.

Se a modernidade empobreceu os laços sociais, o sentido da filiação e a diversidade das culturas humanas em nome de abstrações capazes de promover o individualismo e de re-alinhar a coletividade dos indivíduos numa massa a mais homogênea possível, por outro lado isso, que poderia levar direto para a instauração da tirania, ao mesmo tempo, também fez que se introduzisse aí, nessa via, um elemento paradoxal que escapou do controle do espírito imperialista. A ruptura e a degeneração dos antigos modos de sociabilidade faz aparecer na modernidade um campo de semi-autonomia para a subjetividade e para uma certa invenção de si que na tradicionalidade era, via de regra, quase impossível. A modernidade não criou todo o mal que habita o mundo social. As culturas tradicionais, salvo raras e honrosas exceções, tiravam a sua força da recusa da consideração do sujeito individual. Esse sujeito, por outro lado, será o que a modernidade a partir do renascimento a nossos dias, fará emergir, se bem que eclipsado sob a reificação da noção de indivíduo e, na hiper-modernidade, já marcado, ao menos quando adulto, pela orfandade das marcas paternas e dos laços sociais. É esse efeito da modernidade que importa retermos para compreendermos a questão que aqui importa investigar.

 

3. A HIPER-MODERNIDADE E O TRABALHO PSÍQUICO DA ADOLESCÊNCIA

De todos os efeitos que a hiper-modernidade produz sobre o aparelho psíquico – alterando-o ou lhe impondo novas tarefas –, o que já não é pouco, a instituição recente da exigência do adolescimento dos púberes, ao menos para aqueles sujeitos organizados sob a estruturação da neurose (isto é, nós, os ditos normais) é o que está hoje mais largamente distribuído na população do Ocidente.

O empobrecimento pela modernidade do dispositivo tradicional do laço social reduziu a puberdade a uma experiência traumática de desamparo. O sujeito, entretanto, responde – posto que, longe de ser algo apenas passivo, é ele um ser que se realiza ao responder ao mundo – a tal condição reconfigurando-se a si mesmo ao se inventar uma nova exigência de trabalho psíquico que se tornou necessária para que ele reconquiste seu poder de confronto e possa, assim, re-enriquecer as condições de sua existência. Essa nova exigência de trabalho psíquico é a adolescência.

A adolescência não é uma fase natural ou universal do desenvolvimento do indivíduo. É a resposta do sujeito provocada pela apresentação da puberdade quando esta apresentação está reduzida àquilo que Lacan chamaria de uma irrupção de um real (algo que insiste como estranheza sem se deixa simbolizar e nem imaginarizar). Ora, na hiper-modernidade a instauração de um esgarçamento do laço social entre os sujeitos que vão saindo da condição da infância, e o desaparecimento do saber que esse laço social transmitia, reduz para o jovem púbere a apresentação de sua própria empubescência a uma experiência de inquietante estranheza.

Adolescer, então, é um fenômeno psíquico que se tornou necessário ao jovem ocidental na hiper-modernidade em função da discordância7 instaurada entre, de um lado, o que, dentre os recursos psíquicos do laço social, deixou, na hiper-modernidade, de estar disponível ao sujeito, e, de outro lado, as necessidades das organizações neurofisiológicas e hormonais em mudanças no amadurecimento pubertário de um indivíduo. Assim, a puberdade, tal como ela se dá na hiper-modernidade, se põe para o sujeito como uma experiência de atravessamento invasora e enigmática, pois ela só se significaria ao mesmo tempo em que se apresenta caso essa experiência fosse dada a um jovem cuja existência estivesse transcorrendo em meio a uma comunidade onde as condições da hiper-modernidade não tivessem sido estabelecidas, e, neste caso, adolescer seria um processo inteiramente dispensável.

Retomaremos no que se segue trechos de um outro texto nosso, ainda não publicado, que resume o que temos pensado a respeito do trabalho psíquico da adolescência, além de abordar a questão da experiência da puberdade como esse acontecimento tornado traumática pela modernidade.8

Adolescer é, assim, uma exigência de trabalho psíquico adicional que se acrescenta ao jovem púbere ocidental e urbano hoje para que este possa, ao significar e ressignificar o enigma da puberdade que o atravessou, minimizar o desacordo entre a constituição individual do sujeito, já empobrecida em seus recursos pelos efeitos da contemporaneidade acima enumerados, e os imperativos da realidade circundante que exige da atividade indivíduo, para que este nela se estabilize, o gesto pelo qual ele possa repor alguma equivalência àquilo de que ele já não pode contar como dado.

A duração da adolescência, então, longe de poder ser medida em tempo cronológico, corresponderá ao tempo necessário para que esse trabalho – o adolescer – venha a poder cumprir a tarefa a que ele está destinado.

Quê enigmas a puberdade põe ao jovem ao findar a sua infância? Ao menos três: 1) o enigma da identificação do lugar do sujeito nas tensões relacionais do mundo inter-humano; 2) o enigma da filiação; e 3) o enigma da sexualidade.

Ora, o indivíduo sozinho não pode, e nunca pôde, responder de imediato a tamanha exigência de reposicionamento existencial. Aturdido e sem compreender o que lhe é pedido – e isto lhe é pedido tanto desde o seu corpo como desde o mundo circundante onde o olhar do Outro percebe nele essas suas transformações corporais antes mesmo que este delas possa se aperceber –, a ele só resta, após o trasbordamento aflitivo do impacto, por certo tempo, siderar-se e emudecer (primeiro tempo da adolescência); depois, solicitar – a seu modo, isto é, de forma incompreensível para quase todos os demais – que dos outros lhe advenha a palavra que lhe falta para nomear o inominável de sua experiência (segundo tempo da adolescência); para, por fim (num terceiro tempo), só lhe sobrar lançar-se na aventura de se reconstruir inventando alguma resposta inédita às exigências pós-pubertárias e, assim, seguir em direção à condição adulta.

A experiência da puberdade apresenta os três enigmas acima mencionados ao jovem para quem se finda a infância e também – em se tratando do tempo hiper-modernos – a sua eficácia traumática, em, pelo menos, três dimensões: a da ruptura com a latência infantil, a da reconfiguração da corporalidade própria, e a do efeito da visibilidade dessa corporalidade para o olhar do outro.

A puberdade como reconfiguração da corporalidade própria surpreende o jovem em duas direções diferentes mas interligadas: por um lado, na das intensidades pulsionais e, por outro lado, na da representação de si e das novas modalidades de construção dos ideais. A estranheza vivida por força da imposição do re-enlaçamento objetal da pulsionalidade sexual – tema a que nos dedicamos em um trabalho anterior9 – expressão psíquica das mudanças fisiológica da puberdade e base real subjascente do que na modernidade contemporânea se apresenta como traumático na puberdade, ela se imporá na experiência como ponto de partida das reorganizações representacionais de si e fonte dos novos ideais a que o jovem estará, a partir de então, assujeitado.

A corporalidade reconfigurada do jovem não se apresenta apenas a ele, mas ela se faz visível também ao outro do mundo social cujo olhar a ela reage de um modo que não será menos visível ao sujeito que, ainda que sem o saber, está se dando a ver. Aliás, ele não apenas se dá a ver mesmo quando não o sabe, mas ele primeiramente se descobre diferente da configuração infantil segundo a qual ele ainda se pensa pelo que o olhar do outro lhe devolve bem antes do que pode lhe advir do seu saber sobre a sua imagem agora já reconfigurada pela puberdade. E o que o olhar lhe devolve do que nele vê surpreenderá tanto mais na medida mesma em que essa novidade visível que é dada a ver ao outro em seu corpo se revelar sob a perspectiva de uma erótica inesperada. E o outro reage ao erotismo dado a ver na adolescência tanto pela concupiscência quanto pelo recuo por pudor. Houve um trabalho nosso em que tendo partido da consideração desse fenômeno e do seu efeito de estranheza nas adolescentes, chegamos a compreender a origem do impulso à atividade artística na adolescência como um modo de responder ao que permanece como experiência traumática, por mais leve que seja, dessa estranheza erótica que o corpo próprio pode dar a ver ao outro antes que se pudesse saber o que se estava sendo ou mostrando10.

Enquanto ruptura com a latência infantil, a puberdade marca a finalização da infância por um levantamento do recalque da sexualidade infantil estabelecido no Édipo pelo corte paterno que interditara o acesso ao corpo materno, só que agora essa sexualidade já se volta para o mundo extrafamiliar. O jovem e a jovem púberes esperam então que o pai possa dar a chave para o acesso a exogamia, pois eles inconscientemente "entendem" agora que foi a favor deste que eles abdicaram de seu acesso à mãe. Entretanto, como a chave a esse acesso não pode ser outorgada por nenhum pai, sendo que ela precisará ainda ser construída pelo jovem, a adolescência ficará marcada pelo ressentimento e pela desconfiança do adolescente voltada contra o que quer que tenha a marca do pai familiar. O jovem então se volta para a busca de uma paternidade Outra no mundo extrafamiliar, uma paternidade, entretanto que precisará ser ela mesma construída pelo jovem, pois no mundo moderno a referência paterna no social se encontra em declínio. A adolescência será o esforço de se construir intrapsiquicamente a paternidade Outra – Outra que não a familiar e infantil – que hoje falta no laço social. Essa dimensão do adolescimento religa a experiência do jovem ao que há de mais fundamental em sua história psíquica. Trabalhamos esse tema em nossos primeiros trabalhos concernentes à temática da adolescência11.

Resta agora acrescentarmos que, no que concerne à experiência do findar de sua infância para o jovem de nosso tempo, apresenta-se ainda uma outra razão para que ele adolesça: a experiência da passagem de uma vida transcorrida na sociabilidade intrafamiliar da infância – tempo em que mesmo a escola, o clube, o centro religioso e as viagens programadas se dão sob o regime da ordem familiar – para a sociabilidade extrafamiliar mundana. É que a ordem familiar moderna, mesmo transmitindo um ethos e um ideal moderno, ao menos no que diz respeito às crianças, encena o que há de essencial na organização tradicional – e, portanto, pré-moderna – da sociabilidade. Na ausência da tal encenação, talvez, nenhuma criança pudesse sobreviver até a sua pubescência. Com o findar da infância das crianças na vida contemporânea e urbana surge, ao mesmo tempo, nessas crianças e nos dias atuais, também a conquista dos meios pelos quais a já não criança inicia sua travessia que a conduz da exclusividade do mundo social intrafamiliar para o mundo social extrafamiliar e mundano em que quase nada do que é hoje suficientemente potente entranha qualquer referência à ordem tradicional que a família ainda encenava e com o que a criança aprendeu a contar – isto é o que Lacan designava pela expressão declínio da função social da imago paterna. Mais um motivo para que o sujeito adolescente encontre-se em estado de sideração.

A adolescência será o trabalho psíquico pelo qual o jovem haverá de construir para si, inventando-os, o que possa ser a reposição intrapsíquica e intersubjetiva do equivalente de tudo aquilo que, tendo deixado de existir na modernidade na socialidade, produziu-lhe a sideração que originou o seu adolescimento.

O adolescente para tanto atravessará três tempos lógicos para realizar essa tarefa.

Num primeiro tempo ele apenas recebe o impacto sem ainda poder esboçar qualquer resposta à situação, é o tempo do dito mutismo e acanhamento do adolescente que ainda vive muito perto do tempo de sua puberdade e está às voltas com a experiência do findar de sua infância.

Num segundo tempo, o adolescente começa a ensaiar suas respostas em sua vida privada e semi-privada, aqui ele alternará horas de elaboração solitária com momentos de experiência grupal entre seus pares nos quais ele descobre que há algo de quase compartilhável em sua experiência solitária e que parte da tarefa que a ele se impõe pode ser realizada de modo coletivo em uma coletividade seleta de pares com certas significantes afinidades.

O terceiro tempo será aquele que, ao menos para os jovens que perseveraram para alcança-lo, esse trabalho pode se abrir para uma dimensão pública plena e, em sentido amplo, política. É o tempo da adolescência que há apenas cinco décadas já seria o momento de um jovem já se fazer valer como adulto, mas que, entretanto, na contemporaneidade recente corresponde aos anos em que vigora, ao menos para as classes médias e para os de formação universitária, a figura recente na história do "adulto" jovem e solteiro, dono de uma situação econômica mínima capaz de poder sustentar os seus sonhos, os quais, entretanto, ainda são os da adolescência. É o tempo em que estudantes e jovens profissionais poderão encenar o sonho da adolescência para o mundo na concretude do próprio mundo, impondo-lhe uma estética que não deixa também de ser, ao seu modo, uma política. Valeria podermos prosseguir em nossa investigação no exame daquilo que é chamado pelos estudiosos das culturas urbanas de cena urbana juvenil.

 

4. SOBRE O LUGAR DA JUVENTUDE NO MUNDO MODERNO

Retrocedamos um pouquinho no tempo até os anos da Segunda Guerra Mundial e voltemos nossa atenção para os países que serão os pólos irradiadores da configuração social pela qual a juventude, a partir de então, será caracterizada.

É desses anos posteriores à Segunda Guerra e tendo o seu ponto de partida em alguns dos países ricos do Ocidente, a França, os Estados Unidos, a Itália e a Inglaterra, que surgirá a configuração da juventude não só como categoria etária, mas principalmente como uma categoria social específica e titular de diferentes estilos de vida, tanto sucessivos (caracterizando as diferentes gerações que aportam à idade juvenil), quanto simultâneos (caracterizando as diferentes sub-culturas juvenis nas quais se dividem e se reconhecem que vivem sob a condição juvenil em uma mesma geração) que lhe são peculiares. Essa configuração (que se materializa não em qualquer lugar, mas precisamente nas cenas urbanas; e não de qualquer modo, mas pela apresentação de si por meio de uma estética bem definida, a qual, por sua vez, apresenta-se não de qualquer jeito, mas ao se fazer visível e audível, ao menos pela escolha/criação de um look e pela adoção/criação de um estilo musical pelos quais ela se caracterizará) tem se tornado a representação psíquica e social pela qual os jovens se reconhecem, se apresentam e são reconhecidos. Isto vem ocorrendo desde então até hoje. E, tendo partido daqueles países irradiadores, isso, em seguida, logo se espalhou para, ao menos, todo o mundo ocidental.

O que é a juventude? Digamos que ela é a expressão no cenário social do conjunto dos sujeitos humanos que estão às voltas com o processo psíquico da adolescência, o que inclui o púbere, depois o chamado teen-ager, e também o jovem adulto.

Pois bem, desde 1945 até, pelo menos hoje – 2005 – instaurou-se na civilização ocidental a configuração da juventude como uma categoria social específica e titular de estilos de vida que lhe são peculiares, e, ao longo desse tempo, tem permanecido não só muito viva a existência dessa categoria, como tem se tornado maior a cada ano a relevância cultural, midiática e econômica da mesma.

A juventude enquanto categoria etária e configuração psico-social-estética circunscreve um espaço enquanto tal não esvaziável – pois no interior dele, se saem aqueles que "adultescem", entram, a cada geração, conforme vão saindo da infância, massas coletivas de novos jovens que em nossos dias apresentam-se a cada novo tempo em maior número e, entre elas, indivíduos de destaque. Assim, se, por um lado, a permanência dos indivíduos de cada geração que caem sob a categoria da juventude, embora hoje tenda a se prolongar por muitas décadas, é provisória, já, por outro lado, o contingente humano que faz parte da juventude estando os seus membros, a cada momento, em permanente substituição, este, enquanto tal, não desaparecerá pois, para além das sucessivas gerações que nela se situam, o lugar cultural da categoria enquanto tal já se tem materializado como uma instituição que veio para durar e tudo indica que ela viverá muito mais do que o tempo de vida que terá a geração que a habita hoje.

Sabemos muito bem que, desde que existe vida humana no planeta, existe também gente que, num certo momento de suas vidas, ocupa a faixa etária de ser jovem, entretanto, a configuração da juventude como uma categoria psico-social específica e titular de estilos de vida que lhe são peculiares foi uma novidade do Ocidente e que ela é uma instituição contemporânea desses anos recentes da modernidade.

Se isso acontece no Ocidente desde os anos quarenta do século XX até os dias de hoje, é porque, por um lado, desde aqueles anos, nós, ocidentais, passamos a viver culturalmente sob a hiper-modernidade e, por outro, as condições materiais da existência transformaram os jovens numa categoria capaz de se apresentar no mundo como consumidora não desprezível. Os jovens, vivendo sob os efeitos dessa nova condição cultural, passaram a experimentar uma certa incerteza identitária. Conseqüentemente, passaram a ter pelo menos duas novas necessidades: a de tomar uma certa configuração de si pela qual eles pudessem se reconhecer e a de poderem fazer uso dessa mesma configuração para, sob ela, eles poderem ter como se apresentar ao outro.

A prosperidade econômica experimentada no pós-guerra pelos países ocidentais vitoriosos

Então, retenhamos agora isto: a necessidade de auto-reconhecimento e a necessidade de se apresentar aos demais para se fazerem reconhecer pelos outros são duas novas necessidades que vieram a se impor à juventude enquanto categoria etário-social da hiper-modernidade por experimentarem a incerteza identitária que a hiper-modernidade revela. Entretanto, acrescentemos, essas duas necessidades não são exclusivas da juventude. O que será próprio da juventude estará articulado aos modos pelos quais ela responderá a essas necessidades, à finalidade a que ela visa ao faze-lo e à urgência com que ela é levada a faze-lo.

 

5. ESPAÇO PSÍQUICO E INTERVENÇÃO JOVEM NA ESTÉTICA URBANA

Vimos que a puberdade é o momento em que se dá a travessia do mundo infantil e intra-familiar para o mundo juvenil, mundano e extra-familiar. Logo, se a rua é o espaço que a criança sem a tutela de seus familiares deve evitar e também o espaço em que o adulto circula apenas como meio para se dirigir a endereços específicos, para o jovem, a rua, pontilhada pelos seus points, é o seu espaço de estar. A rua é uma espaço de um estar que apresenta forte homologia ao ser do jovem: para um ser de transição, um lugar de estar que se defina pela transitoriedade. Para o jovem, a cidade se define mais pelos cruzamentos das vias de trânsito que nela se dão do que pelas localizações pelas quais essas vias conduzem ou passam, então, quando ele visa se situar em um lugar, ou quando ele quer marcar os lugares de sua procedência ou de seu destino, é nesse emaranhado, marcado de início pela anomia e pela anonimidade, que ele visa não só inscrever a si mesmo, como também criar inscrições capazes de se tornarem indicadores significantes dos lugares nos quais se circula. E essas inscrições precisam servir tanto a ele quanto aos seus companheiros de viagem, logo, precisam tanto se remeterem à função constatativa e valorativa que diz algo ao seu íntimo, quanto serem passíveis de se fazerem visíveis e audíveis para poderem dizer o mesmo à intimidade de seus próximos e à intimidade de toda uma multidão anônima que lhe possa ser, em boa parte, semelhante.

Além disso, se para o adulto a necessidade de reconhecimento no nível da vida pública – envolvendo a cidade que extrapola a ambiência dos circuitos da intimidade – tem uma visada estritamente funcional e limitada ao registro do ter (pois a incerteza identitária, de modo ilusório ou não, para o adulto insiste em só se faz sentir nesse registro), essa necessidade para o jovem está antes mergulhada nos registros do ser e do valer, o que potencializa a urgência com que ele empreende a sua busca.

Então o jovem precisa reconhecer-se e se fazer reconhecer pelo outro, como todo mundo, mas, de um lado, ele precisa faze-lo num espaço privilegiado, a cidade, e por meio de formas visíveis e audíveis passíveis de serem percebidas e identificadas pelos demais, e, de outro lado, o que se põe em jogo em seu anseio por reconhecimento apresenta a urgência daquilo que está na ordem do dia quando o que está em risco concerne ao registro do próprio ser experimentado como incerto.

O que deve ser dado a ver e a ouvir na cidade pelo jovem para que por essas "mo(n)strações" ele possa se mostrar e se fazer reconhecer é algo que deve ser da ordem de algum tipo de objeto a ser produzido. E isto, ao se dar como visível e audível, ao olhar e à escuta do outro na cidade, precisa, de algum modo, apresentar uma conformidade estética, mas não uma conformidade estética qualquer, mas aquela pela qual ele se supõe revelado – e naquilo que ele não pode se dizer diretamente de si nem mesmo a si próprio – para ser reconhecido pelo outro e aí confirmado em seu ser. Ora, essa necessidade, se não faz de cada adolescente um artista, introduz ao menos a necessidade de que a adolescência busque viver no âmbito de uma urgência artística..

Estão acima dados os elementos pelos quais a juventude venha a se expressar coletivamente através da instalação de alguma cena que se dê a ver e ouvir no âmbito da cidade. E a juventude de uma mesma geração produz diferentes cenas urbanas simultâneas em que diferentes modos de se fazer reconhecer se apresentem.

A necessidade de que esse empreendimento seja coletivo e se torne numeroso, faz com que a angustia que o gerou, nele, se transforme, no seu produto final, em formas de diversão, assim como a incerteza que o gerou se transforme em apresentações concretas definidoras de um estilo,.

Os objetos cuja ostentação definem o cenário de um estilo jovem específico podem ser muitos e são tão variados quanto a variadas são as cenas juvenis existentes, mas dois tipos de objetos tem acompanhado até hoje todas as sub-culturas urbanas juvenis desde que elas vieram a existir no pós-guerra e isso é o mínimo que não poderá faltar para haver ali uma cena. Um deles é voltado para a visualidade que uma cena dá a ver e outro para a sonoridade que essa cena torna audível: toda a cena constrói um look e adota um estilo de musicalidade que lhe serão próprios e em toda a cena pretendem seus animadores que esses objetos não possam ser usurpados pelos que forem de fora – nem pela indústria aproveitadora e nem pelos ecléticos que queiram se inspirar, vez ou outra, nesse estilo – sem que os usurpadores possam evitar, ao menos aos olhos dos mais "antenados" da sub-cultura em questão, a pecha da não-autênticidade.

 

6. CENA URBANA, MUNDO MODERNO E CONSTRUÇÃO ADOLESCENTE

Afinal, considerando esses elementos que as cenas urbanas instituídas pelas sub-culturas juvenis mobilizam no cenário da cidade, tentemos agora pensar que efeitos podem essa mobilização produzir nos jovens que delas participam e o quanto esses efeitos seriam capazes de contribuir para o que requer o trabalho psíquico da adolescência.

Comecemos tomando inicialmente os outros aspectos da sub-culturas juvenis que não estão implicados pela visibilidade externa e pública do grupo.

Buscar se reconhecer como reconhecido pelos outros a quem ele reconhece como seus semelhantes a partir de uma série de traços de semelhança que os une e a partir de uma série de traços de diferença que os separam dos demais: esta é a tarefa na qual quer se sair vitorioso o jovem que foi fisgado por alguma necessidade íntima sua a fazer parte de uma sub-cultura juvenil no espaço da cidade. Mas isto é apenas o começo da brincadeira. Vencida esta tarefa, cada jovem aí envolvido quererá ainda se distinguir dos demais que lhe são semelhantes pelo grau de "antenação" que ele irá conquistando em relação às coisas e aos saberes que forem próprios à sua sub-cultura, e será dessa "antenação" que ele extrairá a sua liberdade e o seu poder de influência. Uma sub-cultura, portanto, guarda uma transmissão a ser passado, uma saber a ser conquistado e, o mais importante, muitos sentidos a serem enunciados. A enunciação de um sentido seu até então oculto põe a sub-cultura às mãos de seus mais novatos habitantes para seguir adiante, desbravando-a em direção a tendências até então desconhecidas pelos mais antigos. Esse dinamismo cultural, evidentemente, desapareceria de uma sub-cultura tão logo ela se degenerasse em gangue, dado a reorganização fortemente hierárquica que a estrutura para-militar da gangue exige. Aqui explicitamos então a diferença que separa a sub-cultura juvenil da gangue; a gangue não pode ser vista como uma sub-espécie de sub-cultura, mas como a sua destruição enquanto cultura. Ao contrário da gangue onde tudo o que se exige de seus membros é conformidade, na sub-cultura juvenil, tendo como ponto de partida uma base de semelhança dada, o que se espera é a renovação do estilo pelo exercício da originalidade; é pelo exercício da originalidade individual que, no interior de uma sub-cultura, mensura-se o grau de "antenação" de cada um e distingue-se o membro autêntico daquele que é apenas um "poser".

O "antenado" pode fazer ver publicamente a sua "antenação" pelo seu discurso – as sub-culturas cultivam uma certa erudição que lhe é própria –, mas também pelo que ele faz se materializar através de seu saber fazer (como ele escreve, o que ele busca, como ele toca ou como ele organiza a discotecagem de uma festa, como se expressam o seu gosto por cinema, literatura, música, design) e de seu estilo (como, e o que, ele se veste, como sua casa é arrumada).

Tomando o já dito até aqui, pensemos o que pode a participação numa sub-cultura juvenil fazer pelo trabalho psíquico da adolescência.

O jovem, ao apenas pensar em adentrar uma sub-cultura, já é, como vimos, introduzido, por mais tímido que ele seja socialmente para dar logo isso a ver aos demais, num trabalho psíquico nada simples. Senso estético, discriminação intelectual e busca de referências eruditas específicas dessa cultura, pelo menos, serão exercitados lado a lado com a sociabilidade, a camaradagem e a amizade. Quantos dos enigmas implicados na sideração que lhe pôs em marcha o seu trabalho da adolescência não se explicitarão enquanto ele exercita esse trabalho que ele se deu ao escolher essa e não qualquer outra sub-cultura? E não será por isso mesmo que sua escolha recaiu nessa e não em qualquer outra das sub-culturas juvenis existentes?

Agora, acrescentemos ao que consideramos até aqui o fator da exigência de visibilidade, exigência moderna, sem dúvida, mas também, e antes de qualquer coisa, razão mesma de ser de uma sub-cultura juvenil urbana. Consideremos o lugar da visibilidade da cena urbana orquestrada por uma sub-cultura juvenil no trabalho psíquico da adolescência que transcorre entre os jovens participantes dessa sub-cultura.

A cena urbana amplifica os efeitos do retorno sobre o sujeito da efetividade de seu fazer, levando em conta que esses efeitos, antes de terem retornado sobre ele, já realizou um circuito no qual sua ação – inserida (seja como número, como força auxiliar, como palpiteiro, como pagante ou como animador) na ação da coletividade da qual ele faz parte – conheceu o sabor da realidade e "sofreu" um teste de qualidade.

Isto não deixa de ser um modo moderno de vir a se fazer valer; ora, para que cada um possa se sair bem nesse esforço de vir a se fazer valer, o que cada um vai precisar mobilizar de si para encenar na cidade – e que para tanto haverá de se deixar passar pelo crivo da realidade – corresponderá àquilo mesmo que o trabalho da adolescência requer.

 

7. CONCLUSÃO

Para podermos concluir, vamos apenas retomar o que até agora se disse à luz de algo que aqui foi apenas aludido. Mencionamos que em um trabalho nosso anterior12 chegamos a compreender a origem do impulso à atividade artística na adolescência como um modo de responder ao que permanece como experiência traumática, por mais leve que seja, dessa13 estranheza erótica que o corpo próprio pode dar a ver ao outro antes que se pudesse saber o que se estava sendo ou mostrando. Naquele trabalho, que visava coisa distinta do que aqui visamos, dissemos que

Aquilo que o jovem não pode entender, ele não pode pôr em palavras. No entanto, aquilo que eles não podem dizer, eles procurarão encenar. E encenarão como podem, com atos freqüentemente desajeitados ou chocantes. Atos com os quais eles esperam poder ser compreendidos pelo outro. Eles aguardam, então, que lhes seja devolvido, pela compreensão do outro, o sentido do segredo que eles carregam em si, sem poderem compreender ou dize-lo, nem mesmo para eles próprios.

[...]

O jovem sabe que só pela palavra e na palavra ele pode dizer e se entender com isso que nele queima, mas ele, siderado, não dispõe, no momento, de como aceder à palavra. Quanto mais ela se torna urgente, menos ele a alcança. Ele, então, apela, em transferência, ao adulto que ele ainda supõe dotado de certa grandeza – ao pai, à mãe, aos mestres, ao analista. O que ele quer? Que lhe marquemos o quanto consideramos espalhafatosos os seus meios? Não, ele deseja que sejamos capazes de os ler. E, seremos capazes de os ler, se perguntarmo-nos: "o que estará ele nos dizendo com isso que ele nos está dizendo? Através desse meio-dizer? Desse dizer como meio? Desse mutismo? Dessas encenações? Dessas mostrações?".

O adolescente se apresenta a nós, com suas mostrações, como o artista se apresenta, com sua obra, diante do público. E para quê um artista cria uma obra e a leva ao público? De onde vem o combustível que constrange uns de nós a ser artistas e outros não? Por que um artista não pode senão sê-lo? O artista cria o belo e todos nós ganhamos com isso; mas, quanto a ele, por que ele para se situar no mundo do trabalho, do sustento, do reconhecimento, precisa seguir – malgrado o gozo que ele nisso encontra – essa via tão difícil, tão dispendiosa, tão trabalhosa, tão tortuosa e, freqüentemente, de retorno pecuniário tão incerto? E se ele aí goza, de quê ele, afinal, goza nisso? De que Necessidade a Criatividade é a filha? O artista precisa tornar-se artista porque ele é aquele que tem um dizer a produzir e uma inscrição a cumprir com esse dizer, mas esse dizer a cumprir, para ele, é da ordem de um dizer que, no entanto, não pode ser alcançado, por ele mesmo, de modo direto. Ele deve, então, produzir, a partir dessa urgência, uma obra e, em seguida, ofertá-la a um Público. Aí lhe resta aguardar que não haja uma defasagem muito longa entre a sua oferta de uma obra ao público e o retorno deste a ele sob a forma de dizeres. Dentre esses dizeres, há de se aguardar por aquele que possa devolver ao artista, sob uma forma, para ele, audível e inscriturável, o dizer implícito e não-sabido de que ele próprio, a pesar de si e sem o saber, investiu a sua obra como a portadora. Só ele poderá reconhecê-lo quando isto vier a lhe retornar do lugar Outro.

Agora, eu proponho que entendamos a encenação (organizar uma festa, lançar uma campanha, intervir no espaço da rua, grafitar, etc.) que a cena urbana produzida por uma sub-cultura juvenil realiza como uma mostração que, para além do valor estético do que se produz, efetiva um dar a ver ao Público (aquele que se espera possa ter o saber sobre a palavra que falta, a palavra que possa dizer – e, assim, dissolver – o trauma).

Em 1964, num pequeno texto escrito para a grande imprensa (para a New Society)14 e com o belo título de A juventude não dormirá, D. W. Winnicott disse a respeito dos Beatles que eles eram um milagre que acontecia15. Supomos que ele se referia ao fato de que essa poderosa mostração que esses novos – à época – porta-vozes da juventude conquistavam talvez pudesse contribuir para a minimização das explosões anti-sociais entre os garotos ingleses da época. O texto referia-se ao evento da violência que contrapôs Rockers e Mods no balneário de Brighton em 17 de maio de 1964. No mesmo anos, em meio às filmagens de A hard day's night, um jornalista pergunta a Ringo, o baterista dos Beatles, se a banda era, afinal, oriunda da cultura Rocker ou da cultura Mod. Ringo – fazendo um chiste, operando uma condensação e unindo a juventude dividida sob uma nova ensígnia pacificadora – responde: "Somos Mockers!" .

 

8. BIBLIOGRAFIA

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RUFFINO, R., Fragmentos em torno da epopéia do sujeito sob a operação do adolescer, in Corrêa, A. I., Mais tarde...é agora!, Agalma, Salvador, 1996, pp. 78-100.

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WINNICOTT, D. W., A juventude não dormirá (1964), in WINNICOTT, D. W. (org por Clare Winnicott, Ray Shepherd e Madeleine Davis), Privação e delinqüência (1983), Martins Fontes, São Paulo, 2002, pp. 177-179.

 

 

1 A noção de sub-cultura, nascida no campo da sociologia anglo-saxônica em seu esforço de dar inteligibilidade aos fenômenos juvenis urbanos da segunda metade do século XX, remete à oposição, recusa, escape ou reação à cultura mainstream que possam estar implicadas nas mais diversas produções (comportamentais, ideológicas, artísticas, sonoras, visuais, estilísticas) de um grupo que se apresenta como diferenciado e à margem das concepções estabelecidas. O caráter dito marginal desses grupos tidos como atípicos em relação às convenções dominantes no mundo social em sua geração não deve ser entendido apenas como referente ao que a cultura dominante entenderia como desprovido de prestígio, pois a vanguarda e o cool também nascem nos nichos que se destacam do meramente convencional e do massificável. Freqüentemente fusões inéditas entre a marginalidade-dejeto e a marginalidade-estilística, dotados com grande poder de sedução, são produzidas a partir de sub-culturas. Desde o final da Segunda Guerra Mundial, tendo como ponto de partida os países ricos do Ocidente e se irradiando para o resto do mundo ocidental, várias sub-culturas juvenis originaram cenas urbana, estilos de vidas e produções culturais consideráveis. Assim, podemos nomear os exis, os beatniks, os ted boys, os rockers, os mods, os hippies, os hard-mods, os skinheads, os punks, os hip-hpers, os indies, como exemplos de uma grande diversidade de sub-culturas que entraram na história com nome próprio, produzindo intercâmbios internacionais e dotadas do poder de fazer ressurgir, de tempos em tempos, ondas de revivalescência que faz sua influência sair do underground em que permanecem vivas para se re-apresentar, como incômodo ou como tendência bem recebida, no cenário cultural mainstream.
2 Supor o presente como uma era pós-moderna é crer que a modernidade seja idêntica à era do racionalismo cujo ápice se deu com a materialização no social dos ideais iluministas. Isso, em nosso entender, é confundir a modernidade com apenas uma de suas faces, aquela em que, ideologicamente, ela mesma melhor quis se reconhecer. Ao contrário, pensamos que é na hiper-modernidade, em que os mitos de razão natural ou da autonomia do indivíduo mais estão postos em xeque, que a modernidade foi mais longe na realização de sua vocação originária.
3 Cf. A. Giddens, As conseqüências da modernidade (1990), Unesp, São Paulo, 1991, passim.
4 Jacques-Marie Lacan, La Famille (pp. 8'40-3 – 8'42-8), dans la Section A de la Deuxième Partie (Circonstances et Objets de l'Activité Psychique), Tome VIII (La Vie Mentale, dirigé par Henry Wallon), in FEBVRE, L. (Directeur Général), Encyclopédie Française; Societé de Gestion de L'Encyclopédie Française, Paris, Mars 1938, p. 8'40-16:

"Nous ne sommes pas de ceux qui s'affligent d'un prétendu relachèment du lien familial. N'est-il pas significatif que la famille se soit réduite à son groupement biologique à mesure qu'elle intégrait les plus hauts progrès culturels? Mais un grand nombre d'effets psychologiques nous semblent relever d'un déclin social de l'imago paternelle. Déclin conditionné par le retour sur l'individu d'effets extremes du progrès social, déclin qui se marque surtout de nous jour dans les collectivités les plus éprouvées par ces effets: concentracion économique, catastrophes politiques. [...]Déclin plus intimement lié à la dialectique de la famille conjugale, puisqu'il s'opère par le croissance relative [...] des exigences matrimoniales."

["Não somos daqueles que se afligem com um pretenso afrouxamento do laço familiar. Não será significativo que a família tenha se reduzido a seu agrupamento biológico à medida em que integrava os mais avançados progressos culturais? Mas, um grande número de efeitos psicológicos nos parecem depender de um declínio social da imago paterna. Declínio condicionado pelo retorno sobre o indivíduo de efeitos extremos do progresso social, declínio que se marca, sobretudo, em nossos dias, nas coletividades que mais sofreram esses efeitos: concentração econômica, catástrofes políticas. (...) Declínio mais intimamente ligado à dialética da família conjugal, já que se opera pelo crescimento relativo (...) das exigências matrimoniais."]

5 Para se entender essa idéia de W. Benjamin, remetemos o leitor à W. Benjamin, O narrador considerações sobre a obra de Nikolai Leskov [1936], in Walter Benjamin, Obras escolhidas, Vol. I, Ed Brasiliense, São Paulo, 1985, pp. 197-121. Aqui, quanto à idéia em questão, aprentamo-la pelas palavras com que Jeanne Marie Gagnebin a isso se refere à página 9 do Prefácio [J. M. Gagnebin, Walter Benjamin ou a história aberta, op. cit. Pp. 7-19] de sua autoria com que é aberto esse volume de W. Benjamin.:

"Nos textos fundamentais dos anos 30 [...], Walter Benjamin [...], de um lado, demonstra o enfraquecimento da Erfahrung [experiência compartilhada com seus próximos e que engloba o sujeito individual no acontecimento da história que o ultrapassa] no mundo capitalista moderno em detrimento de um outro conceito, a Erlebnis, experiência vivida [e individual], característica do indivíduo solitário; esboça, ao mesmo tempo, uma reflexão sobre a necessidade de sua reconstrução para garantir uma memória e uma palavra comuns, malgrado a degradfação e o esfacelamento do social."

6 C. Lafer, em Política e condição humana [1981] – acrescido como Introdução (pp. I – XII) à tradução brasileira de A condição humana [1958] de Hannah Arendt (Editora Forense, São Paulo, 1981, 340 pp.) – elucida, em uma pequena passagem, tão rigorosa e sucintamente a significância desses conceitos arendtianos que a autora apresentara em The Origin of Totalitarism [1951] (tradução brasileira: As origens do totalitarismo: totalitarismo, o paroxismo do poder, Ed. Documentário, Rio de Janeiro, 1979), que decidimos aqui reproduzi-lo (Cf. C. Lafer, op cit., p. VII-VIII):

"[...] Pois bem, o que é que Hannah Arendt estava tentando compreender em The Human Condition, dos problemas por ela suscitados em The Origin of Totalitarism? As origens do isolamento e do desenraizamento, sem os quais não se instaura o totalitarismo, entendido como uma nova forma de governo e dominação, baseado na organização burocrática, no terror e na ideologia.

O isolamento destrói a capacidade política, a faculdade de agir. É aquele "impasse no qual os homens se vêem a esfera política de suas vidas, onde agem em conjunto na realização de um interesse comum, é destruído." O isolamento, que é a base de toda tirania, não atinge, no entanto, a esfera privada. O inédito no totalitarismo, dada a ubiqüidade de seu processo de dominação, é que exige também o desenraizamento, que desagrega a vida privada e destrói as ramificações sociais. "Não ter raízes significa não ter no mundo um lugar reconhecido e garantido pelos outros; ser supérfluo significa não pertencer ao mundo de forma alguma."

Essa conjugação de isolamento, destruidor das capacidades de relacionamento social, que permite a dominação totalitária, se produz quando "o homem isolado, que perdeu seu lugar no terreno político da ação, é também abandonado pelo mundo das coisas, quando já não é reconhecido como homo faber, mas tratado como animal laborans, cujo necessário 'metabolismo com a natureza' não é do interesse de ninguém."

As referências a H. Arendt que o texto de C. Lafer apresenta remetem-nos ao seu As Origens..., op. cit., p. 243-244.
7 A idéia aqui aludida de discordância (poderíamos neste contexto falar também em desacordo ou em discórdia) remete a um conceito usado por Henri Wallon, que o extrai do hegelianismo e do marxismo, e que está também muito presente nos primeiros textos de Jacques Lacan. Para o vivente, uma nova formação é engendrada em sua constituição quando o estado anterior dessa constituição entre em discordância com o seu entorno ou abriga uma discordância entre seus constituintes. A idéia de um engendramento do novo pela discordância presente no velho permite pensar a mudança sem recorrer à metafísica do desenvolvimento (que crê que a coisa muda pelo movimento natural pelo qual vai se desdobrando com o tempo) ou à metafísica do evolucionismo (que supõe uma transformação temporal sucessiva onde só pode haver ganho e especialização, mas nunca perda ou parada de parte de suas funções que antes pudessem exibir maior desenvoltura).
8 O título desse nosso texto, a ser em breve publicado, é A condição traumática da puberdade na contemporaneidade e a adolescência como sintoma social a ela articulada.
9 Cf. R. Ruffino, Da latência à pubescência – o jogo pulsional, in Meira, A. M. (org.), Novos sintomas, Ágalma, Salvador, 2003, pp. 76-118.
10 Cf. R. Ruffino, O que está em jogo na adolescência de nossos filhos?, in Correio da APPOA nบ. 86, Ano IX, dezembro de 2000, Porto Alegre, pp. 11-22.
11 Cf. R. Ruffino, Sobre o lugar da adolescência na teoria do sujeito, in Rappaport, C.L. (org.), Adolescência: abordagem psicanalítica. EPU, São Paulo, 1993, pp. 25-73; R. Ruffino, Adolescência: notas em torno de um impasse, in APPOA, Revista da Associação Psicanalítica de Porto Alegre (ISBN 85-85418-52-4), Ano V, Nบ 11, Novembro de 1995, Adolescência, Artes e Ofícios, Porto Alegre, 1995, pp. 41-46; R. Ruffino, Fragmentos em torno da epopéia do sujeito sob a operação do adolescer, in Corrêa, A. I. , Mais tarde...é agora!, Agalma, Salvador, 1996, pp. 78-100; R. Ruffino, A adolescência como operação do simbólico, in Pulsional nบ 89, setembro de 1996, São Paulo, pp. 5-13;
12 Cf. R. Ruffino, O que está em jogo na adolescência de nossos filhos?, in Correio da APPOA nบ. 86, Ano IX, dezembro de 2000, Porto Alegre, pp. 11-22.
13 Referimo-nos aqui à condição do corpo do adolescente se apresentar como imagem erótica antes ao outro do que ao próprio sujeito, que se assusta com o olhar concupiscente que lhe pode lhe ser dirigido.
14 D. W. Winnicott, A juventude não dormirá (1964), in D. W. Winnicott, Privação e delinqüência (1983), Martins Fontes, São Paulo, 2002, pp. 177-179.
15 A frase de Winnicott é: "[...] quando acontece um milagre, como os Beatles, existem aqueles adultos que franzem o senho quando podiam soltar um suspiro de alívio – quer dizer, se estivessem livres da inveja que sentem do adolescente nessa fase."