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An. 1 Simp. Internacional do Adolescente May. 2005

 

A alienação na experiência escolar: um estudo de caso

 

 

Maria Luísa Carvalho de Almeida Sampaio

Doutoranda – Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo - Rua Cardoso de Almeida 1006 – apto 18. CEP: 05013-001 - e-mail: mluisasampaio@uol.com.br

 

 

Vamos discutir o caso de um adolescente no contexto da Psicopedagogia clínica, de acordo com Paín (1985). Para esssa abordagem, o problema de aprendizagem representa um sintoma que expressa um conflito na relação do sujeito com o saber. O problema de aprendizagem gera um campo singular de relações do sujeito com a realidade e com o objeto de conhecimento, e é a partir deste campo que o psicopedagogo pode ajudar a criança ou o jovem a ocupar um outro lugar, diferente daquele já ocupado na escola e na família, inserindo-o no universo da cultura.

Igor é um rapaz de quase quinze anos, de família de classe média. Entrou na 1ª série do Ensino Médio, em uma escola conhecida por seu curso pré-vestibular, praticamente voltado para o ingresso de seus alunos na Faculdade.

Ele e seus irmãos e sempre estudaram no mesmo estabelecimento de ensino. Os pais optaram pela mudança de escola quando seu irmão mais velho foi para o Ensino Médio, pois, segundo eles, a escola tradicional em que estudavam não era "forte" o suficiente para colocar os filhos na Universidade.

Desde a Educação Infantil, Igor apresenta grandes dificuldades. Seus pais jamais questionaram se aquela escola tradicional era adequada para ele, porque, segundo eles, todos os filhos devem freqüentar o mesmo estabelecimento de ensino. A norma da família é tratamento igual para todos; caso contrário haverá diferenças e, na concepção de educação dos pais, isso não é bom. A ameaça de reprovação está sempre presente; para evitá-la, é necessário recorrer, sistematicamente, a aulas particulares.

A história escolar de Igor resulta num verdadeiro atropelo. Ele está sempre em defasagem em relação ao conteúdo ministrado, sem oportunidade de aprimorar seus conhecimentos e instrumentos, bem como o desenvolvimento de um pensamento analítico, reflexivo e a capacidade de crítica. A reputação de mau aluno marca sua trajetória escolar e social, tornando-o inibido, inseguro e sem iniciativas. Igor é submetido à psicoterapia por quatro anos, mas continua bastante inibido, e os efeitos desse trabalho não incidem sobre seu rendimento pedagógico.

Em sua vida escolar, só foi gratificante sua participação no coral da antiga escola, não restando qualquer interesse pelas outras disciplinas e conteúdos, exceto pela música; porém, esta não faz parte do currículo da nova escola.

No momento, seu desempenho está muito ruim em todas as disciplinas, e a reprovação é quase certa, uma vez que a escola tem como objetivo ter alunos com boas notas e a aprovação no vestibular. O temor da reprovação leva os pais a procurarem um trabalho psicopedagógico. Não querem que a situação de Igor na antiga escola se repita.

No contato com os pais, o relato que fazem sobre o filho é de um aluno apático, displicente, que não se concentra nos estudos e não se esforça por um bom rendimento. Contam que, em vez de executar as tarefas escolares em casa, fica horas parado, olhando para o caderno. Segundo eles, a solução seria Igor se aplicar mais. Não levantam a hipótese de má formação escolar e insuficiência de instrumentos para a apropriação dos conhecimentos. Para eles, trata-se de displicência.

Em nosso primeiro contato, deparo com um rapaz tímido, quieto, inseguro, vestido como um garotinho, com camiseta de algum super-herói infantil. Neste sentido, sua imagem é bem diferente da de um adolescente. O que mais chama a atenção no contato com Igor é sua apatia, o desinteresse por qualquer tema, seja ele relativo a questões escolares ou à cultura juvenil, como rock, esportes, viagens etc..

Gosta de música clássica, mas não investe na ampliação do seu repertório, isto é, não lê nada a respeito, não examina as informações nas contracapas dos CD's que escuta. Seu pai e seus irmãos tocam alguns instrumentos musicais e ele diz ter vontade de aprender flauta. Porém, não toma qualquer iniciativa nesse sentido.

Ao longo do diagnóstico, percebo que Igor tem recursos cognitivos, é um jovem inteligente, porém, não tem autonomia de pensamento. É bastante conformado com a situação de "menos dotado" na família e não ousa criticar os padrões familiares.

Refletindo sobre a opção dos pais quanto às escolas, verifico que, em um primeiro momento, fazem uma escolha com critério moral: uma escola tradicional, religiosa, para dar uma sólida formação espiritual; e em um segundo momento, uma escolha utilitária, isto é, uma escola para fazer passar no vestibular. Segundo a mãe, as regras na casa são claras: – "Tem que fazer uma Faculdade, nem que seja para ser lixeiro mais tarde".

Tal regra é própria do projeto educativo da classe média emergente que vê no Ensino Superior um meio de atingir o único fim: alcançar um posto no mercado de trabalho. Isto destoa bastante da finalidade de adquirir uma sólida formação cultural. De fato, a família não cultiva hábitos culturais, a não ser a música.

A opção pelo Ensino Superior, no caso destes pais, tem como objetivo "preparar para o mercado". O que entra em jogo não é só a busca da ascensão financeira, mas o status social: é necessário o curso superior, mesmo que dele não resulte a respectiva carreira profissional.

A escola onde Igor estuda é reconhecida por seu curso pré-vestibular. Os profissionais dessa escola alertaram os pais quanto à não correspondência da instituição ao perfil do filho; mas que eles insistem em sua opção. Para eles, um estabelecimento "diferente" significa um estabelecimento de "menor valor". Assim, ao invés de estudar em uma escola onde possa preencher as lacunas da sua formação, Igor estuda em uma escola que tem como critério o aspecto quantitativo, ou seja, o número de informações, e não o aprimoramento qualitativo, justamente de que o rapaz necessita. Há também uma dissonância no aspecto social, pois se trata de um aluno inibido, sem iniciativas, exposto a um ambiente de grande competitividade.

Assim, Igor sente um grande vazio intelectual, um tédio, uma incapacidade de entrar na lógica do trabalho escolar, sentindo-se exilado nos estudos. A cultura escolar não deixa de ser escolar, não se integra à sua vida.

Podemos afirmar que a relação estabelecida com os pais é estruturada pelo registro imaginário, pois Igor se submete ao desejo deles, sem fazer qualquer oposição clara. Estuda numa escola que, na concepção dos pais, é boa para todos. Essa categoria "todos" implica numa compreensão rígida de que todos os filhos são iguais e, nesta concepção, não há espaço para a diferença. Não importa a história de Igor, a sua singularidade. Ele está aprisionado a essa concepção, não podendo escapar dela. Neste contexto, quem destoa do juízo de "bom aluno" naquela "boa escola", para a família, é desvalorizado, não pode ocupar outros lugares. Como Igor foge a esse modelo, recebe a única rubrica: incompetente. Depreendemos da leitura de Bleichmar (1991) que a ordenação imaginária gira em torno da lógica binária: é ou não é, sem meios termos. Desta forma, como não é bom aluno, naquela "boa escola", Igor é incapaz na visão dos pais.

No caso dos pais de Igor, a carência de uma formação cultural leva-os sempre a pressioná-lo em relação ao desempenho escolar. Na escala de valores daqueles pais, a performance escolar sempre vem antes do desenvolvimento expressivo dos filhos. É justamente isso que limita a experiência escolar de Igor. Em sua família não há outros significantes inscritos na escola a não ser o do sucesso social por meio do desempenho do aluno, e isto é ainda mais reforçado pela escola porque, em seu projeto, não constam a formação cultural do aluno e menos ainda uma preocupação com a expressividade da criança.

No final do diagnóstico, levanto a hipótese de que Igor apresenta uma inibição intelectual, isto é, uma retração da função cognitiva e, sobretudo, imaginativa – nem sonhos ele acalenta. Diante dos objetos de conhecimento, Igor estabelece um mecanismo de evitação. Fica claro que a inibição tem uma origem emocional e a retração não opera apenas sobre a inteligência, mas sobre o desejo. Ele fica em uma posição de objeto na qual seu destino é traçado por terceiros. Conforma-se com esta posição e apenas tenta corresponder ao que esperam dele.

Chego à conclusão de que Igor necessita de uma psicanálise e de um tratamento psicopedagógico. A finalidade do atendimento psicopedagógico é, de um lado, aprimorar seus recursos cognitivos e, ao mesmo tempo, propiciar o contato com diferentes referências culturais, buscando criar laços sociais, para que ele se constitua como sujeito da cultura. De outro lado, a finalidade é possibilitar sua expressão, isto é, a manifestação do seu pensamento sobre as coisas, do que sente quando se vê pressionado. Enfim, é fomentar um pensamento autônomo e crítico.

Refletindo sobre a experiência escolar de Igor, vamor recorrer a Dubet e Martuccelli (1996). Para os autores, esta distribui-se ao longo de uma hierarquia que vai do forte domínio do sentido da escolarização ao sentimento de alienação em relação aos estudos. Os mecanismos da socialização tornam-se, na adolescência período, mais heterogêneos e o trabalho subjetivo é mais intenso.

É desta experiência que o sujeito emerge plenamente da socialização escolar ou, ao contrário, se sente dominado pelo fracasso e tomado pelo sentimento de sua impotência. É o caso de Igor, que fica alienado, pois nem a família nem a escola viabilizam a constituição de sua subjetividade. Ele é apenas um aluno que se esforça, com suas estratégias limitadas, por uma sobrevivência na escola.

Segundo Dubet e Martucelli (1996: 246), o tempo do Ensino Médio é aquele da afirmação dos gostos e das escolhas intelectuais. Desta forma, alguns são socializados e subjetivados na escola, outros se constroem ao lado dela, através de atividades paralelas, que não são estritamente "acadêmicas", mas que representam uma importante referência cultural como, por exemplo, a música, o esporte ou o teatro.

Outros, ainda, se constroem contra a escola, através de uma recusa a entrar no jogo, ficando à margem da ordem escolar, mas se subjetivando pela revolta e pela crítica.

Há, porém, aqueles que não conseguem subjetivar-se nem dentro nem fora da escola. São os que fracassam na escola e não têm uma referência externa a ela ou a um grupo social no qual possam buscar formas alternativas de identificação e de construção da identidade, que lhes permitam se distanciarem do julgamento de fracasso veiculado pela escola e reafirmado pela família.

Igor tem a sensação de estar fora da experiência escolar, uma vez que não encontrou um saber que lhe fizesse sentido e operasse a sua conversão aos estudos. Resta-lhe apenas a identificação com a música. Igor sente tédio em relação à cultura escolar, por isso não consegue se engajar nos estudos. Em certo aspecto, o fato de não estudar parece até saudável, posto que aqueles saberes não lhe fazem o menor sentido.

Para os adolescentes, a escola passa a representar algo mais que a simples aprendizagem dos conteúdos. Ela se converte numa arena política, num palco de debates. A partir do jogo de adesão e crítica às diferentes referências, os alunos constituem uma autonomia intelectual e aderem a ideais, assumem posições políticas, debatem sobre os acontecimentos. Igor fica totalmente à margem dessa experiência, sentindo-se exilado tanto nos estudos como na vida intelectual.

Igor se sente estrangeiro diante dos fundamentos de uma cultura escolar que, aos seus olhos, fica reduzida a conteúdos compartimentalizados e a exercícios. A vida escolar e a vida de adolescente parecem não ter elos – a esse tipo de experiência, os autores dão o nome de "alienação" –, à medida que o aluno não somente se sente alienado, mas, sobretudo, não consegue se constituir como sujeito contra esta dominação.

A vida escolar, nesse contexto, fica carregada do sentimento de absurdidade. A vacuidade da cultura escolar engendra no aluno a desorientação, a anomia, ao impedir-lhe a subjetivação. A personalidade do aluno, então, é bastante afetada por este vazio.

A escola de Igor parece falhar quando não fornece a Igor marcos culturais consistentes que sirvam de contraponto às referências da família ou que permitam sua subjetivação e construam uma identidade própria, à margem da escola e da família, que permitam a sua emancipação, a busca de novas posições e lugares a serem ocupados. Podemos concluir, então, que ela se ancora sobre ideais imaginários, de sucesso social pelo caminho da Universidade, não remetendo seus alunos ao mundo das trocas simbólicas.

Nosso trabalho com Igor e com as crianças, em geral, consiste em realizar uma mediação entre o sujeito e a cultura, isto é, estabelecer uma relação regida pela Lei, na qual a criança não se submete às vontades e ao desejo do outro e pode, através da fruição cultural, ocupar posições diferentes da que ocupa na escola e na família1.

No caso dos adolescentes, tento estabelecer um espaço no qual o sujeito possa encontrar referências secundárias para a sua identidade e propiciar uma aprendizagem que tenha um significado singular e que lhe permita a subjetivação, isto é, uma forma própria, e não pré-determinada, de se posicionar diante da cultura escolar.

 

Bibliografia

BLEICHMAR, H. Introdução ao estudo das perversões. Porto Alegre: Artes Médicas, 1991.

DUBET, F. E MARTUCCELLI, D. À l'École: Sociologie de l'expérience scolaire. Paris: Seuil, 1996.

PAÍN, S. Diagnóstico e tratamento dos problemas de aprendizagem. Porto Alegre: Artes Médicas, 1985.

 

 

1 Ver discussão mais aprofundada sobre a intervenção psicopedagógica em Sampaio, M.L.C.A. Em busca de um sentido para a experiência escolar.Dissertação de mestrado, Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo, 2003.