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An. 1 Simp. Internacional do Adolescente May. 2005

 

Procurando o indivíduo na internação coletiva. Atendimento psicológico nos pátios da Febem

 

 

Mariana Peres Stucchi

Associação Fique Vivo - Abril/2005

 

 


RESUMO

Este trabalho busca a apresentação de uma experiência de tempo limitado, com adolescentes em regime de internação. Não é um trabalho teórico, mas uma reflexão sobre a prática pessoal, com o intuito de repartir pensamentos, idéias, que possam abrir espaço a estudos, pesquisas, trocas de idéias, sobre um tema bastante atual e pertinente a quem trabalha com a adolescência. Convido-os a entrar em contato com este relato emocionado para pensarmos juntos em nossa realidade social e psíquica, que tem tanto a ver com a destes garotos da Febem.


 

 

Localizando a atuação.

O Projeto Fique Vivo começou em 1997 como um projeto de prevenção a AIDS, através da parceria entre o Núcleo de Estudos para a Prevenção da AIDS da Universidade de São Paulo (NEPAIDS/USP) e o Programa Estadual DST/AIDS-SP da Secretaria de Saúde. Em decorrência deste trabalho, em 1999, o Projeto Fique Vivo recebeu o Prêmio Gestão Pública e Cidadania e em 2000, recebeu menção honrosa no Prêmio Sócio Educando.

Com a repercussão e visibilidade das ações, em 2000, o Fique Vivo se tornou uma Associação independente, mas parceira das instituições fundadoras. A parceria com o NEPAIDS foi mantida no que tange às questões de estratégias de prevenção em DST/AIDS e pesquisa. A parceria técnica com a Secretaria de Estado da Saúde também foi mantida: o Projeto era referência no Brasil para trabalhos de prevenção à AIDS com jovens institucionalizados. A Associação também recebeu apoio técnico para pesquisas e publicações da Universidade da Califórnia (USA) e da Fundação Getúlio Vargas para planejamento da expansão do Projeto para outras unidades.

Uma parceria mantida de junho de 2000 a início de 2003 com o LEFE (Laboratório de Estudos e Prática em Psicologia Fenomenológica e Existencial, vinculado ao Departamento de Psicologia Escolar, do Desenvolvimento e da Personalidade do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo) garantiu o oferecimento de atendimento psicológico aos adolescentes que participavam do Projeto. O atendimento psicológico foi pensado a partir das observações das oficinas pelos educadores e psicólogos, do quanto aquele material trabalhado no grupo poderia suscitar questões individuais. Pretendeu-se criar a possibilidade deste espaço de escuta e elaboração para estas questões.

O Projeto Fique Vivo, através do NEPAIDS-USP, manteve um contrato de prestação de serviço e pesquisa com a Febem durante o período de junho de 2000 a dezembro 2002. A partir de maio de 2002, este convênio passou a ser feito diretamente com a Associação Fique Vivo, assim como o serviço de plantão psicológico que, em 2003, deixou de ser parceria com o LEFE e passou a ter supervisão da Associação, na linha psicanalítica. Em junho de 2004 deixou de ter atuação na Febem, por falta de verba.

 

O atendimento psicológico.

O formato.

O Plantão Psicológico sob supervisão da Associação Fique Vivo foi iniciado em setembro de 2003, contando com quatro plantonistas, alunos de graduação e pós do Instituto de Psicologia da USP. A partir da perspectiva de proporcionar um espaço individualizado aos garotos internos, que passam por rotina grupal em todas as suas atividades diárias, o atendimento psicológico foi se construindo no pátio das unidades que o Fique Vivo trabalhava.

Os quatro plantonistas se dividiram para o atendimento nas unidades atendidas pelo Fique Vivo, dando conta de responder a uma parte da demanda dos adolescentes, mas não à dos funcionários. Estes últimos mostraram interesses num trabalho psicológico, uma vez que o espaço é carregado para todos ali, sendo o trabalho estressante e desgastante. Para o atendimento mínimo a estas demandas seria necessário maior número de plantonistas e horas de trabalho.

O Plantão começou nas unidades 5, 16 e 19 (ala A e B) do Complexo Tatuapé, dividindo os plantonistas em plantões semanais a cada uma delas. A duração era de aproximadamente duas horas, nas quais os plantonistas atendiam entre três e quatro adolescentes cada. A carga era grande e não havia possibilidade de atender a todos que demonstravam interesse. A UI5, deixou de ser atendida pelo Fique Vivo na passagem de 2003 a 2004, quando foi desativada para receber adolescentes do Complexo de Franco da Rocha. Foi um encerramento bastante repentino e não houve qualquer comunicação entre plantonistas e adolescentes sobre o fim do trabalho.

Esta construção se fez num referencial psicanalítico, levando em conta a diferença do espaço institucional, portanto do enquadre do atendimento, uma vez que o plantão era realizado no pátio e com procura aleatória dos interessados, sem qualquer definição de contrato para continuidade de encontros. A dimensão institucional, contexto do atendimento, é elemento fundamental para a escuta do discurso dos garotos, uma vez que fornece elementos do contexto que eles estão inseridos 24h por dia. O trabalho foi apresentado aos adolescentes de maneira informal, explicando a presença dos psicólogos ali e aguardando-se a procura destes ao atendimento, que era realizado em meio aos movimentos do pátio.

Inicialmente, o Plantão Psicológico do Fique Vivo visava dar um suporte individualizado aos adolescentes que participavam das oficinas realizadas pelo Projeto nas unidades. Estas eram intervenções educativas, que criavam movimento nos pensamentos, nas emoções, nos valores, desses garotos, e poderiam encontrar um espaço individual de acolhimento e elaboração; complementando o trabalho de simbolização aberto pelas concretizações das oficinas. Quando se iniciou o plantão, abriu-se a possibilidade de participação de qualquer adolescente interessado, uma vez que acredita-se que os conteúdos trabalhados nas oficinas eram passados aos demais internos da unidade por conversas entre os adolescentes e mesmo através do contato, do convívio. Acreditávamos e percebíamos – por garotos que apenas queriam dizer "oi, como vai, vai bem?", pelos que rondavam, pelos que de longe comentavam ou ficavam falando de nossa presença em voz alta a quem quisesse dar atenção – que nossa presença lá no pátio, como psicólogos desvinculados da Febem, trabalhava alguma coisa do imaginário destes meninos.

Após aproximadamente dez meses com este formato de trabalho, começamos a implementar algumas reestruturações da prática em nome de um esclarecimento maior do trabalho e maior preservação do atendimento e dos plantonistas, uma vez que a idéia é fazer o trabalho em salas e não mais no pátio. Tal mudança espacial visa uma diminuição de interferências na escuta, melhorando a qualidade desta para o atendimento individual. Além disso, acreditou-se que os próprios plantonistas estariam menos expostos. Fez-se uma escolha, em detrimento da facilidade de acesso dos meninos ao plantão, a uma melhor qualidade da escuta individual e segurança dos psicólogos.

Porém, quando estas modificações estavam sendo encaminhadas, ouve o encerramento dos trabalhos do Fique Vivo na Febem, pois o contrato não foi renovado por falta de verba. O fechamento adequado com os garotos não pôde ser feito, apenas foi comunicado a eles que o trabalho não poderia mais acontecer.

O contato.

Discutimos bastante a diferença do setting, uma vez que o plantão era realizado no pátio, onde ficam meninos e funcionários, distribuídos mais dispersamente ou mais aglomeradamente, de acordo com a unidade (regras e espaço físico); modelo bem distante da privacidade do consultório. Portanto, há sempre presença de outros olhares, outros ouvidos, outras vozes, outros barulhos – o que entra no momento de encontro terapeuta-paciente para ambos os lados. As regras que a vida na Febem coloca são fortes, o que faz com que os meninos tenham dificuldade de colocar-se individualmente no início. Vamos observando o quanto uns estão mais imersos na dinâmica grupal daquele lugar e tempo e quanto outros podem logo discernir a postura ao trabalho e se há disponibilidade dele ou não. Um exemplo disso são os grupos que às vezes se formam (especialmente nos primeiros plantões) para fazer uma "assessoria". Assim eles chamam as rodas que formam em torno de alguém para fazer perguntas, que têm objetivo de "entrar na mente" do outro, fazendo-o responder perguntas seguidas, sem tempo para pensar, expondo-o. Querem confundir a pessoa e assim fazer-la se abrir. Uns dos assuntos nessas "assessorias" eram onde nós morávamos, com quem, onde trabalhávamos, quanto recebíamos para estar ali. Se fossemos por nosso salário não estávamos ali por eles.

Foi bastante difícil esclarecer o interesse e os limites do trabalho e ao mesmo tempo não cortar a possibilidade de comunicação. Muitos colocavam a questão da constante pressão que sentem em relação aos próprios meninos, pois devem ter cuidado para não fazer ou falar algo que possa ser mal interpretado. Daí, em parte, o uso de tanta gíria. A gíria os agrupa e permite que se falem sem que as palavras possam ter segundo sentido. Então, cabeça é caixa, quarto é barraco, brincadeira é mula, entre muitas outras. Em conversa com um grupo de adolescentes, pude perceber que essas regras são impostas ao garoto que chega na Febem. Se adaptar a elas é mostrar capacidade e familiaridade com o mundo do crime, conseguindo respeito. Mas eles mesmos falam que é bom poder conversar com alguém de fora e sair um pouco desta atmosfera. Inclusive, os que não se sentem pertencentes a este mundo do crime, falavam que é extremamente cansativo manter a gíria e o modo de pensar que ali é exigido.

Algumas unidades têm regras específicas, como número de cigarros que se pode fumar por dia, postura ao andar, necessidade de baixar a cabeça e de sentar no pátio, etc. Essas regras têm suas razões de ser para a dinâmica da casa, têm suas repercussões nas sensações de cada menino e têm suas interferências no plantão também. Unidades mais tranqüilas, com menos controle e espaço maior, acabam tornando mais difícil controlar a interferência e interrupção de conversas por outros meninos. O número de meninos no pátio também interfere nisso, já que há mais demanda, seja ela de que gênero for, e eles acabam se agrupando mesmo quando têm vontade de se colocar individualmente. Alguns colocam como é complicado pedir que o outro saia dali. Ficam nos indicando que querem que o outro se afaste, mas dificilmente verbalizam algo diretamente. Em certa conversa um garoto se aproxima e o que estava falando comigo pergunta o que ele está fazendo. "Estou sentado." Responde o outro. E ele não fala mais nada mas se mostra bastante incomodado. É nítida a diferença de discurso em alguns casos pela presença de alguém por perto. Em grupo o assunto era drogas, sexo, crime, colocados como naturais, corriqueiros. Queriam mostrar que entendiam do assunto. Individualmente eles entravam em suas histórias de vida, que tem drogas, sexo, crimes, mas de forma pessoal, com as dificuldades e os prazeres, com os significados para aquele garoto.

Havia os que conseguiam falar em grupo, mas mesmo nestes casos é difícil aprofundar, já que a força do grupo leva muitas vezes a respostas em comum e todos querem falar ao mesmo tempo. Além disso, podemos imaginar que houvesse brincadeiras ou desconfiança dos outros pelo garoto querer conversar isoladamente. Especialmente no início, eles falavam como ali ninguém tem segredo com ninguém, que é todo mundo irmão. Os segredos não poderiam ser falados. Foi muito interessante ver este discurso acabando conforme os garotos podiam admitir a si mesmos, e aos outros, que cada um tem seus assuntos, suas questões, ao procurar o atendimento individual. Esta mudança parece ser possível a partir de um movimento institucional causado por nossa presença frequente ali. A institucionalidade das relações ali também é observada nos movimentos do grupo em bloco: havia dias em que a "casa" (unidade) estava agitada – por ocasião de briga ou algum outro motivo de excitação – e os grupos chegavam bastante agressivos. Havia os dias tensos, por conflitos mais sérios, que ameaçavam a saída deles, e os grupos quase nunca apareciam1.

Uma outra questão delicada é a do gênero. E um assunto recorrente nos grupos, especialmente na unidade 16 era sexo. Éramos três plantonistas mulheres e um homem. A presença do plantonista homem mostrava diferença. O trabalho parece mais levado a sério, não apenas pelos garotos, quanto pelos funcionários. Não que o homem não seja testado ou abordado com questões sexuais, mas além de ser em casos mais específicos, os meninos parecem se aproximar mais orientados a realizar um trabalho, com objetivo de entender a função do plantonista ali e falar. Em relação às plantonistas era sempre mais fácil a aproximação para brincadeirinhas, para ter a atenção de uma mulher, para fazer perguntas sobre sexo que os levam a um prazer interditado ali, além de se sentirem apaixonados pela atenção individualizada que lhe está sendo dada. É um ponto a ser avaliado sempre, já que dificulta o trabalho e precisa de limites claros para que algum efeito seja atingido, uma vez que era difícil delimitar e manejar a situação para permiti-los trazer material. Houve situações de grande desconforto, nas quais as colocações ou respostas não eram bem aceitas por eles. Precisou-se, por vezes, lidar com o fato de não sermos aceitos e de termos o afastamento dos meninos. Mas com o tempo eles parecem entender melhor nossa posição ali e a aproximação dos meninos se torna mais periódica, individualizada e com o intuito de falar sobre o que aflige.

Eram poucos que conseguiam vir conversar toda semana, até por conta do número de meninos que chegavam para conversar. E um trabalho terapêutico só pode acontecer com uma certa freqüência de encontros e depende inteiramente da vontade e disponibilidade do garoto; que vai se aproximar quando achar necessário. Mas de alguma forma, com nossa presença, já estávamos podendo mostrar algo de diferente, mostrar que eles podiam ter uma imagem diferente da de delinqüente, marginal, monstro, que não merece nada além de morrer, como diziam ser vistos por todos de fora da Febem. De alguma maneira, quando nos colocamos ali e houve movimento dos adolescentes e dos funcionários e da equipe como um todo para estarmos ali, há algum movimento institucional. Os atendimentos que conseguem maior freqüência mostram uma necessidade maior daquele menino, mas mesmo os outros, parecem mostrar que há uma boa recepção ao nosso trabalho, à nossa atenção para aquele lugar. Podemos pensar aqui, como os grupos que chegavam mais agressivamente não conseguiam entender ou acreditar nesta diferença de olhar. Tinham que vir testar.

Foi interessante, então, perceber que o espaço do Plantão Psicológico pôde ser bem aproveitado por muitos garotos. Como um espaço em que puderam falar de si, puderam falar do que têm pensado e vivido, puderam contar com uma escuta de alguém que não interfere na decisão de estarem ou não ali, e mesmo como uma presença diferenciada, de pessoas interessadas no bem estar deles, até para os que não chegaram a conversar diretamente com os psicólogos. Portanto, em geral, eles não aproveitaram apenas por estarem participando de oficinas que trabalham conteúdos que podem gerar angustias, mas porque são adolescentes, porque são garotos com suas histórias de vida, cheios de dúvidas, de inseguranças, em privação de liberdade, em privação de espaços de privacidade. Acredito que o espaço de atendimento individualizado, não vinculado a relatórios para o judiciário, é um momento importante para o adolescente internado se colocar e poder se perceber como diferente daquele grupo com que convive a todo momento. Pode haver um resgate do indivíduo, de quem ele é, do que ele quer.

O que une o grupo é o mundo do crime. Do qual alguns gostam, outros dizem estar por necessidade, outros são ambiciosos, outros têm ódio, outros foram parar ali por estar com a pessoa errada na hora errada, mas todos vivem de alguma forma próximos a essa realidade. Todos estamos expostos à violência e à criminalidade, mas alguns podem se fechar em espaços mais protegidos, outros acabam ficando mais no meio de tudo. Muitos mostram que a perda de entes queridos leva a uma revolta muito grande, seja perda por morte, seja por abandono real ou simbólico. E o abandono é ponto freqüente no discurso dos adolescentes ali.

Haviam aqueles que se aproximavam de maneira desafiadora, querendo se mostrar dono da situação e mostrando-se com bastante domínio de seu discurso, que como coloca Marlene Guirado (Guirado, M., A Instituição e Relações Afetivas – o vínculo com o abandono, Casa do Psicólogo, São Paulo, 2004), "subverte a ordem dos domínios". Ele não quer ser observado, não quer se expor, quer mostrar todo seu controle sobre cada centímetro cúbico do espaço. De um espaço que é o dele, é a instituição em que ele está a todo momento, na qual ele conhece a todos e nós estamos chegando. Estes costumam chegar apenas para testar, para brincar com a sexualidade no discurso, para assustar. Raramente se aproximam com o interesse de trabalhar, de se colocar abertamente. Quando não conseguiam tomar conta da situação pareciam começar a pensar outra possibilidade de contato. Mas nem sempre isso acontecia.

E assim quem chega são os que se aproximam mais manso, com a cabeça baixa às vezes, trazendo suas queixas, de suas famílias, de suas vidas, da miséria, das perdas. O abandono destes é trazido ao falarem dos pais. Mesmo a mãe sendo uma figura muito valorizada, como santas. Nada se pode falar delas. Mas eles vão podendo dizer como as mães se envolvem com pessoas que fazem mal a elas e seus filhos, como elas não davam carinho suficiente, ou como cuidavam e se preocupavam, como eles gostariam de ajudar mais, como elas batiam, como bebiam, se prostituíam. O pai, que muitas vezes falta na história, é normalmente o abandono mais concreto. Seja porque foi embora, porque foi morto, porque a mãe fugiu dele. A revolta em relação ao pai, ou à sua falta, parece mais facilmente dita, talvez por ser a identificação desta figura com eles mesmos, mais corrente (além de serem filhos homens, muitos dos pais eram do mundo do crime, ou faziam coisas que eles julgavam errado – assim como eles).

Mas, de certa forma, todos se sentem abandonados em alguma instância. Isso porque, mesmo os outros, colocavam por vezes, de maneira menos dolorosa e doída, de como se sentiam abandonados pela sociedade ao serem colocados naquela instituição. Estavam ali esquecidos, confinados num espaço onde não eram notados, pois já não poderiam mais fazer mal a ninguém. E assim, demonstram se sentir abandonados mesmo pela Febem. Que não lhes (e nos) parece cuidar como deveria.

Se com o pai a relação é de maior identificação, com mãe e a mulher as coisas são diferentes. A mãe e a mulher dão à luz, dão a vida a eles e a seus filhos. Aparecem como as que devem ser protegidas deste mundo do crime, mas às vezes se tornam alvo deste. Tanto que a infração que não aceitam de maneira alguma é o estupro. Os que estão lá por isso devem ficar no "seguro", devem estar num outro espaço, são isolados do convívio com os outros. E eles se incomodavam de conversamos com os seguros. O sofrimento do estupro não é aceito, pois é da mulher, da que poderia ser sua mãe, sua irmã. Os sacanas, que merecem sofrer, são os homens. Mas por isso podem trair. Por serem os sacanas. Elas são mulheres, são santas, não podem trair. Se o fazem se tornam monstros que merecem morrer. Pois quem mexe com os malandros, com os sacanas, deve morrer, para não achar que passa batido mexer com malandro. É preciso deixar claro que com aquele ali não se mexe. E é assim, que os limites são impostos. No poder da bala.

Há valorização do trabalhador, do homem sério, "direito", mas não se sentem capazes de apresentar tal comportamento, que exige muito suor, muito esforço. E este trabalhador não tem poder algum no mundo do crime. A interdição, a lei, é na bala. Lidar com o limite é matar. Os conflitos, as dificuldades, não têm muito o que ser pensado, pois deve-se manter a ordem, deve-se manter o respeito, que é conseguido com morte. É uma lei que reforça a onipotência do indivíduo, pois este sente-se cada vez mais poderoso, impondo respeito aos outros e eliminando suas dificuldades facilmente. E neste ponto, há necessidade de muito cuidado no manejo entre os discursos, uma vez que eles estão ali porque cometeram crimes, porque estávamos entrando neste mundo de leis não tão internalizadas. Tínhamos que ser cautelosos pela nossa segurança ali.

E esta facilidade em lidar com o matar era mostrada especialmente na fala bastante recorrente – o que incita atenção – de que matar ou morrer são a mesma coisa. Estão a todo momento se expondo à morte, mas ao mesmo tempo matam para não morrer. Me ocorreu em muitas ocasiões em que eles falavam isto, que ao matar eles também morrem. O sofrimento não é reconhecido como tal ao matar, mas há uma perda grande que é como morrer. Inclusive porque alguns matavam também pessoas próximas, com quem, por vezes, tinham envolvimento. E matar traz uma vida que talvez seja como a morte.

Falam que para alguns, estar ali é melhor do que voltar para casa. Falam isso com dó, com pena do outro que não tem nada ao sair dali. Não tem para onde ir, não tem referência. De alguma forma eles conseguem reconhecer ali alguma possibilidade. Mesmo que digam que ali é o inferno, se este mesmo inferno pode ser melhor para alguém, é porque lá fora é inferno também. Quer dizer, de alguma forma eles estão dizendo o quanto ali estão protegidos de alguns medos e sofrimentos que existem na rua. Mostram o quanto sair também pode ser angustiante. O que é trazido abertamente por alguns, especialmente os que sabem que estão com pendências lá fora.

Alguns falam que querem sair dessa vida, que ela só leva à coisa ruim (morte ou cadeia), que estão ficando velhos e depois dos 18 vão para prisão de verdade. Aí entra muitas vezes, novamente a figura da mulher. Eles acreditam que precisam de uma mãe ou companheira que os ajude a ficar no caminho "certo". Se sentem fracos para permanecer firme na decisão de suar para sobreviver. Estranho como colocar aqui os termos luta ou batalha para referir a esta vida dura, suada, trabalhadora, que podem ser comuns, aqui fica esquisito, pois a vida deles parece ser uma luta, uma batalha, uma guerra a todo instante. E eles relatam como a tensão é realmente permanente.

Eles reclamam do marasmo da rotina na instituição. Como é todo dia igual, inclusive sendo difícil perceber a passagem deles. Ficam ali repetindo, esperando o tempo passar. Tudo que fazem ali é passa tempo. Para chegar o dia de ir embora. A tão esperada hora da saída, angustiante, se torna ainda mais ansiógena pela espera tão solitária, tão marcada e esticada. Sem trabalhos mais articuladores, mais mobilizadores, eles não têm qualquer motivação ou estímulo a interagir de maneiras diferentes com o em torno. Não há possibilidade de movimento, de ampliar os horizontes. E acredito que é este um dos papéis que tínhamos ali. O de ajuda-los a pensar em si como pessoas capazes de sonhar, de pensar num futuro, de pensar em outras possibilidades de se colocar nas situações. Ajuda-los a perceber um leque maior de escolhas.

Aqui acredito que há também um ponto de maior cuidado e atenção: não podemos "catequizá-los". Isto é, temos que ter muito cuidado para não colocarmos para o garoto o que julgamos ser a vida correta. É um pouco complicado pois estamos lidando com infratores, ou seja, eles realmente atuaram de maneira "errada" na sociedade, cometeram uma infração. Então, o limite é tão tênue, do não esquecer que o que eles fizeram é algo contra uma lei maior, mas ao mesmo tempo são as escolhas que eles estão fazendo. Temos que estar sempre sensíveis às atitudes que eles tiveram, aos crimes que cometeram, mas esta mesma sensibilidade nos aproxima de um adolescente, um sujeito confuso, assustado, crescendo e buscando certificações e brio, que conversa e se sente bem de ver alguém ali preocupado com ele. Quer dizer, ali é a Febem, um lugar cheio de pessoas que são muito mais do que estar ali e têm todos os seus direitos, como os que não estão. Do ponto de vista da lei, do ponto de vista pessoal e do ponto de vista psicológico.

A experiência.

Tivemos, a partir de certo momento, feedbacks de reconhecimento do trabalho. Assistentes encaminhavam adolescentes para o plantão, meninos vinham mostrando o quanto estavam considerando o trabalho: um garoto disse à assistente que conversava no plantão ao ser encaminhado a acompanhamento psicoterapêutico. Ele queria saber se essas conversas no plantão não ajudavam. Acredito que aí tenha um indicativo de que ele considerava o trabalho de forma positiva, ou ele só queria evitar de ser encaminhado ao atendimento psicológico. Mas de alguma forma estávamos presentes na instituição. Outro veio dizendo que os sintomas de que vinha reclamando estavam passando e ele acreditava que fossem as conversas que o ajudavam, embora não entendesse o porque disso.

Este último depoimento é de um garoto que atendi por um longo tempo, até sua saída. C. chegou assustado com visões e sonhos perturbadores que vinha tendo, querendo saber o que tinha. Passou pelo assunto das drogas, de sua vida difícil, de dificuldades com a família, de dificuldades dele. Foi para suas capacidades, as coisas interessantes que fez, que poderia fazer ao sair. Queria sair e aguardava os procedimentos burocráticos. Ia sair. Novo conflito, pois fica assustado porque vai sair. Tem medo de ser fraco, de não ser capaz de dar conta, dessas capacidades não serem tão capazes assim. O bom, que tinha sido reconhecido nele estava indo para fora de novo. E as minhas negativas em relação a continuar com ele quando saísse, à possibilidade de acompanha-lo fora, fez com que ele fosse se afastando. Me deu o cisne2, que ele mesmo fez, porque "tinha prometido, então tinha que dar." Honrou sua palavra e saiu.

Foi, este, um dos casos que me fez pensar bastante na idéia de continuidade do trabalho fora ou não e porque não. O trabalho terapêutico dentro de uma instituição como a Febem é muito diferente. O garoto está sempre ali. Imerso naquela realidade, que é temporária mas eterna enquanto dura, pois eles não sabem quando vão sair. E é dura. Uma realidade tão circunscrita, tão diferente do "mundão" – como eles se referem a tudo fora dos muros de onde estão. Portanto é um trabalho que procura ampliar possibilidades dentro de uma restrição de possibilidades muito grande. A gente viu, sentiu e nos foi colocado, que o trabalho foi interessante e proveitoso para eles e para a instituição3. Criamos vínculos muito bons com alguns garotos. E de alguma forma acompanhamos eles em um momento bastante difícil da vida deles. Mas, como já coloquei acima, fora também é visto pela maioria deles como muito sofrido. Essa separação precisa ser muito bem cuidada para não ser mais um abandono. E não seria interessante poder passar a acompanhá-lo fora dali, quando ele vai estar de cara com a realidade dinâmica e cheia de possibilidades do mundão? Não poderia ser mais proveitoso o trabalho pós-internação, ainda mais depois de formado vínculo lá dentro?

Esta é uma das questões que carreguei deste período de contato com a Febem, com os internos, com os adolescentes. Foi um tempo de muito movimento interno para mim, da cabeça ao estômago, que trouxe idéias, pensamentos e deixou um aprendizado que não terei em nenhum outro lugar. Não sei se consegui ampliar as possibilidades de ser no mundo para aqueles garotos, mas com toda certeza eles o fizeram por mim.

 

 

1 Estes movimentos institucionais são um tema extenso e específico de discussão, que poderá ser aprofundado em outro momento.
2 O cisne, assim como tapetes, porta retratos, eram feitos por eles com uma técnica de dobradura. É uma atividade constante enquanto estão no pátio, para se manterem ocupados, segundo eles.
3 Pois de alguma forma mostra outra possibilidade de ouvi-los e de estar com eles – o que muitas vezes inquieta aos funcionários. Porém esta seria entrada para outra parte do trabalho que não cabe neste momento.