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An. 1 Simp. Internacional do Adolescente May. 2005
Nas escolas, entre os jovens
Aldo Victorio FilhoI; Aristóteles de Paula BerinoII
IProfessor da rede pública do Estado do Rio de Janeiro/PPGE (UERJ), RJ
IIProfessor da rede pública do Município do Rio de Janeiro e das Faculdades Unificadas Serra dos Órgãos (FESO), RJ
Este trabalho é o resultado de uma reflexão a respeito da educação pública e os caminhos perseguidos pela adolescência hoje, na cidade do Rio de Janeiro. Discussão que elaboramos a partir de encontros. Encontro cotidiano com os nossos alunos da rede municipal e estadual na cidade e a reunião das nossas histórias como professores, quando problematizamos a vida nas escolas. Por um lado, são diálogos a respeito das nossas possibilidades: uma conversa sobre o que esperamos e queremos um do outro. Por outro, realizamos uma troca de relatos buscando algum entendimento e um pensamento despersonalizado, envolvido com o que é comum e plural. Um passo seguinte foi a produção de um texto que nos permitisse explorar outros diálogos, experimentando uma escrita que pudesse estender nossos encontros, buscando juntar outras vozes. Como pesquisa, construímos uma leitura sobre a adolescência e a emergência de criações culturais que se realizam diante das exclusões e marginalizações que estão expostos. É este acontecimento, tenso em relação às desigualdades e indiferenças, que o capitalismo tardio alimenta com a globalização, que destacamos como um convite para recriar com eles, entre educadores e educandos, sentidos para o existir e imaginar uma propriedade maior para a vida.
A aventura desse trabalho é, portanto, investir nos significados de relações e ações que, embora aparentemente dispersas nas marés do cotidiano escolar, muito oferecem de fruição das obras de seus praticantes, ou seja, a produção de sentidos para suas vidas. Investimento que nos parece, em face da complexidade do presente, tão ou mais urgente do que visadas da educação, da escola, enfim de seus praticantes, centradas na tradição e percalços da cognição. Pensar o espaço público da educação impõe o encontro com seus protagonistas e com suas redes de afetos, realidades, realizações que decorrem nas produções de sentidos para a vida, que da forma como lhes é imposta, se dá nos cruciais limites da permanente invenção do presente. O encontro entre nós, professores e alunos/as, refletido nesse trabalho, pretende incentivar a discussão de outras formas de relação (aqui compreendidos a pesquisa, trabalho, estudo, etc.) com a vida nas escolas.
Nossa poesia: o dilema de um estudante e nossa turma neurótica
Aldo Victorio Filho
Como as coisas estão longe de ser fáceis, vamos complicar o que pode ser complicado, para nos ajudar a pensar melhor, para sair da beatitude sem graça que ameaça constantemente o nosso pensamento. (CORAZZA, 2002, p. 16)
Pensar e escrever sobre a escola torna-se cada vez mais difícil, na medida em que o avanço de nossa compreensão passa a depender quase que exclusivamente da suspeição de tudo que estabelece o regime de verdades que desenha a Educação como um lugar próprio. Essa aventura passa, então, a depender dos transbordamentos do pensamento, dos afetos e dos sentimentos. Movimento que não pode dispensar a criação de jogos de fruição, devaneios lúdicos, prazerosos e poéticos sem comprometer sua desejada ampliação.
Para deflagrar esse movimento é preciso reinventar o olhar a partir da abolição da sua peculiar individuação. Assumir, portanto, incondicionalmente uma poética do encontro amalgamado entre o que olhamos e, a um só tempo, nos vê, para que seja possível percorrer, a contrapelo, as rugosidades dos conhecimentos outorgados, estilhaçar a diagramação da identidade da escola e da educação como um meio de alcançar o manancial de poesia e plenitude que aflora dos enredamentos entre os muitos encontros dos jovens, então nossos encontros, nos espaços escolares.
Algumas imagens desses espaços expõem outras possibilidades da escola e evidenciam, a seu modo, peculiaridades da amálgama das redes subjetivas nas tramas coletivas nas quais cada aluno e aluna lança mão de suas experiências particulares, seus afetos e desafetos, suas escolhas e tantas outras capilaridades da sua subjetividade no jogo das relações coletivas. Cada performance individual é, assim, uma face da ação coletiva. A balbúrdia dos corredores, as conversas e risadas nos banheiros, o encontro nas escadas e nos cantos do pátio, bem como os comportamentos nas aulas, expõem a intensidade da potência sensual do universo desprezado das imagens dos corpos, a um só tempo, pessoais e coletivos na instauração do encontro. Potência que aponto como fonte farta de sentidos do desafiador cotidiano das escolas. Contudo, é preciso alertar, que o que ganho na escola e aqui apresento, mais do que informa sobre o mundo dos jovens na escola, escancara a impossibilidade de devassa antropológica, intelectual, semiótica ou policial da vida que esses sempre belos personagens constroem na fuga do tempo, na fuga da colonização codificante de nossos saberes sedimentados, na fuga à nossa, muitas vezes, insidiosa e inútil intromissão. Mas, nunca se negam aos momentos em que a alteridade se dilui e o paroxismo da aproximação acontece. Quando não sou mais um diante do outro, meu corpo já não conta, colonizado pelo acontecimento da existência coletiva é apenas parte da intensa e vital conversa.
O que pretendo apresentar são imagens da poética desses espaços escolares que, sem nunca representarem lugares próprios, são esferas de existência que, em seu intrínseco intenso fluxo, se mostram intangíveis por qualquer regulação, seja das normas, das idéias e mesmo da pesquisa. Movimentações constituídas apenas pelo encontro fundamental entre seus autores e, ao mesmo tempo, seus protagonistas. Personagens que, por sua vez, são permanentemente reinventados no lugar próprio do cerceamento da oficialidade e da identificação, como defendo: personagens múltiplas dinamizadas pala força sensual dos corpos pessoais que se dissolvem na fulguração de novos corpos coletivos.
A fidelidade ao transbordamento que proponho, para alcançar a plena potência da estética do encontro, impõe desvencilhar-me da posse do lugar próprio desse texto, para ocupá-lo com a poética do comum. Enredamento de gestos e de corpos que configuram as oportunidades de caça na qual refulge o cotidiano da escola. Espaço poético de onde emerge o sentido deste trabalho.
O paroxismo de minha iniciativa se dá na utilização do lugar reservado à minha fala, ao meu solo, pelo resultado do encontro com um aluno que cria funk. Escreve com suas mãos múltiplas a fala polifônica do nosso corpo coletivo, fala que atravessa o meu corpo sem jamais implicar na pretensão de sua posse exclusiva, pois as dimensões desse acontecimento diluem qualquer unidade. Já não somos eu e ele, o intento do gesto inicial do aluno transcende a fortuita relação entre duas pessoas, para, na pulverização das ordenações que esquadrinham a aparência superficial da escola, reverberar a sinestesia comum de um coletivo sempre maior.
As poesias funk que me foram presenteadas configuram a vida na escola, as energias que dinamizam nossos sentimentos de existir e de interagir sob as contingências dos agenciamentos que nos desafiam e, de uma forma ou de outra, nos constituem. Exigem, essas obras, muito mais que qualquer leitura convencional. Gritam desigualdades, sussurram afinidades, mas, desarmam as etiquetações que nossos habituais instrumentos de estudo condicionam.
A essas poesias não convêm traduções, interpretações ou análise comparativas que venham desviar a percepção da centralidade de sua potência, crucialmente estética, de criar a corporeidade do nosso vital encontro e dar sentido à nossa existência. Portanto, não seria justo nem prudente reduzi-las à colonização de qualquer eventual significação de suas dimensões de protesto, denúncia, revolta, identidade, diferença etc. Marcas, indiscutivelmente relevantes, mas aqui, fios inseparáveis de uma trama de maior densidade cuja apreensão não se dá por meio de leituras ou outros caminhos que evitem a relação sensual da conjunção coletiva, da fruição do encontro. Acontecimento que, inevitavelmente, estilhaça a idéia do mesmo e do outro, do professor e do aluno. Refiro-me ainda à irredutível experiência estética do encontro, da qual, provavelmente decorram, outros sentidos, conexões ou, ao menos, indícios, de novas possibilidades significativas da escola e da educação. Para as eventuais dificuldades de compreensão do que defendo, proponho apenas a repetição da leitura das poesias. Quantas vezes forem necessárias.
Dilema de um estudante
Nascido em 87, foi assim que começou
Cria do Borel, na Tijuca é o terror
Mas não se liga nisso, lá só pinta sangue bom
O ritmo é maneiro, é só não vacilar
Mas se insistir no erro, do barranco vai pular
Mas hoje eu to aqui, pra falar de mim
Moleque maneiro e também sangue bom
Quem me conhece concorda com o que eu falo
E até me chama de irmão
Sou carioca, Flamengo até morrer, não sou de confusão, uterêrê
Do jeito que diziam meus amigos
Também já matei aula lá no pátio, foda-se
Isso pra mim nunca foi pecado
Eu sou calmo, acho até de mais
Quem me deu educação, foram meus pais
E os palavrões aprendi com os semelhantes
Mas não queira você, me diminuir
Se não o bicho pega e é por isso que estou aqui
Você conhece um colégio, Herbert de Souza
É!!! Também estudo lá
Que porra é essa meu irmão de botar grade na escola
Acham que eu sou ladrão, não, só vim pra assistir aula
Esse pessoal já não tem o que inventar
Se não quero entrar pra sala, e daí, sou eu que vou me ferrar
Russinho, esse você conhece, outro vacilão
Só porque foi promovido, anda com marra de patrão
Hum!!! Coitado, quer botar moral, mas não passa de empregado
A diretora é outra, pensa que a gente é cachorro
Nos trata como lixo, e ainda quer jogar osso
A sub diretora, que chegou agora
Com carinha de anjo, pensa que ta com a bola
É, vai nessa, a Delaide cadê, sumiu, pra onde que ela foi? Foi...
Se dogão é mau, digão é mais ainda
Fala direito comigo e entra na disciplina
Eu estudo aqui e passo um sufoco
Se quero conversar levo um esporro
Mas também não é por isso
Que vou baixar a cabeça pra nenhum filho da hamham...
Puta é aquele que me chama
Não vou deixar baixar minha moral
Qualquer parada eu enfrento, sou super natural
"mas que cão, só pagam pra vacila
mas que cão, só pagam pra vacila
mas que cão, só pagam pra vacila"
eu só estudo aqui, por causa das gatinhas e dos professores
mas nada nessa vida é perfeito, é um eterno perde e ganha
um mundo sem direito
se correr o bicho pega , se ficar o bicho come
eu bato de frente, mostro que sou homem
se altero minha voz, quer me dar advertência
se falo palavrão, lavem a suspensão
eu aposto com você, quer ver
quando acabar a música, vão querer até me bater
Turma neurótica
Lá na minha sala é maior zoeira
Você brinca se diverte fala
E as piadas são maneiras
Lá você encontra o Cleber e o Digão
Ham, esses moleques zoam de montão
Na turma tem uma muda que fala
E a Maria, só falta ne minha cara
Paulinho, Mamão, Leonardo
Os moleques são maneiros
Brincam pra caralho
Aqui você também acha o Claudemir
Esse moleque é engraçado
Ham, ham, ham tô aqui
As garotas são umas gracinhas
Mas não boto a mão no fogo
Ali ninguém é santinha
E os professores
Cada um tem o seu jeito
Um belo aprendizado, mas que direito
O clima lá na sala é abafado
Meu sonho de consumo
É um ar condicionado
Mas nada nessa vida é perfeito
A minha hora preferida é quando desço pro recreio
Tem que ver os moleques falando
Ta na hora do banho de sol
Convoca os amigos pro futebol
Mas tudo o que é bom acaba rápido
Pra sala pessoal, o recreio já é passado
"quero ver se a tua turma é
do jeito que o Digão falou
quero ver se a tua turma é
zoação o tempo inteiro pra um dia ser doutor"
é parceiro minha sala é demais
e na sua a bagunça, quem faz?
Também tem uma horinha que ninguém perdoa
A hora do intervalo, lá vem a inspetora
A Sueli já não agüenta mais
Chama a atenção o tempo inteiro
e a bagunça é sempre aqui atrás
esse ano eu to impossível
se deu mole eu tenho que gastar
os professores não agüentam comigo
já fiz até promessa
juro que vou mudar
e dos maus elementos eu vou me afastar
"é mentira thu thu
É mentira
é mentira thu thu
É mentira"
Já é, já é, ta tranqüilo
Pode gargalhar eu sei que estou mentindo
Mas se nessa série eu não passar
No final do ano meu pai vai me espancar
Eu digo ...
...meu amigo
Quero ser Antonin Artaud
Aristóteles de Paula Berino
Ele nos havia atraído para seu jogo trágico de revolta contra tudo aquilo que, admitido por nós, para ele permanecia mais puro e inadmissível, disse André Gide. (Apud ARTAUD, 1987, p. 10)
I
Eu vou te fazer mulher
Vou te botar na posição
Vou te acariciar gostoso
E te dar muito tesão
Depois que acariciar
E te lamber todinha
Ela quer tomar na tchequinha
II
Se mexer com as nossas amantes
Tou comprando esse barulho
Se liga no meu papo
Que é papo de traficante
Homem que é homem tem que
ter uma amante
Tem que ter, tem que ter, tem que
ter uma amante
III
Eu não entendo essas mulheres
Vem de cima porque embaixo esquenta
Vem boceta, vem boceta...
As mulheres manda diferente
Elas mandam mais ou menos assim:
Quando elas estão com fogo
Ela dá para qualquer um
Então vem, vem...
E quando beija a cachaça
Então vem, vem...
Eu dou para qualquer um...
IV
- Você quer que te chame de quê, fala?
- Cachorra.
- Vem cachorra, cachorra...
Não basta que essa magia do espetáculo acorrente o espectador,
ela não aprisionará no entanto se não souber onde prendê-lo.
Antonin Artaud (1987, p. 170)
V
Uma noite destas entrei em uma banca de jornais. Em um sonho, quero dizer. Procurava uma revista e acabei encontrando outra que sempre compro e que naquele instante me surpreendeu pelo formato modificado, o preço menor e o empobrecimento do material utilizado. Trata-se de uma revista de divulgação científica, Nossa História. A revista agora tinha seu tamanho reduzido, a impressão feita em um papel barato e custava apenas um real. Surpreso com a sua aparente desvalorização, a matéria de capa me chamou atenção quando tive a revista sonhada em minhas mãos.
Na capa, em destaque, apresentava o tema que deveria promover o lançamento daquele número: As mulheres estão se transformando. Segurava a revista enquanto estranhava sua nova feição e decidia se deveria comprar. É aí que o sonho acabou. Com a revista nas mãos, consumi em um breve período este tempo que distancia nossos sonhos das vicissitudes que freqüentam a vida. A mesma fugaz experiência que faz das intrigas que ameaçam nossas fantasias uma aflição que preferíamos adormecer. Um sobressalto que nos acontece na detida hora do sono. Mas que para um professor, sobrevém também nas salas de aulas.
Entregando-me ao meu sonho, lembrei-me de um episódio. Em uma aula, fiquei aborrecido porque determinado aluno, muito esperto, parecia desinteressado e distante do que esperava do seu comportamento. Pensei em cobrar uma aplicação maior do meu aluno com um chamado edificante: "Você mudou muito, Cláudio!" Esperava uma sentida vergonha e mudança de atitude. Mas sua sagacidade ultrapassou a suposta ascendência moral que poderia exercer: "O mundo mudou, professor", disse. Sua voz não repreendia, mas com uma sutil ironia apontava para uma mudança impessoal, impossível de referida a um aluno, imprópria para ser contida por um professor. Nem através dos sonhos.
VI
Ensinaram-me que aquele seria um lugar de privilégio. Teria uma mesa, um lugar para me sentar e diante dos seus corpos, com uma indispensável evidência, acolheria toda atenção para que no final do ano, em um derradeiro exame, provassem da sua fé. Mas na verdade, naquele lugar, cobrindo o quadro-negro ou perfilando entre a ordem decidida das cadeiras, vaga a luz. Uma queda. Misericordiosa, para que nos salve deste rumor que tanto nos alenta quanto gasta nossa vontade de criar. Aquilo que pedem de nós, tanto capricho na teia de uma caneta ou na máquina de digitar, não é outra coisa, com seu propósito ensolarado, senão aceitar um credo morto sobre o ser. Assim, sem a obstinação das luzes vou me descuidando, entrando em todos os cantos.
Contrastando com o tecido puído da vestimenta curricular, ficam animados quando entregues ao seu gosto. Zombam da postura rígida de quem pretende ser o educador, dançando contra a intransigência da nossa doutrina. Brincam quando ainda acreditamos que a escola é séria, cantando alguma coisa para diminuir a nossa voz. Sem murmúrio ou lamento, ainda que aos nossos olhos tudo pareça perdido, são convincentes da sua própria vida, e amam quando já não conseguimos demonstrar felicidade naquele lugar. Neste instante, somos provocados a ser educados também, largando o tom lívido das nossas aulas para abraçar apenas o que é sensual e relevante de ser querido.
Agora, é uma peça às avessas, quando largamos nossos papéis principais e saímos do que foi decidido para vivermos ali. Outros personagens entram em cena. Juliana quer algum conselho para conquistar o coração de um garoto da sala. Ela quer saber o que é melhor fazer para ter sucesso. Moisés diz que está demais, as meninas estão encima. Pedro quer saber o que gosto de ouvir. Perguntam sobre rock e as bandas preferidas. Peço para ver os desenhos que Vinícius fez. Contente, na outra aula traz as revistas que curte para eu ver também. Alguém me mostra uma música que gravaram para transmissão no áudio do celular. Perguntam se não quero ir ao baile. A professora de biologia já foi, contam. Vejo o retrato de quinze anos de uma garota da classe. Qual o nome do meu filho? Não cessam de demonstrar interesse pela minha vida e não querem que a nossa conversa tenha apenas a duração de cada aula. São passagens, trajetos que vou enredando no meu descaminho.
VII
"Fiel, nós fecha!", disse meu aluno. Fiel é aquele que, como um cão, guarda o sono do patrão. Com este sentido, não poderia ser seu fiel. Mas é mesmo outra coisa que procuram com esta conversa. Depois de alguns encontros, posso ser visto também através de outras linguagens. E isto para dizer que estou ao seu alcance. Um dia após o outro, vamos descobrindo a nossa disponibilidade para uma experiência solidária, criando comprometimentos impossíveis de serem determinados pela alteridade do sujeito e pela autoridade escolar. Pouco acontece dizer ser professor ou lembrar que ali é uma escola. Contam com outras coisas.
O lugar remoto da escola, onde mais e melhores ações acontecem, não se comunica com o enlevo que segue até a rubra estrela. E não é porque a realidade exila o olhar. Mas simplesmente esta busca não importa muito. Serve muito pouco de fundamento para um encontro mais íntegro. Ser professor parece ser uma arte para quem não quer enxergar muito longe. Não exige fervor algum, apenas distração. O que seduz está bem ao nosso lado. Necessário mesmo é um olhar muito brando, curioso e tímido. Despretensioso em relação à verdade, sem vontade de roubar o que apenas germina sem qualquer natureza ou essência. Neste caso, ensinar deveria ser um gesto de impureza.
O desassossego nos aproxima. É o alvoroço que antecede o diálogo, uma inquietação que assombra a previsibilidade escolar e desanima as crenças. Um desamparo para o professor. E não é dissimulando que chegam mais perto. Ah, aqui nada é signo! É mesmo um hálito acre que não me deixa entorpecer o espírito quando lhes arrepiam os corpos os graves caminhos que são ditados para suas vidas. Sem outras defesas, mascando em seus sonhos, ruminando com seus desejos, brutalizam-se para que se façam homens já. Enquanto tudo isto acontece, falam bem de perto. Assim, quando ficamos mais próximos, querem conversa. Eu também.
VIII
Com freqüência deixam em casa o material escolar. Levam especialmente aquilo que desvia a atenção da aula. Entre estes objetos, é comum o toca cds portátil. Com duas saídas para o ouvido, um aparelho é dividido entre um e outro amigo, multiplicando seu uso. Nem sempre desligam no início da aula. Proibindo, tentam ouvir assim mesmo, driblando a vigília do professor. Entre a descrença a respeito da possibilidade de realizar as tarefas ouvindo música e a vontade de saber sobre o que lhes interessa, pergunto às vezes o que é. Estão sempre querendo me mostrar também. Entre o meu desejo e o deles, acabo pedindo emprestado suas canções. Em casa, esta audição faz com que conheça um pouco o que atrai e repulsam. Mas principalmente vejo que a identidade atribuída não existe sem a vestimenta escolar. Só aqui são parecidos com o que é dito sobre eles.
Sem a roupa de estudantes, já não é tão fácil dizer o que são. Parecem comovidos com tudo que acontece com suas vidas e não cessam de experimentar o próprio medo. Sem fortuna, quase nada do que fazem poderia ser remissivo a uma identidade determinada. O extravio que cometem não concentra um modo de vida particular. Expansivos, o que exibem é um duplo. Uma faculdade que permite deslocar-se entre as trajetórias até então conhecidas e aquelas que o contato proporciona. Uma sedição contra o estabelecido e o permitido. É assim que acontece quando saltam sobre suas histórias para percorrer uma rota que dá passagens para outros corpos. Processo de abandono e conquista. Sedimentos que são extraídos e novas aderências possuídas. Com suas músicas arremessam a uma boa distância o que lhes é oferecido através da escola, querendo outros mundos. Para isto, precisam eventualmente do professor.
Também não nos resta muito senão mudar com eles, seguindo até onde pedem e podem. O que de dia sonhamos como professores, obsessão que nos prende aquilo que nos falta, replica com a noite, desmoralizando o nosso sossego. Melhor ceder. Ter o corpo invadido por suas fantasias e retribuir sorrindo. Uma alegria que nos dá a vantagem de evocar o nosso próprio prazer, ensinando a se esquivar desta paz preferida com a morte, sentença preferida contra tudo que é vivo na escola. Envolvimento contra esta a individualização (e separação) que ameaça estagnar no mérito e no sucesso escolar nossa felicidade. Para educar, ser um pervertido.
Referências bibliográficas
ARTOULD, Antonin. O teatro e seu duplo. São Paulo: Max Limonad, 1987.
CORAZZA, Sandra Mara. Para uma filosofia do inferno na educação: Nietzsche, Deleuze e outros malditos afins. Belo Horizonte: Autêntica, 2002.