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An. 1 Simp. Internacional do Adolescente May. 2005

 

Trabalho e identidade de adolescentes do sexo masculino de camadas populares

 

 

Felipe WataraiI; Geraldo RomanelliII

IMestrando do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto-USP
IIProfessor da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto-USP

 

 

Apresentação

O objetivo deste trabalho é analisar o modo como adolescentes trabalhadores do sexo masculino, freqüentando o ensino médio no período noturno, na faixa etária entre 16 e 18 anos incompletos, pertencentes a famílias das camadas populares vivenciam a experiência de ingressar no mundo do trabalho, o significado que atribuem às relações aí vividas e como elas contribuem para a construção de suas identidades.

 

Adolescência: seus limites e suas características

As etapas do ciclo de vida são classificadas culturalmente em cada sociedade, que atribui posições sociais, responsabilidades, direitos e deveres específicos aos integrantes das diversas faixas etárias Nas sociedades ocidentais, o limite de idade utilizado para classificação de crianças, adolescentes e jovens é difícil de ser estabelecido e não há consenso entre diferentes autores e instituições quanto aos limites dessa fase.

Uma forma de classificação, de âmbito internacional, utilizada por vários pesquisadores é a da OIT (Organização Internacional do Trabalho), segundo a qual a juventude é dividida em dois períodos. O primeiro deles, considerado a fase da adolescência, vai de 15 a 19 anos, enquanto a juventude propriamente dita corresponde à faixa etária de 20 a 24 anos (Martins, 2000). Também no plano internacional, a OMS (Organização Mundial de Saúde) estabelece entre 10 e 19 anos a fase da adolescência (OMS, 1975). Outro critério etário, este exclusivamente nacional, é o do ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente) que situa a adolescência entre 12 e 18 anos incompletos (ECA, 1996).

Para delimitar a idade em que se encontram os adolescentes, adota-se a classificação do ECA, lei federal nº 8.069 de julho de 1990 que, levando em conta as diferentes etapas de desenvolvimento, classifica como criança quem tem até 12 anos incompletos, e como adolescente aquele entre 12 e 18 anos também incompletos, estabelecendo ainda a idade de ingresso no mercado de trabalho (ECA, 1996). Por meio dessa classificação, o ECA procura proteger a criança e o adolescente da exploração nas relações de trabalho, assegurando-lhes o cumprimento de direitos presentes na Constituição de 1988. Emenda Constitucional de 1998 regulamentou e alterou a entrada de ingresso no mercado de trabalho, tal como constava do ECA. Assim, a partir de 16 anos (Ishida, 2001), o adolescente pode, legalmente, integrar a força de trabalho. Tal regulamentação procura garantir, entre outras coisas, que os adolescentes tenham horário de trabalho condizente com a freqüência à escola, evitando condições prejudiciais a sua saúde e a seu desenvolvimento.

No entanto, o critério cronológico é insuficiente para caracterizar a adolescência, pois as formas de sociabilidade de seus integrantes não podem ser estabelecidas apenas a partir da faixa etária, mas são influenciadas por fatos sociais e históricos, que são variáveis de uma sociedade para outra e mesmo em uma sociedade específica, devido à heterogeneidade social existente em seu interior (Carrano, 2000; Castro & Abramovay, 2002; Pais, 2003).

Por isso, a fase da adolescência não é algo homogêneo, nem é vivida do mesmo modo pelos adolescentes de uma dada sociedade. Apesar dessas variações, essa etapa apresenta, pelo menos nas sociedades ocidentais modernas, algumas características comuns, pois é etapa de transição entre a infância e a idade adulta.

Dentre as características comuns, Becker (1987) esclarece que a adolescência pode ser melhor entendida como passagem que produz mudança de atitude no indivíduo que, de mero espectador, assume uma postura mais ativa e questionadora diante da vida. Ela é um período de revisão, de autocrítica e de transformação e é uma fase vital para o processo de desenvolvimento da pessoa. Nesse sentido, pode ser considerada como processo durante o qual, lenta e gradualmente, o sujeito amadurece procurando conquistar sua individuação e construir uma identidade própria (Coleman, 1979; Pais, 2003).

No processo de adquirir uma identidade, Erickson (1976) considera que a tarefa principal do adolescente é diferenciar-se de seus pais, questionando e discutindo suas orientações para construir sua individualidade e, por isso, passa a questionar as formas de conduta e os valores paternos, a fim de construir sua própria individualidade.

Nessa fase, paralelamente ao surgimento de novas formas de sociabilidade e com a emergência de mudanças corporais e o início de manifestações de sexualidade, os adolescentes vivem sentimentos conflitantes enquanto buscam conquistar independência financeira e autonomia em relação aos pais e aos adultos em geral. Trata-se de um processo marcado por novas descobertas, que são vividas de modo intenso na busca de construção da identidade.

De acordo com Blos (1962, apud Coleman 1979), nessa etapa de transição para a idade adulta, os adolescentes necessitam de fontes de referências diversas daquelas oferecidas pelos pais e adultos para organizar suas experiências. Em sociedades que passam por processo de mudança acelerado, a experiência dos mais velhos é, com freqüência, desatualizada para orientar as formas de conduta dos adolescentes. Enfrentando fortes conflitos, os adolescentes buscam outros modelos de identificação. É nesse sentido que o grupo de pares, representado pela turma da escola, da rua, do bairro, do clube etc., passa a constituir uma referência básica na ordenação da conduta dos adolescentes. É entre os pares, isto é, entre os iguais que eles encontram espaço para expressar emoções, sentimentos, dúvidas e ansiedades e é com eles que aprendem formas de condutas adequadas a sua idade, a seu gênero e a sua condição social (Coleman, 1979).

A adolescência foi, até aqui, descrita como categoria genérica. É preciso, então, considerar o contexto social mais específico em que vivem os sujeitos da pesquisa, integrantes de famílias das camadas populares, e o aumento proporcional dos adolescentes dessas camadas na pirâmide demográfica.

 

Famílias de camadas populares, socializaçao e identidade

O termo camadas populares constitui uma categoria descritiva, utilizada para designar a população pobre dos centros urbanos, cuja condição de moradia é precária, com dificuldade de acesso a serviços de saúde, educação, saneamento básico e com renda familiar reduzida (Romanelli, 1997). Nessas famílias, os cuidados com os filhos e o processo de socialização cabem principalmente à mãe, enquanto o pai tem menor importância nessas atividades. Na socialização primária, que pode ser vista como processo de inculcação de padrões culturais para organizar o comportamento individual, outras instituições como escola, igreja, mídia, além do grupo de pares também atuam como transmissores desses padrões. Durante a infância, as figuras dos pais constituem os principais agentes desse processo, servindo de intermediários entre a esfera social mais ampla e os filhos. No período que compreende a adolescência, há diminuição da importância dos pais, na medida em que o grupo de pares passa a ter importância decisiva no aprendizado de padrões de conduta (Berger & Berger, 1976).

A força do processo socializador exercido pelos pais, bem como por agentes de diferentes instituições, não tem o poder de moldar integralmente os imaturos, transformando-os em sujeitos conformados e obedientes aos preceitos culturais. Crianças e adolescentes reagem de modos diversos à ação socializadora, e nesse processo de contestação enquadram-se, em particular, os adolescentes.

Na relação com pessoas vivendo em condições sociais e culturais semelhantes às suas, mas sobretudo com outras, provenientes de diferentes contextos sociais e culturais, os sujeitos são socializados e adquirem uma identidade pessoal, ou individual, e outra social, ou coletiva (Goffman, 1978; Oliveira, 1976). A identidade pessoal refere-se à individualidade de cada sujeito, a aquilo que é parte exclusiva e única de sua biografia e que o distingue dos demais indivíduos, contribuindo para o processo de sua auto-identificação. Essa identidade engloba os aspectos positivos e específicos da história de vida da pessoa e está relacionada a sua subjetividade (Goffman, 1978).

Se a identidade pessoal remete a atributos próprios de cada indivíduo, a identidade social compreende a parte socializada do sujeito, ou seja, ao que é compartilhado pelo seu grupo social. A noção de identidade social inclui os atributos e as formas de conduta que o indivíduo adquire em função de sua participação em contextos sociais específicos, dentre outros, a camada social, ocupação, etnia, religião, a que pertence e que o identificam como integrante de determinado grupo social (Costa, 1989). Resulta daí o caráter plural da identidade social, pois no decurso de sua trajetória de vida, cada sujeito adquire várias identidades sociais correspondentes a sua inclusão em diferentes grupos.

Gradativamente, o adolescente adquire várias identidades como as de filho, aluno, amigo, às quais se acrescentam outras, como a de trabalhador. Nesse sentido, a aquisição de diferentes identidades ocorre em um processo contínuo de ampliação de experiências que colocam os indivíduos em relação com a alteridade.

Mas se a identidade social unifica e integra o sujeito em um conjunto de outros indivíduos portadores dos mesmos atributos, permitindo sua identificação, a identidade também opera diferenciações com pessoas pertencentes a outros agrupamentos. Nesse sentido, a identidade é sempre contrastiva (Oliveira, 1976), criando demarcações e limites entre os componentes de uma categoria e os outros, estabelecendo fronteiras simbólicas e sociais entre os sujeitos.

Além disso, as identidades sociais, no plano coletivo, só se constituem como verdadeiras na medida em que outros as reconhecem como tal (Berger & Berger, 1976) e identificam seu portador como integrante de determinado grupo social.

Para as famílias das camadas populares, o processo socializador direciona-se para que os filhos adquiram com a maior brevidade possível certa independência para que possam cuidar de si próprios sem supervisão adulta e adquiram autonomia, o que contribui para a construção de suas identidades pessoais e sociais. Com isso, os filhos passam a gozar de liberdade de circulação com relativa pouca idade. Ainda assim, há o empenho dos pais para manter controle sobre o espaços de convivência dos filhos, o que não impede uma inevitável diversificação das formas de sociabilidade infantil, o que alarga as experiências dos imaturos. (Romanelli, 1997).

Nessas famílias, os filhos passam a ter atribuições a partir de seis ou sete anos. Isso inclui tanto a execução de tarefas domésticas, quanto a inserção no mercado de trabalho. Promove-se assim uma "adultização precoce" dos filhos, em especial os do sexo masculino. As filhas, em função dos papéis sexuais atribuídos ao sexo feminino, não são impelidas a exercer trabalho remunerado da mesma forma como ocorre com os filhos das famílias das camadas populares (Agier, 1990; Romanelli, 1997; Sarti, 1996).

Essa socialização para assumir tarefas domésticas e/ou remuneradas está diretamente associada às condições financeiras das famílias. Com rendimentos escassos, uma possibilidade de ampliá-los e de melhorar o consumo depende de os membros da família poderem contribuir para o orçamento doméstico. Nesse sentido, os rendimentos obtidos pelos filhos são fundamentais para assegurar o consumo da família, conforme várias pesquisas já documentaram (Bilac, 1978; Fausto Neto, 1982; Machado Neto, 1979, 1980).

Com o ingresso no mercado de trabalho formal ou informal, os filhos passam a ter uma nova condição dentro da família, já que em vez de apenas consumidores passam a ser produtores de rendimentos, agregando a identidade social de trabalhador a suas outras identidades. Com isso, passam a desfrutar de maior autonomia em relação aos pais, com possibilidade de negociação e até de contestação das orientações e dos limites impostos pelos genitores. Além disso, o trabalho, principalmente o remunerado, contribui decisivamente para o processo de amadurecimento psicológico e social dos filhos do sexo masculino (Romanelli, 1997).

Ao ingressar no mercado de trabalho, além de independência financeira os adolescentes buscam a possibilidade de consumirem bens aos quais provavelmente não teriam acesso caso não dispusessem de recursos financeiros próprios. Alguns desses bens constituem "símbolos da juventude" (Seade, 1998) e abrangem itens de vestuário e de lazer, tendo elevado valor simbólico para os adolescentes. Cabe lembrar que a formação/invenção de uma "cultura jovem" foi impulsionada pelo consumo (Segalen, 1999), o que Adamo (1987) critica, mostrando a influência negativa que os meios de comunicação exercem sobre os adolescentes, procurando transformá-los unicamente em consumidores.

No entanto, as possibilidades de exercer atividade remunerada e, conseqüentemente, de independência financeira e de consumo dependem de fatores estruturais, referidas às condições de ingresso no sistema produtivo, que variam segundo idade, sexo, escolaridade e experiência de trabalho anterior.

 

Os adolescentes e o mercado de trabalho

Nos últimos anos, a faixa etária que abrange os adolescentes tem apresentado crescimento, destacando-se em relação ao conjunto da população. Os dados do Censo Demográfico do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) de 2000 indicam que o grupo mais numeroso da população compreende os adolescentes entre 15 e 19 anos, com quase 18 milhões de pessoas. Esse grupo é seguido pelo segmento entre 20 e 24 anos, com pouco mais de 16 milhões (IBGE, 2004).

Esse cresc imento demográfico não tem sido acompanhado por ações do poder público para oferecer serviços como educação, saúde, ou para promover políticas de geração de empregos para essa população específica (Seade, 1998). Um estudo desenvolvido pela Fundação Sistema Estadual de Análise de Dados (Seade) entre os anos de 2000 e 2003 na cidade de São Paulo, apontou que as crianças e jovens de até 15 anos se concentram nos bairros mais pobres e com menos estrutura de serviços da cidade. A proporção da população jovem nesses bairros é aproximadamente o dobro daquela que ocupa as áreas que apresentam os melhores índices de qualidade de vida (Viveiros e cols, 2004).

O acesso ao emprego vem se tornando especialmente difícil para os adolescentes em decorrência do desemprego estrutural. Ao lado do aumento de adolescentes e jovens no conjunto da população, eles sofrem maior instabilidade no emprego, permanecendo nele menos tempo do que seus colegas mais velhos. A alta rotatividade limita o acúmulo de experiência profissional, o que acarreta dificuldade para nova colocação no mercado de trabalho (Seade, 1998).

Dados obtidos na Região Metropolitana de São Paulo em 1996 indicam que experiência anterior de trabalho e maior grau de escolaridade contribuem para o ingresso de indivíduos de 15 a 24 anos no sistema produtivo, na permanência no emprego e possibilitam melhores remunerações e menores jornadas de trabalho. Apesar disso, somente a escolaridade não garante permanência no emprego, dado que 23% dos inativos ou desempregados tinham concluído o ensino médio. A escolaridade pode gerar ainda expectativa de colocação no mercado de trabalho que, no entanto, nem sempre é concretizada (Seade, 1998). Mesmo assim, pode-se constatar nos dados do Censo Demográfico do IBGE de 2000 uma relação diretamente proporcional entre a quantidade de anos de estudo e os rendimentos obtidos (IBGE, 2004).

O desemprego, em todos os níveis sociais e etários, não seria justificado apenas por mudanças nos padrões de produção, mas também pela ausência do Estado na regulamentação das relações de trabalho e de emprego (Bock, 2000; Martins, 2000). Dados do Censo Demográfico de 2000 do IBGE indicam que na faixa etária entre 10 a 19 anos encontra-se a maior proporção de trabalhadores sem carteira de trabalho, portanto excluídos do mercado formal de trabalho (IBGE, 2004). Cabe lembrar que a ausência de documentação estabelecendo o vínculo empregatício priva os trabalhadores de direitos como férias, 13º salário, FGTS etc.

 

Metodologia

A pesquisa foi realizada com dez adolescentes do sexo masculino, na faixa etária entre 16 e 18 anos incompletos, inseridos no mercado de trabalho de modo formal ou informal, cursando o ensino médio no período noturno em uma escola pública localizada em um bairro periférico de Ribeirão Preto-SP. Para selecionar os adolescentes foi feito contato com uma escola do bairro. Após autorização da direção da escola, os alunos foram procurados durante o período de aula, explicando-se os objetivos da pesquisa. Quando os adolescentes concordavam em participar da pesquisa, foi entregue a eles o Termo de Consentimento para que os pais, ou responsáveis, assinassem, autorizando os filhos a concederem a entrevista. Os dados foram coletados por meio de entrevistas gravadas e transcritas na íntegra e também mediante observação e registro de atividades durante o horário de intervalo das aulas.

 

Os adolescentes e o trabalho

Como já foi apresentado, o desempenho de atividade remunerada propicia uma série de mudanças na identidade dos adolescentes. O conceito de rito de passagem pode tornar essas transformações mais evidentes. O rito abrange cerimônias que visam destacar certas mudanças no ciclo de vida dos integrantes de uma sociedade, em especial em processos de aprendizagem de uma ocupação, da agregação em grupos restritos, da mudança de faixa etária e de ordenação religiosa. Tal definição implica na concepção de uma sociedade portadora de divisões internas, por meio das quais seus membros são distribuídos e classificados. A princípio, ritos de passagem teriam caráter mágico, visando um objetivo religioso, na medida em que os ritos são realizados a partir de teorias formuladas acerca do sobrenatural (Van Gennep, 1978).

O conceito de rito de passagem é bastante útil para compreender alguns aspectos da entrada no mercado de trabalho por parte dos adolescentes do sexo masculino em um contexto marcadamente laico e profano (DaMatta, 1978).

A inclusão em atividades produtivas proporciona, como um rito de passagem, a transição da infância/adolescência para a vida adulta. Dessa maneira, os adolescentes incorporam a identidade social de trabalhador e consideram que deixaram de ser crianças, mas não são investidos imediatamente na posição de adultos. Isso pode ocorrer por lhes faltarem outras características adultas, em especial a constituição de uma família própria, o que traria novas responsabilidades. Por isso, continuam em um período em que podem gozar de maior liberdade sexual e social, pelo fato de não terem se casado e não terem família para sustentar. Esse período de liberdade e autonomia deve ser abandonado posteriormente a fim de que se possa efetivamente ingressar na idade adulta (Romanelli, 1997; Sarti, 1996).

O desempenho de uma atividade remunerada pode ser apontado como um marco na biografia dos sujeitos, pois estabelece ruptura com a fase anterior ao ingresso no mercado de trabalho e estabelece o início de nova etapa da vida. Essa mudança na biografia implica em transformação na identidade pessoal de cada adolescente, pois autonomia e independência financeira, atributos positivos conquistados pelo fato de ser trabalhador, são incorporados a essa identidade.

A fase da qual saíram é descrita como um período no qual não havia responsabilidades e que era prazeroso principalmente pelo aspecto lúdico de várias atividades, como as "brincadeiras" com os pares. Por outro lado, o fato de se descreverem como não sendo mais "moleques", mas que estão se tornando "homens", confere a eles autoridade para poderem emitir opiniões e tomarem decisões com certa autonomia em relação aos pais.

Mesmo que relacionem o início de atividades remuneradas a uma decisão individual, a influência da família para que comecem a trabalhar está freqüentemente presente, mesmo que seja de modo indireto. De fato, os pais incentivam os filhos a procurarem trabalho para que não fiquem "na rua", ociosos, sujeitos a influências indesejáveis. A família ainda pode intermediar o ingresso no mercado de trabalho, ao acionar a rede de conhecidos para conseguir uma atividade para os filhos. Mesmo sem interferência direta no início de suas atividades profissionais, a simples opinião da família favorável ao início do trabalho é tida como importante e motivadora pelos adolescentes.

Ao serem questionados sobre o uso que fazem de seus rendimentos, os entrevistados fazem questão de mencionar que a contribuição financeira para o orçamento doméstico resulta de decisão própria. Essa argumentação é utilizada para explicitar que a situação da família não é de grande pobreza e também tem o propósito de indicar que os pais não os obrigam a trabalhar e a ceder o rendimento obtido com o trabalho para as despesas domésticas. Procuram, assim, mostrar que o trabalho que exercem é fruto de decisão individual da qual se orgulham e que os dota de certa "maioridade social", claramente derivada da aquisição da identidade social de trabalhador.

A nova fase em que adentram faz com que avaliem como negativas certas condutas da época em que não tinham responsabilidade com o trabalho, quando uma de suas identidades sociais era a de "moleque". Assim, a participação em algumas brincadeiras, como empinar pipas, ou jogar futebol tende a ser avaliada de forma negativa. Há, desse modo, um esforço para estabelecerem o contraste entre a identidade de moleque e a de trabalhador.

Entretanto, o esforço para se diferenciarem dos "moleques", através da incorporação de outra identidade que os separa daqueles e os auto-identifica como trabalhadores, não promove um efetivo ingresso na idade adulta. Mesmo que contribuam para o orçamento de suas famílias com seus rendimentos, e que essa ajuda seja bem-vinda, os entrevistados admitem que suas contribuições não são imprescindíveis. Para eles, o desemprego de um "homem" que já tem família pode ser incomparavelmente mais grave do que se perdessem seus empregos. Desse modo, a responsabilidade que possuem e que os diferencia contrastivamente dos "moleques" não é, ainda, a mesma dos "homens".

Mesmo sendo apontado como afetuoso, o relacionamento com a família, principalmente com a mãe, é descrito como sendo reduzido, ocorrendo com mais intensidade durante os finais de semana. O pouco tempo de permanência com os familiares resulta do desejo de manterem outras formas de sociabilidade, como a de se encontrarem com os pares e com as namoradas. Esse desejo de partilhar a convivência com diferentes pessoas é dificultado pelo escasso tempo de que dispõem, pois quase todos trabalham em período integral, o que faz com que saiam de manhã para o trabalho, de onde seguem diretamente para a escola, voltando para casa apenas à noite.

Essa jornada prolongada é a principal queixa que os entrevistados mencionam sobre a necessidade de conciliarem as atividades de trabalho com a freqüência à escola. Eles não consideram o trabalho em si como elemento prejudicial para o desempenho acadêmico, mas lamentam a quantidade de horas dedicadas à atividade profissional que provoca exaustão no fim fim do dia, quando freqüentam a escola e onde devem concentra-se nas aulas. O fato de não considerarem a ocupação como entrave para melhor aproveitamento escolar pode estar relacionado com a valorização do status de trabalhador.

Por outro lado, acreditam que não é necessário dispensar grandes esforços durante as atividades escolares. Apesar disso, declaram que a escola é importante e que devem freqüentá-la, justificando essa avaliação em função das regras do mercado de trabalho que exige ensino médio completo para que possam ter acesso a melhores empregos. Do mesmo modo, os planos que elaboram para o futuro incluem a escola de modo difuso e pouco claro para eles mesmos. Esses planos configuram-se no desejo de fazer "cursos" depois de concluído o ensino médio. Porém, o aprendizado adquirido no trabalho é por vezes apreendido como experiência bastante importante, como um trunfo para se conquistar postos de trabalho melhor remunerados.

Mesmo que não tenham com a escola o mesmo envolvimento que têm com o trabalho, os adolescentes declaram que têm responsabilidades com as tarefas escolares. Os deveres com a escola incluem dedicação aos estudos e mesmo aqueles que não têm bom desempenho acadêmico afirmam que se comportam de modo adequado durante as aulas, respeitando os professores e evitando conversar e brincar para não atrapalhar os demais alunos. Tal postura os diferencia dos bagunceiros, que fazem "brincadeiras" e prejudicam os estudos dos colegas. Na busca por uma identidade adulta, o contato com aqueles que têm comportamento de "moleque" tende a ser evitado. Mas isso também se deve ao fato de que no grupo dos bagunceiros são incluídos supostos usuários de drogas e delinqüentes. Há uma preocupação, que extravasa os muros da escola, de evitar o contato com pares que apresentem comportamentos marginais, tais como consumo de drogas, ociosidade e prática de delitos. Como o contato é de certo modo inevitável, dado que os espaços onde circulam tendem a coincidir, a proximidade máxima que os adolescentes se permitem é o da polidez, dos cumprimentos cordiais. Isso é justificado na fala dos sujeitos pela segurança que a distância mantida com os integrantes de outros grupos proporciona, evitando brigas e problemas com a polícia.

Desse modo, os adolescentes procuram manter limites sociais e simbólicos com aqueles que podem comprometer a concretização de sua identidade de trabalhador e aproximam-se do grupo de pares com os quais se identificam, o que também indica a importância desses grupos no construção das identidades.

 

Considerações finais

Os ritos de passagem demarcam a separação de um indivíduo de um segmento da sociedade para sua agregação em outro. Os ritos constituem uma instância liminar entre esses dois segmentos e na fase de transição há poucos direcionamentos culturais que possam estabelecer identidades e orientar condutas. Desse modo, os indivíduos que se encontram nessa zona liminar, podem vivenciar certa invisibilidade social pois, nesse momento, não possuem identidade que lhes proporcione um corpo socialmente visível (Van Gennep, 1978; Turner, 1967). É o que, em parte, ocorre com os adolescentes que, embora se auto-identificando como trabalhadores, ainda não se sentem adultos, e tampouco são identificados como tais pelos pais e por outros adultos. Os projetos de futuro são organizados de modo nebuloso e vago e sua concretização é situada em um tempo distante. Isso se refere tanto à esfera profissional quanto à pessoal e afetiva. Novamente, a condição limítrofe na qual os adolescentes se encontram, entre o "moleque" e o "homem" está presente na construção de seus projetos. Expressam o desejo de desempenhar uma atividade que lhes ofereça maiores rendimentos a fim de que possam adquirir bens, dentre os quais moto ou carro constituem os itens mais desejados, e casar-se e constituir uma família, mas sua realização ainda é vista como algo distante.

O próprio ingresso no mercado de trabalho tende a ocorrer de modo liminar. Considerando a divisão entre as esferas pública e privada, ou entre a "rua" e a "casa", normalmente se atribui o trabalho remunerado à esfera pública da "rua" (DaMatta, 1985). No entanto, o ingresso no mercado de trabalho de grande parte desses adolescentes se deu mediante contatos pessoais, ou seja, da esfera privada da "casa" (Romanelli, 2000). Isso ocorre devido à própria estrutura da sociedade brasileira, na qual os indivíduos, ao se verem desamparados pela impessoalidade da esfera pública da "rua", lançam mão dos contatos de que dispõem a partir da esfera privada da "casa" a fim de poderem ter acesso a direitos, dentre os quais, o direito ao trabalho (DaMatta, 1985). Por outro lado, pode constituir-se também em uma expressão da condição limítrofe vivida por esses adolescentes.

 

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Pesquisa realizada com apoio da FAPESP.