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An. 1 Simp. Internacional do Adolescente May. 2005

 

Notas sobre a transmissão geracional da predisposição à violência contra a mulher1

 

 

Anabel Sanchez

Núcleo de Estudos, Pesquisas e Extensão sobre Situações de Violência e Políticas Alternativas. Unesp/FCL/CAr. Departamento de Sociologia

 

 

Introdução

As ciências humanas ganharam, a partir da década de 70, um novo impulso teórico com o surgimento do movimento feminista. Ele aparece, em um primeiro momento, como um movimento de reivindicação de direitos de igualdade entre os sexos. Logo, por vocação, deixa claro que sua vocação é a de contestação ao patriarcado. Potencializou o questionamento e o estudo da construção social das relações de gênero e da ideologia que contribui para o estabelecimento de normas e padrões de condutas.

Se falarmos em "construção social", é porque estamos certos dos indícios sobre a historicidade do fenômeno, tanto quanto da participação dos agentes sociais em sua sustentação. Já há algum tempo que cientistas trabalham com a hipótese de que o modelo de sociedade ao qual estamos "acostumados" possui contra-exemplos.

Baseada em resultados de pesquisas paleontológicas e arqueológicas, Lerner sugere que, nas sociedades de caça e coleta, embora as mulheres não fossem detentoras de mais poder que os homens, eram consideradas seres poderosos, fortes, verdadeiros seres mágicos, em virtude da sua capacidade de conceber e dar à luz. Nos primórdios da divisão social do trabalho, a distribuição de tarefas específicas entre os sexos começa a criar as condições para a inversão desse quadro. Ao homem, cabia a responsabilidade de caça, e à mulher, a coleta. Como a caça não proporcionava sempre uma boa recompensa, como a coleta permitia às mulheres voltarem para sua comunidade com raízes, folhas e frutos, sobrava aos homens tempo livre, imprescindível e aproveitável para a criação de sistemas simbólicos com eficácia, inclusive, de produção de poderes relativos a uma supremacia sua frente ao sexo feminino (Lerner, 1986).

A produção dos seres humanos – biológica e social, passa, com o tempo, a dar-se em situação de excedente de produção econômica. Parte do conhecimento da participação masculina volta-se, inclusive no terreno simbólico, para a implementação de um regime de dominação-exploração das mulheres. Segundo Lerner, este processo foi extremamente lento devido à resistência das mulheres. Teria começado por volta de 3100 a.C., tendo se consolidado no ano 600 a. C. A partir de então, o patriarcado mantém-se como um traço de sustentação da subalternidade feminina por quase 250 mil anos (Lerner 1986).

A ideologia patriarcal possibilitou de tal maneira a interiorização da construção social do masculino e do feminino, que tornou natural a dominação-exploração (Saffioti, 2004). Como já adiantamos, só com o movimento feminista vemos lançadas as bases que irão, lentamente, desconstruir o sistema simbólico que sustenta a sociedade contemporânea, questionando a naturalização do papel da mulher e seu direito à cidadania. Contudo, esta desconstrução não é tão simples, já que até "as discussões feministas tendem a permanecer dentro dos debates patriarcais sobre o patriarcado" (idem).

É indiscutível a necessidade de caracterizar a construção social das relações de gênero no país. Os limites deste trabalho não possibilitam senão anunciar alguns de seus traços. Assim, Eros de Souza sugere que, aqui, os portugueses conquistaram terras e mulheres à força. Os homens portugueses mantiveram relações sexuais com as africanas e estabeleceram para elas dois papéis sociais: trabalhadoras e objetos sexuais. Quando as mulheres brancas aqui chegaram, lhes foi destinada a permanência na vivência do arquétipo de Maria – assexuadas, suas vidas restritas suas vidas deveriam manter-se nos limites da casa ou da igreja. Foram desenhadas como fracas, submissas, passivas e sem poder na área pública. (Souza, ) O folclorista brasileiro Alexandre José de Melo Moraes Filho ecoava o sentimento do modelo de Maria: "ser mãe, mulher e virgem – este é o objetivo da mulher, nada mais" (Hahner, 1990). Difícil deixar de dizer que este ainda é o ponto de vista social, cultural e legal que vigora na cultura brasileira. Todo o poder ao homem, sobretudo branco, não só contra a mulher, mas contra crianças, idosos, negros e índios.

Até 1995, os crimes cometidos contra a mulher eram julgados pelo código penal. Naquele ano entrou em vigor a Lei 9.099 que enquadrou a violência doméstica nos tipos penais passíveis de punição com até um ano de detenção (Saffioti, 2004 p. 63). Ainda que possa ser contada como um instrumento a mais na luta contra as agressões masculinas, seus efeitos não podem ser superestimados. Em primeiro lugar por que, que muitas vezes, a mulher se esquiva da denúncia. Em segundo lugar, por que a impunidade ainda persiste em larga escala. Depois, mesmo quando punido, o máximo que acontece ao homem é doação de uma cesta básica. Segundo a advogada, pesquisadora e consultora em gênero e direitos humanos, Valéria Pandjiarian, a lei permanece propensa a críticas2. Para Pandjiarian, há uma desconsideração da especificidade da violência doméstica. O termo "delito de menor gravidade" no âmbito doméstico e/ou intrafamiliar, tem o perigo de levar a uma idéia de banalização da violência doméstica. Para ela, parte dos casos abrangidos por essa lei são o de violência doméstica, e outra parte são os casos de acidente de trânsito. Dar o mesmo tratamento jurídico a um delito praticado por um estranho e àquele praticado por alguém de convivência da vítima, como é o caso de maridos e companheiros, significa sobremaneira banalizar a violência doméstica. No Brasil, ainda não há uma lei que assegure os direitos das mulheres, imperando a ordem masculina, tanto nos meios legais, quanto nos sociais, tornando a relação dominação-exploração, como algo cheio de significação negativa para a mulher.

 

O Conceito de Gênero

Se é verdade que a mulher, dentro do contexto social brasileiro, é vítima da violência de gênero, cabe aqui identificar os mecanismos sociais que proporcionam essa situação. O gênero é "um primeiro modo de dar significado às relações de poder" (Scott, 1990). Por conseguinte, permea as instâncias do simbólico, das normas de interpretação do significado dos diferentes símbolos, da política institucional, da política lato sensu e da identidade masculina ou feminina ao nível da subjetividade (Scott, 1990). Desta sorte, embora o gênero não se consubstancie em um ser específico por ser relacional, atravessa e constrói a identidade do homem e da mulher. Para Saffiotti (1994), a violência de gênero é um conceito mais amplo que o de violência contra a mulher, abrange não apenas as mulheres, mas também crianças e adolescentes objetos da violência masculina que, no Brasil, é constitutiva das relações de gênero. A violência de gênero, produz-se e reproduz-se nas relações de poder onde se entrelaçam as categorias de gênero, classe, raça/etnia. Expressa uma forma particular da violência global mediatizada pela ordem patriarcal que dá aos homens o direito de dominar e controlar suas mulheres, podendo para isso usar a violência. Scott (1994, 1995) recorre a noção de poder de Foucault (1981) como um poder não localizado nem instituído de forma fixa e absoluta, mas um poder in fluxo, que se organiza segundo o campo de forças. Desta forma, a mulher também é detentora de poder e se o poder se articula segundo o "campo de forças", e se homens e mulheres detêm parcelas de poder, embora de forma desigual, cada um lança mão de estratégias de poder, dominação e submissão. É verdade que a sociedade tolera o uso da violência masculina contra a mulher, mas não se pode dizer que ela é um comportamento próprio e restrito ao universo masculino3.

Se, portanto, a relação de gênero produz-se e reproduz-se nas relações de poder onde se entrelaçam as categorias de gênero, classe, raça/etnia, e se a sociedade na qual estamos inseridos segue a ideologia patriarcal, podemos dizer que as instituições sociais são regidas e comandadas pela lógica desta ideologia. Souza (2004 p.70-71), nos propõe uma leitura sobre o processo de construção do conhecimento de gênero. Pensar o gênero então como conhecimento construído na interação significa romper com a idéia de naturalização desse conceito. Os modelos seguidos por crianças, adolescentes e adultos não são naturais, nem inerentes a constituição biológica do homem e da mulher. Souza nos diz que, o cotidiano se insere na explicação dessa construção social e nele o gênero se forma. O seu conhecimento é construído pelas crianças a partir das experiências nas relações sociais ou no decorrer do processo de socialização (Souza, 2004 p.70-71). Desta forma a criança assimilaria do meio ao qual esta inserida a construção da realidade, que seria um processo de subjetivação da realidade objetiva. A socialização primária seria a fonte alimentadora inicial desta construção. Deste modo, o gênero (re) cria para a criança o lugar social que esta deve ocupar na sociedade a qual pertence segundo a ordem patriarcal que sua cultura determina.

Esta construção da realidade, acompanharia o indivíduo para o resto de sua vida, e seria recriado por se tratar de um processo de subjetivação. Homens e mulheres assumiriam seus papéis sociais de gênero, sem contudo terem conhecimento do fato. O gênero se tornou algo tão intrínseco ao comportamento humano, que é considerado normal ( e até mesmo permitido) a homens serem fortes, violentadores e a mulheres serem fracas, violentadas; as crianças e adolescentes serem vítimas de agressões físicas perpetradas por seus pais. Esta lógica esta na ordem "natural" das coisas: mulheres, negros, crianças e idosos encontram-se na base da hierarquia social4, e devem portanto, obediência aqueles que estão acima.

A família aparece nas ciências humanas, como um dos mecanismos modernos utilizados para a reprodução da ideologia patriarcal entre seus membros. Segundo Bruschini (2000, p.52 ), a constituição do modelo familiar ao qual estamos acostumados, teve início por volta do século XVII, com a ascensão da burguesia. As famílias passariam a se isolar cada vez mais no interior das casas e a responsabilidade da educação das crianças ficaria toda sob a responsabilidade dos pais. A mulher então passaria a desempenhar papéis sociais de natureza "expressiva", voltados principalmente para os assuntos internos da família. Caberia à mulher ser esposa, dona-de-casa e sobretudo mãe (Bruschini, 2000 p.55). Isto reforça dois aspectos: primeiro, a família, de modelo patriarcal, se torna a responsável pela educação das crianças, que até então, eram vistas como seres adultos;5 em segundo, porque o papel social da mulher é reforçado com a responsabilidade da educação da criança, retirando do pai este papel. Uma boa mãe deve cuidar de sua casa e de seus filhos, enquanto o homem deve sair de casa para o sustento da família. Embora hoje a mulher tenha conquistado um pequeno espaço no mercado de trabalho6, ainda é de sua total responsabilidade a educação dos filhos, e se houver alguma falha, esta é da mãe7.

Antes mesmo da escola, é no próprio lar que a criança começa a manter os primeiros contatos com o mundo exterior e onde esta construção da realidade se inicia. Os pais são seu ponto de referência, e são eles que lhes irão transmitir a primeira impressão do mundo ao qual estão inseridos. Na criança essa construção acontece durante as atividades de imitação, e os primeiros a serem imitados são os próprios pais (Souza, 2004 p. 71). Não que pais violentos gerem filhos violentos, ou que pais inteligentes gerem filhos inteligentes, e assim por diante. O que sugerimos é que os comportamentos sociais apreendidos por crianças são orientados pela inserção do sujeito em relações cujo modelo a ser assimilado é resignificado elaborando modelos organizadores do pensamento que podem ser orientadoras dos comportamentos das pessoas. Assim, as representações construídas dessa realidade orientam nossos julgamentos e pautas de conduta (Souza, 2004 p.71). Estes por sua vez, orientarão comportamentos para o resto da vidas, ditarão condutas sociais a serem seguidas e pautadas com modelos.

 

Violência de Gênero: Produção e Reprodução

A cultura oferece assim os limites para a construção de gênero. Ela constrói discursos específicos de masculinidade – ideologias masculinas. Elas estão nas falas cotidianas, nas mídias, na música, na literatura e na lei (Foucault, 1978). No caso do Brasil, em particular, o que se observa é que os papéis de gênero condizem com uma cultura machista – muitos a descrevem como indiferença à família, distanciamento dos filhos, resistência às adversidades, assédio sexual, disposição a beber muito, agressividade contra outros homens e dominação em relação às mulheres – e o modelo de Maria – a mulher mártir que se auto-sacrifica, que é submissa aos homens e que é uma boa mãe e esposa (Eros DeSouza) A relação de gênero reforçada pela cultura do machismo, dita as regras para a sociedade. Socialmente construído, o gênero corporifica a sexualidade (não o inverso), que é exercida como uma forma de poder e que, assim como raça/etnia e classe social, é instituinte das relações sociais, já que regulam as relações homem-mulher, homem-homem, e mulher-mulher (Saffioti ).

Segundo o modelo de Maria, a mulher não foi feita para trabalhar e ter uma independência econômica em relação ao homem. Do ponto de vista da cultura machista , a personalidade ideal da mãe opõe-se vigorosamente à personalidade ideal da prostituta. Quando falamos que os padrões sociais são aprendidos pela criança dentro de seus próprios lares, em sua família, dizemos que a construção da realidade social da criança durante o processo de subjetivação, é de certa forma permeada pela maneira de pensar o mundo de seus pais. Como o gênero se tornou intrínseco ao pensamento social, definindo os papéis sociais de homens e mulheres, podemos dizer que os pais transmitem para os filhos os comportamentos sociais concomitantes com a ideologia do patriarcado, ou seja, com a dominação-exploração.

Ciro Marcondes Filho, sugere uma cultura da violência, à medida que a cultura, como habitus8, incorpora as práticas de violência. O que tornaria cada uma dessas formas cultura é o fato de realizarem a dupla definição de Rousseau9, de serem algo consciente ou inconscientemente cultivado dentro de uma certa comunidade (real ou difusa), e as pessoas serem "educadas" segundo esse procedimento (Marcondes Filho). Seria certo, então, afirmamos que existe uma cultura da violência de gênero, perpetrada contra as mulheres em sua essência, e que faz parte do processo educacional, seja ele escolar ou não.

Trata-se, desde o início, de "ensinar" às mulheres a serem fortes, donas de casa, mães e mulheres, capazes de aturarem seus maridos, pais ou amantes violentos, pois assim deve ser. Como nos disse Souza, a reprodução da ideologia de gênero leva à perpetuação de práticas de violência baseada na crença da desigualdade entre homens e mulheres (2004, p. 78 ). Desigualdade que afirma a relação de dominação do homem sobre a mulher e sua superioridade em relação a ela (Souza, 2004). E que explica as diferenças sociais internas às classes. Senão, como explicar as diferenças nos indicadores de empregabilidade e o grau de instrução baixo que são oferecidos às mulheres, em comparação aos homens10.

Associados à violência de gênero, encontramos outros dois "tipos" de violência: a violência familiar, e/ou intrafamiliar e a violência doméstica. Para Saffioti (2004, p.71), a violência familiar pode ocorrer no interior do domicílio, ou fora dele, embora seja mais freqüente o primeiro caso. A violência intrafamiliar, extrapola os limites do domicílio11. A violência doméstica apresenta pontos de sobreposição com a familiar12. A violência doméstica é portanto masculina, mesmo que perpetrada pela mulher, que é exercida por delegação do chefe familiar. Dentro desta lógica as crianças seriam os indivíduos em que se perpetuaria toda a sorte de violência exatamente por estarem abaixo da hierarquia social de gênero, se assim podemos dizer: de gênero, contra a mulher, doméstica, familiar e intrafamiliar, de pais contra filhos, do poder público, etc. É a chamada síndrome do pequeno poder, no qual o adulto possuidor de pequenas parcelas de poder vitimiza a criança que tem menos poder que ele. E mais: por trás deste conjunto de "violências", é para as crianças que a ideologia patriarcal irá arquitetar a construção da realidade e o papel social que cada um deve desempenhar dentro desta lógica de dominação-exploração, mostrando-lhes a maneira como devem reagir frente as situações sociais que lhe serão impostas durante a vida, já na adolescência ou na fase adulta.

A partir dessas classificações, Azevedo e Guerra (1997) classificam a violência doméstica ou intrafamiliar como vitimização e descrevem sua manifestação em três tipos básicos: abuso vitimização-física (incluem aí a negligência), psicológica e sexual. A violência psicológica é, pois, a classe de violência que acontece mais freqüentemente, estando muito presente na vida das mulheres e das crianças (incluindo o menino). Muitas vezes, este tipo de violência, acompanha os outros dois. Marcondes Filho, afirma que uma violência só se realiza quando repercute psicologicamente no campo do arbítrio, provocando mal-estar que pode ser transformado em atitude reativa, em contenção angustiada ou neurótica ou resignação13. Ou seja, palavras e ações podem doer muito mais do que um tapa. Assim sendo, a violência psicológica se torna a mais difícil de detectar, sendo contudo, a que mais perdurará com o indivíduo, e que irá determinar em muito, a maneira como este irá lidar com o mundo circundante (a violência física e sexual pode deixar marcas, a psicológica não deixa, e por isso é a mais difícil de se visualizar).

Araújo, ao realizar um trabalho sobre o abuso sexual contra crianças, nos diz que mulheres que sofreram abuso sexual na infância, tornam-se mais vulneráveis para estabelecer relações com homens abusivos e, consequentemente, mostram-se menos capazes de proteger suas próprias filhas do abuso sexual. A repetição do abuso sexual com suas filhas é estatisticamente significativa (Fuks, 1998; Hirigoyen, 2000; Soares, 1999). Essa repetição se observa também na história de vida de homens abusadores (Miller, 1994; Islas, 2000; Kaufman Jr., 1994 e Gramm, 1997), muito freqüentemente eles foram vítimas de abuso na infância. Ela nos coloca que, apesar da incidência da repetição ser um fator muito presente na história de vida de homens e mulheres que sofreram abuso sexual na infância, não há um determinismo linear envolvendo esses fatos. São muitos os processos de subjetivação produzidos no percurso de elaboração dessas experiências. (Araújo, Violência e Abuso Sexual na Família).

Partindo desse pressuposto, a violência deixa marcas que podem ou não se repetir na vida do indivíduo, e, embora cada um possa interiorizá-la de forma diferenciada, não podemos deixar de observar que um tipo de violência específico não deixa de se reproduzir, não se interrompe: a violência de gênero. Alguns autores nos colocam que não há uma comprovação teórica de que um indivíduo que vive num ambiente de tensão venha a reproduzir a violência em sua maneira de conduzir a vida. Se acreditarmos porém que não há um processo de interiorização que assegure a reprodução da violência, poderíamos dizer então que a violência de gênero estaria próxima de sua extinção, ou nunca haveria existido, pois ela não se reproduziria mais, até a sua total extinção. Porém, observamos que não é isto o que ocorre, e que muitas vezes, não se reproduz a violência a qual poderemos chamar de visível (como agressões, a sexual), mas se reproduz muitas vezes a psicológica e a social. Esta encontra força dentro do lar, entre meninos e meninas ainda, e orienta a vida da mulher e do homem para o resto de suas vidas.

No caso das crianças, a mãe ainda é o exemplo a ser seguido. Para a menina, a vida deve se orientar a partir do que a mãe é: mãe, dona-de-casa e mulher e é ela quem ajuda a mãe nos afazeres domésticos, que brinca de casinha e de boneca, que tem que tirar boas notas no colégio, que tem que ser amiga, fiel, comportada; ao menino, cabe seguir o modelo do pai, que pode estar ausente de sua educação, mas que se torna presente nos próprios discursos da mãe: ele deve brincar de bola, carrinho ou pipa, ele deve gostar de futebol, basquete, e não de dança ou de cozinhar, ele até deve tirar boas notas na escola, mas é compreensível que ele seja um mal aluno, na hora da faxina, ele sai com o pai para dar uma volta porque ele atrapalha, é ele que deve ser viril, que não pode chorar, que tem que "comer"as menininhas por aí, que deve iniciar a sexualidade cedo (muito cedo), e por aí vai. Como a realidade objetiva é apreendida no processo de subjetivação, tais situações dizem para meninos e meninas que o homem deve seguir o homem, e a mulher seguir a mulher. Por isso, a mãe pode transmitir para sua filha e para seu filho também, o papel que ambos devem desempenhar na sociedade, e isto se relaciona também com o que entendemos por exploração e dominação, e dentro da exploração e dominação, a violência domestica, familiar e intrafamliar.

 

 

1 Apresentado originalmente no Iº Simpósio Internacional do Adolescente – Adolescência hoje: desafio, práticas e políticas, no dia 04 de maio de 2005, na Mesa Livre Experiências em situações de violência e projetos de vida, na Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo. É parte de uma pesquisa em andamento sobre a transmissão geracional da violência. Agradeço ao Professor José dos Reis Santos Filho pelas discussões mantidas em torno do texto.
2 Quando da sua elaboração, a lei 9099/95, foi criada com o objetivo maior de desafogar os sistemas carcerário e judiciário, à época, e ainda hoje sobrecarregados com uma demanda muito superior às suas possibilidades de atendimento. Para tanto, optou-se privilegiar a utilização de um procedimento simples e célere e a aplicação de penas com caráter mais social e menos punitivo (penas alternativas)3 ... A lei estabelece, ainda a possibilidade de ser adotado, para determinados crimes, um procedimento muito importante, que afeta diretamente os casos de violência doméstica. Trata-se da suspensão condicional do processo3. Nos crimes em que a pena mínima prevista em lei for igual ou inferior a um ano, o Ministério Público ao oferecer a denúncia, poderá propor a suspensão do processo3, por dois a quatro anos (chamado o período de prova), desde que o acusado não esteja sendo processado ou não tenha sido condenado por outro crime, presentes os demais requisitos que autorizariam a suspensão condicional da pena (art. 77 do Código Penal)" (Pandjiarian, )
3 As mulheres também fazem uso da violência, em parcela bem menor. Porém, ao ocuparem o lugar de poder e dominação, algumas mulheres reproduzem comportamentos e relações abusivas muito semelhantes aos dos homens. (Araujo, 2004 p. 49-50). Ao justificarem a agressão praticada contra seus companheiros, a grande maioria das mulheres queixa-se de terem sofrido violência por parte do companheiro4.
4 As pessoas mais poderosas são aquelas situadas no topo, homens brancos, ricos e adultos; em segundo e terceiro lugares vem os homens negros e adultos, ou mulheres brancas, economicamente remediadas e adultas; em quarto lugar vem as mulheres negras, pobres, geralmente e adultas; em quinto vem os menores de idade que devem obedecer os adultos. Dentre estes há ainda uma outra hierarquia: os meninos dominam as meninas (Saffioti, 1997)
5 Renato Janine Ribeiro afirma que não existe um objeto dado, naturalmente chamado “a criança”, mas a produção desta como efeito de relações históricas e sociais. Dessa forma, não poderíamos falar de uma descoberta da “Infância”, mas de uma invenção dela, da emergência de instituições de leis e de saberes que a constituem, a cercam e a tomam como objeto de conhecimento e intervenção, ao mesmo tempo em que a produzem enquanto uma maneira específica de subjetividade (uma subjetividade infantilizada, frágil e tutelada por especialistas. (1997, p. 101)
6 A mulher conseguiu espaço de trabalho, mas não igualdade de direitos. Segundo a Fundação Estadual de Sistemas de Análises de Dados (SP), apenas 1.5% das famílias chefiadas por mulheres, tem uma posição semelhante economicamente, e não igual, ao das famílias chefiadas por homens brancos.
7 Atendemos um caso em nossa entidade, de uma mãe depressiva, pelo fato do filho ser um delinqüente: era a segunda vez que era preso por assalto a mão armada. Seu marido, a culpabilizou pelo fato da separação do casal e a guarda ter ficado com a mãe. Porém, ao fazer um levantamento da história de vida desta mulher, ela havia sido vítima de violência doméstica, e optara por não mais conviver com o marido violento. Antes mesmo da separação, o menino já estava envolvido com o consumo de drogas.
8 Pierre Bourdieu distingue o habitus do campo social e do capital simbólico. No primeiro se constitui a cultura do indivíduo, formada pela escola e pelo campo social em que vive: lá se constituem os gostos e os diferentes estilos de vida. No campo social identifica-se a presença de “mercados” e diferentes formas de “capital”, como o econômico, o corporal, cultural, o escolar, o social, o simbólico. É dentro do capital simbólico que as relações arbitrárias se tornam relações legitimadas.
9 “Dá-se uma forma às plantas pela cultura, aos homens pela educação” (Rousseau, 1999).
10 O Grau de violência sofrido pelas mulheres, também está relacionado à sua cor. Assim, haveria uma espécie de “hierarquia da violência”, onde a que menos sofreria seria a mulher branca, seguida pela mulher negra e em seguida, pela menina branca e por último a menina negra (Kupstas, p.43).
11 Um avô, cujo domicílio é separado de seu(sua) neto(a), pode cometer violência em nome da sagrada família, contra este(a) pequeno(a) parente(a).
12 A violência doméstica atinge também pessoas que, não pertencendo à família, vivem parcial ou integralmente no domicílio do agressor, como é o caso de agregados(as) e empregados(das) domésticos. Estabelecido o domínio de um território, o chefe, via de regra um homem, passa a reinar quase incondicionalmente sobre seus demais ocupantes. O processo de territorialização do domínio não é puramente geográfico, mas também simbólico (Saffioti, 1997 a)
13 A psicanálise clássica não dá nenhuma atenção especial ao fenômeno da violência. O mais próximo que existe é a agressividade, que é naturalmente algo muito distinto da violência: “Tendência ou conjunto de tendências que se atualizam em comportamentos reais ou fantasmáticos, estes visando prejudicar alguém, destruí-lo, constrangê-lo, humilhá-lo, etc.” (Laplanche e Pontalis, 1983, p. 37). Porém, enquanto a agressividade é um dado da espécie, associado à natureza, a violência é tida como um fato cultural, : ela é tanto mais chocante quando mais agride valores morais e éticos sancionados na cultura. Aliás, é nisso que reside sua lógica: violento é o que se impõe impunemente tirando a possibilidade de contra-reagir.