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An. 1 Simp. Internacional do Adolescente May. 2005

 

Notas sobre a socialização e a formação do homo violentus1

 

 

José dos Reis Santos Filho

Núcleo de Estudos, Pesquisas e Extensão sobre Situações de Violência e Políticas Alternativas – NUEVA. Unesp/FCL/Car. Departamento de Sociologia. reis@fclar.com.br

 

 

Temos consciência de o quanto a cidadania depende da realização de direitos já claramente estabelecidos por padrões normativos reconhecidos internacional e nacionalmente. Queremos sugerir aqui que esse quadro que inspira respeito à cidadania, é obstaculizado quotidianamente por atos de violência que, de tão freqüentes, chegam a parecer normais, algo naturalmente pertencente à vida dos homens. De fato, se existe uma atitude que justifique o empreendimento aqui tornado público, ela reivindica a superação daqueles acontecimentos como condição de possibilidade para o exercício pleno dos direitos de cidadania. É uma atitude que obriga, como primeiro passo, que entendamos o mais profundamente possível o que significa violência. Frente a essa tarefa, de nossa parte, dando prosseguimento ao investimento coletivo da equipe do Núcleo de Estudos sobre Situações de Violência e Políticas Alternativas – NUEVA, interessa levantar algumas hipóteses sobre o papel da socialização marcada por situações de violência na formação do homo violentus.

 

O problema

Ao buscarmos o significado de violência, não estamos formulando, portanto, uma pergunta retórica. É uma pergunta que parte de uma compreensão dificílima do vocábulo. Reparemos que, à primeira vista, parece não ser complicado nomearmos certos fatos como violência.2 É imediata a nossa compreensão do assassinato, da tortura, das guerras, da opressão, da criminalidade, do terrorismo, como sinônimos de violência. Na verdade, os eventos em condições de serem reconhecidos como violência são assimilados com facilidade. Tanto mais que o indivíduo está imerso, hoje, em um cotidiano carregado de sinais compreendidos como violência. Como reconheceu Costa, seguindo Daniel, o indivíduo se confronta hoje com a violência em sua relação com o mundo das coisas, com o mundo das pessoas, com seu corpo e sua mente: violência no trabalho, violência no trânsito, violência da escola e da cultura; violência das discriminações; violência nos esportes; violência nos serviços de saúde; violência policial; violência contra o patrimônio. (Costa, 1986, p. 9)

Na contramão desse diagnóstico, é sintomática uma enorme dificuldade na caracterização conceptual da violência. Questão de pesquisa, as aproximações à sua definição devem verificar primeiramente o que o senso comum oferece a respeito do tema. É um procedimento que, na tradição que vai de Bacon a Durkheim e permanece vigente até hoje, ajuda na crítica aos ídolos, a compreensões vigentes no conhecimento vulgar, sem que percamos de vista a ancoragem necessária de uma generalização com intencionalidade científica em uma ordem empírica que lhe deu sustentação primordial. Consultado um dicionário, a palavra enfrenta os impasses característicos das expressões polissêmicas. Assim, do latim violentia, é violência, de acordo com o Dicionário Globo:

qualidade do que é violento; abuso de força; tirania; opressão; veemência; ação violenta; coação; coação física ou moral;

Tomada uma enciclopédia de prestígio, entrando em um terreno mais qualificado do senso comum, apesar de uma formulação mais sofisticada, não parece ser possível observar modificações mais substantivas. De fato, segundo a Larousse, violência pode ser caracterizada como:

qualidade ou caráter de violento; ação violenta; ato ou efeito de violentar. constrangimento físico ou moral exercido sobre a vontade de alguém para obrigá-lo a consentir ou a submeter-se à vontade de outrém; qualquer força material ou moral empregada contra a vontade ou a liberdade de uma pessoa; coação; emprego da força para superar a resistência de uma pessoa ou coisa.

Deixado de lado um tratamento dessas definições no terreno da lógica, uma discussão que considerasse, inclusive, os aspectos tautológicos aí presentes, o que se observa são abordagens descritivas que, não poucas vezes, transformam planos de aparição em predicados da natureza do fenômeno. São conteúdos encontrados também em trabalhos que buscam ultrapassar o patamar dos registros imediatos. Podemos listar, entre outros, por exemplo, textos de revistas, jornais e, mesmo, publicações de organizações não governamentais e artigos técnicos sobre o assunto. Não é difícil encontrarmos ali classificações com efetivo e primordial poder de denúncia. Mas elas permitem, principalmente, que avancemos no delineamento de traços recorrentes na caracterização da violência3. Assim, "violência":

 

Situações de violência e ordenamento jurídico

É evidente, nos usos do termo, uma indeterminação – ou talvez, um conflito de determinações quanto a seu conteúdo conceitual. Nada estarrecedor, considerado o enfrentamento recente do tema e o fato de remeterem a acontecimentos cujas naturezas parecem ser essencialmente diferenciadas. Não por acaso, portanto, a busca em torno de uma definição de violência com satisfatório estatuto teórico é carregada de dificuldades materializadas na transformação de coisas em realidades antropomórficas, de instrumentos em potências cujos poderes se tornam autônomos em relação aos sujeitos sociais. Não fossem suficientes quaisquer outros motivos, essa indeterminação torna fundamental o reconhecimento de um problema cujas fronteiras chegam à própria universidade. É, na verdade, um problema admitido por não poucos autores. Parafraseando Michaud, nossa questão é, em grande parte, saber como podemos passar daqueles "fatos disparatados", dessas percepções decorrentes de um esforço classificatório da empiria, para uma definição que revele conceitualmente a violência.

O caminho utilizado por Michaud para responder a essa pergunta é conhecido e passa pela localização das representações já formalizadas sobre o assunto pela história das idéias no mundo ocidental. Seu ponto de chegada é uma caracterização que elude a pergunta em torno de o que é a violência. Em concreto, consciente ou, é mais provável, inconscientemente, ele evita uma resposta direta a essa questão. Insinua um caminho cuja ênfase julgamos ser a fixação da situação que permitiria a qualificação de um acontecimento como violência. Assim:

há violência quando, numa situação de interação, um ou vários atores agem de maneira direta ou indireta, maciça ou esparsa, causando danos a uma ou várias pessoas em graus variáveis, seja em sua integridade física, seja em sua integridade moral, em suas posses, ou em suas participações simbólicas e culturais. (Michaud, 1989, p. 10 – 11)

Trata-se de um caminho que permite o estabelecimento de uma base inicial para o tratamento do tema, já que pode assumir um claro significado heurístico. Com um papel de referência qualificada, ela importa como horizonte para as discussões que estabeleceremos. É algo que possui uma certa dose de arbítrio. Justifica-se em um empreendimento como esse: em primeiro lugar, porque não se afasta muito de um quadro empírico que o informa4; depois, porque pode vir acompanhada, como veremos, de um tratamento teórico que a sustente e a ponha em movimento.

Mas precisamos enfrentar criticamente a definição de Michaud, e torná-la ainda mais acurada. Notemos, em primeiro lugar, que a situação de violência é sempre permeada por um conjunto de regras jurídicas que indica campos de direitos e obrigações, assim como dá nomes a agentes que podem ser interpelados, direta ou indiretamente, como mediadores nas relações ali engendradas. Na verdade, há todo um quadro institucional que indica pelo menos: a) o universo de possibilidades de uso de direitos e respeito por obrigações; b) o leque de atos legítimos ou ilegítimos através dos quais esse universo pode tornar-se acessível ou ser mantido; c) as sanções a serem adotadas frente às diferentes ações que podem ser traduzidas como não adequadas ao campo das normas; d) o conjunto de personagens e agências com vocação e jurisdição sobre a situação.

São, todos, em um quadro de compreensão das normas que permeiam uma situação de violência, seus elementos constitutivos. Mas, se nosso interesse é ir além dessa caracterização e buscar apreender ainda outro conteúdo profundo ali presente, convém destacar também o papel do imaginário social na instituição e no desenvolvimento daquela relação social.

 

Situações de violência e universo simbólico imaginário

Normalmente, falamos do imaginário quando remetemos a alguma coisa inventada5. Não importa se se trata de uma invenção em termos absolutos ou de um deslocamento de sentidos. De acordo com Castoriadis, nos dois casos, é evidente que o imaginário se separa do real. Ele pode pretender ou não colocar-se em seu lugar. A mentira, um exemplo quase que auto evidente, pretende. O romance, uma forma literária, não. (Castoriadis, 1982, 154 - 156) Qualquer que seja, no entanto, o resultado da controvérsia sobre a intencionalidade da representação imaginária, o que nos interessa aqui é seu poder de "substituição" da realidade.

Se a hipótese é correta, cada uma das expressões veiculadas em relações sociais conflituosas remete a uma "invenção" da realidade. É uma invenção que deve ser encarada com cuidado, já que seu estatuto ontológico torna-se o da realidade como tal. De fato, as pessoas vivem emocional, psicológica e socialmente o imaginário como referência de/da realidade. Um acontecimento como o "flagrar" um ex-namorada "ficando" em uma festa torna-se o que a imaginação emocionalmente informada do adolescente desenha que ele seja. E a condição de possibilidade desse obrar é a preexistência de um universo imaginário socialmente construído que define, por exemplo, os sinais de honra e desonra. Um universo que, diga-se de passagem, se manifesta de modo muito singular através de formas simbólicas.

Instituído, mas não podendo surgir do nada; "substituto", mas realidade vivida pelas pessoas, o imaginário, como o formula Castoriadis, "deve utilizar o simbólico não apenas para "exprimir-se", o que é óbvio, mas para "existir", para passar de virtual a qualquer coisa mais". (1982, p. 155) A radicalidade da importância das formas simbólicas é manifesta por Castoriadis quando afirma que tudo o que se nos apresenta, no mundo sócio-histórico, está indissociavelmente entrelaçado com o simbólico. Não se esgota nele. Os atos reais, individuais ou coletivos – o trabalho, o consumo, a guerra, o amor, a natalidade – os inumeráveis produtos materiais sem os quais nenhuma sociedade poderia viver um só momento, não são (nem sempre, não diretamente) símbolos. Mas uns e outros são impossíveis fora de uma rede simbólica. (Castoriadis, 1982, p 157)6

Entre muitos outros sinais, lembremos, o universo simbólico imaginário designa comportamentos dando-lhes, inclusive, conotação de legitimidade.7 É possível, portanto, verificar, nas situações de violência, a incidência de um referencial interativo primário que, tanto quanto a norma jurídica, mas trabalhando inclusive em sua interpretação ou, mesmo, ocultamento, independe do próprio contexto. Na verdade, pode ser considerado um pressuposto seu, da mesma forma que o transcende, além de permitir, inclusive, não poucas vezes, estabelecer o ato de agressão como legítimo. Trata-se de um referencial interativo dado pela (pré) existência de uma cultura que, através de sua manifestação enquanto universo simbólico imaginário, sustenta e permeia a ação passível de caracterização como violência. É ele que nos permite falar sobre uma pré-ordenação do mundo vivido É por isso que ousamos estabelecer sua fundamentalidade para a caracterização das situações de violência. É por isso também que sugerimos eficácia para as representações que o constituem. No caso, elas funcionam como uma pré-condição de conhecimento e ação na situação apresentada. Está aqui a importância de estudos sobre fenômenos ideológicos como o machismo.

 

Situações de violência e socialização

Nos contextos que analisamos, o imperativo da lei é sempre um a priori com eficácia possível a posteriori. No acontecimento, o universo simbólico imaginário está sempre passando da virtualidade à objetivação. Independente mesmo das situações de violência, em qualquer hipótese, são componentes de nossa biografia a partir do momento em que, através de interações com os outros, tornamo-nos membros de um contexto cultural e social. É uma constatação que torna a questão da socialização um tópico a ser enfrentado em toda sua importância para o entendimento das situações de violência. De fato, se há aceitação de que "a socialização é o processo por meio do qual o indivíduo aprende a ser um membro da sociedade", se a consideramos "imposição de padrões sociais à conduta individual", ela é o momento e o espaço, diríamos nós, em que a reprodução da ordem normativa e do universo simbólico imaginário através da transmissão geracional coincide com a formação do próprio indivíduo8. Se isso é de uma importância extraordinária, vale lembrar, correndo o risco da redundância, que, na biografia do indivíduo a transmissão, "especialmente em sua fase inicial, constitui um fato que se reveste dum tremendo poder de constrição". (Berger & Luckmann, 1978, p. 123)

Em termos próprios à sociologia do conhecimento, estamos tratando da apropriação subjetiva de uma realidade socialmente objetivada. Em cada momento do processo de socialização o indivíduo internaliza aquelas facticidades que aparecem a ele como dadas do exterior. É um processo que não se esgota nele mesmo. Tendo internalizado essa realidade, tornando-a conteúdo de sua própria consciência, a externaliza enquanto continua a viver e atuar em sociedade. Berger e Luckmann traduzem esse processo reconhecendo a existência de uma similaridade teórica significante entre a dialética da psicologia social e a da sociologia do conhecimento, dialética através da qual a sociedade gera realidade psicológica e a dialética através da qual o indivíduo se engaja na construção do mundo. Ambas dialéticas concernem à relação entre realidades objetivas e subjetivas.9 (1978, p. 173 e segs.) Por outro lado, acompanhando essa discussão a partir de outro referencial, em termos de uma antropologia filosófica, a prática social à qual nos referimos é "um passo do objetivo ao objetivo através da interiorização". (Sartre, 1970, p.. 81). A interiorização supõe um processo de vivência da experiência do vivido, do vivenciado e do que está para ser vivido.

Até aqui, como vimos, sugerimos que o ato de conhecimento está imerso em condições de socialização de uma forma sui generis. Enquanto ato transformador situado em relações socializadoras, ele é possibilidade do ser e do atuar sociais do homem. É, além disso, concomitantemente, condição de individuação desse homem. O homem se individua ao ser socializado e se socializa ao se individuar. E o faz através de "experiências individuais incidentais", mas também através das "condições culturais específicas" em que vive. "As condições culturais não só dão peso e cor às experiências individuais, como, no final de contas, determinam sua forma particular".10 (Horney, p. 9 – 10) Não obstante o elemento de constrangimento inerente ao processo de socialização, independente de todos os efeitos já antevistos sobre o papel dessa relação que é de coerção, desde o ponto de vista sociológico, o indivíduo daí decorrente será considerado "normal". Sabemos das dificuldades provenientes do conceito do que é normal. Como já nos disse Horney, ele varia não só com a cultura, mas também dentro de uma mesma cultura, com o passar do tempo, nas diferentes classes da sociedade, segundo as diferenças de sexo e outras determinantes. (Idem, p.16 - 17) E isso significa dizer muito pouco. No limite, parafraseando Horney, isso significa apenas que ele não sofre mais do que o inevitável em sua cultura.

 

Situações de violência e direitos humanos

Certo, uma vez caracterizada a socialização em seus traços gerais, concluímos pela existência de um padrão de "normal" passível de ser atribuído à coerção, ao constrangimento próprio do processo de internalização do social/cultural no/pelo indivíduo. Precisamos reconhecer, no entanto, que, ao invés de termos chegado a um ponto satisfatório na reflexão, nossa posição ainda é de fragilidade. É um diagnóstico que pode ser resumido na pergunta: e se as situações de violência tornam-se padrão da textura social em que ocorre o ato de conhecer típico do processo de socialização? E pode ser desdobrado em duas ou três outras indagações: que significará, do ponto de vista do indivíduo em socialização, a predominância desse padrão no processo de interiorização? Que implicações terá, na construção da identidade? Mais ainda: que efeitos produzirá no nível mesmo da formação da personalidade daquele indivíduo?

Não são, certamente, perguntas que podem ser respondidas no espaço deste trabalho. Elas sinalizam, antes, nosso programa de pesquisas. Ainda assim, convém indicar alguns pontos que, além de fixar uma perspectiva de trabalho, qualificam ainda mais os problemas que estamos considerando em torno do processo de socialização.

Em primeiro lugar, reconhecemos adiante que a regra jurídica permeia as situações de violência como um a priori. Mostramos dúvidas, no entanto, quanto a sua eficácia instrumental. É um obstáculo real à eliminação das sociabilidades perversas. Mas o problema não é só esse. Há um outro ponto que impede a realização plena da lei como referência de prevenção de instauração das situações de violência. Nos referimos à idéia da relatividade da aplicabilidade da norma do direito. Falo com horror e chamo de violência o ato de cortar o clitóris de adolescentes em uma tribo africana, mas ainda classifico como pedagógico o bofetão em uma menina que se recusa a comer fígado à hora do jantar. A idéia de que uma das fontes do direito é o costume ainda dá lugar a códigos consuetudinários e práticas que neutralizam, inclusive, a norma positiva.

É imprescindível, portanto, a introdução de um elemento normativo capaz de situar claramente a diferença entre um ato de constrangimento ‘normal" em uma interação socializadora e o ato de violência em relação de socialização. Trata-se da necessidade de uma referência que deve sinalizar com força imperativa a priori o ponto de vista do que é aceitável pela humanidade. Dessa forma, qualquer investimento socializador deve, obedecendo a critérios que permeiam as fronteiras do direito e da ética, considerar como plataforma normativa os preceitos da Declaração Universal dos Direitos do Homem e suas complementações no terreno dos direitos da mulher, das crianças, dos idosos, contra o racismo, pelo meio ambiente. (Santos filho, 2003, p. 17)

Em segundo lugar, é difícil sustentar a possibilidade de formas neutras de conteúdos de socialização. As ideologias se reproduzem através do processo de socialização. Elas se manifestam através de formas simbólicas cuja significação serve para estabelecer e sustentar relações de dominação. (Thompson, 1998, p. 75 e sgs.) É o caso do machismo e do racismo, por exemplo. São casos em que as formas simbólicas se entrecruzam com relações de poder, em que seu sentido é mobilizado para reforçar pessoas e grupos que ocupam posições de poder.11

Aqui, se a normatividade emprestada à Declaração Universal dos Direitos do Homem apontam na identificação dos aspectos mais evidentes das formas simbólicas que criam sentido de manutenção de situações de violência, a começar pelos procedimentos em que estigmas são transformados em estereótipos, como mostra a condição da mulher negra adolescente, ela precisa estar acompanhada de uma crítica ideológica sem tréguas. Uma crítica cujo horizonte é a transformação dos direitos humanos como conteúdo da única ideologia cujas formas simbólicas de expressão não criem significações de dominação.

Em terceiro lugar, lembremos que Durkheim, um estudioso profundo dos meios através dos quais o social se impõe ao indivíduo, já disse, há muito tempo, que o homem tem necessidade de ser disciplinado pela sociedade. Mas compreendeu também que os traços que desenham a singularidade de cada indivíduo podem constituir o terreno que favorece a ação das condições sociais adversas. (Durkheim, ) É uma observação que impede sequer pensar em uma "concepção supersocializada do homem". Como nos diz Gay, não há dúvidas de que as maneiras particulares de exibir – ou reprimir, a vitalidade ou a competividade, a hostilidade ou o ódio, são aprendidas. Ainda assim, continua ele, o ser humano mantém impulsos profundamente enterrados, mas potentes – impulsos que ficam fora do alcance das pressões externas e resistem a elas. (1995, p. 530)

Nesse quadro um componente complicador seria resultante da hipótese de as situações de violência tornarem-se padrão de conduta de socialização. Sua interiorização, um dos termos usados com freqüência para definir socialização, implicaria no acúmulo de registros de memória emocional que orientarão o comportamento pelo resto da vida. De fato, o conteúdo significativo dos atos de violência tornar-se-iam registros cognitivos através dos quais a vida será experimentada e assimilada por indivíduos – seguindo a hipótese de Gay, habitados por "impulsos profundamente enterrados" em seu ser.

Se isso é verdade, como parece ser, não apenas o predomínio normativo e ideológico dos direitos humanos é insuficiente para dar conta da neutralização das situações de violência, mas a própria abordagem do problema deixa de ser plausível apenas com a colaboração da sociologia. É um empreendimento que reivindica uma cumplicidade sua com outras disciplinas e, em especial, sugerimos, com aquelas que lidam com maior intimidade com a subjetividade.

 

Em resumo

Difícil deixar de levar em conta a importância do indivíduo nas situações de violência. Michaud colocou de forma adequada essa presença, ao (tra) vesti-lo como "ator" e "pessoa" na interação que, através do ato que provoca danos – quaisquer que sejam eles, transforma aquele ato em um agir de violência ou de sofrimento. É uma descrição que dá lugar à compreensão de um sujeito de direitos e obrigações. O que obriga uma leitura crítica da definição feita por aquele autor, levando ao reconhecimento da importância da norma jurídica como elemento mediador da relação social. Em primeiro lugar, pela necessidade de um critério último de tipificação do ato de violência. Mas também pela centralidade da identificação dos conteúdos do processo de socialização. Um processo, aliás, em que o universo simbólico imaginário joga seu jogo em plenitude. É veículo, inclusive, de ideologias que, por definição, transmitem formas simbólicas cujo sentido é o de instauração e manutenção de modelos de dominação. Se a Declaração Universal dos Direitos do Homem tomou a importância que a ela foi dada, é porque 1) traz sentido à idéia de cidadania contida no preâmbulo mesmo do trabalho; 2) é condição de possibilidade de negação de sociabilidades perversas e, 3) é o possível de uma ideologia que se afirme deslocando, em definitivo, ismos que solapam o pleno desenvolvimento dos seres humanos. Seres que, aliás, apresentam características que, inatas ou adquiridas, permanecem fora de alcance do próprio processo de socialização, ainda que atuantes na instituição das situações de violência.

 

Referências Bibliográficas

BERGER, Peter & LUCKMANN, Thomas. A construção social da realidade. 4ª Edição, Vozes, Petrópolis, 1978.

CASTORIADIS, Cornelius. A instituição imaginária da sociedade. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1982.

COSTA. Jurandir Freire. Por que a violência? Por que a paz? In Costa. J. F. Violência e Psicanálise. Rio de Janeiro: Graal, 1986.

DURKHEIM, Emile, Préface au Suicide (1897), in Durkheim, Textes, V I, Élements d’une théorie sociale., Paris, PUF, 1975.

FERNANDES, Francisco & LUFT, Celso Pedro & GUIMARÃES, F. Marques, Dicionário Brasileiro Globo São Paulo: Globo, 1995.

HORNEY, Karen. The neurotic personality of our time. Londres, Routledge & Kigan Paul, 1957.

GRANDE ENCICLOPÉDIA LAROUSSE CULTURAL São Paulo Nova Cultural: 1998.

MICHAUD, Yves. A violência. São Paulo: Ática, 1989.

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SANTOS FILHO, José dos Reis. Mecanismos de produção e reprodução do Homo Violentus nos processos de socialização. Trabalho apresentado originalmente no Mini Curso A construção da idéia do sujeito: uma abordagem interdisciplinar, organizado em outubro de 2003 pelo Programa Especial de Treinamento – PET, do Curso de Ciências Sociais da Faculdade de Ciências e Letras da Unesp/CAr.

SARTRE, Jean-Paul. Questions de Methode. In Critique de la raizon dialectique. Theorie dês ensembles pratiques. Paris, Gallimard, 1960.

THOMPSON, John B. Ideologia e cultura moderna. Teoria social crítica na era dos meios de comunicação de massa. Petrópolis, Vozes, 1998.

 

 

1 Apresentado originalmente no Iº Simpósio Internacional do Adolescente – Adolescência hoje: desafio, práticas e políticas, no dia 04 de maio de 2005, na Mesa Livre Experiências em situações de violência e projetos de vida, na Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo. Este texto, apesar de toda elaboração posterior, tem como inspiração inicial a primeira aula dada pelo autor durante o curso Compreendendo Situações de Violência Sexual. Um estudo multidimensional sobre crianças e adolescentes. Livear/Cedro, Araraquara, 19 de outubro de 2002. Agradecimento especial ao colega do Departamento de Lingüística, João Batista Toledo Prado pelas lições em torno do vocábulo latino a ser usado aqui.
2 Toda passagem já foi desenvolvida em Santos Filho, 2001.
3 Um nível do senso comum que não se contrapõe ao que já verificamos nos dicionários recém-citados. Na verdade, são expressões que parecem remeter às mesmas matrizes imaginárias.
4 Mantém, diga-se de passagem, uma relação de intimidade com, pelo menos, uma das definições inventariamos a partir da citação do Larousse.
5 Trabalhando com outro objeto de discussão, realizamos essa reflexão em Santos Filho, 2001.
6 Para nossos objetivos, não parece necessário acompanhar Castoriadis em toda sua discussão. Importa, além do que já foi dito, reter três de suas conclusões: a) o simbólico supõe a capacidade de estabelecer um vínculo permanente entre dois termos, de maneira que um “representa” o outro; b) o simbólico comporta, quase sempre, um componente “racional-real”: o que representa o real ou o que é indispensável para o pensar e o agir. E, no que nos concerne mais de perto, c) “encontramos primeiro o simbólico, é claro, na linguagem”. (Castoriadis, 1982, p. 142)
7 Agora já o podemos designar através de todos seus componentes: uma ordenação social imaginária simbolicamente expressa.
8 Chamamos atenção para o fato de que a reprodução dessas duas ordens de facticidades não se dá apenas através de transmissão geracional. É algo que ocorre a todo momento de formas diversas, através de todas as capilaridade social. Para efeitos de nossa discussão, no entanto, é com a socialização dita primária que estamos lidando preferencialmente.
9 É esse, aliás, como nos diz Berger, o processo no qual a identidade, com seus conteúdos de realidade psicológica, torna-se identidade com um mundo especifico, socialmente construído. Desde o ponto de vista do indivíduo, cada um identifica a si mesmo, como cada um é identificado pelos outros, por estar localizado em um mundo comum.
10 É sina do indivíduo, por exemplo, que sua mãe seja dominadora ou “abnegada”, porém só em dadas condições culturais é que encontrarmos mães dominadoras ou desprendidas, e é só também por causa dessas condições existentes que uma experiência dessas influirá mais tarde na vida. Quando nos damos conta da enorme importância das condições culturais nas neuroses, passam para segundo plano as condições biológicas e fisiológicas que Freud considera como sendo suas raízes. Horney, p. 10)
11 Não é por acaso que o ato de violência, pode ser percebido como instrumento. Com freqüência ele parece ser usado para o estabelecimento ou a manutenção de uma certa ordem social, e, como tal, incide sempre na relação entre os indivíduos como força coatora e/ou de controle. Não por acaso, ainda, os mecanismos de produção e reprodução das situações de violência são mecanismos de produção e reprodução da heteronomia da vontade. Aparecem como poder ou poderes de uma força exterior, como imagens, práticas ou mesmo como normas formais ou consuetudinárias que, por impessoais ou abstratas que sejam, adquirem materialidade coercitiva e constrangedora. Sua condição de eficácia está ligada à capacidade de forjar individualidades e identidades. A situação de violência coloca em questão, sempre, a autonomia dos indivíduos em dispor de si mesmo, de seu corpo, de sua condição moral, de suas posses, de seus bens simbólicos ou culturais.