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An. 1 Simp. Internacional do Adolescente May. 2005

 

Notas sobre o processo de institucionalização do adolescente responsável por ato infracional1

 

 

José dos Reis Santos FilhoI; Tatiana Machado SilvaII

IUnesp/FCL/CAr. Núcleo de Estudos, Pesquisas e Extensão sobre Situações de Violência e Políticas Alternativas. reis@fclar.unesp.br
IINúcleo de Estudos, Pesquisas e Extensão sobre Situações de Violência e Políticas Alternativas, Unesp/FCL/CAr. Psicóloga e mestranda no Programa de Pós Graduação em Psicologia e Sociedade na Unesp/FCL/CAssis. taimachado@yahoo.com.br

 

 

Introdução

Como é de conhecimento geral, segundo a legislação brasileira, quando uma criança ou adolescente pratica um crime ou contravenção penal, a Constituição de 1988 – art. 228 – passou a obrigar a aplicação de lei especial como referência de enquadramento judicial. De forma regulamentada, desde 1990, com a promulgação do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), a doutrina da proteção integral da criança e do adolescente, substituiu a abordagem que trabalhava com o "menor" do ponto de vista da assistência, proteção e vigilância. Nesta, até os dezoito anos de idade, importava saber se se encontravam em situação irregular. Isso ocorrendo, cabiam, então, "medidas corretivas" (Nogueira, 1987, p. 7–8). Mais abrangente e colocando-se no quadro do conjunto de normas que começam a ser amadurecidas em nível internacional desde a década de vinte do século passado, aquela tem como diretriz o fato de crianças e adolescentes serem sujeitos de direitos, frente à família, à sociedade e ao Estado, rompendo com a idéia de que "sejam simples objetos de intervenção no mundo adulto": "são titulares de direitos comuns a toda e qualquer pessoa, bem como de direitos especiais decorrentes da condição peculiar de pessoas em processo de desenvolvimento" (Cury, 2002, p. 21).

Longe de significar um conceito que deixa de lado o reconhecimento de que crianças e adolescentes são capazes de atentados contra a ordem legal, a legislação em vigor busca um equilíbrio que torna capaz de privação de liberdade aquele adolescente que, sujeito de direitos, tornou-se responsável por infração grave. Em uma perspectiva caleidoscópica, seguindo aquilo que já disseram Campbell e Wiles, o fato mesmo da existência da lei, sugere a presença de comportamento que se deseja controlar (1979, p. 195). No rigor, realismo e adequação a uma realidade que grita, reconhecendo o envolvimento de meninos, meninas, jovens em geral, em situações de violência. Isso significa admitir, portanto, em resumo, conforme as reflexões de Mendez e Costa, pelo menos a) a existência indiscutível de atos graves de relevância penal atribuídos a adolescentes e, b) o direito indiscutível de toda a sociedade à segurança pública e individual (1994, p. 23).

O texto que ora é divulgado tem esse escopo legal como referência e, em muitos sentidos, é resultado de um empenho em vê-lo aplicado. Desse modo, é produto do exame de processos sobre três adolescentes que cumpriam, no segundo semestre do ano de 2003, medida sócio-educativa de internação em uma unidade da Febem no interior de São Paulo. Os processos foram selecionados pela equipe técnica da instituição que utilizou, como critérios de escolha, tanto a variedade dos casos entre si como a representatividade dos mesmos em relação ao conjunto de abrigados naquele momento. Seu objeto específico de estudo remete ao processo de institucionalização do adolescente responsável por ato infracional. Pretende, em síntese, discutir se os princípios que orientam o texto legal e nele são explicitados, são, de fato, atendidos no correr dos caminhos que levam à internação do jovem. Mais especificamente, o que se deseja saber é se a individuação desse adolescente é feita a contento, de forma a criar o máximo de condições de eficácia da medida sócio-educativa.

 

A questão da individuação

O artigo 103 do ECA define o ato infracional como aquela conduta prevista em lei como contravenção penal ou crime, começando aos 12 anos a capacidade jurídica para assumir sua responsabilidade. Longe de implicar uma aplicação "fria" de uma lei que é, em si, preocupada com o desenvolvimento integral da criança e do adolescente, essas disposições chamam à necessidade, nas palavras de Mendez e Costa, uma "política de internação" em consonância com a "doutrina da proteção integral" (1994, p.112).

O que se deseja sugerir aqui é que qualquer medida sócio-educativa condizente com uma política de internação deve supor dimensões de individuação que coloquem o adolescente como centralidade de um olhar obrigado a reconhecer de forma multidimensional sua condição de existência.

É evidente que o ponto de partida da análise é o ato infracional. Enquanto situação social, ele obriga e abriga, em primeiro lugar a consideração dos antecedentes e circunstâncias que fizeram da situação-ato-infracional aquilo em que ela se tornou. O que aqui importa, para além da caracterização mecânica da facada, do roubo, são os elementos eventualmente pontuais que jogam seu jogo normal e aparentemente de forma silenciosa e sem visibilidade. A pergunta concreta parece ser: em que teia de acontecimentos esteve ou está envolvido este(a) jovem que acaba de ser protagonista de um ato tipificável como crime ou contravenção penal? Trata-se de uma pergunta que reivindica desvelar não apenas a materialidade das necessidades e interesses por ventura identificáveis – um procedimento de caracterização sócio-econômica das condições de vida do adolescente, mas também a inserção do comportamento em um universo simbólico imaginário que sustenta sua legitimidade nas esferas culturais da realidade cotidiana.2 Aqui, importa reter que

desenhar esse quadro implica reiterar um pressuposto: a realidade vivida emocional e psicologicamente se apresenta ao conhecimento como um mundo pré-organizado, como uma "ordem de coisas e eventos". Implica reconhecer também que essa ordem se revela apenas em imagens por meio de apreensão analógica. Implica, finalmente, admitir que esse desvelamento só é possível através da existência de referências de apresentação desta ordem: as formas simbólicas. (Santos Filho, 2001, p. 93).

Esse veio de análise tem importâncias ontológica e metodológica. Ressalta tanto a vivência possível, por parte dos adolescentes, de referências imagéticas próprias de camadas sociais, de segmentos religiosos, de grupos, de tribos – por exemplo, os signos de honra,3 como também permite o estabelecimento de procedimentos de aproximação ao universo de experiências do(a) jovem em conflito com a lei.

Mais radicalmente, esse caminho de análise permite um horizonte de continuidade até a caracterização do perfil psicológico4 do(a) adolescente envolvido(a) com o ato infracional. Em sua singularidade, como mostra Silva, sem desprezar as interpretações correntes que priorizam como vetores de força no comportamento do adolescente uma malha de determinações que aparecem sob o nome genérico de "crise" de perspectivas econômicas, sociais e culturais, para além e aquém do jogo desses elementos, interessa primordialmente a identificação das matrizes psicológicas atuantes em situações de violência. (2004, p. 1).

É uma perspectiva que reitera a necessidade de um diagnóstico e de um acompanhamento individualizado.

O que importa sedimentar é que, tanto a consideração dos antecedentes e circunstâncias que fizeram da situação-ato-infracional aquilo em que ela se tornou, como a caracterização do perfil psicológico do(a) adolescente envolvido(a) naquela situação fazem parte de uma constelação de elementos imprescindíveis ao processo de individuação de meninos e meninas responsáveis por atos infracionais. São indispensáveis não somente para o estabelecimento da natureza da medida sócio-educativa condizente, mas também e, talvez, principalmente, para um trabalho individuado de ressocialização. São, na verdade, condições de possibilidade para uma reorganização sócio-psíquica individual que tenha como objetivo final do processo educativo "o desenvolvimento do exercício de cidadania desses jovens" (Volpi,1997, p. 32).

A hipótese que a duras penas é sustentada aqui supõe que, não por problemas identificáveis na legislação5, mas por características do próprio "modo de fazer cotidiano" das instituições com competência de individuação, o adolescente responsável por ato infracional é despido de sua individualidade e categorizado, através de múltiplas mediações, por estereótipos de larga vigência social.

 

Elementos de caracterização dos casos6

a) os adolescentes

Qualquer tentativa de traçar um perfil dos adolescentes a partir dos dados constantes dos dossiês é, no mínimo, temerária. Ainda assim, assumindo apenas um caráter indicativo, de elemento, conforme já dissemos, de aproximação à construção de um objeto de estudos, talvez pudesse ser dito que esse jovem tem entre 16 e 17 anos, possui baixa escolaridade7, é de família de baixa renda e possui pouco acesso a bens culturais.

Sempre lembrando que dois deles já haviam cometido anteriormente outros atos infracionais, uma leitura ainda superficial do processo 3 mostra que o adolescente vinha dando indícios há pelo menos seis meses de que algo não andava bem consigo e de que corria o risco de cometer algum ato certamente com conseqüências contra si e, eventualmente, contra outro (s). Convém mencionar que, nesse ínterim, os pais já haviam descoberto que o menino detinha a posse de uma arma de fogo.

Na verdade, os próprios pais mencionaram, em depoimento, ter percebido que havia algo de errado com o menino, mas nada puderam fazer. Seus estudos estavam decaindo e a escola também não soube posicionar-se diante disso. Nas informações colhidas pela assistente social, fica claro que não havia entre os pais do menino e a escola mecanismos de comunicação recíproca. É uma hipótese que precisaria ser suficientemente qualificada, já que existem indícios de um progressivo ensimesmamento deste adolescente, um comportamento mencionado em vários testemunhos, sem que iniciativas eficazes fossem tomadas no sentido de averiguação de suas causas.

É verdade que nos outros dois casos, não foi possível traçar, sequer, uma linha de leitura de uma trajetória de vida, uma vez que os processos contêm apenas material sobre o ato infracional cometido. De qualquer forma, correndo alguns riscos de sobrevaloração dos dados, no caso 2, vê-se uma família extremamente impotente, um pai que não sabe (e aparentemente não se interessa por saber) o paradeiro do filho, uma avó que diz ser melhor que o adolescente permaneça na Febem para "parar de dar trabalho, pois ninguém pode controlá-lo". Vemos também um adolescente em medida de liberdade assistida e que não comparecia à instituição responsável para dar satisfações. Um garoto que se mostra, ao que tudo sugere, negligente em relação às autoridades que o "puniram" e à possibilidade de voltar a ser submetido à medida sócio-educativa de privação de liberdade. Também aqui não há, por parte de seus familiares, interesse aparente por seu bem estar.

b) os atos infracionais cometidos

O adolescente nº 2 é objeto de representação por parte do promotor para apuração da prática reiterada de atos infracionais e "aplicação da medida sócio-educativa que se afigurar mais adequada" e tem como elemento motivador mais imediato o porte ilegal de armas. Aparece como agravante o fato de estar, no momento em que foi localizado portando revólver, cumprindo medida sócio-educativa de liberdade assistida. Para os casos 1 e 3, as representações oferecidas pela Promotoria denunciam cometimento de ato infracional tipificado pelo artigo 157 do Código Penal, ou seja, assalto à mão armada, sendo que o de nº 3 culminou com a morte de uma das vítimas. De fato, o adolescente aqui envolvido foi responsável por assalto à mão armada, porte ilegal de arma e latrocínio.

Nestas duas últimas situações, os atos foram propostos e idealizados por maiores imputáveis que compunham o círculo de relações próximas aos adolescentes. Ainda nos dois eventos, as vítimas eram conhecidas dos assaltantes. Em um deles, o maior envolvido era ex-funcionário da pessoa objeto do assalto. No dossiê 3, por sua vez, consta que a ação foi cometida contra veículo da empresa onde o adolescente trabalhava.

c) a relação do jovem com o ato infracional

Nos três casos, não há qualquer depoimento prestado pelos meninos que demonstre defesa de inocência ou isenção de responsabilidade pelos atos cometidos. No caso 3, essa afirmação precisa ser qualificada, já que o adolescente relata ter cometido a infração em função de medo de que fossem realizadas as ameaças às quais estavam sendo submetidos seus familiares. É também apenas nesse último caso que há indício de arrependimento por parte do adolescente. Em relação ao evento propriamente dito, aliás, nos dois casos em que os adolescentes já haviam passado por medida sócio-educativa anteriormente (1 e 2), não consta do processo maior esclarecimento das razões e motivações do jovem para cometer o ato infracional. Na verdade, o que aparece como implícito e, em pelo menos um momento, explícito, é uma representação estigmatizada dos adolescentes como "personalidade (s) voltada (s) para a prática de ato infracional".

d) informações sobre a família

Caso nº 1. Não constam, nos processos, informações sobre a família do adolescente. Apenas sabe-se que, no momento da apreensão, estavam presentes a mãe do garoto e uma conselheira tutelar.

Caso nº 2. Demonstrando uma relação aparentemente distante entre pai e filho, o adolescente não queria, segundo declarações do pai, morar em sua companhia. Na certidão de nascimento do adolescente consta o nome do pai, mas ele foi registrado com o sobrenome da mãe. Assim, na ocasião da nomeação, o garoto é privado da identificação com o pai. O pai, trabalhador, não demonstra, no depoimento, nenhuma tentativa de cobrança ou compreensão em relação ao ato do filho. No momento da detenção, o adolescente não pode ser liberado em função de não ter sido encontrado responsável pelo mesmo. O único familiar encontrado eximiu-se da responsabilidade de zelar por ele.

Caso nº 3. Os pais encontraram arma de fogo em poder do filho e fizeram com que devolvesse ao dono, não tomando outras providências a respeito. Perceberam que algo errado vinha acontecendo com o adolescente, mas não souberam ou puderam tomar atitudes mais eficazes. O pai está presente fisicamente, mas não parece ter autoridade sobre o menino. Em depoimento, o pai diz que preferia ver o próprio filho morto a ver um pai de família morto. Os pais não participavam da vida escolar do adolescente que, por ser independente financeiramente, não gostava que comparecessem à escola. O adolescente é o caçula de três filhos.

e) sentenças

Em apenas um caso, o de nº 3, é apresentada razão do ponto de vista sócio-educativo (ou avaliação feita por equipe técnica) para sugerir a medida mais adequada a ser aplicada aos adolescentes. De qualquer forma, são apresentadas como justificativas para cada caso:

Caso nº 18. Extenso rol de antecedentes; "personalidade voltada à prática de atos infracionais, principalmente aqueles equiparados aos delitos contra o patrimônio" e ter praticado ato infracional considerado grave.

Caso nº 2. De acordo com o promotor, a infração deixa visível a "gravidade da conduta", dando lugar à "conveniência da instrução criminal e antecedentes". O juiz, por sua vez, vê a reincidência como prova de que as medidas anteriormente aplicadas (liberdade assistida e internação) não produziram o resultado que delas se esperava.

Caso nº 3. Segundo o promotor, acentuada periculosidade do adolescente, natureza e gravidade do ato, comprovação de materialidade e autoria do ato infracional, gravidade das conseqüências (morte da vítima), impiedade demonstrada na conduta.

Os objetivos a chegar com as sentenças foram descritos como:

Caso nº. 1. Segregação;

Caso nº 2. Reinserção social, garantia da ordem pública;

Caso nº 3. Garantia da ordem pública, reeducação e ressocialização do garoto, garantia da sua integridade física, fazer com que o jovem "reflita profundamente" sobre o ocorrido e sobre o "caminho que escolheu para solucionar seus dramas pessoais", responsabilidade pelo ato.

 

Aproximações a um tema de relevância: a causa

O exame da causa ou causas do envolvimento do adolescente com o ato infracional é um dos elementos mais importantes a ser destacado dos processos e já demos indicações disso. É condição fundamental para o estabelecimento da medida sócio-educativa a ser tomada, para o empenho do acompanhamento por equipe técnica responsável nos casos de internação, tanto quanto para a aferição da adequação e/ou implantação de políticas públicas de prevenção. Ainda assim, é uma das partes mais frágeis entre as que se pode verificar nos processos.

A presença de uma "família desestruturada" é, freqüentemente, considerada pelo senso comum como a responsável pelo afloramento de condutas anti-sociais nos adolescentes. Esse modelo é entendido como sendo a família nuclear de ascendência patriarcal constituída por um pai, uma mãe e os filhos convivendo no mesmo lar. É uma afirmação que obrigaria uma reflexão um pouco mais apurada, se pensamos o núcleo familiar como uma relação social9. Isso considerado, dificilmente se poderia discordar de Assis, quando afirma ser impossível pensar a estrutura familiar como fato isolado da relação estabelecida entre os familiares. E isso deslocaria a ênfase do privilégio da estrutura familiar para a investigação das relações familiares (1999, p. 21).

Nos processos que vimos estudando, entretanto, as referências às "famílias desestruturadas" e "estruturadas" abundam. Aparecem com freqüência não legitimada por laudos ou diagnósticos mais fundados. Constituem-se em justificativa, desde a defesa prévia feita pelo advogado do adolescente até os laudos da equipe técnica, para a escolha da medida a ser aplicada bem como justificativa para a desinternação.

 

Algumas questões para análise

Problemas com os dossiês ou inexistência de uma política de internação? Uma resposta inicial seria benevolente e tolerante a ponto de não suportar a primeira observação crítica. As características da elaboração de qualquer base documental obedecem a conceitos, a competências, a vontades políticas e, em última análise, a culturas institucionais. Aqui, não há lugar para jogos de adivinhação. Sabemos quem nasceu primeiro e, por conseguinte, quem gerou o que. O formulário, o prontuário não surgem por geração espontânea. São produtos de um saber institucional. Suas limitações, suas possibilidades não diferem daquelas prevalecentes na instituição que o produziu. O que implica em uma hipótese de trabalho a ser melhor elaborada no futuro: as instituições responsáveis por processos de institucionalização de adolescentes responsáveis por ato infracional apresentam fragilidades latentes no que diz respeito a conceitos, competências e cultura institucional específica. Mantendo como eixo de análise a individuação do jovem em processo de institucionalização, mas sem nos sentirmos obrigados a identificar cada ausência verificada, duas ou três observações talvez possam dar uma idéia da complexidade do problema e, ao mesmo tempo, anunciar o próximo momento da pesquisa.

a) denotações provenientes do uso da linguagem nos documentos. Leitura atenta do material coletado e aqui trabalhado talvez imponha como fato a existência de uma cultura ainda presa ou ao Código Penal ou ao antigo Código dos Menores. Assim, expressões como "medida aplicada em desfavor" provavelmente indiquem mais uma compreensão da internação como punição que como medida sócio-educativa. Da mesma forma, quando o menino é tratado como réu pelo próprio advogado, em um dos casos, é possível ver nessa expressão um sinal de evidência de que o tratamento dado aos adolescentes não difere, pelo menos na nomenclatura, dos processos penais.10

b) a voz ausente do jovem. Cada um dos três momentos apreciáveis através do processo – a caracterização do ato, o estabelecimento da sentença e a ressocialização – é, no fundamental, elaborado por falas sobre o adolescente.

c) a negação do ato infracional como momento de uma trajetória de vida. Difícil deixar de considerar um certo isolamento do ato infracional da trajetória de vida do adolescente. Não há sequer condições de tornar sua conduta ali como representativa de um tipo de personalidade que o distinguiria. Ao tomar aquele (s) comportamento (s) como expressão da totalidade do seu ser – "a natureza do ato, por si só, revela a periculosidade acentuada...", conforme explicita um juiz –, sem levar em conta sua vida pregressa, sua constituição, enfim, sua existência enquanto possibilidade de um passado, de um presente e de um futuro, é possível registrar uma impressiva desconsideração do ECA, que leva em conta não só a "gravidade da infração", mas a "capacidade de cumprir a medida", tanto quanto as "circunstâncias" do ato.

d) a decisão em torno da medida sócio-educativa. Se não há, nos processos, nenhuma avaliação técnica ou manifestação quanto à capacidade do adolescente em cumprir a medida de internação, nos casos em que os garotos já haviam sido submetidos a outras medidas sócio-educativas, tampouco está manifesto, nos processos, reflexão acerca da eficiência das mesmas. Da mesma forma que não existe, em relação aos casos específicos, análise das possíveis falhas na aplicação dessas medidas.

f) os indicadores de ressocialização. Já no seio do próprio processo de ressocialização, a tentativa de definições sobre o desenvolvimento específico de cada um dos jovens é remetida a idéias como a de "bom comportamento geral" e fundadas no reconhecimento de cumprimento de "obrigações" e "ótimo relacionamento com os funcionários e demais internos". Se é verdade que esses podem ser indicadores de ressocialização, por frágeis que possam ser, como relacioná-los, com aproximações tais como comportamentos "passivo" e "introvertido", no quadro de uma abordagem individuada e fina do antes e do depois da internação?

 

Da repetição de estereótipos a análises significativas

Não há lugar, aqui, para o desenvolvimento de referenciais alternativos aos usados de forma acrítica nos processos. Não sendo possível, no entanto, correr o risco de leviandade por não designar quadros teóricos que sustentem a fragilidade de alguns supostos repetidos exaustivamente, talvez valha a pena mostrar rapidamente sinais de abordagens mais consistentes. E, para isso, algumas palavras sobre a instituição família podem ser sugestivas.

O uso indiscriminado do conceito de "estrutura familiar" nos processos é problemático, mas aponta para a urgência de se incluir a família como sujeito na intervenção junto ao adolescente. Corre-se o risco, entretanto, com a falta de cuidado conceitual, não apenas de um lidar preconceituoso – ao colocá-la na forma de modelo, como nuclear, patriarcal e burguesa. Corre-se o risco também de veiculá-la no bojo de procedimentos de estereotipação. É o que se vê, nos laudos, quando (re) produzem a caricatura do "adolescente de família desestruturada".

Considerada sua importância, é preciso compreender a família, hoje, no quadro das idéias de dinâmicas, relações e funções. É um deslocamento que tornaria possível pensar as famílias que fogem ao modelo convencional como possuidoras de organização e estrutura diferenciadas, mas, nem por isso, diga-se de passagem, desprovidas de aconchego. Da mesma forma, o mesmo deslocamento sugeriria a possibilidade de pensar que famílias "estruturadas" conforme o padrão modelo não são garantia de relações sociais propícias ao desenvolvimento da criança e do adolescente.

Em nossos casos, talvez fique constatado que a "família estruturada" do adolescente 3 não pôde proporcionar a este relações interpessoais e/ou modelos de conduta suficientemente significativos para possibilitar ao filho processos de identificação supostamente adaptados às normas e ao convívio social. Colabora para a formulação desta mesma hipótese o estudo, ainda que superficial em função da escassez de informações, do caso 2. A leitura do material faz supor a existência de uma família minimamente "estruturada", mas distante e negligente. A fala da avó de que o garoto deveria ficar na Febem porque "ninguém pode com ele" sugere que as projeções e expectativas dessa família com relação ao jovem são estigmatizadas e estigmatizantes. Dizem-lhe que seu papel na história familiar é de transgressor, delinqüente, expectativas às quais ele corresponde "sendo", de fato, um infrator.

De uma forma mais frutífera, como vinha sendo dito, a análise da família passaria pela compreensão de sua organização interna para que se possa entender o que criou as condições para que aquele adolescente cometesse um ato infracional, bem como para verificar as condições familiares de acompanhamento e "escoramento" do psiquismo do adolescente. O que se verificará é a possibilidade de fortalecimento daqueles laços familiares potencialmente significativos e estruturantes para cada adolescente. Na ausência dessa condição, o que se perguntará é se a instituição deverá/poderá, temporariamente, prover o psiquismo do adolescente de, por um lado, identificações e modelos e, por outro, de contenção e escoramento.11

 

Uma percepção afinada com o ECA

Sem esgotar uma lista de questões a serem enfrentadas, bastam as seis observações precedentes para uma aproximação crítica aos modos de enquadramento dos jovens em medidas sócio-educativas de internação. Não consta, observemos, em momento algum, análise do significado, do ponto de vista psíquico e, mesmo, sócio-cultural, da ação desses jovens. O que querem eles com os atos infracionais? Estamos lidando com comportamentos que, caracterizados como atos infracionais, obrigam a perguntar, ainda no nível do próprio senso comum, o que deu origem a uma atitude que resultou em assassinato? Afinal, como explicar que, na descrição do relatório final, no caso do adolescente 3, depois de já ter descido do carro que assaltara, com uma das vítimas já baleada na cabeça, volta e atira, tentando novamente acertar o colega de trabalho? Qualquer que seja a hipótese, o que fica razoavelmente claro é a incapacidade relativa da escola e dos pais para compreender os sinais de preocupação que o adolescente vinha emitindo. Mas permanece a indagação: quem é este garoto? Sem resposta, para ela, a medida sócio-educativa prevista na decisão final do juiz não é outra coisa senão uma fórmula de alcance indiscriminado.

Ao que tudo indica, o momento é o de uma reflexão que situe, em primeiro lugar, cada um dos momentos e espaços esclarecedores de um conjunto de elementos psíquicos, sociais, culturais e jurídicos que ajudam a constituir o perfil do adolescente responsável por atos infracionais. É um empreendimento que conduz a fronteiras das iniciativas desenvolvidas a) no âmbito dos processos de apuração dos acontecimentos que conduzem à instrução do caso, b) no âmbito das análises e dos valores que presidem o debate em torno da sentença e, c) no âmbito da(s) dinâmica(s) de (re)socialização por que passam os adolescentes em conflito com a lei na condição de internos. Nesse investimento, não são poucas as perguntas que podem e devem ser levantadas. Exemplos insuficientes, mas necessários: qual o papel da família no cuidado do jovem? Quais as responsabilidades e as possibilidades de ações educativas desta? Que meios estão à disposição para que se conheça o jovem que será alvo da ação educativa, sua família e a comunidade em que ele se insere? Como é possível, dentro de um quadro institucional determinado, prescrever uma medida sócio-educativa que obedeça aos critérios de individuação? São, todas, perguntas imprescindíveis ao entendimento de uma questão primordial: como desenvolver políticas de atendimento integral ao adolescente em medida sócio-educativa? Isso é possível sem conhecê-lo em sua particularidade? Mais que isso, é possível conhecê-lo sem dar lugar à sua voz?

Como já dissemos, são poucas as situações em que ele diz algo sobre si próprio por sua própria boca. Se nos colocamos a necessidade de se conhecer o adolescente para planejar uma política de proteção integral a ele dirigida, deve haver uma hora em que ele possa expor-se por seus próprios meios. E, se isso é verdade em geral, o é particularmente nos casos dos internos. É a única forma, acreditamos, de tentar alcançar a matriz da dinâmica que o conduziu ao ato infracional. E, à guisa de uma conclusão apresentada na forma de hipótese, dificilmente ela será redutível a um único elemento motivador.

 

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1 O artigo aqui apresentado é parte de uma investigação mais abrangente sobre o perfil do adolescente responsável por atos infracionais. Em sua origem, inscreveu-se no quadro de uma parceria entre a Diretoria Regional do Ensino de Araraquara, a Fundação Estadual do Bem Estar do Menor – Febem, a Vara da Infância e da Juventude – Araraquara e o Núcleo de Estudos, Pesquisas e Extensão sobre Situações de Violência e Políticas Alternativas da FCL/Unesp/CAr. Trata-se de uma parceria que não foi adiante após a mudança de direção na Febem na unidade de Araraquara. O trabalho foi apresentado originalmente no Iº Simpósio Internacional do Adolescente – Adolescência hoje: desafio, práticas e políticas, no dia 04 de maio de 2005, na Mesa Livre Experiências em situações de violência e projetos de vida, na Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo.
2 Para uma discussão mais aprofundada sobre o tema, ver Santos Filho, 2001.
3 Lembrar que o universo de representações que revelam o imaginário social é bastante vasto e mutante. Sobre o assunto, ver Furter, 1995. Para uma referência a esse universo de motivações imaginárias, ver, por exemplo, Zaluar, 1990.
4 Perfil psicológico compreendido aqui como uma tentativa de traçar referências que levem em consideração as vivências inter, intra e transubjetivas, em suas dimensões internas e externas, ou seja, na dinâmica das relações entre as individualidades e os modos de produção e reprodução de subjetividades.
5 Considere-se que, à parte de uma base legal reconhecidamente satisfatória, o Estatuto da Criança e do Adolescente ainda oferece aquilo que David identifica como especificidade da legislação nos países de tradição jurídica romano-germânica: a regra de direito deixa uma certa margem de liberdade ao juiz (1986, p. 82). Gusmão reforça essa leitura admitindo a “possibilidade de o juiz, se tiver boa formação cultural, principalmente filosófica e sociológica, adaptar o figurino legal ao direito” (1999, p. 147). Na realidade, como quer Bobbio, as “normas jurídicas” são aquelas cuja execução é garantida por uma sanção externa e institucionalizada, é certo, mas uma sanção que supõe uma “medida”, já que “haverá sempre aquela zona fronteiriça ou de passagem em que todo critério parece inadequado: a realidade é sempre mais rica que qualquer esquema” (2005, p. 160 - 161). É isso, aliás, que fortaleceria, na opinião dos autores deste texto, em nível macro, esse papel que o Estado desempenha no empenho de um ordenamento social a conseguir, como quer Faria, a legitimidade pretendida (1988, p. 93).
6 O material utilizado para este exercício inicial de pesquisa é fundado em base documental. Mais precisamente, manipula dados presentes nos autos referentes a processos e a procedimentos realizados pelo Estado em relação a três adolescente autores de ato infracional.
7 Conforme já foi mencionado, mesmo o garoto que estava cursando o segundo grau apresenta grande deficiência no manejo da língua portuguesa verificada em seu depoimento.
8 Não constam no material estudado os documentos referentes à audiência do juiz e, portanto, a sentença proferida. Sabe-se que o garoto foi internado. As análises aqui expostas referem-se às declarações do juiz em face a internação provisória até a data da audiência.
9 Para uma leitura que introduz uma discussão atual, ver Santos Filho, 2003.
10 A este respeito, Volpi chama atenção para o fato de a sociedade mobilizar-se mais facilmente para a defesa das vítimas que de possíveis agressores. Assim, o adolescente em conflito com a lei é desqualificado enquanto adolescente e enquanto cidadão. “É difícil, para o senso comum, juntar a idéia de segurança e cidadania. Reconhecer no agressor um cidadão parece ser um exercício difícil e, para alguns, inapropriado” (1997, p. 9).
11 Para uma discussão específica sobre o tema ver Marin, 1999.