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An. 1 Simp. Internacional do Adolescente May. 2005

 

Um olhar sobre a representação da escola para as mulheres negras adolescentes1

 

 

Maria Aparecida Silva

Núcleo de Estudos, Pesquisas e Extensão sobre Situações de Violência e Políticas Alternativas – NUEVA. Unesp/FCL/Car. Departamento de Sociologia. Cientista Social. Mestranda em Sociologia. Programa de Pós- Graduação em Sociologia da Faculdade de Ciências e Letras da Unesp/Car

 

 

Introdução

É conhecida a literatura que localiza a condição da mulher negra no Brasil como de subalternidade, exploração e discriminação (Castro, L.M.X. 1999, Santa Anna & Paixão & Alexandre, 2000, Batista, 1996). São estudos com base marcada por dados estatísticos de difícil contestação. No terreno das lutas pela cidadania, não é gratuito que os movimentos sociais se tenham preocupado em denunciar situações de violência e discriminação contra as mulheres negras. Nos dias de hoje, não são poucos os grupos, as organizações não governamentais e, mesmo, instituições do poder público que denunciam o fato de estarmos lidando com o segmento social que tem sido, ao longo de sua história, a maior vítima da profunda desigualdade racial vigente em nossa sociedade. É o que mostram, de forma abundante, os indicadores sociais. E, como não bastasse, "o isolamento a que foi condenada" termina por constituir dificuldade de inserção da questão do gênero e da raça na agenda política dos partidos e das ações governamentais.

Estamos lidando com a discriminação como uma forma de sentir, como uma propensão, uma disposição consistente de uma atitude de hostilidade, desconfiança ou desvalorização culturalmente partilhada e dirigida contra membros de um grupo racialmente definido (United Nations, 1949, p. 365). São preconceitos que informam e são exteriorizados através de comportamentos de omissão ou expressão, dirigidos a pessoas pertencentes a um grupo socialmente determinado por gênero-mulher, e por raça-negra. E, se isso é verdade, colocamos como urgente enfrentar as formas como a mulher negra adolescente expressa a experiência da discriminação e do idealizar projetos de vida.

 

Um estereótipo em corpos de mulheres adolescentes

Se a escola se impõe, é porque dificilmente podemos vê-la como neutra em relação a estes problemas étnico/racial e de gênero. Mais ainda: o fato mesmo da existência de uma instituição que não enfrente os sinais evidentes de relações sociais alicerçadas na dissimulação do verdadeiro sentido de ser mulher - negra, alimenta efeitos que se manifestam "materialmente" nas oportunidades de vida das adolescentes negras. A escola/escolarização está para os indivíduos não apenas como o lugar em que o conhecimento formal pode ser adquirido, mas também como aquele em que as relações sociais e raciais se formam. Torna-se, ademais, para a criança, para o adolescente, um parâmetro que norteará a obtenção de sucessos ou fracassos. É também um campo de circulação de significações. Cada ciclo da vida escolar é, portanto, uma etapa que se vence no interior de uma instituição que exerce um papel fundamental na trajetória e nas particularidades de cada um e de suas famílias.

Quando as mulheres negras adolescentes chegam ao espaço escolar já trazem consigo informações sobre as condições dos negros na sociedade e as várias situações de discriminação à sua volta. Já experimentaram o que é ser negra neste país e o que podem esperar da escolarização. A história do negro no Brasil é marcada por sociabilidades perversas em nível social, econômico e político. Socialmente, as relações de convívio passam a ser "conflituosas" na medida em que não se tem explícito qual é o pertencimento do negro nessa sociedade, já que sua posição real está ‘camuflada" pela democracia racial que, conforme Guimarães:

enquanto solução da questão negra, não significou, todavia, um esforço em combater, as desigualdades de renda e de oportunidades sociais entre negros e brancos, e só parcialmente no plano da cultura e da ideologia representou um freio à discriminação e ao preconceito (Guimarães, 2001, p. 125).

Vista em sua forma estereotipada, a mulher negra já foi caracterizada como corpo, carne, sedução. É expressão do pecado. Em Casa Grande e Senzala (Freyre, 1958), a mulher negra é percebida na ótica do senhor da casa grande, o homem branco, e simboliza o desejo, o prazer, à disposição do senhor de pertences, do senhor dos corpos, do senhor da pele da mulher escrava. O lugar dessa mulher é uma casa que não existe, sua função, reduzida a de um bem, seu ser, responsável pelos ataques sexuais aos quais era submetida.

Isso sinaliza uma dominação masculina carregada de especificidade, na medida em que acrescenta ao viés de gênero, o de uma raça que existe para servir. Além de mostrar que as desigualdades entre os sexos situam as mulheres em posições inferiores às ocupadas pelos homens ela acrescenta uma outra imposição. Conforme Lopes e Waldow:

Um dos maiores efeitos desta imposição do funcionamento da dominação simbólica é a imposição de uma certa representação dos órgãos sexuais, uma construção social das diferenças anatômicas visíveis. O mundo social constrói esta diferença anatômica, e esta diferença anatômica socialmente construída se torna o fundamento da diferença social que a fundamenta. Dito de outra forma, existe uma inversão de causas e de efeito (Lopes e Waldow, 1996, p. 31-32).

Se a categoria gênero traz à tona o que de relacional há entre o masculino e o feminino, se a mulher deixa de ser observada isoladamente e passa a ser compreendida como participante de um tecido social em que interage com o homem, se o gênero é um elemento constitutivo de relações sociais fundadas sobre as diferenças percebidas entre os sexos, ele é também o primeiro modo de dar significado às relações de poder (Scott, 1990, p. 7).

Em síntese, atribui-se às relações de gênero um caráter sócio-cultural, pois legitima e constrói as relações sociais, articuladas pelo poder, através de símbolos, metáforas que formulam subjetivamente o ser masculino e o ser feminino. Nessa construção subjetiva, o indivíduo estabelece representações acerca dos papéis do homem e da mulher, inicialmente na família, mas, também, na escola e, ao entrar em contato com o sistema simbólico, o incorpora, contribuindo para a sua disseminação entre os demais indivíduos e instituições sociais.

Mas, em relação às mulheres negras, marcadas pelo estigma da escravidão, esse processo assume características peculiares. Se a elas permanecem destinados os trabalhos sem qualificação, trabalhos que dispensam inclusive a educação e a instrução, sobre elas pesa, além das diferenças de gênero, também as de raça. O que observamos é que com papéis sociais "naturalmente" definidos como adequados, os nexos imaginários da condição da mulher negra remetem, primeiramente à sua condição de escrava. Sobre ela recaem tanto representações sobre o uso de seu corpo enquanto objeto sexual como aquelas que o caracterizam como adequado ao trabalho doméstico. Representações que dificilmente poderiam ser explicadas historicamente sem que consideremos "a condição de "propriedade privada" da mulher na sociedade patriarcal". Uma condição que "explicaria a lógica determinante da opressão específica da escrava" (Giacomini, 1988, p. 66).

Na sociedade moderna, o processo de globalização fomenta a ampliação de conhecimentos e estabelecimento de relações com o mundo tecnológico e problematiza cada vez mais a situação dos indivíduos que buscam, através do aperfeiçoamento, superar a condição da exclusão. No que diz respeito à mulher negra adolescente, o contexto, conforme sinalizam os indicadores, é de permanência de símbolos e significações que reproduzem normas, poderes que inviabilizam ou, pelo menos, obstaculizam projetos de vida.

Sabemos que cada uma das situações expressas através de dados de exclusão social alimenta e é alimentada por uma certa compreensão do que são as mulheres negras. Repetindo o risco da redundância, é um pressuposto teórico o de que estamos lidando com imagens estereotipadas que absorvem o feminino, a raça, como verdadeiros estigmas. São imagens cuja eficácia virtual está ligada a dois fatores de fundo. Por um lado, por que são representações "construídas a partir de elementos de um imaginário que está aí, disponível". Por outro, por remontarem, de alguma forma, ao corpo do estigmatizado: a categorização social conta com o fato do indivíduo não poder deixar de carregar a atributo que o torna estigmatizado (Santos Filho, 1993, p. 84). Por isso, quando indicamos o espaço escolar como um lugar de reprodução de situações de violência, estamos pensando esse espaço como um espaço de interação em que há relação entre os diferentes campos e diferentes atores que apresentam uma estratégia de atuação e mantêm uma relação de força. Aqui, podemos dizer que o poder está presente como algo que não é visível, mas é construído para ser utilizado quando as relações sociais, política e econômica se vêem ameaçadas.

 

Um espaço de sociabilidade perversa

E identificamos o poder simbólico impregnado no espaço escolar quando, na tentativa de democratizar as relações sociais existentes, a instituição trata as diferenças como igualdade universal mas com acesso a direitos e oportunidades diferentes. Ao tomar essa atitude, a escola acaba por manter as discriminações por ela reconhecidas. Por isso, o espaço escolar poder ser considerado um espaço em que se reproduz o campo do poder, em que as relações sociais permitem uma hierarquização que culminará na consistência da estrutura escolar. Segundo Barcelos,

a aparência democrática da escola apenas esconde seus verdadeiros vínculos, o que faz operar uma seleção social segundo critérios culturais das classes dominantes, a escola como reprodutora, quando não geradora, das desigualdades (Barcelos, 1992, p. 38).

Podemos como já manifestamos, definir também o espaço escolar como espaço social constituído de agentes ou grupos com dois princípios de diferenciação que são o capital econômico e o capital cultural. São grupos que terão uma influência vital para a formação das mulheres negras adolescentes já que, são a família e a escola as reprodutoras do capital cultural. E o sucesso escolar e social pode estar vinculado ao capital cultural, na medida em que esse está enraizado na ordem social. Ora, se a "instituição escolar contribui para reproduzir a distribuição do capital cultural e assim, a estrutura do espaço social" (Bourdieu, 2001, p. 98) as adolescentes negras que estão pensando os projetos de vida para além do ensino médio pretendem, através da instituição escolar, freqüentar um espaço em que, legitimamente, possam garantir mecanismos de ascensão social. O efeito do destino (Bourdieu, 1989) nos mostra, no entanto, como a instituição escolar tem sido autoritária para com os adolescentes. Dificilmente poderia ser de outra forma, já que está estruturada para a hierarquização e homogeneidade, tornando-se assim uma facilitadora de atos de violência com aqueles que não se encaixam nessa hierarquia.

 

O pensar projetos de vida em condições de discriminação

No caso específico das mulheres negras adolescentes e seus projetos de vida, as dificuldades podem estar mais presentes, porque seu lugar social e cultural é determinado de forma desigual e diferenciado, considerada, mesmo, a mulher branca adolescente. E, em assim sendo, parece ser legítimo perguntar o que pensam a adolescentes negras que vivem a chegada ao ensino médio - essas adolescentes que já viveram e já vivem, certamente, os estigmas estereotipados da raça e do gênero - sobre seu lugar social, sobre seu futuro enquanto membros de uma sociedade marcada pelas discriminações de gênero e de raça.2 A essas indagações obtivemos respostas que confirmaram nossa preocupação sobre os anseios dessas adolescentes em torno da construção de seu futuro e de sua determinação pelas discriminações étnico/racial e de gênero. Como podemos distinguir através de alguns exemplos, parece ser uma constante o fato do reconhecimento dos obstáculos oriundos de sua condição de mulher negra adolescente acompanhado por uma aspiração que só pode ser realizada através da determinação. Senão, vejamos:

"Com muitos obstáculos, mas tendo coragem e força de vontade de minha parte eu vou pulá-los" (Menina nº 16, 15 anos, 2º ano do E.M.)
"Estudar, enfrentar os preconceitos e ter um dia minha vida estabilizada" (Menina nº 21, 16 anos, 2ºano do E.M.)
"Ser mulher e negra não será fácil, mas lutarei com todas as minha forças para ter um futuro brilhante" (Menina nº 2,16anos, 3º ano do E.M.)

A partir das falas dessas mulheres adolescentes negras, podemos concluir que elas estão se preparando para uma situação conflituosa no mercado de trabalho e na sociedade; que a sua pequena experiência de vida já lhes antevê o enfrentamento do racismo. Mas convém observar que em nenhum instante elas pensam em desistir. É nossa hipótese que essas adolescentes construíram ao longo de suas experiências um sentimento de auto-estima que será posto à prova no futuro.

Hoje, ao que tudo indica, essas adolescentes estão querendo desafiar o estado do mercado de trabalho tal como colocado para as mulheres negras. E isso parece ficar claro na prioridade dada aos estudos como forma de garantia para uma vida digna. Não deve ser por acaso que, a todo o momento, a escola/escolarização esteja presente em suas falas e na construção de seus projetos de vida. Uma presença acompanhada da denúncia de atos de discriminação que permeiam o conjunto de relações em que se envolvem as mulheres negras adolescentes. Em algumas daquelas falas:

"Na escola muitas vezes tem preconceito, Ah! geralmente é das patricinhas, filha de mamães, filhinhas de papai, que tem mais condições mas, vão estudar em escola pública" (Menina nº 26, 17 anos, 3º ano do E.M.).
"Na minha escola não tem nenhum professor(a) que faça algum trabalho constante sobre discriminação racial e de gênero. Ninguém faz, acho que seria importante mas assim acho que ia gerar muito conflito em sala de aula porque, ninguém aceita as diferenças dos outros né, então eu não participo de discussão sobre discriminação. Ninguém faz essa discussão, acho que teria que ter de modo geral, tanto a discussão racial como a de gênero" (Menina nº 26, 17 anos, 3ºano do E.M.)

No universo de 64 mulheres negras adolescentes que participaram dessa pesquisa, 22 informaram já terem sido objeto, na escola, de alguma atitude de discriminação. Segundo Gomes:

sociais e raciais permanecem do lado de fora. A escola é um espaço sócio-cultural onde convivem os conflitos e contradições. O racismo, a discriminação racial e de gênero, que fazem parte da cultura e da estrutura da sociedade brasileira, estão presentes nas relações entre educadores(as) e educandos(as). A escola não é um campo neutro onde, após entrarmos, os conflitos (Gomes, 1996, p. 69).

Essa constatação tem uma gravidade exacerbada na mediada em que pudemos observar, nas falas das mulheres negras adolescentes com que trabalhamos, o reconhecimento da ausência, por parte da hierarquia de poder no espaço escolar de uma discussão sobre as diferenças, sobre a fixação de identidades estereotipadas que aliam a marca de grupo étnico/racial e subalterno com a de gênero. É um dado que reforça a preocupação com essas adolescentes, já que suas vidas estão sendo construídas em um conjunto de incertezas e desigualdades cujas raízes não são submetidas a um investimento crítico.

 

A importância da formação

Reafirmamos, através das entrevistas, que, hoje, a escola de ensino médio, na vida dos adolescentes é entendida como ponte para a universidade e para o mundo do trabalho. Trata-se de um horizonte que, para eles, chega a ser um desafio a ser enfrentado e, se possível, conquistado. Podemos dizer que seus planos de futuro começam a ser elaborados de maneira a que possam se sentir seguras e maduras para decidirem sobre sua própria vida a partir da escolha que fizerem. E estar freqüentando o ensino médio regular ou profissionalizante com todos os problemas de compreensão, estruturação e aplicabilidade ainda continua sendo uma alternativa e serve de estimulador para as adolescentes na construção de seus projetos de vida. Diante do que podem avaliar como suas condições e suas possibilidades, as mulheres negras adolescentes estabelecem um desafio: querem, sim, poder ter o direito de escolher um projeto de vida após terminarem o ensino médio. É o que fica nítido quando elas nos dizem o que pretendem fazer após terminarem o ensino médio:

"eu pretendo fazer um cursinho para me aperfeiçoar cada vez mais para prestar um vestibular, pretendo prestar pedagogia, me formar em pedagogia." (Menina nº 27, 17 anos, 3º ano do E.M.)
[...] ao terminar de fazer o ensino médio pretendo entrar numa faculdade. Olha eu quero ir para a Unesp e fazer o curso de Letras, fazer espanhol né! e eu quero ir para a Espanha se eu conseguir, também quero ser professora de espanhol (Menina nº 28, 15 anos, 2º ano do E.M.)
"Realizar um sonho de fazer faculdade de Medicina veterinária, esse é meu objetivo desde os dez anos de idade" (Menina nº 5, 1º ano do E.M.)
"...quero fazer um vestibulinho para entrar no Industrial e fazer enfermagem e depois fazer uma faculdade de enfermagem porque, o que pretendo ser é enfermeira" (Menina nº 2, 15 anos, 2º ano do E.M.)

É uma constatação que precisa ser qualificada porque remete ao trabalho e à Universidade. Parece ser evidente que se compararmos o acesso da mulher branca à escola, o índice não se apresenta em grande elevação, mas, comparado à crescente procura pela escolarização feita nos últimos anos pela mulher negra, os indicadores passam a ser significativos. No entanto, torna-se necessário que tenhamos consciência daquilo que foi denunciado pelas próprias mulheres negras adolescentes que entrevistamos: a escola é um espaço que não amplia as discussões de raça/gênero com a comunidade discente/docentes. E isso insinua que a escola não potencializa os sinais de consciência que as mulheres negras adolescentes possuem de sua própria condição. E, ao permanecer em silencio sobre o problema, contribuem para as condições gerais de manutenção da situação.

As mulheres negras adolescentes estão preocupadas com seu aperfeiçoamento após a conclusão do ensino médio. Elas sabem quais são as suas condições de sobrevivência nessa sociedade que discrimina etnia-raça/gênero. Estão visualizando acesso a profissões que são freqüentemente preenchidas por mulheres brancas, quando não por homens brancos. Se somarmos a isso o fato mesmo que, como já vimos, o horizonte é de inserção no mercado de trabalho e que, a universidade é meio para isso, reforça-se a idéia de que a escola/escolarização é muito importante para essas mulheres negras adolescentes. Retomando alguma de suas manifestações:

"...A escola para mim é muito importante, a escola na minha vida é fundamental, porque nela eu posso aprender muitas coisas pra eu poder entrar na faculdade."
"A escola na minha vida é muito importante porque meu pai e minha mãe não tem nem o ensino fundamental completo e eu vejo como sofrem por isso" (Menina nº 17, 16 anos, 1º ano do E.M.)
"Vejo a escola como um objetivo, uma meta, para eu chegar onde quero ou desejo estar algum dia" (Menina nº 19, 16 anos, 3º ano do E.M.)
"...A escola é muito importante. Ah!, na minha vida tem um grau importante né, que sem o estudo, não posso conseguir uma profissão, arrumar um serviço, nada, então eu vejo o estudo como uma coisa importante." (Menina nº 24, 15 anos, 2 ano do E.M.)
"Umas das melhores coisas que existe em minha vida, sem a escola o que eu seria" (Menina nº 10, 16 anos, 2º ano do E.M.)
"A escola é muito importante em minha vida porque, se a gente quer ser alguém na vida temos que estudar. Dou o máximo de mim para aprender quero mostrar pra mim e para todos que eu posso ir muito além do que imaginam" (Menina nº 3, 1º ano do E.M.)
"Algo muito importante pra mim no futuro e um lugar gostoso para fazer amizades e aprender novas coisas" (Menina nº 36, 16anos, 2º ano do E.M.)
"Como um alicerce, uma base para o meu futuro profissional e pessoal" (Menina nº 16, 15 anos, 2º ano do E.M.)

Correndo novamente o risco da redundância, a escola para essas mulheres negras adolescentes é mediadora e sugere ser condição de possibilidade para realização de seus projetos de vida e um meio de garantir-lhes a cidadania, mesmo sendo sua trajetória de vida marcada por discriminações e, algumas vezes, rejeição. No entanto, essa manifestação positiva de querer e tentar mudar o lugar que, a prior,i já está determinado na sociedade para os negros em geral, parece ter outro significado para as mulheres negras adolescentes do ensino médio, que buscam uma perspectiva de romper barreiras e tentar superar as condições de desigualdades e discriminações reforçadas inclusive em suas vidas como estudantes. Não raramente, é um processo que implica num sentimento de rejeição, introspecção e invisibilidade.

Quando as mulheres negras adolescentes se colocam com um projeto de vida é, porque têm um objetivo em suas vidas e começam a dar sinal de sua elevada auto-estima. Suas bases narcísicas estão se construindo e entrando em um processo de independência que significa deixar para traz a infância e edificar um outro mundo interno que se solidifique com o mundo externo, através de uma certa autonomia de experiências, é nessa face que elas se encontram. Segundo Jeammet:

A adolescência põe em questão o conjunto de apoio que asseguram os fundamentos da autonomia do sujeito: suas bases narcíseas como suas estruturas internas que tiram sua eficácia de seu caráter diferenciado. Ao mesmo tempo, ela solicita particularmente a autonomização (Jeammet, 2002, p. 9).

Com esses sinais de autonomia, elas desencadeiam inicialmente a desconstrução, de um estereótipo que faz parte de uma espécie de "inconsciente coletivo" que é a suposta incapacidade do negro. O ímpeto é de demonstração de que isso não é real, apesar das implicações negativas dessa imagem em suas vidas. Mas não podemos perder de vista que essas mulheres negras adolescentes estão inseridas num processo de aquisições de valores culturais e sociais que irá permear a formação de sua identidade. O adolescente está diante de várias regras e condicionamentos sociais que são organizados pela cultura e que diferem uma das outras. Esse processo interfere na maneira de ser do adolescente em cada sociedade.

Para as mulheres negras adolescentes, esses valores culturais e sociais estão colocados para os iguais numa sociedade em que a diferença não é percebida como forma de construção da identidade. Isso significa dizer que, para as mulheres negras adolescentes, até mesmo o rito de passagem da puberdade para adolescência está associado a uma série de mudanças que são constrangedoras tanto do ponto de vista biológico que é universal, como do ponto vista social que está constituído de estereótipos, preconceitos e discriminações através desses valores. E isso é percebido, como vimos, como desafio em condições adversas.

 

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UNITED NATIONS, The main types and causes of discrimination. Comission on Human Rights, Subcomission on Prevention

 

 

1 O artigo aqui apresentado é parte de uma investigação que resultou em texto de dissertação de mestrado defendida no Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Faculdade de Ciências e Letras da Unesp/Car, sob orientação do Prof. Dr. José dos Reis Santos Filho. Foi apresentado originalmente no Iº Simpósio Internacional do Adolescente – Adolescência hoje: desafio, práticas e políticas, no dia 04 de maio de 2005, na Mesa Livre Experiências em situações de violência e projetos de vida, na Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo. Agradeço ao Prof. Dr. José dos Reis Santos Filho o impulso que deu ao presente trabalho.
2 Um formulário foi elaborado e submetido a meninas de escolas públicas e particulares de ensino médio do município de Araraquara, na região central de São Paulo. O procedimento de aproximação reivindicou, em seu primeiro momento, a auto identificação das meninas como negras.