1A pedagogia social de Paulo Freire como contraponto da pedagogia globalizadaO ambiente de abrigo como holding para adolescentes author indexsubject indexsearch form
Home Pagealphabetic event listing  





An. 1 Congr. Intern. Pedagogia Social Mar. 2006

 

A escola diante de alunos em situação de risco: um antídoto ou uma armadilha?1

 

 

Ana Paula Ferreira da Silva2

 

 


RESUMO

Proponho analisar a condição atribuída à escola enquanto antídoto aos males a que estariam expostas determinadas crianças e jovens pobres. Procurou-se elucidar em que medida o termo situação de risco passa a ser utilizado como uma forma de estigmatização dessas crianças e jovens, segundo a abordagem realizada por Goffman (1988,2004). A partir da perspectiva desenvolvida por Thompson (2002), examinou-se a função ideológica dos meios de formação de opinião que atribuem aos termos antídoto e situação de risco significados específicos que dão origem a uma ideologia. Situação de risco é uma construção ideológica que decorre de muitos jogos de poder, que se dedicam a manter diferenças sociais entre aqueles que estão na escola para estudar e aqueles que estão na escola para não ficar na rua. Tal conceito, cada vez mais utilizado para demonstrar os perigos considerados inerentes à pobreza, foi contrastado com a situação concreta de sete crianças e jovens, cujas famílias são compostas por catadores de lixo e, portanto, considerados propensos a esse risco. Mas para além de seu papel de antídoto, alguns professores e a escola ainda se mantêm como um marco que diferencia e atribui um determinado status a essas crianças que carregam a marca da situação de risco. Dessa forma, ainda que estigmatizada, a criança ou o jovem permanecem na escola e procuram construir uma identidade diferenciada em relação às imagens socialmente propagadas do aluno em situação de risco.

Palavras-chave: Educação; escola; identidade; estigma; antídoto.


 

 

Quantas vezes não ouvimos ou até mesmo reafirmamos que se todas as crianças pobres estivessem na escola, poderíamos reduzir os números da criminalidade, ou mesmo que a cada escola construída poder-se-ia fechar um presídio. Essas falas carregam em seu bojo uma concepção de pobreza atrelada quase que diretamente à produção da marginalidade e, ao mesmo tempo, atribuem à escola a função de salvar essas crianças que, talvez apenas por serem pobres, sejam propensas à criminalidade.

Contudo, aceitar que a escola pode exercer um papel importantíssimo na formação dessas crianças e jovens pobres não é errôneo, pois ela é um espaço de socialização e aprendizagem singular. O que compromete essa concepção é a aceitação de que a escola solitariamente mudará a realidade em que esses alunos vivem, seja por atrelar o processo de escolarização à aquisição de um trabalho digno, ou por atribuir à equipe técnico-pedagógica uma formação moral que ultrapassa em muito os conteúdos escolarizados.

Há que se ressaltar que essa associação, embora esteja nas conversas entre os pais, nos portões escolares, no desabafo de professores, nas reuniões pedagógicas, está também nos documentos organizados pelas coordenadorias e secretarias de educação, algumas vezes norteiam políticas públicas, aparecem nas propostas de agências internacionais como o Banco Mundial, Unicef, Unescoe tantas outras, perpassando ainda pelos discursos presentes na mídia, por meio da fala de jornalistas, economistas, enfim, de pessoas que têm a possibilidade de disseminar suas posições pessoais em jornais, revistas, livros e programas de abrangência nacional e quem sabe até internacional.

Ocorre, assim, a construção e a propagação ideológica da imagem de um determinado tipo de escola, que deve atender a essas pessoas pobres e a seus filhos, ao mesmo tempo em que também se forma uma outra imagem, que homogeneíza o pobre como potencial delinqüente. A conseqüência imediata dessa relação é que tanto a escola quanto os alunos são descritos com argumentos descolados da realidade concreta. Metaforicamente, o aluno pobre é tratado como se contivesse em suas práticas sociais uma espécie de veneno social; conseqüentemente, a escola para o pobre é representada, antes de tudo, como se fosse o seu antídoto.

O espraiar de tais opiniões é perigoso, pois a generalização, a homogeneização retiram das pessoas suas histórias pessoais, suas aspirações, sua realidade, e porque não dizer sua própria vida. Chegamos então às falas de que pessoas que moram na periferia são isso ou aquilo, ou de que quem mora em favela age dessa ou daquela forma, ou ainda de que a escola pública é toda precária e, até mesmo de que tal precariedade ocorreu porque essas pessoas chegaram às salas de aula.

Essas falas retiram das pessoas e das instituições suas singularidades, atribuindo-lhes características que servem ora para denegrir sua imagem ou, ao contrário, para elevá-las, constituem um campo de poder ideológico que é amplamente trabalhado por Thompson (2002). Para ele, ideologia corresponde ao campo em que ocorrem os jogos de poder que ressignificam as palavras, as quais, por sua vez, disseminam-se especialmente através da mídia.

São nesses jogos de disputas que são dados novos sentidos às palavras. É nesse contexto, também, que emergem as questões relacionadas à estigmatização, pois, em alguns casos, elas servem para reafirmar esse novo significado de palavras e para estabelecer limites que diferenciam as pessoas, mas sobre isso tratarei mais adiante.

No que tange à atribuição de sentido às palavras, Thompson considera que, em si, elas não possuem o mesmo significado que assumem quando passam a constituir as formas discursivas intrínsecas aos jogos de poder. A essa (re)significação ou a essa significação específica atribuída a determinadas palavras o autor denomina de formas simbólicas:

"As formas simbólicas, ou sistemas simbólicos, não são ideológicos em si mesmos: se eles são ideológicos, e o quanto são ideológicos, depende das maneiras como eles são usados e entendidos em contextos sociais específicos. [...] Este enfoque pode levar-nos a olhar uma forma simbólica ou um sistema como ideológico num contexto e como radical, subversivo, contestador noutro. [...] A análise das formas simbólicas como ideológicas nos pede que as analisemos em relação aos contextos sócio-históricos específicos nos quais elas são empregadas e persistem" (Thompson, 2002, pp.17-18).

Ao resgatarmos alguns trechos de jornais, revistas e livros de grande circulação, que abordam a educação como uma via de salvação da pobreza, podemos exemplificar o que Thompson nos apresenta.

No livro de Gilberto Dimenstein, O cidadão de Papel, encontramos a seguinte passagem:

"Durante todo o texto, falamos em círculo vicioso, ou seja, você foi vendo como a pobreza reproduz pobreza. A família é pobre. Mora em uma casa onde não tem saneamento básico. O ambiente facilita a transmissão de doenças. As doenças enfraquecem o corpo, que fica desnutrido. A criança desnutrida não aprende direito o que é ensinado. E quem não estuda não consegue arrumar um bom emprego. Um jeito de quebrar esse círculo tenebroso é a educação. Isso porque uma pessoa instruída pode defender melhor os seus direitos e saber quais são as suas obrigações" (Dimenstein, 1997, p. 140 grifo meu).

Em 22 de janeiro de 2003, o economista Cláudio de Moura Castro divulgou na revista Veja o artigo Aprendizagem de mentira, no qual aborda a questão do trabalho de menores de idade em grandes fábricas. Compara um jovem operário brasileiro e outro alemão, mostrando que a mesma fábrica da Volkswagem, considerada segura na Alemanha, no Brasil é apontada pelos governantes como possuidora de uma série de riscos a que um jovem operário estaria exposto. Nesse sentido, Castro pontua que:

"[...] riscos sempre há e todo o cuidado para reduzi-los é justificado. Mas o risco de acidentes no setor informal e de morte violenta para jovens nas grandes cidades brasileiras é dezenas de vezes maior que o risco de acidentes em fábricas. Em outras palavras, um jovem de classe operária está mais seguro dentro da fábrica da Volks (ou qualquer outra do gênero) que na rua" (Castro, 2003b, p.22 grifo meu).

Em outro artigo, intitulado Itabirito não tem Fome Zero, Castro discorre sobre as inúmeras condições que fazem de Itabirito, uma cidade mineira com o décimo Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) mais alto do Estado. Referindo-se às "múltiplas manifestações de uma sociedade civil ativa", apresenta o trabalho realizado por "um clube privado de tênis, onde 200 crianças pobres recebem aulas, gratuitamente, desde que freqüentem a escola com bom aproveitamento. Em vez de infratores, já saíram desse grupo dois campeões brasileiros" (Castro, 2003a, p.10 grifo meu).

Em reportagem veiculada no jornal Folha de S. Paulo, em 01 de junho de 2003, intitulada A descoberta do antídoto contra a violência, Dimenstein apresenta, entre outras considerações que:

"O Ministério do Trabalho anunciou, na quinta-feira, que, no programa Primeiro Emprego, haverá um estímulo especial a quem executar serviços sociais. O jovem receberia um salário para atuar como agente comunitário. Aquele que seria um candidato à marginalidade passa a melhorar o lugar em que vive, tornando-se uma referência. Seu papel, em essência, é gerar capital social" (Dimenstein, 2003, p.C12, grifo meu).

Esses pequenos recortes remetem à banalização da idéia de que a criminalidade e a marginalidade estão atreladas à pobreza e que a quebra desse ciclo só é possível quando o jovem conta com ações sociais que, em maior ou menor grau, privilegiam o sistema educacional.

Desse modo, a escola é alvo de uma ressignificação que, ao mesmo tempo em que é privilegiada como espaço propício para o atendimento desses jovens "potencialmente infratores", por outro, transforma-os em culpados pela perda de sua qualidade.

Assim como acontece com esta imagem da escola, via de regra, o jovem pobre é apontado como se fosse um marginal que, se não for afastado da pobreza que o cerca, jamais poderá escapar de sua predestinação: a marginalidade. Mas há, ainda, um outro modelo de representação do jovem pobre: o jovem em situação de risco.

Temos aqui um ponto crucial na utilização ideológica da palavra risco, pois há uma ressignificação social da palavra. Situação de risco, inicialmente, indicava aquelas crianças que possuíam maior propensão a desenvolver doenças mentais (cf. Ajuriaguerra apud Rosemberg, 1994, p. 31), mas, quando esse termo ultrapassou o campo da saúde e foi utilizado pelas ciências sociais, foi ressignificado: está em risco aquele indivíduo que ainda não enveredou para o mundo da marginalidade, mas que tem grandes chances de se perder, ou ainda, aqueles que já cometeram alguma contravenção, mas estão em período de reeducação.

Nesse exemplo, temos claramente a mudança epistemológica do risco que era biológico para o risco social. Essa mudança traz consigo uma série de conseqüências, especialmente quando é encravado entre os muros escolares, pois aos professores cabe salvar, curar esse aluno, que é , sem dúvida, diferente do aluno ideal que vai para a escola para aprender os conteúdos das disciplinas escolares. A este aluno em situação de risco, diferentemente, é necessário ensinar os valores de uma suposta sociedade que está para além dos riscos da criminalidade e, se ele aprender essa primeira lição rapidamente poderá, quem sabe, ter acesso aos conteúdos escolares, assim como os demais.

Chegamos, então, na diferenciação de alunos: os que fazem jus ao título que recebem e aqueles que estão em risco, mas como determinar quem efetivamente está em risco se o seu próprio significado é algo ideologicamente construído e, portanto, afastado da realidade concreta?

Determinar quem está ou não está em risco não deixa de ser um movimento que se desdobra a partir de uma série de outras imagens do pobre. Procura-se por marcas que confirmem esse risco. Tais marcas podem ser encontradas em tantas outras falas como: o pai está preso, a família é de traficantes, vive nas ruas, pede esmola, trabalha em feira ou é catador de lixo.

Essas falas, por sua vez, dão origem a outras: esse aluno não tem jeito mesmo, o problema dele é a família, não adianta tentar, pois esse tipo de aluno não aprende mesmo, ou ainda, se a escola fosse boa esse aluno não teria se perdido, se estivesse na escola, ao invés de estar na rua, poderia aprender algo de bom, se estivesse na escola não teria cometido esse ou aquele crime.

Todas elas, desde as propagadas na mídia até as que circundam a escola e a casa desses jovens pobres, reforçam a imagem da escola como antídoto ao jovem pobre, que, nas ruas, só encontrará uma vida de delinqüência e morte.

O que se esquece nessa forma de construção ideológica é que a vida não é tão linear: ricos são bons e bem sucedidos porque estudaram e pobres são marginais porque não foram preparados, quem está na escola consegue um bom trabalho, quem está nas ruas vive desonestamente.

A fim de demonstrar o quanto essa construção ideológica da escola e dos alunos em risco é distante da realidade concreta que encontramos nas escolas de periferia, tomo por base o caso de uma família de catadores de lixo, entre tantas outras que assim sobrevivem, demonstrando as relações recíprocas de tais sujeitos com a imagem socialmente propagada sobre eles.

A escolha de uma família catadora de lixo não foi aleatória, mas sim, porque já congrega em sua origem uma marca que a diferencia das demais pessoas pobres: é uma família que "vive do lixo". Visto assim, logo nos vem à mente a imagem daquelas pessoas miseráveis que, nos lixões das grandes cidades, recolhem restos de alimentes praticamente em decomposição para não morrerem de fome. Todavia, quando falamos de catadores de lixo não estamos nos remetendo essencialmente a essas pessoas, pois, em número muito maior, estão aqueles que saem às ruas com seus carrinhos de ferro velho para recolher materiais que, quando vendidos, geram uma renda que pode chegar a até dois salários mínimos.

Temos então, um primeiro obstáculo: por desconhecimento, associa-se a rotina dessas pessoas que catam lixo à imagem das pessoas famintas. Mas ela é falsa. Entretanto, é dessa imagem distorcida, que se propaga pela sociedade, que muitas pessoas se valem ao se relacionarem com aqueles que vivem do lixo. Muitas vezes, as crianças, ao serem matriculadas na escola (pública), já sofrem esse, digamos, primeiro estigma (cf. Goffman, 2004; 1988), pois de imediato são associados ao trabalho que a família realiza.

A imagem da criança desnutrida, com pouca higiene, que mora em um lugar sem as mínimas condições básicas de sobrevivência e cuja família não tem instrução, se gruda imediatamente a esse aluno, fazendo com que muitos professores o tratem de forma diferenciada, pois, sempre que não apresentar um bom desempenho, essas marcas ou estigmas aparecerão para justificar suas dificuldades.

Essa família, assim como outras tantas que estudam na mesma escola pesquisada, mora em um apartamento popular construído pela Prefeitura de São Paulo. A luz foi cortada por falta de pagamento, para a TV e para um pequeno abajur funcionarem, utilizam uma tomada do corredor do prédio. O banho geralmente é frio, pois não dá para gastar tanto gás para esquentar a água que cinco crianças e duas mulheres usariam – avó, mãe e cinco crianças cujas idades variam de 13 a 4 anos.

O trabalho de catar lixo das ruas foi iniciado pela avó. Ao chegar de Minas Gerais, não encontrou em São Paulo a terra próspera que esperava, mas não desanimou e, mesmo depois que sua filha nasceu, continuou a ir para as ruas. Sua filha, desde cedo, saía com ela para ajudar no recolhimento dos materiais e, acabou ensinando para seus filhos o mesmo trabalho.

Essa família já passou (e passa) por muitas dificuldades, como o alcoolismo da mãe, a perda do irmão mais velho – que, segundo a avó, ajudava muito na renda da família – e, das cinco crianças, um pai está preso e o único que é presente, quando sabe que a filha teve algum problema na escola, dá-lhe uma surra.

Essas condições – alcoolismo da mãe, vários pais para uma mesma mãe; pais ausentes e/ou presidiários, além, é claro, do fato de catarem lixo – torna esta família um alvo fácil de estigmas e preconceitos, que só podem ser desmistificados quando tais barreiras são ultrapassadas.

Lúcia tem 13 anos e é uma garota bastante tímida e retraída. Após a morte de seu irmão Pedro, tornou-se a filha mais velha da família. É muito difícil ouvir sua voz, mas é fácil compreender a responsabilidade que carrega.

Como a avó já está idosa, a mãe sai com sua filha e mais um de seus irmãos, em dias alternados, para recolher do lixo colocado nas portas das residências algo que possa ser vendido na manhã seguinte e garantir a compra do gás, dos alimentos e das demais coisas de que a família precisa. Para voltar a ter luz – comenta a avó em um dos depoimentos colhidos durante a pesquisa – é preciso esquecer da barriga.

Como o caminhão de lixo da Prefeitura de São Paulo passa na região em que elas recolhem tais materiais no período noturno, a mãe, Lúcia e um de seus irmãos saem de casa por volta das 23 horas e só retornam às 2 horas da manhã. O sono fica restrito a 4 horas já que, para não se atrasarem para a escola, as crianças mais velhas são acordadas às 6 horas da manhã. Lúcia, após passar aproximadamente 4 horas trabalhando e ter dormido pouco, arruma-se para ir com seus dois irmãos para a escola.

Ela está no 4บ ano do Ensino Fundamental I e já é a terceira vez que cursa a mesma série. Ainda sabe muito pouco: escreve com dificuldade, mal consegue ler e mesmo em matemática, disciplina em que tem mais facilidade, não consegue tirar boas notas, pois não compreende o enunciado dos problemas. De toda forma, a escola é um espaço pelo qual Lúcia demonstra um grande apreço.

Quando as aulas acabam, ela volta para casa com seus dois irmãos maiores e leva os outros dois menores para a escola de Educação Infantil. Volta novamente para casa e aí começa uma maratona de atividades: com sua mãe, leva o lixo recolhido ao depósito de ferro-velho para vender, passa em algum mercado para comprar a comida do dia, arruma e limpa a casa e finalmente ajuda seus irmãos nos afazeres da escola, pois Lúcia é a pessoa com maior instrução na família. Mesmo com toda a sua dificuldade, é ela a que tenta ensinar para os irmãos, não apenas as lições em que têm dificuldade, mas também o valor da escola e do estudo.

É interessante pensar no caso de Lúcia, pois, mesmo ao ser reprovada tantas vezes, continua a reconhecer que a escola poderá lhe proporcionar um futuro melhor. Mas essa esperança foi plantada por sua avó: por não ter escolarização alguma, trabalhou duro para que sua filha freqüentasse a escola, mas ela só conseguiu cursar até o 2บ ano do Ensino Fundamental I, já seus netos estão na escola desde a educação infantil e Lúcia é considerada quase que uma "honra" para a família, por já ter chegado "tão longe" nos estudos.

Essa valorização da escola geralmente está atrelada à idéia de que, a cada geração, as oportunidades de trabalho serão maiores e melhores. Esta parece ser a lógica tanto da avó quanto a de Lúcia, mas não é a realidade que a família vivencia. Temos, então, um exemplo de como a forma simbólica da escola liga-se ao mundo do trabalho de maneira tão intrincada que, mesmo uma família que não conseguiu melhorar de vida com a escolarização que teve, acredita e perpetua essa imagem ideologicamente construída.

Quase ou tão forte quanto essa construção ideológica, há uma outra: a das crianças que vivem do lixo. Lúcia e seus irmãos, como foi apresentando anteriormente, tomam banho frio, pois não há luz elétrica na residência, mas não são favelados ou crianças de ruas. Elas têm família, um lar e, de certa maneira, uma renda (coletam aproximadamente R$60,00 por semana). De qualquer maneira, viver do lixo não é uma atividade valorizada, pois lidam com o que não serve mais, com o resto, com a imundície . O cheiro do lixo fica impregnado em suas roupas e em seus corpos, o que os denuncia facilmente, afastando-os da imagem do aluno ideal – limpo, organizado, educado... – dificultando a relação que estabelecem com a escola (professores, equipe técnica e até mesmo outros colegas).

Agrega-se a isso as marcas da pobreza associadas a uma dificuldade maior de aprendizagem, não só dos conteúdos escolares, mas também de como devem agir e interagir nesse espaço educacional. Todas as suas "falhas" são usadas para reforçar essa distância entre o aluno e a criança pobre: ele não vai aprender porque vive do lixo; essas pessoas não sabem se comportar na escola; não fazem nem o dever de casa – como se todos tivessem uma casa para fazer o dever – a família é desestruturada; a mãe é alcoólatra; o pai está preso e tantos outros discursos que demonstram o porquê dessas crianças pobres não se adaptarem ao mundo escolar.

Mas tudo isso só pode ser observado de perto, quando se mergulha no cotidiano dessas pessoas e se percebe o uso que fazem daquilo que está disponível para eles: os professores, muitas vezes lançam mão desses discursos, pois já não sabem mais o que fazer com esses alunos que trazem realidades tão distantes da escola em que estudam; a escola, embora esteja localizada no mesmo contexto social dos alunos, às vezes mantém-se alheia aos problemas particulares daquele local para não entrar em confronto com moradores que são considerados perigosos (ainda que muitas vezes essa relação também seja irreal ou errônea); e tudo isso culmina em imagens, em opiniões e não em constatações, retirando das pessoas concretas envolvidas nessa relação a possibilidade de olhar para o outro sem procurar onde ancorar suas justificativas de fracasso, mas sim de buscar o que pode ser feito dentro das realidade existente.

Lúcia é uma menina pobre, vive do lixo, não tem contato com – e talvez sequer conheça – seu pai, cuja mãe é alcoólatra, mas ela não é só isso. Possivelmente, essas não são as causas principais da sua dificuldade de aprender: ao dormir na sala de aula, é vista como uma aluna relapsa ou desinteressada; às vezes, por exalar o cheiro do lixo que coletou, é tida como uma aluna sem higiene; por não trazer sua tarefa pronta, é vista como quem não quer aprender mesmo, mas, ao ver a realidade dura que essa menina vive, sabemos que não é bem assim. O sono, o mau cheiro e a tarefa por fazer não são escolhas, mas obrigações e, por que não dizer, sobrevivência.

Mas tudo que não quero é incorrer no erro de afirmar que os professores de escola pública são incapazes de perceber essas nuanças da pobreza, tampouco reafirmar a imagem de que pessoas pobres não aprendem. Mais uma vez, volto a um ponto fundamental para compreendermos como a escola é construída ideologicamente como um antídoto ao pobre: perpetuar uma idéia, um jargão, não significa que a ação concreta das pessoas envolvidas seja essencialmente aquela. Dizer que alunos com famílias desestruturadas não aprendem é comum, mas não impede que esforços sejam feitos para que eles efetivamente aprendam. Da mesma forma, acreditar que a escola vai propiciar melhores oportunidades de trabalho para todos que estudaram é inconsistente, tendo em vista a sociedade em que vivemos.

A escola, embora apareça em alguns trechos como a grande vilã de toda a perpetuação e, até mesmo, construção dessa estigmatização do pobre que chega aos seus bancos é, na verdade, a maior vítima, pois a ela é atribuída uma função salvacionista que não ocorre de forma linear e universal. Multiplicam-se os exemplos de pessoas que deram certo para demonstrar que basta boa vontade para que o mundo seja diferente, mas não há referência clara a respeito do quê exatamente constituiu a singularidade que propiciou um outro caminho.

Culpa-se a escola por perder a sua qualidade, no momento em que atendeu às camadas populares, como se fosse possível que a expansão do ensino mantivesse o mesmo status de qualidade do sistema educacional quando era disposto apenas para a elite.

Junto a essa perda de qualidade temos a circulação de opiniões que disseminam o conteúdo necessário para a consolidação de uma imagem socialmente negativa da escola: os professores de escolas públicas são mal formados, suas práticas são retrógradas, não se empenham em sua profissão, tampouco buscam melhorar as suas condições de trabalho. Ainda que parte do que se dissemina como sendo única imagem da escola pública possa ser comprovado empiricamente, parte desse conjunto de opiniões não se sustenta, pois tenta justificar o fracasso da escola tendo por critério sua dificuldade em salvar os alunos que estavam em risco, culpando os professores, ao invés de reconhecer que essa concepção salvacionista é incongruente.

Tal incongruência gera um mal estar na escola – tanto entre os professores quanto em relação à equipe técnica que dá suporte à demanda escolar. O desabafo de um orientador técnico-pedagógico demonstra o quanto essa pressão, exercida pela mídia, pelo governo e pelas próprias pessoas, para que a escola salve ou mude o rumo da vida de muitas crianças é superficial, capaz de sufocar o próprio sentido de sua atuação junto a essa população. Dizia ele:

"[...] o nosso trabalho é eminentemente formador, se a Coordenadoria cumpre esse papel de formadora, ela contribui com a formação de políticas públicas "de lá pra cá", "de lá pra cá", porque você tem uma apropriação crítica do que são as ações de educação da cidade, do que é viver nessa cidade e, portanto a cidade lê mais criticamente as suas relações com o seu espaço, com a cidade, com o país. Então é possível, com certeza, criar possibilidade da comunidade se mobilizar também. Não somos redentores da humanidade [não é ela que vai salvar a humanidade, libertar a humanidade, emancipar a humanidade], a escola não tem esse papel, porém a escola não é também só reprodutora das desigualdades sociais, a escola pode ser um espaço de resistência e a formação também pode estar a serviço da resistência. E é uma saída! [...] Então a escola pode ser um espaço de resistência, que dê a sua contribuição para um processo de emancipação, de uma sociedade marcadamente desigual, e que também se posicione criticamente para posturas que reproduzam essas desigualdades sem questionamento" (Silva, 2005, p.167).

Temos neste trecho uma demonstração de quando a escola se bate contra a pretensão de salvar a humanidade. Da mesma forma que se usa a imagem daquele que retira do lixo seu alimento para fazer dela a representação do catador de modo geral, a escola é alvo de duas formas diferentes de análise ideológica: todas as crianças, especialmente as mais pobres, devem freqüentar a escola para que fujam da marginalidade em que estão inseridas; ao mesmo tempo, quando é demonstrado que essa correlação é insuficiente e equivocada, um segundo discurso é apresentado: o da escola deficiente, com uma equipe displicente, sem propostas concretas e adequadas de atendimento àquela população carente.

Tanto uma visão quanto outra é ideologicamente construída e, portanto, não corresponde à realidade educacional: há falhas na escola pública, ao mesmo tempo em que há propostas reais de trabalho junto às populações carentes. Todavia, para entender o que efetivamente a escola pública significa na vida dessas crianças pobres e quais as suas verdadeiras possibilidades de atuação, é necessário olhar de dentro de suas dependências para fora e não o contrário.

Propostas educacionais que acolhem imagens distorcidas que circulam sobre a escola, sobre os alunos e sobre os professores que lá trabalham, apenas perpetuam a impressão social de que a pobreza e a marginalidade são correlatas. Consolidam também o diagnóstico de que à escola cabe o papel de salvar essas crianças da sua própria realidade – chegando, em alguns casos, a ser colocada como meio único de transformação social – retirando até mesmo o seu papel efetivamente educacional.

 

Apontamentos Finais

Pensar a escola pública e o atendimento que ela deve dispensar às populações mais carentes, sem dúvida, é um empreendimento de grande valor, mas alguns cuidados devem ser tomados para que não se incorra no erro de propagar a imagem de uma escola e de um aluno que, na verdade, não existem concretamente.

Os alunos que trabalham, que não têm uma moradia fixa e que vivem sem as mínimas condições de saneamento, cujos pais são ausentes, desconhecidos, presos ou viciados – e assim tantas outras condições peculiares e singulares – não podem ser reduzidos a tais aspectos próprios dessas conjunturas, bem como não podem ser considerados sem levar em conta o peso dessas condições.

Eles são alunos com aspectos existenciais particulares. Tais aspectos facilmente se convertem em marcas, capazes de estigmatizá-los como se fossem somente crianças à beira da perdição social. O contraditório está no fato de que exatamente essas condições adversas garantem que eles permaneçam na escola e que, mesmo diante das inúmeras dificuldades que se interpõem entre sua vida particular e escolar, garantem a freqüência às aulas. Trabalham para que possam estudar. Noutras circunstâncias esses são os ingredientes que conformam a imagem do assim chamado cidadão de bem. Trabalham e estudam tentando encontrar algo que lhes garanta a expectativa de uma vida diferente da que seus pais tiveram.

Muitos meninos e meninas, quando saem das ruas e entram na escola, creche, projeto social etc., tornam-se catadores de fragmentos que escapam dos cadernos. Vivem da recolha das sobras das letras para revendê-las recicladas no mercado de afetos, onde têm oportunidade de organizar gestos de co-responsabilidade que negam, minuto a minuto, que a pobreza é o lugar privilegiado para se encontrar a anomia. (Freitas e Silva, 2005, p.80)

Lúcia poderia ser mais uma aluna que, ao ser reprovada inúmeras vezes, abandonasse os estudos e dedicasse seu tempo a recolher mais lixo e, portanto gerar mais dinheiro para a família; mas não o fez. Ao contrário, demonstra que a escola tem um grande valor para ela, embora essa escola – construída ideologicamente em tantas falas – não demonstre o mesmo apreço por alunos como ela. Para estes, parece que não cabe a educação que buscam (aprender a ler, escrever e contar), mas sim aquela que visa retirar os pobres da pobreza em que se encontram, ensinando-lhes como devem se comportar para que não se percam na anomia.

Cabe a nós, então, buscar criticamente relacionar pobreza e educação, voltando nosso olhar para as escolas públicas de periferia, pois são estas que resguardam algo muito mais precioso para a pesquisa em educação do que o preconceito contra o aluno problemático.

Perceber as singularidades desse aluno que não é bem vindo ao sistema educacional e que, mesmo diante de tantas adversidades e barreiras, ainda permanece nos bancos escolares, torna necessário mergulhar no cotidiano escolar, deixando para fora dos seus muros nossas concepções de aluno e de escola ideais, pois só assim será possível compreender as nuanças que fazem da escola real um espaço único. Único na dialética da rejeição com acolhimento. Talvez assim seja possível interromper a circulação de imagens do aluno pobre como veneno social e da escola como seu respectivo antídoto.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

CASTRO, Cláudio de Moura. 2003a. Itabirito não tem Fome Zero. São Paulo: Abril: Veja. 10 de setembro de 2003.

__________. 2003b. Aprendizagem de mentira. São Paulo: Abril: Veja. 22 de janeiro de 2003.

DIMENSTEIN, Gilberto. 2003. A descoberta do antídoto contra a violência. São Paulo: Folha de S. Paulo: Cotidiano, p. C12. Jun. 1, 2003

__________. 1997. O Cidadão de Papel: infância, adolescência e os Direitos Humanos no Brasil. São Paulo: Ática.

FREITAS, Marcos Cezar de; SILVA, Ana Paula Ferreira da. 2005. Escolarização, pobreza e socialização na infância e na juventude: uma proposta de plataforma de pesquisa interdisciplinar para a educação. Eccos – Revista Científica. São Paulo: Uninove, v.7, n. I, pp. 57-86, jun.

GOFFMAN, Erving. 2004 A representação do eu na vida cotidiana. Rio de Janeiro: Vozes.

__________. 1988. Estigma: notas sobre a manipulação da identidade deteriorada. Rio de Janeiro: LTC

ROSEMBERG, Fúlvia. 1994. Crianças pobres e famílias em risco: as armadilhas de um discurso. In.: Revista Brasileira de Crescimento e Desenvolvimento Humano. Família em tempos de transição. São Paulo, ano IV, n.บ1, p.28-33, jan-jun 1994.

SILVA, Ana Paula Ferreira da. 2005. A construção ideológica da escola como antídoto ao estigma "situação de risco" atribuído a crianças e jovens: elementos para uma crítica. Dissertação de Mestrado. PUC/SP.

THOMPSON, John B. 2002. Ideologia e cultura moderna: teoria social crítica na era dos meios de comunicação de massa. Rio de Janeiro: Vozes.

 

 

1 Esse artigo baseia-se na Dissertação de Mestrado intitulada "A construção ideológica da escola como antídoto ao estigma "situação de risco" atribuído a crianças e jovens: elementos para uma crítica" defendida em agosto de 2005, sob orientação do Professor Doutor Marcos Cezar de Freitas no Programa Pós-Graduado em Educação: História, Política, Sociedade – Pontifícia Universidade Católica/SP.
2 Doutoranda do Programa Pós-Graduação de Educação: História, Política, Sociedade na Pontífice Universidade Católica/ SP, orientada pelo Prof. Dr. Marcos Cezar de Freitas. E-mail: anafsil@yahoo.com.br