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An. 1 Congr. Intern. Pedagogia Social Mar. 2006

 

O ambiente de abrigo como holding para adolescentes

 

 

Ana Paula Granzotto de Oliveira1

 

 


RESUMO

A institucionalização de crianças e adolescentes ainda é hoje um tema de crucial relevância uma vez que, observa-se a grande demanda e, conseqüentemente o incremento de sua importância no cenário atual. Após a implementação do ECA, o abrigo passa a ser uma instituição destinada a acolher crianças e adolescentes como medida de proteção e que deve seguir os preceitos estabelecidos por este. Assim, faz-se necessário refletir sobre o sentido e significado do termo acolhimento nos programas de políticas públicas e em relação à sua significação mais ampla, bem como considerar o processo adolescente em situação de abrigagem. Para tanto, a autora define alguns conceitos imprescindíveis para o desenvolvimento desta pesquisa, como: ambiente, holding e ambiente suficientemente bom. O objetivo é compreender se o ambiente de abrigo se constitui um espaço referencial e reorganizador para os adolescentes que necessitam, oferecendo um ambiente continente de resignificação de suas experiências traumáticas anteriores que os levaram à situação de abrigamento, bem como observar quais alterações se distinguem das praticadas nas grandes instituições. Para tanto, buscou-se analisar o contexto das instituições, suas práticas e as vozes dos adolescentes, monitores e técnicos. O método de pesquisa utilizado foi à descrição de cunho etnográfico da instituição e, para a análise dos dados, utilizou-se Análise de Conteúdo nas narrativas dos adolescentes e adultos entrevistados. Os resultados apontam para a importância de um acolhimento singular e mais continente ao processo adolescente.

Palavras-chave: ECA; abrigo; holding; ambiente infância e adolescência.


 

 

Introdução

Este artigo tem origem na prática de uma das autoras enquanto psicóloga em equipamentos de acolhimento para adolescentes em situação de vulnerabilidade social e em um projeto de pesquisa em Psicologia Social e Institucional em andamento junto à Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).

O artigo investiga o sentido e o significado do termo acolhimento nos atuais programas de Políticas Públicas e em relação à sua acepção mais ampla – seu significado em termos de estrutura física, dinâmica funcional e aspectos sócio-afetivos de abrigos enquanto ambientes2 efetivos de acolhimento de adolescentes como medida de proteção.

 

Contextualização

A promulgação da Lei do Ventre Livre, em 1871, iniciou um movimento de institucionalização de crianças vítimas de abandono no Brasil (Benites, 1998). A institucionalização de crianças e adolescentes foi, e ainda parece ser, historicamente constituída como uma das principais práticas no atendimento a infância pobre no país. Esta prática pode também ser refletida como um método assistencialista voltada para a contenção do desvio, caracterizada como discriminatória e estigmatizante.

Assim, pode-se pensar que a institucionalização de crianças e adolescentes surge como resultado de uma demanda, onde o crescimento das cidades e a complexidade da vida social exercem significativa importância. A irrefutável maioria destes sujeitos provém de famílias definidas como desestruturadas. Famílias estas, que refletem às mazelas da pobreza, explicitando a injusta política social, legitimada no país.

O que se constata é que inúmeras instituições foram criadas com a finalidade de acolherem crianças e adolescentes que vão para as ruas ou são retirados de suas casas, pelo fato de que, muitas vezes, o poder familiar é suspenso devido a situações caracterizadas como negligência e maus tratos. Observa-se assim, o quanto muitas dessas instituições são, na atualidade, resposta a uma demanda produzida pela própria sociedade, frente a uma série de violências, explícitas e implícitas, vividas pelas crianças e adolescentes (Silva, 1997). Essa violência contra esse segmento da população pode, muitas vezes, ser observada também no interior das instituições de abrigo como nos aponta Marin (1998), uma vez que, estes não conseguem proporcionar um espaço referencial e reorganizador para as inúmeras crianças e adolescentes que necessitam.

Winnicott, autor de grande importância para o desenvolvimento desta pesquisa, inicia seu trabalho sobre privação e delinqüência com as crianças evacuadas durante a Segunda Guerra Mundial e constata que a evacuação, para algumas crianças, era problema secundário se comparado com os problemas enfrentados em seus próprios lares. Assim, passa a trabalhar com estas crianças em alojamentos, onde a filosofia e a meta eram gerir um ambiente "suficientemente humano e suficientemente forte, para conter, os que prestam assistência e os destituídos e delinqüentes, que necessitam desesperadamente de cuidados e pertencimento, mas fazem o possível para destruí-los quando encontram" (Clare Winnicott, 1999, XVI). Winnicott (1999) alerta para a importância de se oferecer apoio e amparo às crianças e adolescentes que necessitam viver em alojamento e isto pode ser realizado através do cuidado e da manutenção que se dará a este.

 

Objetivos

Os principais objetivos da pesquisa que deu origem a esse artigo foram identificar e contextualizar, através de recortes do cotidiano de Instituições de Acolhimento de adolescentes, se as práticas diárias reconhecem o processo adolescente e propiciam um ambiente continente que oportunize ressignificação de suas experiências traumáticas anteriores.

A questão que norteou essa pesquisa é revelar como os ambientes de abrigo, enquanto uma medida de proteção preconizada após a implementação do ECA, estão se estruturando para o "acolhimento transitório" de adolescentes em situação de vulnerabilidade social. Buscando a contextualização dessas instituições descrevemos e analisamos as rotinas, práticas cotidianas e estrutura física destes equipamentos com o objetivo de refletir o quanto tal contexto contempla a formação de um "ambiente suficientemente bom" (Winnicott, 1999) para os adolescentes abrigados levando em conta sua singularidade.

Como objetivo específico analisamos e comparamos as diretrizes e estruturas de dois equipamentos distintos para abrigagem de adolescentes em situação de vulnerabilidade social – um equipamento estatal e uma ONG (Organização Não Governamental) – buscando identificar possíveis diversidades nas práticas dessas duas Instituições.

 

Adolescência

Antes de aprofundarmos quaisquer discussões sobre o acolhimento de adolescentes é imprescindível refletir sobre o conceito de adolescência, uma vez que se observa o quanto esse termo sofreu algumas alterações ao longo dos anos. Segundo Grossman (1998) o que se denomina adolescência na atualidade só passou a ser observado a partir do século XVIII. Desde então, este período da vida de um indivíduo passa a ser caracterizado como um "momento crítico", envolvendo aspectos biopsicossociais, como: suspensão do sereno crescimento (Anna Freud, 1958) crise de identidade (Erikson,1968), ritos de passagem de um lugar no social (Outeiral, 1994), estado confusional vivido pelo adolescente (Cassorla, 1998), período de indecisão subjetiva e de incerteza social (Rassial, 1995) estão presentes em maior ou menor intensidade. Esta fase da vida começa então a ser encarada como um processo psicossocial e terá distintas peculiaridades de acordo com o ambiente social, econômico e cultural do indivíduo (Outeiral, 1994). Um ambiente marcado pela imperiosa velocidade com que se vive a produção e circulação de valores, bem como a descartabilidade na contemporaneidade.

Um outro aspecto particularmente relevante da adolescência, principalmente no contexto do abrigamento de adolescentes, é a ambivalência emocional do processo adolescente (Cassorla, 1998). Segundo Cassorla, este é um momento em que está presente, ou deveria estar, o idealismo, ou seja, a capacidade ou a possibilidade do adolescente se indignar em relação às crueldades e perversidades do mundo. É neste momento que o adolescente pode passar a ser considerado um indivíduo, separado de seus pais. E para que isso ocorra, geralmente o adolescente rebela-se contra eles; um processo ao mesmo tempo almejado e temido, uma vez que são também os pais que, a priori, deveriam proteger o adolescente dos obstáculos e sofrimentos da vida.

Ainda para Cassorla, o adolescente vive um estado confusional, "em que não sabe mais o que deve ou não fazer, menos ainda como deve fazer", que pode ser pensado como conflito de gerações (p.16). É diante desse estado que o adolescente necessita ter, nos "adultos cuidadores", figuras com as quais se identifique (reais ou imaginárias), mas que o façam sentir-se também diferenciados. Os adolescentes necessitam de referenciais sólidos, que suportem a importante função de segurança ao complexo processo adolescente.

Winnicott (1983) atribui significativa importância ao ambiente na estruturação do sujeito e defende a necessidade de um ambiente estável e saudável, assim como uma boa identificação, para que o indivíduo possa alcançar a vida adulta de forma satisfatória.

Faz-se então imperativo refletir sobre a adolescência, especialmente a adolescência vulnerável – por que ela nos incita, perturba, desafia, marca, atormenta e nos cativa? – e refletir sobre o adolescente vulnerável que, muitas vezes, pode apresentar necessidades, características distintas de um adolescente que consegue experienciar o processo adolescente com todas as suas nuances a partir de condições tidas como normais. Além disso, é importante não tratar a adolescência somente em termos de uma adolescência padrão, originada de definições e estilos de vida da classe dominante, mas sim pensar no quanto essa adolescência é múltipla e inventada como produto histórico e social (Dornelles, 2005) em resposta a uma demanda política e econômica.

 

Abrigos e Vulnerabilidade Social

Refletir sobre o adolescente em situação de vulnerabilidade social e pessoal é antes refletir sobre o significado do termo vulnerabilidade, muito além do ponto de vista semântico. Embora freqüentemente utilizado, o termo vulnerabilidade nem sempre é claramente definido. Assim, encontra-se geralmente na literatura, uma demarcação do público alvo do texto que trata de vulnerabilidade social – famílias em situação de pobreza e vulnerabilidade social – mas algo que poderia ter um significado bem mais abrangente, parece sempre se referir somente a um modo econômico vigente. Mesmo em uma sociedade excludente e perpetuadora de desigualdades onde pessoas de baixa renda possam ser consideradas vulneráveis, o termo vulnerabilidade deveria significar muito mais do que somente ausência de recursos financeiros. Conforme vem sendo trabalhado no Conviva3, a situação de vulnerabilidade social caracterizada nos programas de políticas públicas está diretamente relacionada à categoria em situação de risco. Vale acentuar que, o que não tem sido explicitado é que, muitas vezes, tacitamente o risco é entendido como para a sociedade e não para os indivíduos vulneráveis.

Em uma mesma situação estão diferentes indivíduos de várias classes excluídas e categorias sócio-culturais determinadas – órfãos, miseráveis, crianças abandonadas, loucos, infratores, velhos, libertinos, anormais e meninos de rua. Diferentes em quase tudo, semelhantes em relação a uma mesma condição de vulnerabilidade pessoal e social. Assim, idealmente se deveria buscar um outro significado para o termo situação de vulnerabilidade social e questionar que sujeitos, na atualidade, fazem parte dessa nova categoria – os vulneráveis.

Atualmente são estes adolescentes – os vulneráveis – que serão enviados para os abrigos4; para serem acolhidos com todos os significados que o termo vulnerável abrange.

Assim, crianças e adolescentes em situação de vulnerabilidade pessoal ou social passam então a ter o abrigo como lar até que sua situação jurídica seja definida e que possam retornar aos seus lares de origem, ou serem encaminhadas para um lar substituto. Este é o caminho ideal (e até certo ponto, utópico), que todos gostariam que acontecesse. Porém, freqüentemente o abrigo acaba se tornando um lar permanente – um espaço onde estas crianças e adolescentes viverão até completarem a maioridade; um espaço onde deveriam ter a oportunidade de sentirem-se pertencentes.

O ECA, determina em seu artigo 925 as diretrizes que todas as entidades que desenvolvem programas de abrigo deveriam adotar. Dentre os nove princípios, vale notar uma preocupação em garantir às crianças e adolescentes um atendimento mais personalizado, em pequenas unidades, a preservação e manutenção dos vínculos familiares e as não transferências constantes entre as instituições de atendimento. Esta alteração acontece especialmente devido à recente história das "instituições totais"6 (Goffman, 1961), onde todas as esferas da vida do sujeito eram desenvolvidas dentro delas, com o objetivo de excluí-lo, controlá-lo e doutriná-lo.

Winnicott (2002) alerta para os objetivos das grandes instituições: "[...] as crianças numa grande instituição não estão sendo cuidadas com a finalidade de cura de suas doenças. Os objetivos são, em primeiro lugar, prover teto, comida e roupa a crianças que foram negligenciadas [...]" (idem, p.207).

Inegavelmente, há uma mudança no paradigma de acolhimento de crianças e adolescentes nos últimos anos; um movimento de transformação que visa tornar as instituições mais integradas na vida da comunidade local e remover o estigma de depósitos humanos. Porém, existe um longo caminho a percorrer para que estas transformações não sejam apenas cosméticas, mascarando o produto de longos anos de segregação e a cristalização de uma lógica de atendimento difíceis de serem alteradas (Delgado, 2000; Mello, 2004).

Segundo Silva,

"o Brasil sempre se deparou com esta contradição: por um lado, adota posturas avançadas na legislação, acompanhando os principais avanços consagrados nos tratados e nas convenções internacionais, mas, por outro, essa mesma legislação avançada serve para mascarar e camuflar uma prática arcaica e discriminatória" (1998, p.71).

Muito se tem debatido sobre estratégias para elevar a qualidade do atendimento a crianças e adolescentes. Porém, é simplista a idéia de que apenas reduzindo o tamanho das instituições ter-se-á uma melhor qualidade no atendimento. Com a redução do número de crianças e adolescentes, existem mais chances de que se possa viabilizar um atendimento individualizado, não massificado, onde as singularidades possam ser melhor contempladas e as necessidades individuais dos abrigados possam ter mais possibilidades de serem trabalhadas. Contudo, Rizzini (1996) questiona até que ponto somente a divisão das instituições em pequenos grupos em um sistema semelhante ao familiar é suficiente para distingui-las do internato típico.

O redimensionamento dessas instituições parece ser um ponto crucial no que se refere ao acolhimento de crianças e adolescentes. Além de dividi-las, o que tem realmente sido feito no cotidiano destas instituições para abolir práticas arcaicas, violentas e exclusoras do passado e dar conta das singularidades dos adolescentes abrigados? O que tem sido feito – além do fornecimento de alimentação e moradia – para permitir que esses indivíduos possam ressignificar suas experiências e caminhar em direção à Doutrina da Proteção Integral?

Para Winnicott (2002), a possibilidade de sentir-se pertencente à segurança de um lar é condição fundamental para o saudável desenvolvimento da personalidade de um indivíduo: "A unidade familiar possibilita uma segurança indispensável à criança pequena. A ausência dessa segurança terá efeitos sobre o desenvolvimento emocional e acarretará danos à personalidade e ao caráter" (p.18).

Apesar da importância da experiência de um lar satisfatório, esta não é uma realidade para muitas crianças e adolescentes. Winnicott (2002) define sabiamente o conceito de experiências de lar primário como um "ambiente adaptado às necessidades especiais das crianças e adolescentes, sem o que não podem ser estabelecidos os alicerces da saúde mental" (p.63).

Muitos dos intensos conflitos que crianças e adolescentes experienciam dentro do ambiente de abrigo provêm diretamente de experiências significativas de lares instáveis, ou seja, crianças e adolescentes que nunca tiveram, em seus próprios lares, um ambiente suficientemente bom (Winnicott, 2002). Winnicott afirma que se o ambiente familiar foi frustrante, esses indivíduos precisam ainda mais de um ambiente capaz de proporcionar-lhes "estabilidade ambiental, cuidados individuais e a continuidade desses cuidados" (p.82).

Winnicott (1983) adota o termo holding e o define como amparo e sustentação. No início da vida, este é simbolizado pela mãe, ou seja, mãe e lactente vivendo juntos. "(...) holding é utilizado para significar não apenas o segurar físico de um lactante, mas também a provisão ambiental total anterior ao conceito de viver com" (Winnicott, 1983, p.44). Porém, ao longo de sua obra, Winnicott amplia o conceito de holding à criação de um lugar psíquico. Da dependência absoluta entre lactente e sua mãe a um caminho em direção à independência, onde o lactente irá desenvolver maneiras para viver sem cuidado real. Segundo Winnicott (1983) isto poderá ser conseguido através do "acúmulo de recordações, do cuidado, da projeção de necessidades pessoais e da introjeção de detalhes do cuidado, com o desenvolvimento da confiança no meio" (p.46).

Assim, pode-se pensar que o holding exerce diferentes funções nos distintos momentos da vida de um sujeito, porém este não deixa de ser menos importante durante toda a vida, uma vez que sustentação e reconhecimento são elementos imprescindíveis do permanente processo de subjetivação.

Para Winnicott (2002), um "ambiente suficientemente bom" pode ser definido em termos da segurança e continência com que consegue se apresentar frente às crises e testes pelo qual passará e pela capacidade de permitir que estes aconteçam e, mesmo assim, continuar estável. Esta definição complementa o conceito de experiência de lar primário, anteriormente apresentado, e pode ser utilizada para que pense sobre a real função que um ambiente de abrigo poderia vir a ter. Um ambiente adaptado às necessidades dos adolescentes, não deixando de ser seguro e continente frente aos obstáculos enfrentados. Contudo, esta reflexão não é uma tarefa fácil, uma vez que diversos aspectos – sociais, culturais, históricos e econômicos – estarão, constantemente, atravessando estes ambientes.

Santos (2004) traz uma definição importante para o termo lugar. Segundo ele, uma experiência "[…] antes de ser uma experiência espacial, é uma experiência em que o indivíduo sente que existe na subjetividade do outro. Ter um lugar é existir no meio ambiente humano" (p.423). Assim, vê-se o quanto ter um lugar, ser acolhido (mesmo apenas enquanto resultado de uma medida de proteção), é não apenas importante, mas fundamental para milhares de crianças e adolescentes. De fato, o acolhimento tem uma função muito mais ampla e significativa do que normalmente se percebe. A abrigagem parece ser uma experiência vinculada a um lugar, sendo este, fundamental enquanto espaço de acontecimento, de significação ou ressignificação das experiências vividas e mesmo de existência.

Acolher o adolescente, poder compreender suas necessidades a partir se sua singularidade e oferecer-lhe um ambiente suficientemente bom e continente parecem ser algumas das possibilidades para um atendimento mais humano – um atendimento que possibilite a estes adolescentes reencontrar um espaço de subjetivação.

Para Winnicott, dois aspectos relacionados à estabilidade de um ambiente são fundamentais para que um indivíduo possa se sentir pertencente a ele: a estabilidade gerada pela continuidade da permanência do sujeito no ambiente e a estabilidade do ambiente enquanto lugar continente.

 

Transitoriedade

Um aspecto importante em abrigagem é a questão da transitoriedade, preconizada pelo ECA em seu artigo 101, parágrafo único7. Se por um lado, conforme Winnicott alerta, a continuidade da permanência do sujeito no abrigo é importante, por outro lado, a permanência indeterminada em uma Instituição sem planejamento ou motivos também pode ser um grave problema. Na verdade, grande parte da preocupação do ECA com o caráter provisório da medida de abrigamento parece estar intimamente ligada à história passada, onde inúmeras crianças e adolescentes eram abrigados por tempo indeterminado – uma medida definitiva, com objetivos essencialmente reparatórios.

Carreirão (2004) nos alerta sobre a medida de abrigo ser provisória e não a modalidade8. A mesma autora segue afirmando ser fundamental para as crianças e adolescentes que estão abrigados "evitar a transferência brusca de instituição, mesmo nos casos em que ultrapassam o limite etário de determinado programa de abrigo. Os sentimentos positivos construídos no período de permanência de crianças e adolescentes em abrigo – como o vínculo, o apego, o pertencimento – são imprescindíveis, sobretudo para os que não conseguiram uma família" (p.309). Diferentemente, para Cabral (2004), "a princípio todo acolhimento é provisório, independente do período de duração e não é um objetivo em si mesmo, mas sim uma possibilidade de solucionar situação de crise familiar" (p.7)

Aqui é importante observar que tão legítimo quanto o preceito do ECA é refletir sobre os adolescentes que não estão em trânsito – aqueles que realmente necessitam morar por longo tempo em um abrigo, mesmo não tendo perdido totalmente o vínculo com sua família de origem.

Como estabelecer uma relação de confiança, tolerância e constância com os adolescentes quando a transitoriedade faz-se imperativa para a própria avaliação da instituição? A ordem do dia acaba sendo transferir ou desligar os adolescentes – circular os casos ao invés de tentar resolvê-los.

Assim, se o encaminhamento de uma criança ou adolescente para um abrigo é realizado com o objetivo de protegê-lo de uma situação de vulnerabilidade social ou pessoal, parece que, temporariamente, este objetivo está sendo alcançado. Porém, se o objetivo é maior, se é também lhe proporcionar novas experiências para que ele possa ressignificar sua história, parece que esta é uma realidade ainda distante na prática.

Observando as práticas cotidianas das instituições de abrigo constata-se, muitas vezes, que estes são ambientes regrados por um grande número de normas: horário para acordar, horário para realizar as refeições, horário para organizar os espaços, horário para sair, para chegar, horário para banho, para falar ao telefone e até horário para se relacionar, já que situações que poderiam promover relacionamentos só ocorrem dentro de horários e lugares pré-determinados pelas normas. O excesso de normas muitas vezes configura uma rotina de práticas cotidianas desprovida de sentido e significado que contribui para dissociar o abrigo do conceito de lar.

Conforme relatado por Rizzini (1996), freqüentemente monitores – pessoas que, a princípio, deveriam ter sido contratadas com o objetivo de cuidar dos abrigados – são os principais encarregados do cumprimento destas normas, tornando-se assim, pessoas extremamente sérias, ríspidas e autoritárias. Assim, o ambiente de abrigo acaba se tornando um ambiente controlador; um ambiente que ao invés de acolher, dita o padrão de comportamento e as regras de conduta para todos que ali vivem.

A necessidade de estabelecer certas regras e horários para que um ambiente não se torne caótico não pode ser questionada. O que pode e deve ser questionado, entretanto, é a forma como essas regras têm se efetivado na prática. É fundamental analisar se estas práticas estão sendo executadas de maneira automática ou violenta (explícita ou implicitamente nas rotinas) e como têm afetado a formação do sujeito abrigado. Um ambiente pode ter uma certa severidade, quando se considera severidade o sinônimo de estabilidade (e não de rigidez, moralismo ou autoritarismo), mas um ambiente que admita e inclua também momentos de maior benevolência, tolerância e compreensão é fundamental para a construção de um processo significativo com possibilidades de transformação (Winnicott, 2002).

O que se observa de maneira intensa nestas instituições é que não existe ainda espaço para a diferenciação, para uma escuta atenta das necessidades dos adolescentes acolhidos. O que existe é uma necessidade constante de regularidade e ordem (por sinal, significativa enquanto expressa valores da classe dominante) que parece ir de encontro à constituição de subjetividades.

Um ambiente de abrigo realmente preocupado em desenvolver emocionalmente e socialmente os adolescentes que ali residem, deveria oferecer-lhes a experiência de um lar primário. Um ambiente com regras e limites, mas também um ambiente comprometido com o cuidar. Um ambiente que consiga minimamente compreender e tolerar o processo adolescente. Os abrigos podem e devem se tornar ambientes estáveis – lugares onde crianças e adolescentes poderão conhecer e testar ambientes para, posteriormente, confiar neste como um lugar bom para poderem viver. Para Winnicott (2002) "é a natureza permanente do lar que o torna valioso, mais do que o fato de o trabalho ser realizado com inteligência" (p.77).

Tão importante quanto construir e manter normas é ter pessoal que possa se envolver emocionalmente com o indivíduo abrigado. Observa-se porém, na maioria das instituições, uma lógica normatizadora de comportamentos que impede outras formas de agir, de sentir o cotidiano apresentado e que considere as reais necessidades das crianças e adolescentes.

Um outro aspecto crucial do ambiente de abrigo que não costuma ser priorizado, embora seja fundamental para que a Instituição possa oferecer um acolhimento mais humanizado, é a questão dos modos de trabalhar dos monitores. Monitores desempenham um papel primordial, uma vez que estão em contato diário e permanente com os adolescentes que ali residem e, no entanto, não costumam ser valorizados diante da importância e significado da sua função. Selecionar pessoas preocupadas e que se sintam comprometidas com as vidas e o desenvolvimento do indivíduo abrigado parece ser um ponto que faz importante diferença.

É importante enfatizar também o quanto aspectos históricos e culturais das instituições e da história da assistência à criança e ao adolescente atravessam a maneira como se implementam os abrigos. Muitas vezes, o cuidado com as crianças e adolescentes acaba sendo negligenciado e esses sujeitos tornam-se apenas mais um número, mais um caso, com objetivo de serem agenciados, de estarem em trânsito. As histórias individuais, os sofrimentos e o contexto familiar são, muitas vezes, menosprezados em detrimento apenas da necessidade de fazer circular os casos. A circulação acaba sendo um procedimento legitimado com base no conceito dúbio de que o abrigamento é uma medida de proteção excepcional e transitória. Surpreendentemente, nestes casos, a transitoriedade é defendida como sendo um aspecto positivo tanto para os adolescentes, quanto para a instituição.

Porém, em muitos episódios, o que se observa é que crianças e adolescentes são transferidos ou desligados não porque finalmente possuem um lugar para ir ou voltar, mas simplesmente porque não cumpriram todas as regras de uma determinada instituição. Assim, diversas crianças e adolescentes que estão privadas da oportunidade de viverem em seus lares, junto de sua família e da comunidade, continuam sendo excluídas, em um círculo perverso, com pouquíssimas possibilidades de saída. Fonseca (2004) também se impressiona com esse aspecto "transitório" do abrigamento. Para ela, "além do ‘bem-estar da criança’, podem existir outros motivos – de natureza orçamentária – agindo em favor da transitoriedade" (p.112).

É comum também o pensamento simplista de que os problemas, os sofrimentos e as angústias trazidos para a instituição no momento da abrigagem, serão resolvidos desde que não seja necessário adaptar a instituição às necessidades dos abrigados.

As autoras partilham do pensamento de Costa (2004), que defende que se construa um novo olhar e uma nova escuta. Os ambientes destinados a acolher os adolescentes deveriam proporcionar espaços com "maior intimidade e confiança", ambientes que propiciem "outras formas de relacionamento com os adolescentes, criando condições ambientais para que desenvolvam suas potencialidades e habilidades, proporcionando-lhes uma maior sustentação subjetiva, vincular e social". Para Costa, o acompanhamento ao adolescente nesses espaços deveria envolver "um novo olhar e uma nova escuta que poderiam ressignificar a história do sujeito, à medida que a subjetivação e a historicização contribuem para atenuar a necessidade de atuar, possibilitando uma maior capacidade de reflexão e de simbolização". (p.317)

 

Metodologia de Pesquisa

A partir da definição do problema de pesquisa, optou-se por uma metodologia qualitativa, de caráter descritivo, uma vez que não se buscou aferir dados quantitativos ou correlações. Dentre os métodos qualitativos, a pesquisa descritiva de cunho etnográfico caracterizou-se como imprescindível visto que se buscou não somente entrar no campo de investigação, mas conhecer recortes do cotidiano do grupo pesquisado e identificar o contexto, sem trabalhar com categorias previamente determinadas.

A abordagem proposta por Milnitsky-Sapiro (1996; 2005), "centra-se nas características sócio-culturais, intersubjetivas, utilizando a investigação de valores ‘descobertos’ a partir de literatura local, dos fatos e registros do pesquisador em campo e dos depoimentos de indivíduos pertencentes ao grupo em questão" (Milnitsky-Sapiro, 2005, no prelo).

A adoção da descrição etnográfica

"vem ao encontro da expectativa de respeitar e reconhecer as subjetividades impregnadas no seu contexto, e fundamentalmente, retratar aspectos históricos, registros e marcas estruturais e documentais, possibilitando a instância da validade externa, já que o olhar do pesquisador é explicita e criteriosamente relativisado como entendemos ser crucial na pesquisa em psicologia".

Já para a análise dos dados coletados foi utilizada a técnica de Análise de Conteúdo (AC).

 

Resultados

Como resultados dos dados analisados até o presente momento, constatamos que o adolescente em situação de vulnerabilidade parece continuar abandonado nos abrigos, já que a grande maioria dos adultos simplesmente não reconhece o processo adolescente. Isto fica evidente no discurso dos adultos cuidadores onde, com raras exceções, sequer o termo adolescente é mencionado. Na grande maioria das vezes, mesmo em unidades que atendem exclusivamente a adolescentes, só se fala em crianças abrigadas.

Este processo, conforme brevemente detalhado acima, dificilmente é reconhecido ou aceito, e a maioria dos adultos não leva em consideração suas características durante a prática cotidiana. Assim, questões que poderiam ser trabalhadas com o objetivo de ressignificar experiências vividas acabam sendo ignoradas. Observa-se ainda que adolescentes e adultos cuidadores têm expectativas distintas em relação ao abrigo. Enquanto para os primeiros o abrigo, muitas vezes, significa a procura por um lar desejado (Winnicott, 1999) para os últimos parece significar um período onde aspectos burocráticos, como encaminhamentos de documentação, escola, cursos e família deveriam ser resolvidos.

É imperativo reavaliar a questão da transitoriedade, principalmente em determinados casos de abandono onde o abrigo é a única opção disponível. Evitar transferências desnecessárias e desligamentos precipitados – hoje realizados arbitrariamente como forma de punir o desrespeito às regras da instituição ou para garantir as estatísticas da provisoriedade – pode ser fundamental para assegurar uma efetiva melhora na qualidade do abrigamento.

Finalmente, faz-se imprescindível revelar o quanto unidades menores – como abrigos residenciais – parecem conseguir proporcionar um melhor ambiente de holding, onde crianças e adolescentes podem sentir-se seguras e pertencentes, um ambiente mais adaptado às suas necessidades.

Porém, um longo caminho deve ser trilhado antes que se possa perceber uma efetiva melhora na qualidade do acolhimento, uma vez que muitos abrigos recentemente reorganizados insistem em continuar repetindo as mesmas práticas das grandes instituições: quartos e banheiros coletivos, excesso de regras e dificuldade em enxergar o adolescente abrigado como um sujeito com direitos.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BENITES, L. Notas sobre a institucionalização de meninos e meninas de rua. Psicanálise e sintoma social II. São Leopoldo: Unisinos, 1998. 410 p.

BRASIL, Estatuto da Criança e do Adolescente: lei federal 8.069/1990. Porto Alegre: Conselho Estadual dos Direitos da Criança e do Adolescente, 2003. 104p.

CASSORLA, R. M. S. Refletindo sobre Pavlik Morozov. In: LEVISKY, D. L. (org.) Adolescência: pelos caminhos da violência – a psicanálise na prática social. São Paulo: Casa do Psicólogo, 1998, prefácio, p.13 - 20.

DORNELLES, Leni Vieira. Infâncias que nos escapam: de criança de rua à criança cyber. Petrópolis, Rio de Janeiro: Vozes, 2005. 109p.

FONSECA, C. (2004). Os direitos da criança – dialogando com o ECA. In: FONSECA, C.; TERTO JUNIOR, V.; ALVES, C. F. (org). Antropologia, Diversidade e Direitos Humanos: diálogos interdisciplinares. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2004, cap. 1, parte II, p.103 – 115.

GOFFMAN, E. Manicômios, Prisões e Conventos. São Paulo: Perspectiva, 1961. 312p.

MILNITSKY-SAPIRO, C. Uma Questão de Método. 2005. No prelo.

OUTEIRAL, J.(1994). Adolescer: Estudos sobre Adolescência. Porto Alegre: Artes Médicas Sul, 1994.

SILVA, R. Os Filhos do Governo: a formação da identidade criminosa em crianças órfãs e abandonadas. São Paulo: Ática, 1997. 205p.

WINNICOTT, D. W. Privação e delinqüência. Tradução Álvaro Cabral; revisão Mônica Stahel. – 3.ed. São Paulo: Martins Fontes, 1999. 319. Título original: Deprivation and delinquency.

______, D. W. O ambiente e os processos de maturação: estudos sobre a teoria do desenvolvimento emocional. Tradutor Irineo Constantino Schuch Ortis. Porto Alegre: Artes Médicas, 1983. 268p. Título original: The Maturational Processes and the Facilitating Enviornment.

 

 

1 Psicóloga, mestranda do Programa de Pós-Graduação em Psicologia Social e Institucional da UFRGS. E-mail: anapaulagranzotto@gmail.com. Ana Paula é orientada pela Profa. Dra. Clary Milnitsky-Sapiro, professora adjunta do Instituto de Psicologia da UFRGS e co-autora deste artigo. E-mail: clarysapiro@uol.com.br
2 Para as autoras, o termo ambiente refere-se não somente ao espaço físico da instituição onde acontecem as práticas cotidianas, mas também ao espaço onde acontecem às relações, interações e conflitos entre todos os sujeitos – adolescentes e adultos – que compõem a instituição.
3 Núcleo de estudos de Construção de Valores e Identidade na Adolescência, coordenado pela professora Clary Milnitsky-Sapiro.
4 Após a implementação do ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente) os abrigos passaram a ter como objetivo acolher crianças e adolescentes como medida de proteção e, especialmente, de modo a assegurar seus direitos de cidadão.
5 "Art. 92. As entidades que desenvolvam programas de abrigo deverão adotar os seguintes princípios: I – preservação dos vínculos familiares; II – integração em família substituta, quando esgotados os recursos de manutenção na família de origem; III – atendimento personalizado e em pequenos grupos; IV – desenvolvimento de atividades em regime de co-educação; V – não-desmembramento do grupo de irmãos; VI – evitar, sempre que possível, a transferência para outras entidades de crianças e adolescentes abrigados; VII – participação na vida da comunidade local; VIII - preparação gradativa para o desligamento; IX – participação de pessoas da comunidade no processo educativo".
6 O Autor define Instituição Total como "um local de residência e trabalho onde um grande número de indivíduos com situação semelhante, separados da sociedade mais ampla por considerável período de tempo, levam uma vida fechada e formalmente administrada" (p.11).
7 "Parágrafo único. O abrigo é medida provisória e excepcional, utilizável como forma de transição para a colocação em família substituta, não implicando privação de liberdade."
8 Embora determinadas modalidades de abrigo – como casas de passagem, de acolhida, transitória e albergues - tenham um caráter mais transitório, nem todas as instituições são provisórias.