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An. 1 Congr. Intern. Pedagogia Social Mar. 2006

 

Fundamentos teóricos e metodológicos da pedagogia social no Brasil

 

 

Antônio Carlos Gomes da Costa1

 

 

Pedagogos e juristas têm atrás de si uma longa
tradição de desconfiança mútua e de críticas
recíprocas em que, provavelmente, ambas as
partes tenham razão. Emílio Garcia Mendez

 

1.1. Bases conceituais

A situação do adolescente autor de ato infracional no Brasil, como de resto em quase todos os países da América Latina, vai de mal a pior. Os países da Região - segundo Emílio Garcia Mendez - passam por momentos de ditadura e de democracia, de crise aguda e de prosperidade relativa, porém o atendimento ao adolescente infrator, como o eletrocardiograma de um morto, permaneceu sempre o mesmo ao longo de quase todo o século XX.

A década de noventa, com a aprovação unânime da Convenção Internacional dos Direitos da Criança pela Assembléia Geral das Nações Unidas em 20 de Novembro de 1989, inicia-se como um tempo de possibilidade real de reversão desse quadro. De fato, o novo instrumento internacional de Direitos Humanos, coloca na irregularidade a velha doutrina da situação irregular, pano de fundo de todas as políticas jurídicas e sócio-educacionais vigentes na América Latina desde a promulgação pela Argentina, em 1919, da primeira legislação de menores da Região.

O Código de Menores do Uruguai, que data de 1927, consagrou o modelo e passou, desde então, a servir de base para todas as legislações menoristas desta parte do mundo.

O Código de Menores brasileiro, fruto do esforço e dedicação do juiz Francisco de Mello Matos à causa menorista, não foge a essa tendência. Sua concepção sustentadora é a doutrina da situação irregular, que também será a base do Código de Menores de 1979 (Alyrio Cavalceri). Relembremos as características básicas da doutrina da situação irregular:

1.1. Não se dirige ao conjunto da população infanto-juvenil, mas apenas aos menores em situação irregular;

2.2. Considera menores em situação irregular os carentes, abandonados, inadaptados e infratores;

3.3. Não se preocupa com os direitos humanos da população infanto-juvenil em sua integridade. Limita-se a assegurar a proteção, para os carentes e abandonados e a vigilância, para os inadaptados e infratores;

4.4. Funcionando com base no binômio Compaixão/Repressão, a justiça de menores chamava à sua esfera de decisão, tanto os casos puramente sociais, como aqueles, que envolviam conflito de natureza jurídica;

5.5. O conjunto de medidas aplicáveis pelo juiz de menores (advertência, liberdade assistida, semi-liberdade e internação) era o mesmo, tanto para os casos sociais, como para aqueles que envolviam conflitos de natureza jurídica. A internação, por exemplo, podia ser aplicada indistintamente a menores carentes, abandonados, inadaptados e infratores;

6.6. A inimputabilidade penal do menor de 18 anos significava, na prática, a inexistência de garantias processuais, quando se lhe atribuía a autoria de infração penal.

Essa doutrina, como já tivemos oportunidade de ver no primeiro capítulo, começou a ser erradicada da Região latino-americana pelo Brasil, que com a Promulgação da lei 8069/90 (Estatuto da Criança e do Adolescente), foi o primeiro país da área a proceder a adequação substantiva de sua legislação à letra e ao espírito da Convenção Internacional dos Direitos da Criança, cuja concepção sustentadora é a doutrina da proteção integral, que se apoia sobre bases conceituais antagônicas àquelas da doutrina da situação irregular:

1.1. Pela doutrina de proteção integral, a legislação deve dirigir-se ao conjunto da população infanto-juvenil, abrangendo todas as crianças e adolescentes, sem exceção alguma;

2.2. Não se limita à proteção e vigilância, buscando promover e defender todos os direitos de todas as crianças e adolescentes, abrangendo a sobrevivência (vida, saúde, alimentação), o desenvolvimento pessoal e social (educação, cultura, lazer e profissionalização) e a integridade física psicológica e moral (respeito, dignidade, liberdade, convivência familiar e comunitária). Além de colocá-las a salvo de todas as foras de situação de risco pessoal e social (negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão);

3.3. Superar o binômio compaixão/repressão, passando a considerar a criança e o adolescente, como sujeitos de direitos exigíveis com base na lei;

4.4. Os casos sociais e psico-pedagógicos como a pobreza e a inadaptação - passam a ser resolvidos na esfera administrativa, mediante o encaminhamento e a vigilância do Conselho Tutelar, um órgão encarregado de receber, estudar e encaminhar casos, requerendo serviços e, quando necessário, peticionando o Ministério Público, visando pôr as conquistas do estado de direito para funcionar em favor da criança ou do adolescente. O Conselho Tutelar aplica as medidas de proteção às crianças violadas em seus direitos;

5.5. Em relação ao adolescente autor de ato infracional, o Estatuto prevê, em primeiro lugar, a extensão às pessoas entre 12 e 18 anos, das garantias processuais básicas do direito penal de adultos, estabelecendo ainda as medidas sócio-educativas aplicáveis ao adolescente considerado responsável pela autoria de um determinado ato infracional.

Ocorridas essas transformações, verdadeira mudança de paradigma no plano jurídico-legal, o sistema de atendimento, ou seja, o aparato. institucional destinado a operar as novas regras, a por em prática os novos conceitos, deverá passar por um amplo, corajoso e profundo processo de reordenamento institucional.

Um processo de reordenamento que proceda a uma nova divisão de trabalho entre a União Federal, os estados e os municípios, e que, igualmente; delimite os campos de atuação do Estado e da sociedade. Um processo de reordenamento, que introduza as mais que necessárias mudanças de conteúdo, método e gestão na estrutura e no funcionamento do sistema de administração da justiça juvenil, abrangendo a atuação da segurança pública, do ministério público, da defensoria pública e da magistratura da infância e da juventude, culminando com a total reestruturação da área de ação social especializada encarregada da aplicação das medidas sócio-educativas.

Não é possível abordar de per-si a questão da medida privativa de liberdade. Ela é apenas a manifestação mais contundente e extrema da fragilidade estrutural e do descompasso funcional do nosso sistema de administração da justiça juvenil no seu todo. A privação de liberdade é o ponto de repercussão das falhas do conjunto do sistema.

Portanto, se nos limitamos a detectar e propor alternativas para as unidades de privação de liberdade consideradas de per-si, estaremos atuando apenas em uma das faces do problema, ou seja, nos fatores endógenos ao funcionamento dos internatos. No entanto, todos sabemos que o que ocorre dentro dos internatos não é a resultante apenas de fatores internos. Há todo um contexto que influencia os dinamismos psicossociais no interior das unidades de internação, que se distribuem em diferentes pontos de seu entorno institucional, interinstitucional e sócio-comunitário. Esses fatores exógenos ao funcionamento do centro de privação de liberdade, se não forem compreendidos e abordados de maneira adequada, poderão influenciar negativamente ou mesmo inviabilizar os esforços realizados no plano interno.

 

2.2. Pedagogos e Juristas

Na frase que serve de epígrafe a este artigo, Emílio Garcia Mendez constata a existência de uma longa história de ressentimentos e de conflitos nas relações entre pedagogos e juristas, para, em seguida, observar com a acuidade de sempre que, o mais provável, é que nesta contenda ambas as partes tenham razão.

É neste ponto que, a meu ver, pulsa o coração desta reflexão. O primeiro desafio é localizar um território comum em que pedagogos e juristas possam se encontrar e, a partir da perspectiva de cada um, lançar as bases de um relacionamento construtivo e maduro. Este território - não tenho nenhuma dúvida - é o da responsabilização do adolescente.

Quando encaramos o adolescente como pessoa em condição peculiar de desenvolvimento, percebemos que, tanto em termos físicos, como cognitivos e emocionais ele já não é mais uma criança, contudo, também ainda não é uma pessoa adulta. Alguns autores costumam se referir a esta fase da vida como "um tempo de moratória" entre o fim da dependência característica da infância e o início dos deveres, responsabilidades e obrigações próprios da idade adulta.

Quando, por outro lado, encaramos o adolescente como sujeito de direitos exigíveis com base na lei, temos que admitir que direitos trazem também deveres, ou seja, que existe uma relação de reciprocidade entre uns e outros. Dentro dessa perspectiva, a desresponsabilização do adolescente corresponde, verdadeiramente, à sua objetivação, à negação, de fato, da sua condição de sujeito de direitos.

O que é ser sujeito em termos pedagógicos? Para responder a esta pergunta, temos que pensar nas duas grandes maneiras de encarar e de se relacionar com o educando, que vigiram entre os educadores ao longo do século XX, ou seja, os dois grandes paradigmas, que presidiram a estruturação da relação educador-educando.

O primeiro é uma concepção do educando como um receptáculo, no qual o educador deve introduzir conhecimentos, habilidades, hábitos, valores e atitudes. Trata-se do que Paulo Freire chamou de educação bancária. Uma relação em que, de fora para dentro, o educador vai introduzindo, interiorizando, inculcando, introjetando, internalizando, injetando e ministrando conteúdos, que vão sendo incorporados pelo educando.

O segundo é uma concepção do educando como sujeito do processo educativo, ou seja, o educando como fonte de iniciativa, de compromisso e de liberdade. Fonte de iniciativa, no sentido de ele ser o protagonista de ações, gestos e atitudes no contexto da vida familiar, escolar ou comunitária. Fonte de compromisso, em decorrência de ele já ser responsável pelas conseqüências de seus atos. Fonte de liberdade, desde o momento em que seus atos vão sendo, em medida cada vez maior, conseqüência de suas próprias escolhas. Tudo isso, naturalmente, dentro dos limites decorrentes de sua condição peculiar de pessoa em desenvolvimento.

A história da educação, ao longo do século XX, é a história da passagem do paradigma do educando, como objeto passivo da intervenção do educador à condição de sujeito, ou seja, de fonte de iniciativa, de compromisso e de liberdade na condução do seu próprio processo de desenvolvimento pessoal e social.

Por entender que as dimensões jurídica e pedagógica da responsabilização não são antagônicas nem divergentes, antes, são convergentes e complementares é que as considero momentos distintos da evolução de um mesmo processo, o processo da socialização do ser humano e, ao mesmo tempo, de humanização da sociedade.

A criança, desde tenra idade, quando quebra deliberadamente alguma norma ou regra da vida familiar costuma ser responsabilizada pelos pais, que respondem ao seu gesto com reações que vão, desde uma cara feia ou um pito, até uma palmada. Da mesma forma na escola, geralmente os regimentos escolares responsabilizam os alunos, que quebram as normas e reage aos seus atos com punições, que vão desde a simples advertência até a expulsão regimental.

Assim, podermos dizer que existe responsabilização na vida familiar e na vida escolar. Quando, porém, o adolescente quebra as normas da vida social mais ampla, cometendo um ato, que, se fosse cometido por adulto seria crime ou contravenção, a resposta social a esse ato dar-se-á pelo sistema de administração da justiça juvenil. Aqui, ele não quebrou normas da família ou da escola, mas infringiu as regras do convívio humano numa escala mais elevada.

Fazer com que ele responda pelo seu ato é uma atitude de elevado teor pedagógico-social, desde que lhe seja assegurado o devido processo com todas as garantias previstas na lei, desde que ele tenha o direito ao pleno e formal conhecimento do ato que lhe esteja sendo atribuído, o direito à defesa com todos os recursos a ela inerentes e à presunção da inocência, ou seja, às garantias processuais.

Terminado o processo, na hipótese de o adolescente ser considerado responsável pelo cometimento do ato infracional, eis questão, não lhe serão aplicadas as penas do Código Penal de adultos, mas uma medida sócio-educativa.

Qual a natureza dessa medida sócio-educativa? Ela deve responder a duas ordens de exigência, ou seja, ela deve ser urna reação punitiva da sociedade ao delito cometido pelo adolescente e, ao mesmo tempo, deve contribuir para o seu desenvolvimento como pessoa e como cidadão.

Assim, como nos âmbitos da família e da escola, a punição é usada corno recurso educativo, por que não haveria de sê-lo também no âmbito da vida social mais ampla? Com isto queremos dizer que, de fato, há algo de pena nas medidas sócio-educativas, que são, por isso mesmo, aplicadas de maneira vertical e impositiva. Isto não quer dizer, no entanto, que seu conteúdo pedagógico esteja sendo negado. Ao contrário, à medida em que o adolescente percebe que não foi vítima de um ato discricionário, mas que teve, através da igualdade na relação processual, a condição de defender-se, ele percebe que a resposta da sociedade não é arbitrária. Neste momento, ele está diante de uma dura, mas eficaz, oportunidade de compreender a justiça como um valor concreto em sua existência.

Segundo o Dr. Antônio Fernando do Amaral e Silva, a imputabilidade é a capacidade de a pessoa receber uma pena, que não é, necessariamente, de natureza criminal. A pena pode ser de natureza civil, administrativa, fiscal e outras. Isto nos leva a pensar que, em sua dimensão punitiva, as medidas aplicáveis ao adolescente autor de ato infracional são, na verdade, penas de natureza sócio-educativa, isto é, cujo objetivo principal é o desenvolvimento do adolescente corno pessoa e como cidadão.

Cremos que, se pedagogos e juristas, compreenderem verdadeiramente a responsabilização, como território comum entre a pedagogia e a justiça todos sairão ganhando: a justiça, a pedagogia e o adolescente.

 

3.3. A dimensão pedagógica das garantias processuais

O primeiro passo na direção de uma justiça juvenil capaz de respeitar o adolescente, como sujeito de direitos exigíveis com base na lei, e, ao mesmo .tempo, como pessoa em condição peculiar de desenvolvimento, é identificar e explicitar com clareza a dimensão pedagógica das garantias processuais.

O processo permite ao adolescente responder, no sentido mais pleno da palavra, pelas conseqüências dos seus atos. Embora as circunstâncias sejam, em si mesmas, notoriamente difíceis, o fato é que a relação ato/conseqüência se apresenta diante dele com a nitidez e a concretude, que os discursos pedagógicos, normalmente, não conseguem alcançar.

O adolescente, ao ter que responder perante a Justiça da Infância e da Juventude pelos seus atos, tendo de ouvir as acusações e de defender-se, está na verdade - mais do que pelo discurso das palavras - educando-se pelo curso dos acontecimentos.

As garantias processuais têm uma irrecusável natureza pedagógica. Elas se explicitam sob a forma de um conjunto de práticas e vivências a que o jovem é submetido e que, o seu conjunto, lhe possibilitam inteirar-se da extensão e da gravidade dos seus atos.

Essas práticas e vivências devem expressar - antes e acima de qualquer outra coisa - o rigoroso cumprimento dos dispositivos legais, em termos de prazos, ritos e etapas. A lei deve nitidamente pairar acima de todos os envolvidos no processo, inclusive do magistrado. Estando isso claro, o adolescente terá a sensação de que não está submisso a urna engrenagem opaca e arbitrária, mas à severidade da justa reação da sociedade a um fato delituoso.

Uma experiência dessa natureza é marcante na vida de qualquer um e se bem conduzida - pode ser verdadeiramente educativa. O ato infracional está num patamar distinto das faltas cometidas, por exemplo, na família e na escola. A reação da sociedade, nesse caso, deve ir além do puramente educativo. Ela deve expressar, de maneira nítida, a dimensão de severidade e justiça requerida pela quebra das normas de convivência social.

 

4.4. A dimensão jurídica do trabalho educativo

Assim como os juristas devem estar abertos ao entendimento pleno da dimensão educativa das garantias processuais, também os educadores envolvidos na aplicação das medidas sócio-educativas devem estar abertos à dimensão jurídica de seu trabalho.

Em que consiste a dimensão jurídica da ação sócio-educativa? A primeira realidade à qual o educador, ou seja, o técnico envolvido na aplicação das medidas sócio-educativas deve estar atento é que - como ocorre com os policiais e os agentes penitenciários - ele é um funcionário encarregado de fazer cumprir a lei.

A medida sócio-educativa é uma medida imposta, uma medida coercitiva, que decorre de uma decisão judicial. Portanto, é fundamental que o educador, além do conhecimento específico relativo à sua área de atuação, tenha também uma consistente e sólida formação legalista básica.

Quando falamos em formação legalista básica, estamos falando de algo que vai além do conhecimento dos dispositivos legais e da sua aplicação. Na verdade, estamos falando de uma formação, ou seja, de uma atitude legalista. O técnico deve conhecer o conceito de controle social do delito e sua evolução. Deve deter também o domínio claro da noção de sistema de administração da justiça juvenil, compreendendo ainda os distintos modos de reação não formal da sociedade ao delito.

Essa formação jurídico-criminológica básica permitirá ao técnico ter uma visão mais plena da natureza do processo de cumprimento de uma medida sócio-educativa, ao compreendê-la como parte fundamental de uma política que - embora tenha como núcleo o desenvolvimento pessoal e social do adolescente - está inserida no contexto maior do controle social do delito juvenil.

Como isso se reflete no dia a dia do trabalho social e educativo desenvolvido junto aos adolescentes responsabilizados pela autoria de ato infracional? O primeiro ponto que devemos ter bem claro é que não se pode e nem se deve promover a (des)responsabilização técnica daquele que foi judicialmente considerado responsável por determinado delito. A função do educador é compreender e, não, absolver. Faz parte do desenvolvimento pessoal e social do jovem em conflito com a lei o processo de confrontação com a sua própria realidade pessoal e social. E nela, é claro, estão incluídos os seus delitos.

Desse confronto com a própria realidade, da avaliação dos seus atos e das suas conseqüências sobre o meio social e, sobretudo, sobre suas vítimas é que nasce a consciência responsabilizante sem a qual a especificidade da ação sócio-educativa não se consome.

O trabalho desenvolvido junto ao adolescente autor de ato infracional deve ser parte de uma pedagogia voltada para a formação da pessoa e do cidadão, portanto, para a formação e desenvolvimento do sentido de responsabilidade do educando para consigo mesmo e com os outros.

O caminho para isso não é, de maneira alguma, revolver os fatos que o trouxeram ao sistema de justiça juvenil e, muito menos, centrar neles qualquer tipo de abordagem. O caminho mais correto, a nosso ver, consiste em criar condições - através da presença de educadores em seu entorno, dispostos a manter com ele uma relação de abertura, reciprocidade e compromisso – para que ele, sentindo-se compreendido e aceito, tome consciência da natureza e da extensão de seus próprios atos.

Criar as condições para que o adolescente se sinta responsável, não só pelo seu passado, mas pelo seu presente e pelo seu futuro deve ser o alvo central da ação sócio-educativa, que desenvolvemos junto a ele. A dimensão pedagógica da responsabilização deve ser uma extensão da sua dimensão jurídica.

Se na dimensão jurídica, a responsabilização se dá pelo devido processo com todas as garantias básicas asseguradas, no plano pedagógico a responsabilização se dá por um processo de conscientização acerca de si mesmo, de suas iniciativas, de sua liberdade e do seu compromisso consigo mesmo e com os outros na família, na escola, no trabalho, na comunidade e na sociedade em sentido mais amplo.

A consideração da medida sócio-educativa como parte da reação da sociedade a um delito constitui, assim, o núcleo da dimensão jurídica - não em sentido formal, mas substantivo - do trabalho do educador.

 

5.5. Direitos e deveres, a questão de sempre

Aprovado por acordo de lideranças entre todos os partidos no Congresso Nacional, o ECA veio para acertar o passo do Brasil com a comunidade internacional, em termos de direitos humanos das novas gerações. Trata-se da incorporação substantiva à nossa legislação ordinária da letra e do espírito da Convenção Internacional dos Direitos da Criança, aprovada por unanimidade pela Assembléia Geral da ONU em 20.11.89 e inserida, quando ainda em projeto, no extraordinário e seminal artigo 227 da Constituição Brasileira.

Ao contrário do antigo Código de Menores que se dirigia apenas aos menores em situação irregular (carentes, abandonados, inadaptados e infratores), o Estatuto destina-se a todas as crianças e adolescentes, sem exceção alguma. Enquanto a velha lei se preocupava apenas com a proteção para os carentes e abandonados e, com a vigilância, para os inadaptados e infratores, o Estatuto procura assegurar condições de exigibilidade de todos os direitos para todas as crianças. Por isso a concepção que o fundamenta é conhecida como Doutrina da Proteção Integral das Nações Unidas.

Adeptos incorrigíveis dos instrumentos de controle social da infância gestados no regime de exceção - o Código de Menores e a Política Nacional de Bem-Estar do Menor - desde a entrada em vigência do novo direito, tentam sistematicamente denegrí-lo, descredenciá-lo e desmoralizá-lo perante à população, distorcendo o seu conteúdo e falseando a sua interpretação.

A primeira acusação é de que o Estatuto só fala em direitos. Não impõe nenhum dever às crianças e adolescentes. Tudo indica que esses irados detratores não leram nem mesmo o Capítulo 1 da nova lei que, no seu artigo sexto, traz a regra básica de interpretação de todos os demais artigos:

Na interpretação desta Lei levar-se-ão em conta os fins sociais a que ela se dirige, as exigências de bem-comum, os direitos e deveres (grifo nosso) individuais e coletivos e a condição peculiar da criança e do adolescente como pessoas em desenvolvimento.

A segunda acusação é de que o Estatuto é paternalista e benevolente com os adolescentes autores de infração. Nada mais falso e enganoso O Estatuto responsabiliza penalmente o adolescente autor de ato infracional. Pelo novo direito, o adolescente (pessoa entre 12 e 18 anos), a quem se impute a autoria de ato infracional deve ser processado e, se considerado responsável, ser-lhe-á aplicada a medida sócio-educativa que melhor corresponda à natureza e à gravidade do ato praticado. Como ocorre com os delinqüentes adultos, o adolescente terá direito ao devido processo com todas as garantias próprias do estado democrático de direito.

Em termos práticos, vê-se que o Estatuto apenas estendeu aos adolescentes garantias, como o direito à defesa e à presunção da inocência, próprias. do direito penal de adultos. Dizer que isso é proteção descabida é apenas má-fé ou auto-tapeação.

A natureza das medidas aplicáveis aos adolescentes responsabilizados penalmente pela autoria de ato infracional desmente fragorosamente qualquer acusação de benevolência e paternalismo. Ao contrário, trata-se de uma pedagogia baseada - antes de mais nada - na severidade e na justiça.

A advertência, primeira e mais branda medida, é reduzida a terno e assinada, sendo, portanto, geradora de antecedentes. A obrigação de reparar o dano, segunda medida sócio-educativa, é a própria expressão da exigência de rigor no cumprimento do dever. A prestação de serviços à comunidade aprofunda de maneira ainda mais nítida o sentido responsabilizador característico das medidas sócio-educativas. A liberdade assistida é, na prática, mais rigorosa e exigente que a liberdade condicional do direito penal de adultos. A semi-liberdade corresponde claramente à prisão-albergue e a internação é definida - sem meios termos pelo Estatuto - como "medida privativa de liberdade".

O que falta então, para que isso se cumpra? Até agora, tem-nos faltado vontade política e compromisso ético para estruturarmos em cada unidade federada um SIRPA (Sistema de Responsabilização Penal do Adolescente), que realmente funcione, como adequada resposta formal da sociedade aos delitos praticados por pessoas entre 12 e 18 anos.

Um SIRPA bem estruturado significa um policiamento ostensivo que, tanto tem de severo e vigilante, como de íntegro e respeitador dos direitos humanos. Uma polícia judiciária eficiente na investigação dos delitos e respeitadora dos prazos legais e da integridade física, psicológica e moral dos adolescentes sob custódia do Estado. Um Ministério Público, uma Defensoria Pública e uma Magistratura da Infância e da Juventude de espírito. rigoroso e de orientação estritamente garantista. Finalmente, encerrando esse elenco de condições, um conjunto de retaguardas adequadas, em termos de ação social especializada, para o fiel cumprimento das medidas sócio-educativas.

O anúncio pelo Governo Brasileiro de um PLANO NACIONAL DE DIREITOS HUMANOS, nos autoriza a ter esperanças de que uma nova postura diante dessa questão esteja finalmente se delineando. Não é possível que continuemos a ver nossa população, inescrupulosamente manipulada pelas viúvas do autoritarismo - investir contra os Direitos Humanos - em geral - e contra o Estatuto, em particular, responsabilizando-os pela violência e pela impunidade resultantes do descumprimento sistemático pelo Estado do disposto nas normas internacionais, na Constituição e nas leis. Enquanto o novo direito não sair efetivamente do papel, será muito difícil calar o coro dos equivocados e deter a marcha da insensatez que, sem dúvida alguma, corrói as bases estreitas de um estado democrático de direito que continua a não existir, em termos práticos, para o segmento mais frágil e mais vulnerável da nossa população.

 

 

1 Antonio Carlos Gomes da Costa é um dos redatores do Estatuto da Criança e do Adolescente. Presta serviços a órgãos governamentais e não-governamentais por meio da consultoria Modus Faciendi (www.modusfaciendi.com.br; e-mail: modus@modusfaciendi.com.br).