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An. 1 Congr. Intern. Pedagogia Social Mar. 2006
A função da escola na construção de valores sócio morais: os temas transversais na cultura da descartabilidade
Clary Milnitsky-Sapiro, Ph.D.1
RESUMO
Para se falar em construção de Paz a partir de um olhar acadêmico, é pertinente, se não fundamental, que lembremos de Paulo Freire quando define o lugar da educação formal. Enquanto categoria abstrata, as instituições não existem como boas ou más, portanto, a escola como uma instituição per se, não existe. A escola existe enquanto ocupa um espaço social no qual a educação formal ocorre. Então, a escola (e a Universidade) não pode ser definida como uma instituição que é, mas como uma instituição que está sendo historicamente, num contexto específico, em uma sociedade específica. A teoria pedagógico-filosófica de Freire contempla aspectos sócio-psicológicos pelo seu caráter desenvolvimentista-construtivista, pois vê a escola como o lugar para a construção do conhecimento através do raciocínio crítico a fim de instrumentalizar os indivíduos para que alcancem a autonomia e respondam aos desafios do ambiente, superando e humanizando a realidade enquanto sujeitos de seu conhecimento. O caráter universalista da filosofia de Freire reside na ação humana enquanto crítica e libertadora. Todo ser humano deve ter direito à compreensão profunda do verbo, da palavra - deve ter o direito de ir muito além da reprodução. A teoria psicológica associada a essa filosofia aponta que estruturas sócio-cognitivas são construídas pelo sujeito a partir da sua experiência social e propiciam a formação de conceitos relativos às prerrogativas pessoais, às convenções sociais e aos princípios morais de justiça. Sob esse prisma, buscamos investigar a realidade a partir de ações e dos discursos dos próprios agentes, para não somente produzir um conhecimento teórico, mas participar da construção permanente de um projeto social maior, no qual, o conhecimento acadêmico deve instrumentalizar e melhorar o cotidiano. Em relação à violência, uma construção crítica do conhecimento impõe que não ignoremos a realidade e a multiplicidade dos fatores socioculturais que levam grupos e indivíduos a se comportarem de forma violenta.
Palavras-chave: infância; adolescência; valores sóciomorais; contemporaneidade;
Quero alertar aos leitores -los de que a introdução dessa temática terá um caráter provocativo para a discussão dos temas transversais dos Parâmetros Curriculares Nacionais, publicados em 1996. Trata-se do refrão de uma letra da música dos Titãs intitulada "Televisão", e é assim:
"A televisão me deixou burro
muito burro demais, agora todas as coisas que eu penso,me parecem iguais ...
tudo que a antena captar,meu coração captura
e vê se me entende,
pelo menos
uma vez, criatura"
(Arnaldo Antunes, Marcelo Frommer e Toni Belotto)
Álbum: Televisão (1985)
A letra da música Televisão do grupo Titãs pertence a uma década na qual o paradigma do desenvolvimento econômico foi rapidamente substituído pela circulação de bens de consumo ou seja, o paradigma da globalização. A mídia em geral configurou-se a serviço desse paradigma, mas a televisão em especial, por ser o mais ágil veículo de comunicação de massa, trouxe à luz um processo de alienação e empobrecimento intelectual com características inéditas. A TV instalou-se como uma interface entre o público e o privado de forma irreversível; e, ao entrar, literalmente em todas as casas, passou a envolver com seu conteúdo a própria cultura, atirando livre no público-alvo buscando produzir uma homogeneização do que é bom e desejável: ou seja, dos valores sócio-morais que norteiam a convivência social relativizando o que é de domínio público e privado, e induzindo desta forma, à uma ambigüidade que desobriga também o reconhecimento de fronteiras nos espaços compartilhados entre os indivíduos, como pessoas.
Também a proximidade da exposição de recortes e fatos ocorrendo nas mais diversas regiões do globo é sempre tecida pelos fios da violência e constituem a chamada rede de notícias.
Iniciei esse diálogo sobre a função da escola falando sobre mídia e globalização para contextualizar os então novos, Parâmetros Curriculares Nacionais publicados em 1996, e principalmente, para sugerir a atualização da concepção de currículo oculto, propondo que desloquemos para a mídia – mais especificamente, a carinhosamente denominada telinha (mesmo tendo muitas vezes, 29 polegadas) uma parcela da responsabilidade de um "ovo currículo oculto (nem tão novo, após vinte anos) tão bem ilustrado pelo refrão dos Titãs na letra da música composta ainda em 1985.
Esse novo currículo oculto, ou agenda está impregnado principalmente na educação não formal, as singulares escolas da vida visando justamente inibir essas singularidades e esse fato nos remete à discussão do que tenho denominado de resignificação da escola e de sua função. Essa resignificação envolve à apropriação dos temas transversais na construção de valores e sua inclusão no currículo oficial Será interessante revisarmos igualmente, os critérios que justificaram a adoção de seu caráter transversal.
Ninguém melhor que Paulo Freire identificou a relevância da escola no Brasil. Saliento no Brasil, pois, apesar da repercussão internacional de sua obra, e de seu tempo de magistério no exílio, Freire sempre contextualizou, regionalizou, enraizou, a ação pedagógica, enfatizando que, enquanto uma categoria abstrata, a escola não existe como boa ou má; ou melhor, – não existe como uma instituição per se.
Então, a escola não pode ser definida como uma instituição que é, mas como uma instituição que está sendo com uma função num contexto específico, historicamente datado, em uma sociedade específica (Freire, 1980). Para Freire, a escola é enquanto ocupa um espaço no social no qual uma educação formal se efetiva. Sem dúvida, essa existência em curso – denota que o conhecimento que se produz na relação pedagógica é relevante para que os indivíduos possam ser – para além do saber oficial.
Por outro lado, a constatação dessa existência processual, desse estar sendo implica também no reconhecimento de que, a escola e seu currículo estão sendo com ou coexistindo com a mídia e seus ícones de pertencimento os quais são revisados constantemente, porque descartáveis.
Então, pertencemos sem realmente sermos" - pois quando mudam nossos referenciais deixamos de ser; assim como estamos sem termos referência estáveis. Essa condição ambígua convoca a todos, principalmente às crianças e adolescentes, a uma relativização por impulso. Não é a adoção de uma posição filosófico pragmática pós-moderna, é simplesmente uma adesão a um estado de dependo do momento, tudo é válido, etc.. Vemos então, um estar sendo em um contexto que deixa de ser permanentemente, pois perde referências para adquirir outras dependendo do consumo proposto.
Se há algumas décadas pensávamos na escola supondo a neutralidade ontológica e epistemológica na qual o currículo oculto subsistia validando a desigualdade subjacente ao discurso e conteúdo didáticos, atualmente, graças ao trabalho e produção de conhecimento de muitos educadores , principalmente o de Paulo Freire, e à conquista da liberdade de expressão, da elevação da consciência política e dos direitos humanos, essa ideologia foi revelada e é permanentemente discutida.
Nossa preocupação volta-se para uma ideologia que se mantêm subjacente ao processo de socialização no seu sentido mais amplo e tem um caráter igualmente insidioso visto que todos são suscetíveis a essa produção de alienação, pois que extrapola a educação formal, e é estreitamente atrelada ao paradigma da circulação de valores e bens de consumo conforme mencionamos no início deste diálogo.
O currículo oficial buscou através dos temas transversais apropriar-se da proposta educativa da construção da autonomia e passa a explicitar a necessidade de reflexão crítica acerca das conseqüências do imediatismo, pois, a falta suprida rapidamente através do consumo gera intolerância à frustração, e conseqüentemente, também a violência, quando essa falta não pode ser suprida num tempo sem projeto.
Assim, enquanto a escola está sendo, enraizada, contextualizada, como instituição pode propiciar uma referência estável, uma instituição que tem um projeto, e que pode inclusive respeitar as singularidades, com trocas diferenciadas, sem que o outro seja apenas um instrumento de satisfação ou um obstáculo a ser vencido.
Nessa nova perspectiva de ser humano, parece que o homem contemporâneo ainda não deu conta de industrializar o seu modelo ideal de filhotes humanos, visto que os atuais –felizmente- ainda requerem os vínculos de cuidado e afeto.
É interessante notar que enquanto os parâmetros curriculares do ensino formal foram revisados para desconstruir um currículo oculto, os temas transversais foram incluídos para possibilitar que a construção da cidadania, consciência crítica e autonomia também ocorram na educação formal.
Os temas propostos como transversais – ou atravessando o currículo são a Ética, o Meio Ambiente, a Pluralidade Cultural, a Saúde, a Orientação Sexual, e o Trabalho e Consumo. Todos dizem respeito às normas de conduta e convivência, à saúde, à cultura e à participação do indivíduo consciente como agente na sociedade; e constituem prismas do desenvolvimento sócio-moral e assim foram segmentadas para possibilitar que professores de diferentes disciplinas pudessem apropriar-se do que, em síntese, é a Bioética no seu sentido mais abrangente.
Tais temas, segundo o MEC, devem privilegiar questões sociais visando à participação consciente dos indivíduos, como sugere o texto introdutório: "[...] a construção da cidadania e a democracia, são questões que envolvem múltiplos aspectos e diferentes dimensões da vida social".
Cabe salientar que os colegas consultados para definir esses temas seguiram os critérios de: "urgência social, Abrangência Nacional, Possibilidade de Ensino e Aprendizagem no Ensino Fundamental para Favorecer a Compreensão da Realidade e a Participação Social." (o que entendemos deva ter um caráter permanente não somente no ensino fundamental, mas envolvendo todas as etapas do ensino formal). Ocorre, porém, que muitos obstáculos não puderam ser superados desde a publicação dos PCN (1996), inviabilizando o reconhecimento dessa urgência social, abrangência nacional e dos outros critérios apontados para a apropriação dos temas transversais no espaço da educação formal. Pedagogos e psicólogos pesquisadores na área de desenvolvimento moral têm compartilhado da dificuldade em implementar projetos que incluam ações participativas em instituições de ensino, quer essas instituições sejam públicas ou privadas. Mesmo que formalmente acolhidos inicialmente, vamos gradativamente nos deparando com barreiras operacionais que caracterizam movimentos de resistência e rejeição por parte do corpo docente e, muitas vezes, da própria direção da instituição de ensino.
Percebemos no difícil dia-a-dia das escolas a relação hipócrita entre a escola-instituição de educação formal e a sociedade, pois como profissionais, uma vez atravessando seu portões deixamos de ser mães, ou pais e passamos a cobrar das famílias (também a família como uma instituição abstrata) a falta de limites, a violência etc.. e, apesar de adotarmos uma abordagem de cunho etnográfico, respeitando a cultura e contexto de cada escola no planejamento das oficinas, as dificuldades eram sempre as mesmas. Havia algo de errado que era comum a esses projetos acadêmicos que provocava resistência e rejeição, e que agora, temos claro: iniciávamos a implementação dos projetos buscando os alunos como sujeitos-participantes, pois acreditávamos, o que é correto, que são os mais vulneráveis à exposição aos valores que homogeneízam.
Oferecemos oficinas nas quais a dinâmica envolvia o raciocínio crítico e seleção de alternativas a partir de categorias emergentes do contexto de cada escola e obtivemos resultados muito bons com os alunos-participantes, mas os resultados foram transitórios, pois eles tinham que voltar a se "adaptar" no sentido freireano mesmo de se acomodação pois a relação pedagógica da escola não fora alterada. E uma vez concluída a intervenção ocorria a volta rápida ao mal-estar e à beligerância entre "corpos" (docente e discente) acompanhada de um sentimento de impotência ainda maior por parte dos professores, que esperavam uma melhora radical - pois freqüentemente nós acadêmicos, convocamos involuntariamente, à expectativa de solução com um certo caráter messiânico.
Percebemos então que de fato, os tais temas transversais são cruciais para explicitar esse novo currículo oculto, mas ocorre que se uma escola mal da conta do programa de cada ano letivo, torna-se impraticável a apropriação dos temas que devem permear, atravessar cada disciplina convergindo para a consciência de si e do outro, de valores intrínsecos ao ser humano e ao exercício da cidadania.
O inequívoco, então se explicitou: a revisão da própria estrutura e formação pedagógica é crucial para que temas transversais sejam apropriados por todos que trabalha o currículo oficial. E essa revisão implica em novo significado à velha estrutura e à revisão da própria função e de investimento interpessoal, pois a falta de investimento na educação repercute na retirada de investimento pessoal em todas as instâncias, até chegarmos na relação pedagógica: professor-aluno.
Em vários depoimentos de professoras identificamos o sentimento de indignação e falta de expectativa de respeito e talvez, de reverência. Uma das professoras de ensino médio, entrevistada pelas pesquisadoras argumentou o seguinte em sua entrevista: "Acho que eles (os alunos) não nos respeitam porque o nosso salário é uma vergonha. Como vão respeitar alguém que trabalha praticamente de graça?.. é como se eles tivessem que nos fazer o favor de prestar atenção, como se fosse uma caridade que os alunos fazem para nós. Os papéis estão totalmente invertidos".
A ação pedagógica parece transitar entre o exercício de uma profissão e uma prática de caridade/doação, como no caso citado onde talvez a presença do professor devesse ser entendida pelos alunos como uma dádiva. Ainda, paralelamente aos conflitos intramuros temos uma outra vilã: a família – apontada pela escola como a entidade ausente, não estruturada e desestruturante, enquanto que, do lado de cá – o do corpo docente, justificamos que não cabe à escola prover à criança e ao jovem o que a instituição de origem não lhes provê - no caso, os valores relativos aos temas transversais. Quando somos nós a família - os do outro lado, cobramos o mesmo da instituição escolar. Esse impasse demonstra que sem dúvida, que essa escola, abstraída da realidade, não é nem está sendo, por enquanto, o cotidiano e os temas transversais denotam o que a escola deve ser o que nos remete à incorporação do raciocínio crítico como amálgama na construção de valores sócio-morais.
Há que se considerar também que um número muito grande de crianças e adolescentes têm na escola a instituição de referência sócio-afetiva mais estável, se a comparamos com a proliferação de reestruturações vinculares da instituição família e a volatilidade das relações da contemporaneidade. Tal função de referência envolve uma responsabilidade ou responsividade maternal e sustentadora, ou de mãe ambiental, a quem compete ser suficientemente boa, para acolher a todos e propiciar o desenvolvimento de potencialidades individuais. Também uma função de limite paterno no sentido de ter autoridade (não arbitrariedade) para estabelecer normas e interdições socializantes. Não cabe, nesse momento, explorar uma abordagem de cunho psicanalítico, mas sim, pedagógico, o que não dispensa a menção de tais funções como trabalho de Winnicott, por exemplo.
O quê, e como fazer, então? Primeiramente, constatamos que a escola na atualidade tem sim, uma função de referência, de enraizamento, menos descartável, mas que necessita ser revisada para dissolver essa fronteira da educação formal e não formal.
Citarei agora concluindo, alguns enunciados do texto do MEC, em seu volume dedicado às Ciências Humanas e suas tecnologias2 para os temas transversais :
Outro não é o imperativo que a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, promulgada em 20 de dezembro de 1996, nos obriga a respeitar, ao estabelecer como finalidade da educação "o pleno desenvolvimento do educando, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho" (Art. 2º). E como finalidades do Ensino Médio, "o aprimoramento como pessoa humana, incluindo a formação ética e o desenvolvimento da autonomia intelectual e do pensamento crítico"; (Art. 35, PCN, Orientações Educacionais Complementares aos Parâmetros Curriculares Nacionais", p.8, 2000)
A expressão nos obriga a respeitar já indica uma indica um princípio de dever, um reconhecimento de que se alguém, no caso a população tem direitos, o Estado deve dar conta de seus deveres e do fim máximo da educação. Para tal, nesse mesmo texto, é recomendado um programa institucional de formação permanente, que deve ser de competência direta das escolas e apoiado pelas redes escolares, visando a atualização a criatividade do professor para o emprego de raciocínio crítico para improvisar estabelecendo relações com a realidade. O fato é que devemos manter o esforço, ainda que passada uma década desde a proclamação da urgência, para garantir acima de tudo, que essa possibilidade passe a ser uma realidade.
Há muito que aprender em termos de globalização, e seus efeitos na produção de subjetividade na sociedade de consumo. Acredito que a conscientização da dominância do paradigma da circulação de bens de consumo na contemporaneidade, despertou a consciência de que é fundamental assegurar a cada indivíduo a oportunidade - não somente o direito, - de desenvolver respeito por si mesmo e pelos outros indivíduos como seres vivos.
Longe de ser retórica, trata-se de necessidade emergencial, e de um valor universal. Se conseguirmos levar a efeito tal proposta em devir, teremos finalmente escolas cujos currículos foram e são ainda desejados por Freire e seus seguidores – impregnados de habilidades para consciência crítica e autonomia para escolhas de vida como agentes e não expectadores.
Referências:
http://www.mec.gov.br/semtec/ftp/Ci%EAncias%20Humanas.doc
Winnicott, D.W., (1984) Deprivation and Delinquency, Tavisrock Publications, Londres, UK.
Freire, P. (1987) Pedagogia do Oprimido, Paz e Terra, Rio de Janeiro
Freire, P. (1980) Pedagogia para a Autonomia.
Freire, P. (1984) A Importância do Ato de Ler, Autores Associados: Cortez, SP.Coleção Polêmicas do Nosso Tempo:4.
1 Professora da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
2 disponível on-line sob o título, PCN + Ensino Médio, contendo as "Orientações Educacionais Complementares aos Parâmetros Curriculares Nacionais"