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An. 1 Congr. Intern. Pedagogia Social Mar. 2006
Reflexões sobre pesquisa histórica com base em idéias e práticas sobre a assistência à infância no Brasil na passagem do século XIX para o XX
Irene Rizzini1
RESUMO
Neste texto, estimulada pelo convite a participar do I Congresso Internacional de Pedagogia Social, volto meu olhar ao passado para analisar as idéias e as práticas que se fizeram presentes no Brasil há cerca de cem anos como parte da proposta de salvar as crianças (save the children). Começo focalizando o papel social atribuído à infância caracterizada como pobre e abandonada (material e moralmente) e viciosa, buscando contextualizar o momento histórico marcado pelas profundas transformações por que passava o país. Em seguida, discuto a origem destas idéias e práticas, no contexto internacional e como elas foram incorporadas e adaptadas no Brasil. Argumento que, ao contrário do que muitos afirmam, o Brasil investiu e muito na criança. No entanto, este investimento não visava atenuar a profunda desigualdade social, que persiste no país até o presente. Na realidade, vetou-se aos pobres uma educação de qualidade e o pleno exercício de sua cidadania. Para eles pensou-se e praticou-se uma política de exclusão social e de educação para a submissão, mantendo-se a renda e os privilégios nas mãos de uma minoria.
Palavras-chave: infância; adolescência; História do Brasil; cultura menorista; direitos da criança e do adolescente.
"... Para se ter uma visão do futuro, sempre foi necessário se ter uma
nova visão do passado" (Zeldin,1998).
Apresentação
Durante duas décadas estive à frente de uma equipe que se dedicou a "resgatar" a história da criança na história do Brasil (1984 – 2002). Era sim, uma espécie de resgate, à medida em que rodamos o Brasil em busca de documentos perdidos ou esquecidos, pelo passar do tempo. Chegamos a armazenar um acervo de cerca de 12 mil títulos. Este material nos possibilitou gerar uma série de publicações e subsidiar um grande número de pesquisas, que geraram outras publicações, bem como muitas monografias, dissertações e teses. Essa produção culminou na publicação de diversos materiais em livro, cd-rom e vídeo no ano de 19972. A partir daí, entendemos que nossa meta deveria ser a de nos concentrarmos em ligar passado e presente, focalizando políticas e práticas atuais, porém refletindo sobre suas raízes históricas.
Esta determinação nos levou a criar uma linha de pesquisa que denominamos de ELOS familiares e comunitários. Nossa idéia era estudar aspectos do cotidiano de vida de crianças, adolescentes e jovens, vendo-os sempre na perspectiva de seu entorno ou de seu contexto familiar e comunitário. Como nos anos anteriores, nosso olhar volta-se mais para a população que permanece à margem da sociedade. Isso se dá por uma questão de prioridade. Ao nosso ver, há muito que se estudar em relação a todas as crianças e adolescentes, no entanto, a pesquisa direcionada para aqueles que nascem em condições de maior adversidade faz-me mais urgente sob o ponto de vista do subsídio a políticas e práticas que possam beneficiá-los. Com esta abordagem em mente, jamais abandonamos a perspectiva histórica em nossos estudos, porém criamos uma outra série de projetos e publicações, enfocando diversos temas contemporâneos como: as trajetórias de vida de crianças e adolescentes em situação de rua; sua circulação entre a casa/comunidade, as ruas e as instituições do sistema de "proteção"; as bases de apoio familiares e comunitárias para crianças e adolescentes; as percepções de crianças e adolescentes sobre direitos, responsabilidades e participação didadã; jovens e mídia; infância e globalização, entre outros.
Pode-se afirmar que a criança foi de fato um instrumento valioso, que precisava ser salva para salvar o país, porém na perspectiva de sua elite que se percebia ameaçada de perdê-lo. É por essa razão que parcela significativa da população infantil brasileira permanece até os dias de hoje à margem da sociedade, sendo vista, assim, como o é o pobre em geral: uma ameaça à ordem e à paz social.
A Idéia de Salvação da Criança
Na passagem do século XIX para o XX, atribuiu-se grande importância à parcela infantil e empobrecida da população brasileira. O significado do papel atribuído a esse grupo no projeto de construção de nossa nação deflagra o momento no qual a infância se revelava como um problema social, cuja solução parecia fundamental para o país. O significado social da infância circunscrevia-se na perspectiva de moldá-la de acordo com o projeto que conduziria o Brasil ao seu ideal de nação. Esse ideal era descrito como o de transformar o Brasil numa nação culta, moderna e civilizada (2), de acordo com os modelos de civilização da época tipificados pelas principais cidades européias e norte americanas, entre as quais destacavam-se Paris, Londres e Nova York.
O interesse pela infância caracterizada como abandonada e delinqüente refletia a preocupação existente com o futuro do país. São inúmeras as referências encontradas na literatura sobre a magna causa da infância e sobre a cruzada pela infância. Afirmava-se que que salvar a criança era salvar o país. Ela era, portanto, vista como chave para o futuro da nação (3) (Cunningham, 1995).
A consciência de que na infância estava o futuro da nação no século XIX estava associada à necessidade de manutenção da ordem e de criação mecanismos que protegessem a criança dos perigos que pudessem desviá-la do caminho da disciplina e do trabalho. Assim como era preciso defender a sociedade daqueles que se entregavam à viciosidade e ameaçavam a paz social. O desdobramento das idéias e das práticas visando a proteção e o controle deste segmento da população é semelhante aquele ocorrido nos demais países do Ocidente, revelando formas bastante ágeis de interação e comunicação entre os atores sociais que representavam a elite filantrópica e política da época
Discuto, neste texto, a materialização da idéia de infância como futuro da nação, nos termos em que se concebiam os problemas e eram visualizadas as soluções para salvar a infância pobre e enquadrá-la socialmente como elemento importante para o projeto civilizatório do país. A expressão salvar a criança foi inspirada no discurso, corrente na época, tendo-se como base o pressuposto de que o investimento na criança constituia-se como uma forma de investimento no futuro de um país. Apresento inicialmente um breve panorama do contexto histórico da época. Em seguida, analiso o movimento de salvação da criança no Brasil, sua origem, idealização e desdobramentos desta hitória para o presente.
A análise das idéias e práticas vigentes na passagem do século levam a concluir que o acentuado interesse na criança pobre (4) na época deve ser entendido como parte de um projeto essencialmente político. A meta era combater o contingente ocioso da população, enquadrando-o desde a infância à demanda do desenvolvimento capitalista de então, ou seja, transformar a criança pobre em elemento útil para o país. De forma objetiva, era preciso proteger a criança como forma de defesa da própria sociedade. O discurso apresentava-se, com freqüência, ambíguo, onde a criança precisava ser protegida mas também contida, a fim de que não causasse danos à sociedade. Esta ambigüidade na defesa da criança e da sociedade guarda relação com uma certa percepção de infância, claramente expressa nos documentos da época - ora em perigo, ora perigosa. Tais representações não por acaso estavam associadas a determinados estratos sociais, sendo a noção de periculosidade invariavelmente atrelada à infância das classes populares.
O foco sobre a infância pobre redundou no desenvolvimento de um complexo aparato jurídico-assistencial sob a liderança do Estado, materializado através da criação de inúmeras leis e instituições destinadas à proteção e à assistência à infância. No entanto, este investimento não visava atenuar a profunda desigualdade social que sempre caracterizou o país. Ao contrário, vetou-se aos pobres uma educação de qualidade e o acesso à cidadania plena. Para eles pensou-se e praticou-se uma política de exclusão social e de educação para a submissão, mantendo-se a renda e os privilégios nas mãos de uma minoria até os dias de hoje.
Brasil: Contexto Histórico
As últimas décadas do século XIX foram marcadas por acontecimentos de grande importância no Brasil. No ano de 1888 efetiva-se a abolição da escravatura e, em 1889 é proclamada a República, fatos que provocaram um profundo reordenamento econômico, político e social no país. Os eventos significativos no âmbito da política interna interligavam-se ao clima também de profundas transformações na ordem mundial de então, em conseqüência das novas relações de produção e trabalho, como forma de ajuste às bases do Estado liberal, na lógica capitalista (Sodré, 1989).
Instalava-se um modo de vida totalmente diverso do existente até então nas sociedades modernas, seduzidas pelas perspectivas de intenso progresso e desenvolvimento urbano. A vida na cidade demandava novos hábitos e desafiava a tradição, impondo novas formas de viver. Surgiam temores a respeito do visível aumento da massa populacional e sua concentração nos centros urbanos, fugindo às formas de controle estrito exercido sobre as pessoas no contexto rural e das pequenas vilas, além das ameaças de insurgência e amotinação das pessoas contra a ordem estabelecida. As formas de controle social até então vigentes mostram-se ineficazes neste novo contexto.
O referencial de análise aqui adotado é, portanto, o novo mundo urbano que se descortinava, em contraste com o atraso do universo rural. O fascínio exercido pelas luzes da cidade - a metrópole, a cosmopolis- protótipo do moderno, do culto e do civilizado, no imaginário da elite da época. E o foco recai sobre a cidade do Rio de Janeiro, capital federal na época. De todas as cidades em acelerado desenvolvimento, era o Rio de Janeiro, a que mais se aproximava do esteriótipo europeu e norte americano de cidade civilizada, nos moldes de Paris, Londres ou Nova York, as mais citadas. Era, até o final do século XIX, de longe o centro da vida política, cultural e intelectual do país.
A cidade era associada à imagens conturbadas de desordem, da doença, da criminalidade e da imoralidade. O estilo de vida citadino, tão vulnerável ao vício e à ociosidade e tão diferente daquele que caracterizava a vida rural, surgia com um certo tom de espanto em todo o tipo de literatura da época. As formas arquitetônicas e a divisão espacial da cidade também eram objeto de contraste, revelando uma preocupação constante com a segurança e a ordem. A existência de esquinas, becos e ruelas estreitas, garantindo a penumbra a qualquer hora do dia, como assinala Chevalier, parecia estimular os fantasmas de perigos inesperados que a cidade acobertava (Chevalier, 1973) (5).
Sobre o Rio de Janeiro, nossa cidade modelo e principal palco desta história, encontram-se diversas referências à população vista nas ruas. Ela "(...) poderia ser comparada às classes perigosas de que se falava na primeira metade do século XIX" (Carvalho, 1991: 18). A cidade propiciava, enfim, uma mistura populacional desconhecida, assustadora. Em meio à fervilhante movimentação ostentatória de riqueza, circulavam e vadiavam nas cidades tipos humanos de toda a espécie: trabalhadores pobres, vagabundos, mendigos, capoeiras, prostitutas, ‘pivetes’ (6).
Alguns depoimentos da época revelam que crianças e jovens eram figuras sempre presentes no cenário de abandono, pobreza e desordem da cidade. O jurista Evaristo de Moraes, ao escrever indignado sobre o recolhimento de crianças nas ruas da Capital e seu encarceramento na Casa de Detenção, afirmava em 1898 : "(...) Em regra geral, as crianças assim apanhadas nas ruas, victimas da orphandade ou do abandono familiar, essas pobres crianças sem lar e sem pão, são enviadas ao juiz pretor, depois d ‘uma dormida no xadrez ou no corpo da guarda" (Gazeta da Tarde, 11 de outubro de 1898).
A presença perturbadora de crianças nas ruas, "material e moralmente abandonadas", como a elas se referiam na época, emergia nos debates políticos como um apelo para que o país assumisse que estava diante de um problema social grave a demandar intervenção urgente. Em discurso proferido no ano de 1896, o Senador Lopes Trovão dizia : "(...) quem com olhos observadores percórre a capital da Republica vê apezarado que é nesse meio peçonhento para o corpo e para a alma (a rua), que bôa parte da nossa infancia vive ás soltas, em liberdade incondicional, ao abandono, imbuindo-se de todos os desrespeitos, saturando-se de todos os vicios, apparelhando-se para todos os crimes..." (Trovão, 1896. In : Moncorvo Filho, 1926 : 129-130).
A intervenção do Estado junto a esse segmento da infância era defendida como uma ampla ‘missão saneadora, patriótica e civilizatória’ em prol da reforma do Brasil. A missão era idealizada como parte do projeto de construção nacional desde os primeiros anos de instauração do regime republicano. O discurso predominante continha uma ameaça implícita - a de que o país seria tomado pela desordem e pela falta de moralidade, se mantivesse a atitude de descaso em relação ao estado de abandono da população, em particular a infância.
A proposta tinha uma fórmula extremamente lógica, de fundo político compatível com o pensamento de então. Entendia-se que, ao proteger a criança, era, na verdade o país que se estava defendendo (do crime, da desordem, da anarquia, etc.). Portanto : ‘salvar a criança era salvar o país’.
O Movimento de Salvação da Criança
O movimento que se constituiu com a proposta de salvar a criança tem sua origem a partir da crença de que, herança e meio deletérios transformavam em monstros crianças já marcadas por certas inclinações inatas, acarretando conseqüências funestas para a sociedade como um todo. Salvar essa criança era uma missão que ultrapassava os limites da religião e da família e assumia a dimensão política de controle, sob a justificativa de que havia que se defender a sociedade em nome da ordem e da paz social.
De acordo com o historiador Hugh Cunningham (1995), o movimento de ‘salvação da criança’ floresceu particularmente nos países protestantes da Europa e na América do Norte, entre 1830 e 1920. Este período foi marcado pela ação cívica de indivíduos através de associações filantrópicas criadas para atuar em defesa dos pobres e necessitados. No caso específico da criança, a ação filantrópica revelou-se das mais intensas e teve um impacto tal, que se atribui em grande parte a esse movimento a pressão para que o Estado assumisse a responsabilidade na criação de políticas destinadas à infância.
A demanda para que o Estado ocupasse o papel de liderança nas ações destinadas a esse segmento da população e sua efetiva intervenção a partir da segunda metade do século XIX, deve ser vista como um marco fundamental, na verdade determinante do processo que se desenrolou em todo o mundo ocidental. Aliás, o que se passa daí para a frente apresenta desdobramentos semelhantes quase que imediatos na Europa e na América do Norte, com reflexos identificáveis na América Latina em curto período de tempo. Há notável intercâmbio de saberes e experiências nesta época, sobretudo por meio de reuniões e congressos internacionais, onde as elites dos dois continentes formulam os destinos das políticas de seus países. Na bibliografia brasileira, os discursos apreendidos nestes congressos eram sempre citados com o propósito de legitimar certas idéias em vigor no âmbito internacional, ao que tudo indica com muito sucesso.
O caso norte-americano é analisado no livro The child savers: the invention of delinquency, de Anthony Platt (1977). O autor faz uma leitura crítica do movimento progressista norte-americano, utilizando a idéia de salvação da criança como ponto central de sua análise. Segundo Platt, o child-saving movement, não foi um empreendimento humanista a favor das classes trabalhadoras contra a ordem estabelecida. Ao contrário, dirá, "(...) sua motivação originou-se das classes média e alta, as quais buscavam novas formas de controle social para defender seu poder e privilégios" (Platt, 1977 : xx). Portanto, as reformas em prol da criança, que caracterizam o referido movimento, faziam parte de um movimento mais amplo, que visava a adaptação das instituições às demandas do sistema capitalista emergente. No seu entender, tratava-se de uma reação diante da visível instabilidade nos negócios ao final do século XIX e das manifestações de insatisfação dos trabalhadores que lutavam pela melhoria das condições econômicas e sociais.
O que é importante assinalar nesta discussão é a percepção de que cabia ao Estado tomar as rédeas. Uso esta expressão propositadamente, pois de alguma forma naquela conjuntura, surgiu a necessidade de se eleger um carro-chefe que exercesse controle sobre a situação; significa dizer que à idéia de infância estava associada a percepção de desordem e ameaça de descontrole. É o que atestam os discursos alarmados dos filantropos e reformadores da época. Não que se estivesse descobrindo os efeitos da pobreza sobre as crianças, pois era fato sabido que estas constituíam uma significativa parcela entre os pobres há séculos (7). O que tem de singular neste momento é a pobreza não contida (pelas poor laws, parishes, almshouses, workhouses, orfanatos, instituições rurais, etc), mas a pobreza exposta nas ruas das cidades que se industrializavam e transformavam famílias inteiras em trabalhadores ativos ou na reserva, de todo o modo, pobres.
O perigo estava em que crianças criadas no vício seriam reprodutoras da desordem. Os congressos promovidos na época alardeavam a predominância de crianças entre hordas de vagabundos e mendigos pelas ruas. Intervir nesse segmento era claramente uma questão de ordem pública. Era preciso encontrar mecanismos de coerção que atuassem sobre a infância, "salvando" aqueles que tinham potencial e pô-los a trabalhar e imobilizar os que se mostravam renitentes.
A criança que mais obviamente se prestava como alvo da ação salvacionista era aquela sobre a qual pairava o espectro da criminalidade. Entendia-se ser preciso evitar que as crianças, identificadas como potencialmente delinqüentes, seguissem seu percurso no mundo do crime. Em 1880, o criminalista Enoch Wines escrevia o que estava no pensamento de muitos, ou seja, que estas eram as crianças que precisavam ser salvas, "(...) pois haviam nascido para o crime e eram criadas para a criminalidade (Wines,1880. Apud Platt, 1977 : 45).
Sobre a Origem das Idéias
Para entender o sentido da expressão save the children no contexto brasileiro do século XIX para o XX é preciso voltar no tempo e buscar a origem da mesma expressão. A idéia de salvação da alma remonta ao dogma cristão de pecado original, segundo o qual o indivíduo é naturalmente portador de más inclinações ao nascer, para explicar o enraizamento da noção de necessidade de salvação da alma, particularmente sob a influência dos reformadores protestantes. Um sermão alemão proferido em torno de 1520, por exemplo, afirmava que: "(...) da mesma forma que um gato deseja ratos, que uma raposa anseia por galinhas e um lobo à ovelhas, assim também os bebês humanos possuem uma inclinação em seus corações para o adultério, fornicação, desejos impuros, luxúria, adoração a falsos deuses, crença em mágica, hostilidade, discórdia, paixão, raiva, disputa, dissensão, faccionismo, ódio, homicídio,embriaguez, gula, e mais" (8) (Cunningham, Op. cit. : 49).
A concepção do ser humano como pecador nato veio a justificar as várias formas de intervenção que incidiram sobre a família e diretamente sobre a criança, tendo por base a versão Agostiniana e Calvinista da doutrina do pecado original, segundo a qual a depravação inata e as paixões da criança precisavam ser controladas, tendo em vista a sua salvação e a boa ordem social. São atribuídas a Santo Agostinho as seguintes palavras em suas Confissões (I : 19) : "Quem pode me fazer recordar os pecados que cometi quando era um bebê? Já que em vossa visão ninguém está livre do pecado, nem mesmo uma criança que viveu apenas um dia na Terra" (9).
A despeito das divergências ideológicas entre católicos e protestantes, há diversos pontos em comum no que se refere ao interesse pela infância. A idéia de criança como chave para o futuro exerceu profunda influência nas sociedades ocidentais. Essa idéia, nascida no século XVI e consolidada em momentos históricos de grande impulsionamento por reformas, catalisa tudo aquilo que Ariès denominou de descoberta da infância - o momento a partir do qual a criança passou a ser representada de forma diferenciada da do adulto. Nesse mundo onde a criança veio a ocupar um espaço antes pouco perceptível, foi desencadeado um fantástico investimento em sua educação com o objetivo de moldá-la e transformá-la no adulto que cada um idealizava para sua nação.
A idéia de chave para o futuro tem uma importância muito grande porque está associada a uma nova conceituação de infância que exerceu forte impacto nas formulações conceituais e práticas que se desenvolveram posteriormente no mundo ocidental. Trata-se da conceituação humanista de infância identificada na Europa Renascentista, sobretudo através dos escritos educativos do holandês Desiderius Erasmus, em torno de 1520. É precisamente quando se materializa a idéia de que o futuro do Estado dependia da forma como se educava uma criança. E que a família, como responsável pela educação (upbringing) da criança, era o protótipo do Estado; logo, suas virtudes espelhariam as virtudes do Estado.
A imagem da criança como barro a ser moldado, para o bem ou para o mal, presta-se para justificar a necessidade de investir em sua educação. O canal de entrada é a família, porém logo se investe na criação de instituições capazes de fragmentar o poder atribuído à família. A escola ocupará um papel fundamental neste sentido, já no século XVI. Outras instituições e medidas de intervenção mais claramente coercitivas surgirão para lidar com as famílias pobres, cuja relação com a Igreja e o Estado se dava em outras bases, ou seja, de submissão pela dependência ou pela força.
Nesta discussão, a.condição social da criança parecia não ter qualquer relevância. Tratava-se de uma conceituação abstrata de infância, ou melhor, da construção ideológica da infância no universo cristão europeu, cujas formulações exerceram enorme influência sobre suas colônias. Somos, também, frutos destas formulações. No século XVI, os jesuítas já haviam se instalado em solo brasileiro, impondo práticas por meio de uma "cultura institucional", cuja marcas são ainda muito presentes em nosso país (10)
Salvar a Criança para Salvar o País
A criança que aparece no discurso como aquela que precisava ser salva era sobretudo a criança que fugia ao controle da família, julgada indigna ou inadequada para a função de educar os filhos. Era para a criança moralmente abandonada que se voltavam os olhos preocupados dos reformadores sociais (Moraes, 1900). O abandono moral constituirá o ponto central do discurso moralizador. Ferri e Lombroso, principais mentores da famosa Scuola Italiana de criminologia, logo perceberam sua importância e a destacaram. Outros os seguiram. Cuidar da infância fisicamente abandonada, era por direito da alçada do Estado, que dela faria o que julgasse melhor. Porém, como lidar com o abandono de cunho moral, como penetrar no espaço privado da família e intervir sobre a autoridade paterna, até então totalmente protegido pela Igreja e pela Justiça? Sob o argumento de se garantir a proteção da infância contra o abandono moral, a família passa a ser literalmente taxada de "infratora". Esta, acusada de cometer o terrível crime de desencaminhar os próprios filhos ao invés de cumprir o dever de educá-los, perde para o poder público a paternidade dos filhos. A até então sagrada responsabilidade familiar de zelar pelos filhos claramente adquire o sentido de vigiar a infância como um dever patriótico.
Caberá, pois, ao Estado a missão de salvar as crianças, tomando-as para sí e transformando-as em elementos úteis para a nação - os filhos da Pátria, como seriam chamadas (11). A própria idéia de salvação da criança confunde-se com a proposta de salvação do país - um país a ser moldado como se molda uma criança. Na lógica do pensamento de então, um projeto político que efetivamente transformasse o Brasil numa nação civilizada implicava na ação direta sobre a infância. Moldá-la de acordo com o que se queria para o país. Dado o reconhecido atraso do Brasil e as incontáveis deficiências de sua gente, a missão que se tinha à frente era não só a de educar as crianças para uma nação forte, mas a de educar um povo-criança - um povo que se encontrava ainda em sua fase de infância.
Assim como um pai vê em seu filho um ser imaturo, ainda por criar, a elite brasileira enxergava a população como composta por seres primitivos e meio bárbaros, se pensarmos no ideal de civilização da época, o qual parecia jamais poder ser alcançado com os nativos da terra. De certa maneira, a vida urbana tornava ainda mais discrepante o contraste entre a elite - protagonizada pelo homem moderno, industrial, capitalista -, e o homem do povo. Este - bruto e ignorante - era como uma criança, que cresceu sem ter sido lapidada.
Em discurso pronunciado em 1920, o médico Moncorco Filho, um dos líderes do movimento em defesa da criança, referia-se à grande cruzada pela infância, confessando : "(...) Sempre tive como inconcussa verdade aquillo que ainda mui recentemente dizia, na Inglaterra, durante a "Semana da Creança", William Cheverry : ‘Nada mais dignifica uma Nação do que os cuidados nella empregados com a infancia’. E ainda mais : ‘O progresso de uma Nação infere-se pelo passado de sua infancia; o módo porque são alimentadas, educadas e investidas nas suas responsabilidades de procreadôras são as indispensaveis realidades da vida social’ (Moncorvo Filho, 1920 : 4).(12)
Via-se na criança, ainda facilmente adaptável, a solução para o país. Por um lado, ela simbolizava a esperança - o futuro da nação. Por outro, ela constituia uma ameaça nunca antes descrita com tanta clareza. Põe-se em dúvida a sua inocência. Descobrem-se na alma infantil elementos de crueldade e perversão. Ela passa a ser representada como delinqüente e deve ser afastada do caminho que conduz à criminalidade, das escolas do crime, dos ambientes viciosos, sobretudo as ruas e as casas de detenção. No dizer de um jurista da época, "(...) contentamo-nos de confessar que aquella lenda da alma infantil candida e altruista, está morta" (Lobo, 1907 : 28).
Esta visão ambivalente em relação à criança - em perigo versus perigosa - torna-se dominante no discurso brasileiro, na passagem do século. Identifica-se na criança, filha da pobreza, um importante elemento de transformação social, de acordo com o projeto político da época, o que justificará e legitimará uma série de medidas repressivas impostas sob a forma de assistência aos pobres. Do referencial jurídico claramente associado ao problema, constrói-se uma categoria específica - a do menor - que divide a infância em duas e passa a simbolizar aquela que é pobre e potencialmente perigosa.
Em nome da manutenção da paz social e do futuro da nação, diversas instâncias de intervenção e controle serão firmadas. Será da medicina (do corpo e da alma) o papel de diagnosticar na infância possibilidades de recuperação e formas de tratamento. Caberá à Justiça regulamentar a proteção (da criança e da sociedade), fazendo prevalecer a educação sobre a punição. À filantropia - substituta da antiga caridade - estava reservada a missão de prestar assistência aos pobres e desvalidos, em associação às ações públicas (13). A composição desses movimentos resultou na organização da Justiça e da Assistência (pública e privada) nas três primeiras décadas do século XX. Com discursos e práticas que nem sempre se harmonizavam entre si, a conexão jurídico-assistencial atuará visando um propósito comum: salvar a criança para transformar o Brasil.
A descoberta estava no potencial que se tinha em mãos de moldar a criança para o bem (virtuosa) ou para o mal (viciosa), o que é repetidamente evidenciado nas declarações e publicações que compõem o discurso da elite intelectual e política da época. São abundantes os depoimentos de médicos, juristas, filantropos, moralistas, entre outros, alarmados ante o visível descaso para com a infância desvalida. Em seu discurso, educar a criança era cuidar da nação; moralizá-la, civilizá-la. Cuidar da criança e vigiar a sua formação moral era salvar a nação. Portanto, efetivamente, salvar a criança era salvar a nação - frase que tantos repetiram nos idos de 1800 para 1900. Entendia-se ser essa a missão, como bem definiu Lopes Trovão em 1896, ao discursar no Senado Federal, "Temos uma patria a reconstruir, uma nação a firmar, um povo a fazer... e para emprehender essa tarefa, que elemento mais ductil e moldavel a trabalhar do que a infancia?!...". "São chegados os tempos", preconizava o Senador, "de prepararmos na infancia a cellula de uma mocidade melhor, a genesis de uma humanidade mais perfeita " (Trovão, 1896).
No entanto, a despeito dos discursos inovadores, o Brasil, visto como ainda por fazer, não encontraria fórmulas verdadeiramente novas na gestão do poder. O caso específico da "salvação da criança", tipifica o compromisso entre a tradicional estrutura agrária de poder e a ascenção de novos grupos, embalados pelos ideais republicanos de construção nacional e pelo modelo civilizatório europeu. A elite letrada, que dominava a arena política à época, tinha diante de sí uma opção a fazer : promover a educação (para "civilizar"), sem, no entanto, abrir mão dos privilégios "herdados". Sabia-se ser preciso instruir o povo, capacitando-o para o trabalho, como único meio de atingir o progresso. O paradoxo estava em fazê-lo, mantendo o povo sob vigilância e estrito controle, como uma necessidade política de preservar a ordem pública.
Justiça e Assistência : de como se Idealizou a Salvação da Criança no Brasil
Nas duas primeiras décadas do século XX, foi estabelecida uma aliança entre Justiça e Assistência - uma associação, cujos reflexos são claramente detectáveis no discurso relativo à infância e que deu origem à ação tutelar do Estado. No que se refere à Justiça, buscou-se definir suas funções de cunho social, repudiando-se seu caráter estritamente punitivo-repressivo; o que foi feito através da aproximação com os promotores da filantropia, aproveitando-se de seu acesso ao segmento de pobres e necessitados, sobre o qual era preciso intervir. Por sua vez, os representantes da ação filantrópica viam nos promotores da Justiça a solução para dar conta da evidência crescente de periculosidade da população pobre que lhe cabia assistir. Portanto, a aliança entre Justiça e Assistência vai se dar com base na necessidade de mudança dos modelos de intervenção sobre a população pobre - aliança concebida como um desdobramento do amplo movimento filantrópico moralizador instituído a partir da lógica da nova ordem política, econômica e social que se estabelecia.
No caso da infância, representantes das esferas da Justiça e da Assistência assumem sua causa e defendem a criação de um sistema de proteção aos menores, prevendo-se a elaboração de legislação própria e ação tutelada pelo Estado, com apoio das iniciativas privadas de amparo ao menor, aqui entendido como uma categoria jurídica socialmente construída e oriunda daquela aliança. A partir daí, surgem instâncias regulatórias da infância - os Juizados de Menores e uma legislação especial - o Código de Menores (ambos na década de 1920). Os representantes da Justiça e da assistência buscam na aliança a auto-sustentação pela complementação de suas ações. Ambas inserem-se na lógica do modelo filantrópico, que visava o saneamento moral da sociedade através da assistência imposta ao pobre. Tornam-se politicamente viáveis ao servir a função regulatória de enquadrar os indivíduos, desde a infância, à disciplina e ao trabalho.
O discurso adotado pelos reformadores sociais interessados na salvação da criança era respaldado em amplo debate internacional sobre o movimento de reforma da Justiça, o qual preconizava a importância da regeneração do indivíduo através da educação, em detrimento da simples penalização pelo crime cometido. Mais sentido ainda fazia pensar-se na aplicação desse movimento para crianças e jovens, cuja plasticidade de caráter, tornavam maiores as chances de recuperação. Inúmeras vozes levantam-se para defender a necessidade de reforma da Justiça para os menores no Brasil, usando o argumento de que o aumento da criminalidade infantil constituia prova incontestável da urgência de se criar uma Justiça de menores.
É exatamente o que defenderão os porta-vozes da versão da Nova Justiça para a infância aqui representados por Ataulpho de Paiva, quando afirma: "A simples repressão, que constituiu a idéia fundamental dos codigos, sempre confundiu a causa do menor, deixando-o ao desamparo do Direito e da Justiça. A crise tremenda em que se vê a delinquencia juvenil assumiu proporções assustadoras, maxime em sua comparação com a criminalidade dos adultos, ahi está para attestar eloquentemente a imprestabilidade dos velhos moldes e dos processos anachronicos..." (Paiva, 1913. Apud Moncorvo Filho, 1926 : 73).
Novos conhecimentos, advindos da sociologia, psicologia, psiquiatria e antropologia criminal era incorporados, buscando-se a origem dos fatores que exerciam influência sobre o indivíduo que cometia um crime em idade precoce. Em artigo publicado no Jornal do Commercio, em 1911, intitulado A Nova Justiça. Os Tribunaes para Menores, o Desembargador Ataulpho de Paiva discorre sobre as causas da delinqüência juvenil, ressaltando "a acção nefasta do mau meio social, com as suas perniciosas suggestões e a respectiva ausencia de educação...". "(...) O antigo Juiz penal", dizia ele, num dos artigos que publicou em 1916, "somente tinha a preoccupação de capitular o delicto e applicar a respectiva pena ao caso occorrente. Nada mais improprio nem menos apto para o exercicio do moderno papel da Justiça" (Paiva, 1916 : 70) (14).
Que idéias seriam essas a provocar mudanças tidas como drásticas num setor tão conservador quanto a Justiça Penal? A proposta maior que agitava o meio jurídico era a de uma mudança na própria conceituação de Justiça. Visava-se uma humanização da Justiça e do sistema penitenciário. No rastro deste movimento, é que o caso específico da criança foi contemplado. Ganhava força a idéia de ser necessário "compreender a pretensa criminalidade infantil", promovendo o seu afastamento da área penal : "(...) Desça a Justiça a conhecer a alma infantil", foram as palavras empregadas pelo já citado jurista Helio Lobo (1907 : 28).
A mensagem básica deste discurso alertava para o fato do país estar diante de um quadro desolador, representado pelo número crescente de crimes cometidos por menores. O depoimento típico a respeito era : "(...) Apavorados com o crescer assustador da criminalidade infantil, os paizes civilisados procuravam-se resguardar contra o mal" (Lobo, 1907 : 23). Apelando-se para a consciência nacional e até mesmo para o pânico, afirmava-se: "... pode mesmo dizer-se, sem exaggero, que nunca a sociedade teve deante de si questão mais seria e mais grave para a sua segurança e tranqüilidade". E que, muitos países tratavam "já de organizar um Código especial para crianças" (Paiva, 1911 : 27).
Normalmente apresentava-se para o fenômeno explicação de que o Brasil não seguia o exemplo dos países cultos que levavam a sério a assistência jurídica à infância. Ao se permitir que a criança ficasse moralmente abandonada, ela conseqüentemente acabava se tornando delinqüente. A solução seria, então, organizar a Justiça, mas sob novas bases, inspirando-se no amplo movimento humanitário herdado do século XIX , porém nos moldes da moderna civilização do século XX.
Os desdobramentos da Nova Justiça concretizaram-se ao longo da década de 20, passado o impacto maior da Guerra Mundial. Nas Câmaras Municipais e Estaduais, particularmente do Rio de Janeiro e de São Paulo, corriam projetos de lei e circulavam debates sobre o que era literalmente denominado de organização da Justiça e organização da Assistência. A partir deste processo foi concebida a idéia de uma Justiça de Menores no Brasil.
Em Defesa da Criança e da Sociedade
A Justiça de Menores no Brasil foi fundamentada no debate internacional do final do século XIX sobre as estratégias de contenção da criminalidade infantil, tendo a América Latina como uma espécie de laboratório das idéias que circulavam na Europa e na América do Norte. Concebida com um escopo de abrangência bastante amplo, seu alvo era a infância pobre que não era contida por uma família considerada habilitada a educar seus filhos, de acordo com os padrões de moralidade vigentes. Os filhos dos pobres que se encaixavam nesta definição, sendo, portanto passíveis de intervenção judiciária, passaram a ser identificados como menores.
A grande novidade era a recuperação dos menores. Usava-se como exemplo o sucesso alcançado na América do Norte (15). Falava-se em até 80% de casos de menores reabilitados (Nova Iorque, Denver), o que teria provocado o seguinte comentário entusiasmado de Roosevelt : "Os tribunaes para creanças edificam caracteres" (Lobo, 1907). Tais inovações, no entanto, tinham por fim atender a velhos objetivos: transformar em cidadãos úteis, indivíduos que tendiam a se constituir como pesos mortos para a sociedade. No discurso de proteção à infância estava embutida a proposta de defesa da sociedade - defesa contra a proliferação de vagabundos e criminosos, contra a instauração da indisciplina e da desordem, que não correspondiam ao avanço da relações capitalistas em curso.
No Brasil, os traços deste tipo de proposta, corporificada na defesa da criança e da sociedade, são claramente perceptíveis a partir dos primeiros anos do século XX. Tendo como ponto de partida um vasto campo de ação que se descortinava aos profissionais da área jurídica, o tema foi objeto de regulamentação e debate sob a forma de projetos de lei apresentados entre 1906 e 1927, ano em que foi aprovado o Código de Menores, consolidando as Leis de Assistência e Protecção aos menores. Embora o debate ultrapassasse em muito os limites do jurídico, pois abraçou várias outras áreas do conhecimento, a liderança foi nitidamente jurídica. Juristas associaram-se às forças policiais, aos setores políticos, às cruzadas médicas, às associações caritativas e filantrópicas. Promoviam debates, publicavam e estabeleciam alianças em várias arenas: no Congresso nacional, nas Câmaras dos Deputados, nos jornais, nas sedes das várias Ligas e associações filantrópicas, nas universidades e nos congressos acadêmicos, de âmbito internacional.
Observa-se que a infância pobre, caracterizada como abandonada e delinqüente, foi nitidamente criminalizada neste período. O termo menor foi sendo popularizado e incorporado na linguagem comum, para além do círculo jurídico. Não foram encontrados discursos contrários a essa tendência ou mesmo qualquer tipo de questionamento a respeito, donde se conclui que a intervenção jurídica era, de um modo geral, muito bem vinda como possível chave para resolver os problemas que a instabilidade do momento impunham.
Logo após a proclamação da República, as primeiras leis que tramitavam na Câmara identificavam a criança abandonada e delinqüente como sujeita à tutela da Justiça e da Assistência (16). Para tanto, criaram-se dispositivos de intervenção, sob a forma de normas jurídicas e procedimentos judiciais, que atribuíam ao Estado o poder de atuar sobre o menor e intervir sobre sua família em todos os níveis - no Legislativo, no Judiciário e no Executivo. Tais dispositivos constituíam, na verdade, uma nova versão de velhos instrumentos de controle adaptados para este segmento da população: foram elaboradas leis de proteção e assistência ao menor; inventados os tribunais para menores; reestruturadas as instituições para a infância (asilares e carcerárias) e criado um sistema de liberdade vigiada, destinado a manter parte dos menores fora do asilo, porém sob cerrada vigilância.
A legislação produzida nas primeiras décadas do século XX respondia aos temores abertamente propagados em relação ao aumento da criminalidade infantil. E, ao mesmo tempo, atendia à dupla demanda de proteção à criança e à sociedade, à medida em que buscava deter aqueles que ameaçavam a ordem. As medidas propostas visavam, sobretudo, um maior controle sobre a população nas ruas através de intervenção policial e formas de encaminhamento dos apreendidos, entre eles, crianças e jovens. Veja, por exemplo, a Lei N. 947, de 29 de dezembro de 1902, que "Reforma o Serviço Policial no Districto Federal", em cujo texto lê-se: "Fica o Poder Executivo autorizado a crear uma ou mais colonias correccionaes para a rehabilitação, pelo trabalho e instrucção, dos mendigos validos, vagabundos ou vadios, capoeiras e menores viciosos que forem encontrados e como taes julgados no Districto Federal".
Em outras palavras, arquitetou-se um intrincado sistema de preteção e assistência, através do qual, qualquer criança, por sua simples condição de pobreza, estava sujeita a ser enquadrada no raio de ação da Justiça e da Assistência (17). A despeito da similitude de objetivos deste sistema em outros países, cuja matriz foi semelhante em diferentes partes do mundo, no Brasil a tutelarização do Estado por vias jurídicas assumiu uma fantástica dimensão monopolizadora de autoridade e controle. Não se trata aqui de tentar comparar o poder do qual se revestiu a esfera jurídica brasileira com a de outros países. Contudo, é provável que este controle tenha sido mais explícito naqueles países que se caracterizavam por uma representatividade civil mais débil, incapaz de impor resistência ao policiamento brutal exercido sobre os segmentos marginalizados da sociedade. Essa é uma possível explicação para o fato de que nos países da América do Sul, a trajetória da Justiça de Menores tenha sido tão parecida, caracterizando-se pelo seu domínio, em geral arbitrário, sobre as famílias pobres.
Os desdobramentos práticos da ação da Justiça e da Assistência destinada aos menores foram concebidos ao longo das três primeiras décadas do século XX, período no qual foram criadas as bases da assistência e proteção ao menor (e à sociedade). Apesar do discurso contundente de nossos reformadores em defesa da criança, sua imagem revestida de periculosidade perdurou ao longo do tempo. Ela não seria salva.
A Opção pela Exclusão Social
A concepção de uma política de assistência e proteção ao menor vinha sendo discutida no país como proposta para salvar a criança, em meio a uma complicada conjuntura política, na qual estava em questão o destino do país. Era um Brasil convulsionado por interesses que não se coadunavam, embalados por ideais republicanos de construção nacional.
Em termos gerais, pode-se dizer que foi concebido um sistema que legitimava o escrutínio da vida das famílias pobres, ditando-se medidas de vigilância e controle. A legislação de menores, finalmente aprovada em 1927, reflete um protecionismo que bem poderia significar um cuidado extremo no sentido de garantir que a meta de "salvar a criança" fosse alcançada. Entendeu-se, porém, que isso seria feito através do exercício do mais absoluto controle pelo Estado sobre a população tida como promotora da desordem.
Crianças e jovens eram minuciosamente classificados de acordo com seu estado de abandono e grau de periculosidade. Na verdade, de acordo com a lei, qualquer um poderia ser enquadrado no raio de ação do Juiz, pois dizia a lei que poderiam ser apreendidos menores abandonados, pervertidos, ou em perigo de o ser. A intenção era ainda mais óbvia no concernente aos menores caracterizados como delinqüentes. Uma simples suspeita, uma certa desconfiança, o biotipo ou a vestimenta de um jovem poderiam dar margem a que fosse sumaria e arbitrariamente apreendido. Dizia a lei: "Si o menor não tiver sido preso em flagrante, mas a autoridade competente para a instrucção criminal achar conveniente não o deixar em liberdade, procederá de accôrdo com os #2 e 3 (art.86) (confiado, "mediante termo de responsabilidade, à sua propria familia, pessôa idonea, instituto de ensino de caridade" (art.86, #4).
As medidas estabelecidas na esfera da Justiça e da Assistência contribuíram para o desenvolvimento de uma política que primava pela exclusão social. O Governo fazia uma opção clara nesse sentido, ao aprovar, em 1921, a Lei N. 4.242, que incluia no orçamento da União a previsão de gastos destinados a recuperar os menores. Fica claro porque não se priorizou o investimento na educação ao acesso de todos. Certamente não interessava ao grupos de elite no poder que a população atingisse consciência de seus direitos, o que, no mínimo, dificultaria o exercício violento e arbitrário de controle sobre a maioria. Quando se afirmava que na criança estava o futuro da nação, na verdade entendia-se que era mais importante moldar para manter a massa populacional arregimentada como nos velhos tempos, sob novos moldes.
Embora o discurso sobre a importância da educação se fizesse presente como parte dos ideais republicanos, de ordem e progresso, ela era vista como uma arma perigosa. Os primeiros anos da República foram marcados pelo retrocesso a nível de uma proposta de política educacional, mantendo-se a descentralização do ensino público primário, sem qualquer tipo de apoio por parte da União. O resultado desta "indiferença" nacional foi a total desarticulação entre os vários Estados e a desorganização do ensino ao nível dos Governos locais. Esta situação fez perpetuar na República o ranço da escola herdado do Império. Na época, as escolas eram representadas como: "(...) casas sem luz, meninos sem livros, livros sem método, escolas sem disciplina, mestres tratados com párias" (Carvalho, 1989 : 24). (18)
O próprio uso da palavra "educação", no período estudado, corrobora para a hipótese de que o objetivo não era realmente tirar da ignorância a massa da população. Falava-se repetidamente em educar, mas com um sentido particular - como antídoto à ociosidade e à criminalidade e não como instrumento que possibilitasse melhores chances de igualdade social. A conhecida Escola Quinze de Novembro, idealizada para a ‘correção de menores’, constitui um bom exemplo. Em seu Regulamento (02/03/1903), constava que : "Sendo a Escola destinada a gente desclassificada, a instrucção ministrada na mesma não ultrapassará o indispensável á integração do internado na vida social. Dar-se-lhe-a, pois o cultivo necessario ao exercicio profissional" (Título I, cap.I, art.3).
Estas não são palavras que expressem a opinião pessoal de um ou outro grupo. Trata-se de um documento oficial destinado a nortear o atendimento de uma importante instituição fundada com propósito bem específico, qual seja, o de abrigar as crianças e adolescentes identificados como ‘menores’ e recolhidos das ruas, ‘educando-os para o trabalho’. No ano de 1905, Rodrigues Alves, então Presidente da República, afirmava que "(...) numa cidade moderna e saneada era preciso tambem uma população expurgada de seus piores elementos (...) era urgente e indispensável reprimir a vagabundagem, o vicio e o crime com a criação de colonias correccionaes, preservando ao mesmo tempo, a mocidade que para aquelle se dirigia, por meio d’uma educação em instituições apropriadas" (Vaz, 1905 : 89).
Portanto, a consolidação de uma política de assistência e proteção aos menores significou a dicotomização da infância na prática. Aos menores, a instrução mínima que permitisse domesticá-los para o uso de sua força de trabalho. No fundo, é o mesmo tipo de dicotomização que previa cidadania plena de forma seletiva para alguns e a vetava para a maioria (Carvalho, 1991).
A educação como chave para a civilização era certamente um paradoxo a ser enfrentado. E não apenas no Brasil. Não por acaso, a aquisição de conhecimento foi historicamente restrita à minorias. No nosso caso, quando se impôs a necessidade de "educar o povo", cuidou-se de fazê-lo com muita cautela. A opção pela priorização de uma política que nitidamente dividia crianças e menores, reflete as contradições acima apontadas de se promover a educação, porém limitando seu acesso a uma derterminada parcela da população.
De forma estratégica, conseguiu-se caracterizar valorativamente a educação como arma perigosa. Ao se criar a imagem da criança criminosa, fez-se acatar a idéia da morte da cândida alma infantil (Lobo, 1907). Ao destacar da criança, a figura do menor, este representando a infância perigosa, foi fácil justificar o tratamento "moralizador e saneador" deste grupo através da ação concebida nos moldes da aliança entre Justiça e Assistência, priorizando-se a reeducação ou a regeneração como fórmula socialmente legitimada para a meta de civilizar o Brasil.
Desdobramentos desta História ...
Neste texto, analisou-se a dimensão política que fez despertar particular interesse pela infância, pois encontrava afinidade com o projeto civilizatório que se desenhava para o país na passagemdo século XIX para o XX.
De acordo com o pensamento de então, um projeto político que efetivamente transformasse o Brasil numa nação civilizada implicava na ação sobre a infância. Paradoxalmente, sabia-se, a exemplo dos nossos países-modelo, que não seria fácil obter simultaneamente - um povo educado, mas não ao ponto de ameaçar os detentores do poder; um povo trabalhador, porém sob controle, sem consciência do valor de sua força de trabalho; um povo que acalentasse amor à sua pátria, mas que não almejasse governá-la. Missão no mínimo delicada, diante dos exemplos históricos de insubordinações populares e das idéias que sopravam nos ares sobre o efeito assustador da união das classes operárias, justo nos países "civilizados".
A despeito da magnanimidade de muitos dos nossos reformadores sociais, o discurso de salvação da criança no Brasil, longe de constituir apenas um gesto de humanidade, na verdade, serviu de obstáculo à formação de uma consciência mais ampla de cidadania no país. Salientava-se que a criança deveria ser (re)educada visando-se o futuro da nação; no entanto, tais palavras, transformadas em ação, revelavam que, em se tratando da infância pobre, educar tinha por meta moldá-la para a submissão. Foi por esta razão que o país optou pelo investimento numa política predominantemente jurídico-assistencial de atenção à infância, em detrimento de uma política nacional de educação de qualidade, ao acesso de todos. Tal opção implicou na dicotomização da infância: de um lado, a criança mantida sob os cuidados da família, para a qual estava reservada a cidadania; e do outro, o menor, mantido sob a tutela vigilante do Estado, objeto de leis repressivas e programas assistenciais.
Os desdobramentos desta história guardam relação com a atual identidade de um país marcado por contradições, onde discurso e prática normalmente se contrapõem. As opções políticas, materializadas pelos governantes brasileiros nos primórdios da República, serviram aos interesses dos grupos no poder, e fez recrudescer o sentimento nacional de um país fadado à desigualdade social.
No que diz respeito ao caso específico da criança, o argumento utilizado no ideário republicano de que investir na infância era civilizar o país, justificou a imposição da tutela aos filhos dos pobres, cerceando seus passos e mantendo-os à margem da sociedade. Não há dúvida de que a criança foi de fato um instrumento valioso, que precisava ser salva para salvar o país, porém na perspectiva de sua elite que se percebia ameaçada de perdê-lo. É por essa razão que parcela significativa da população infantil brasileira permanece até hoje à margem da sociedade, sendo vista, assim como o é o pobre em geral, como uma ameaça à ordem e à paz social.
Notas
(2) O leitor encontrará entre aspas termos que apareciam com freqüência na literatura da época (livros, teses, discursos, jornais, leis). O artigo é baseado em ampla pesquisa documental, focalizando-se sobretudo o discurso da elite pensante que aderiu à chamada "causa da infância" e que exercia influência sobre a política nacional. Este grupo era representado principalmente por homens de formação nas áreas médica e jurídica, que atuavam em sociedades filantrópicas e tinham grande penetração na arena política, na imprensa e nas universidades. A chamada elite letrada, era representada principalmente por médicos, engenheiros, advogados e juízes.
(3) A expressão ‘chave para o futuro’ foi extraída do texto de Cunningham quando se refere à cultura renascentista italiana, segundo a qual, "children were thought to hold the key to the future of the state, and their proper upbringing was crucial to that state, and properly ordered and harmonious relationships within it would themselves be manifested in similar virtues in the state" (Cunningham, Op.cit. : 42). Em outro ponto, Cunningham usa a frase ‘concern for the future manpower needs of the state’, que vem a expressar uma preocupação com o futuro, especificamente, com a preparação ("upbringing", criação e formação), visando atender as necessidades do Estado.
(4) Os termos "criança" e "infância" são usados aqui referindo-se à população infantil e juvenil de forma genérica, como apareciam nos textos da época.
(5) Em seu livro "Laboring classes and dangerous classes", sobre a cidade de Paris na primeira metade do século XIX, Loius Chevalier fez a seguinte descrição: "And in the central quarters themselves, where the capital’s complex and disordered growth had engendered a tangle of lanes, passageways, courts and blind alleys and had ranged cheek by jowl sunny street and cesspool, the affluent mansion and the slum, areas of light and shade in a landscape we can now barely make out, and had almost everywhere left nooks and corners ideally suited to robbery with violence by day or night and, indeed, in some places day hardly differed from night" (Chevalier, 1973 : 2). Para um aprofundamento destas quesões, ver também os livros da historiadora inglesa Gertrude Himmelfarb (1983,1991).
(6) O termo "pivete" ainda hoje é usado para designar, de forma pejorativa, a criança pobre e potencialmente perigosa.
(7) As listas de pobres atendidos em paróquias (‘parishes’) na Inglaterra, nos séculos XVI e XVII indicavam que havia em torno de 42 a 53% de crianças entre os pobres. Isso levando em conta que o índice de mortalidade infantil era superior a 50%. Segundo Cunningham, esses percentuais eram semelhantes em diversas outras partes da Europa (Cunningham, 1995 : 111).
(8) A citação é atribuída a Ozment ("When fathers ruled‘: 164). Apud Cunningham, 1995 : 49.
(9) Apud Sznaider, 1996 : 13.
(10) Para uma discussão do que denominamos de "cultura institucional", que deu origem às práticas de atendimento ao menor implantadas no país no decorrer do século XX, veja: Rizzini, 1992, 1997; Pilotti & Rizzini (Ed.), 1995.
(11) Os "filhos da Pátria", na França (Donzelot, 1980 : 35); os "pupilos do Estado", nos Estados Unidos, lei de 1901 do Estado de Nova Iorque (Peixoto, 1933 :148). Ver também, Silva, Roberto. "Os filhos do governo", 1996.
(12) Discurso proferido por ocasião da inauguração do Instituto de Proteção e Assistência à Infância de Petrópolis (Estado do Rio), intitulado: "Pela infancia, tudo!".
(13) Em contraposição à idéia de caridade, cujo princípio era a ação baseada em preceitos religiosos atrelados ao cristianismo, a filantropia é associada aos tempos modernos, onde predominava o espírito científico e racional. O termo ‘filantropia’ é comumente definido como ‘amor à humanidade’. De acordo com a historiadora inglesa Gertrude Himmelfarb, o século XVIII foi descrito como a ‘era da benevolência’, na qual proliferaram inúmeras sociedades filantrópicas destinadas a amparar a pobreza. O humanitarismo característico deste períiodo será associado à emergência da sociedade liberal capitalista, cuja base seria a crença na benevolência universal. ver a respeito: Himmelfarb, 1983, Sznaider, 1997).
(14) As declarações de Ataulpho de Paiva tinham repercussão, pois durante décadas ocupou importantes cargos como jurista no Rio de Janeiro. Foi presidente da Liga Brasileira contra a tuberculose por cerca de vinte anos; criou inúmeras instituições e campanhas públicas e foi Membro da Academia Brasileira de Letras.
(15) As novas experiências nasceram na América do Norte, em cidades tidas como verdadeiros laboratórios do crime - Boston e Chicago. Em Boston foram identificadas as primeiras tentativas de aplicação do regime de ‘liberdade fiscalizada’, no ano de 1869. E, em Chicago, foi instalado o primeiro ‘Tribunal para Crianças’ (Children’s court), em 1899. Essas iniciativas tiveram efeito explosivo, sendo seguidas em grande parte dos estados norte-americanos e em diversos países da Europa ainda no século XIX. Nas primeiras décadas do século XX, a reforma atinge também a América Latina em ampla escala.
(16) A primeiras leis destinadas à organização da Justiça e da Assistência foram as seguintes: Decreto N. 439, de 31 de maio de 1890 [Estabelece as bases para a organisação da assistencia á infancia]; Decreto N. 1.030, de 14 de novembro de 1890 [Organiza a Justiça Federal]; Decreto N. 2.457, de 08 de fevereiro de 1897 [Organisa a assistencia Judiciaria no Disctricto Federal].
(17) À semelhança do que Jacques Donzelot (1980) denominou de "complexo tutelar".
(18) Cesário Mota, na inauguração do edifício da Escola Normal Caetano de Campos, em 1894, segundo Marta Maria Chagas de Carvalho.
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A AUTORA: Irene Rizzini é formada pela Universidade de Chicago (Mestrado, School of Social Service Administration) e pelo Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro (IUPERJ, Sociologia, Doutorado), Irene Rizzini é professora e pesquisadora da PUC-Rio e diretora do CIESPI (Centro Internacional de Estudos e Pesquisas sobre a Infância). Em âmbito internacional, é Presidente da Rede internacional de intercâmbio de pesquisa na área da infância (Childwatch International Research Network, Noruega). A professora Rizzini tem coordenado diversos projetos de abrangência nacional e internacional. Entre suas principais publicações, estão: O Século Perdido; A criança e a lei no Brasil: revisitando a história (1822-2002); Desenhos de família; Children and globalization (Kluwer, NY, USA); From street children to all children: improving the opportunities of low income urban children and youth in Brazil (Cambridge University Press- USA; Vida nas ruas: trajetórias de vida de crianças e adolescentes nas ruas do Rio de Janeiro; A institucionalização de crianças no Brasil: percurso histórico e desafios do presente.
1 Professora e pesquisadora da PUC-Rio, Rio de Janeiro, Brasil; Diretora do CIESPI (Centro Internacional de Estudos e Pesquisas sobre a Infância) e Presidente da Childwatch International Research Network, Noruega.
2 Estas publicações foram resultado de pesquisa realizada com a participação de vários pesquisadores e o apoio de várias instituições, entre elas a FINEP e a Petrobrás. Ver: Pilotti e Rizzini, 1995; Faleiros, 1995; Arantes, 1995; Rizzini, 1997; Abreu e Martinez, 1997; Venancio, 1997; Base de Dados Bibliográficos, CD-CESPI, 1997; Rizzini, Irma, 2000, Marcílio, 2000; Sartor, 2000.