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An. 1 Congr. Intern. Pedagogia Social Mar. 2006
Participação social e formação política de crianças e jovens
Joanice Barbosa Parmigiani1
RESUMO
O presente artigo apresenta um trabalho que está sendo desenvolvido há três anos num projeto de inclusão social e construção da cidadania na cidade de Carapicuíba, região metropolitana de São Paulo. Surgiu como uma contribuição ao exercício da cidadania dos educandos que integram a unidade, criando possibilidades de ações concretas. Para essas ações criamos uma coordenação mirim que co-participa de todo processo administrativo da unidade, por meio de uma "Prefeitura Mirim".
Anualmente realizamos um processo de eleições no qual cada indivíduo (criança ou adulto) tem direito a um voto, e nas urnas (num processo similar às eleições brasileiras), cada participante do projeto (educando, educador, pessoal de apoio) faz sua escolha entre aqueles que o grupo escolheu para candidatos.
Os eleitos têm mandato de um ano para trabalhar nos cargos e são avaliados e acompanhados por todos por meio de assembléias de prestação de contas e levantamento de propostas.
Após esse período de desenvolvimento, este trabalho vem tornando-se uma ferramenta pedagógica que muito tem contribuído para todo o resultado educacional almejado, possui uma intencionalidade bastante clara, envolvendo todos os educandos, educadores e demais integrantes do grupo e proporcionando a recuperação da identidade dos envolvidos por meio de sua participação como atores sociais e protagonistas.
Apresentamos no artigo, os primeiros resultados da formação da consciência de participação social e política dos educandos, dimensões que alavancam a formação da autonomia e da emancipação do indivíduo.
Palavras-chave: prefeitura mirim; cidadania; eleições; participação social.
MOTIVAÇÃO E PROPOSTA
A participação social e a formação política são dois aspectos que cada vez mais vem se revelando como ferramentas de emancipação e autonomia do cidadão que deseja compreender a sociedade e perceber-se como agente constituidor e transformador de realidades. A consciência sobre tão poderosa capacidade individual torna-se ainda mais eficiente quando despertada ainda na infância e na adolescência.
Há três anos, tenho contribuído no desenvolvimento de um programa de Inclusão Social e Construção da Cidadania, da Fundação Orsa, que atende a famílias em situação de vulnerabilidade social no município de Carapicuíba. Sentindo a necessidade de trabalhar a dimensão político-social da educação junto às essas crianças e jovens, iniciamos o desenvolvimento do projeto Participação Social e Formação Política levando em consideração a necessidade de transformação das práticas educacionais, valorizando o exercício da cidadania e a preparação do educando para a vida.
Desta forma, abriu-se a possibilidade de efetivar a participação dos educandos como co-responsáveis de todo o processo educativo da unidade. Aliando-se, assim, o desejo da organização mantenedora aos princípios da educação social, resultando em prática inovadoras.
Para essas ações criamos uma coordenação mirim que co-participa de toda a gestão da unidade por meio de uma "Prefeitura Mirim"2, que anualmente, num processo de eleições no qual cada sujeito (criança ou adulto) tem direito a um voto nas urnas. Num processo similar às eleições brasileiras, cada participante da unidade (educando, educador, pessoal de apoio) faz sua escolha entre aqueles que foram lançados como candidatos pelo próprio grupo.
Os eleitos têm um mandato de um ano para trabalhar nos cargos e são avaliados e acompanhados por meio de assembléias de prestação de contas e levantamento de propostas. Essas assembléias proporcionam aos educandos o desenvolvimento de habilidades de comunicação, trabalho em grupo, relação interpessoal, decisão, responsabilidade, entre outras não menos importantes.
Após três anos de desenvolvimento, esse projeto tornou-se uma das mais importantes ferramentas pedagógicas utilizadas pelos educadores. Possui uma intencionalidade bastante clara: a formação política e o desenvolvimento do espírito de participação. A experiência democrática é vivenciada em plenitude, pois todos os assuntos são decididos coletivamente pelo voto, de igual valor tanto para educadores quanto para educandos.
Como fonte fomentadora podemos citar as experiências educativas que ocorrem em algumas escolas não-diretivas estudadas, destacando, em particular, a Escola de Summerhill e a Escola da Ponte.
Segundo Gandin, para que ocorram as transformações necessárias à educação é preciso trabalhar com igualdade de importância em duas dimensões: "a produção de idéias e a organização de ferramentas para torná-las realidade". Neste sentido, o desenvolvimento deste projeto vem proporcionando a toda equipe de educadores envolvida, um desenvolvimento harmonioso dessas duas dimensões, além de potencializar a concretização dos princípios metodológicos do Programa Formação:
Da relação dialogal entre o educador e o educando. Uma relação democrática, crítica e autêntica no diálogo e compromisso mútuo entre educador e educando, eixo de sustentação do processo educativo, o método de trabalho e a própria reflexão.
Da atividade planejada, na qual a ação é estratégia para se alcançar o resultado.
Da otimização dos recursos, onde todos os espaços e atividades constituem-se momentos e oportunidades de formação integral do educando.
Do educador coletivo que compreende a aprendizagem como um processo que ocorre na relação de todos os sujeitos envolvidos.
Acreditamos e buscamos um aprendizado construído de forma coletiva e interativa, no qual a prática e a teoria caminhem de mãos dadas, incentivando o desenvolvimento da solidariedade, da transparência, da co-responsabilidade, da autonomia e a organização de estratégias e políticas que possibilitem ao educando ser o sujeito de sua própria formação.
Como afirma Boff: "o ser humano é um ser de participação, um ator social, um sujeito histórico e coletivo de construção de relações sociais o mais igualitárias, justas, livres e fraternas possíveis dentro de determinadas condições histórico-sociais".
Um dos pontos cruciais que mostram que a educação tradicional vai se desintegrando no percurso do processo de universalização das oportunidades que transformam as escolas em escolas populares de massa, é a perda da identidade, tanto do professor que não se identifica com o aluno, com a escola e com a comunidade onde trabalha, quanto do próprio aluno e da própria escola. Assim, o projeto Participação Social e Formação Política privilegia o resgate da identidade dos sujeitos nele envolvidos.
Cada educador tem claro no plano pessoal e institucional os objetivos a serem alcançados e, por terem participado desde a fase embrionária do projeto, compreendem a idéia-processo-resultado. Por conseguinte, percebem a relação ação-resultado, o que mantém a motivação do projeto.
O objetivo central desta proposta é oportunizar aos educandos a vivência da democracia e o exercício da cidadania, garantindo uma formação política e educacional que os instrumentalize para transformar sua própria realidade.
E como objetivos específicos podemos destacar:
Promover a consciência para a participação social criando um sentido de comunidade entre os integrantes do grupo e levando-os a perceberem que não existirão resultados de mudanças sociais sem a participação da própria comunidade.
Potencializar talentos, oportunizando o desenvolvimento de lideranças como ferramenta para a formação da responsabilidade individual e coletiva.
Desenvolver a criatividade e a auto-estima dos educandos, possibilitando que desenvolvam as assembléias gerais com a representação de todos os grupos, podendo propor e assumir a realização de eventos culturais, programação de festas e projetos de férias, organização do tempo livre (ócio-criativo) e exercício de escolhas.
METODOLOGIA DA AÇÃO
O procedimento metodológico adotado neste trabalho é o de participação democrática, utilizando-se de recursos práticos como a co-gestão do programa Formação, num processo em que o educando é levado a desenvolver suas habilidades pessoais de liderança, tomada de decisões, responsabilidade, relacionamento interpessoal e coletivo, apropriando-se dessas competências de forma a tornarem-se seres autônomos, críticos e reflexivos.
A metodologia do projeto utiliza-se ainda da observação e do registro das oficinas pedagógicas desenvolvidas pelos vários educadores que atuam no Formação, das assembléias de grupos e assembléias geral e do registro das reuniões pedagógicas realizadas mensalmente com o grupo de educadores e coordenação, na qual há o compartilhar do processo e da percepção sobre os avanços conseguidos pelos educandos e educadores, refletindo sobre a própria prática num exercício de reflexão da ação para a formação de uma consciência mais crítica do trabalho educacional.
Falando especificamente da metodologia das assembléias, nos reportamos a Araújo (2004) que destaca a Assembléia Escolar como um exercício do fazer a educação democrática, ressaltando que aprender a dialogar, a construir coletivamente as regras de convívio e a fortalecer o protagonismo das pessoas e dos grupos sociais na busca pela justiça social e pela construção da democracia são ações possíveis a espaços nos quais se faz a educação. Este autor elucida-nos quanto à atuação das assembléias na resolução de conflitos e as define como o momento institucional da palavra e do diálogo, o momento de reunir-se o coletivo para tomar consciência, refletir e transformar. A disciplina e a indisciplina deixam de ser obrigação somente do educador e passam a ser questões compartilhadas por todo o grupo, responsável pelas regras e pela cobrança de seu exercício.
Como parte fundamental do trabalho temos a realização da roda, que traz em seu exercício contínuo, o sentido do pertencimento, pois todos se apropriam do espaço oferecido, ouvindo e sendo ouvidos. O processo de ensino-aprendizagem vivenciado na roda está voltado para a formação integral de cada indivíduo, ao vincular educação e prática social, por meio da qual valores, atitudes e conhecimento corroboram na formação integral de cada educando enquanto cidadão pleno, levando-o a compreender criticamente o conceito embutido por trás de cada proposta pedagógica apresentada.
Para Freire (1992), o caminho para superar as práticas incoerentes está na superação da ideologia autoritária e elitista, o que demanda sintonia entre o fazer e o falar da educação. Ao envolvermos os educandos na gestão do trabalho, podemos exercitar a superação da autoridade buscando uma prática democrática. Para Giacon (s/d) conviver constantemente com os opostos é um grande desafio instaurado na cotidianidade da educação, e é neste embate, nesta luta que surge o caminho para a liberdade e para uma prática que possa responder aos anseios dos educandos.
A prática da "Prefeitura Mirim" oportuniza a todos vivenciarem momentos concretos de formação política. Os educandos organizam-se em equipes às quais chamamos de comissões. Cada equipe reúne-se para levantar propostas e estudar seus possíveis candidatos, analisando o perfil daqueles que desejam concorrer aos cargos eletivos. Ao final do período de organização do processo eleitoral temos a apresentação dos candidatos de cada comissão que apresenta, sempre na roda, seus planos de gestão e finalmente no dia das eleições todos vamos à urna (que é eletrônica), para decidirmos quem será nosso Prefeito.
Uma vez eleito, cabe ao Prefeito nomear seus secretários e suplentes e então temos a Prefeitura Mirim formada com os seguintes elementos:
Prefeito eleito nas urnas
Secretário (a) e suplente da educação e cultura
Secretário (a) e suplente de esporte e lazer
Secretário (a) e suplente de meio ambiente
Secretário (a) e suplente de saúde
RESULTADOS DA AÇÃO
Neste período de três anos podemos destacar alguns resultados que foram alcançados e que foram transformadores na nossa prática educacional:
As Secretarias de saúde e esporte realizaram reuniões com Coordenadores da Fundação Orsa (Sede), nas quais trataram assuntos relevantes ao bom andamento das atividades do nosso projeto. Dessas reuniões resultou uma pesquisa realizada pela Secretaria de Saúde sobre a alimentação oferecida aos educandos. Cada educando pode opinar sobre o cardápio apontando o que gosta ou não, e sugerindo novidades. Destacamos aqui a resposta dada por um educando à questão "que sugestão você tem para melhorar a alimentação", e a resposta do menino de sete anos foi: "de todos pegar a comida que gosta e não pegar o que não gosta para não jogar fora". Essa resposta registra que o processo de participação está sendo interiorizado por eles, levando-os a perceberem o direito de não quererem algo, de não aceitarem imposições e levando-os a assumirem suas posições manifestando-as sempre que surgem as oportunidades.
Logo no primeiro mandato, o Secretário de esportes entregou um memorando à coordenação solicitando a compra de novas bolas de futebol e de vôlei. Ele fez pesquisa de preços e apresentou junto à sua solicitação. Essa atitude do educando nos leva a perceber que quando o sujeito sente-se respeitado e valorizado, é capaz de tomar iniciativas.
Os novos colegas que chegam ao Formação Carapicuíba são recebidos pelos próprios educandos que os acolhem, apresentam todas as dependências da unidade, orientam sobre as regras de convivência e ensinam os procedimentos do refeitório. Estas atitudes demonstram que o respeito recebido é o mesmo transmitido ao outro e evidencia o sentido de pertencer, o prazer de apresentar ao outro o que é nosso inserindo-o no nosso espaço, mostrando que a proposta de reforçar o pertencimento vem sendo amplamente alcançada.
O grupo da Prefeitura Mirim do ano de 2005 criou um programa de rádio, veiculado internamente. O Programa traz dicas de cidadania e é protagonizado pelos próprios autores. Eles falam sobre direitos do cidadão, recursos da comunidade, sempre numa linguagem que favoreça aos menores o entendimento.
Protagonismo de oficina lúdica sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente realizada na Conferência Lúdica da Subprefeitura de Pinheiros/SP. Neste evento tivemos um grande envolvimento dos jovens que planejaram a ação, preparam os materiais e aplicaram a oficina para um grupo de trinta e dois estudantes da região. Uma atividade realizada com muita alegria pelo grupo e que trouxe uma experiência muito satisfatória para a educadora que mediou a ação.
Participação do grupo de educandos de 7 a 10 anos nas Palestras sobre saúde oferecidas à comunidade e realizadas em espaço de parceiros, destacando-se as intervenções e colocações adequadas feitas por alguns educandos em colaboração aos palestrantes. Foi uma surpresa para o grupo de educadores perceberem que, mesmo os menores, estão desenvolvendo a habilidade de saber intervir contribuindo com a discussão coletiva, reproduzindo assim o exercício que acontece em cada momento de roda e de assembléias.
Organização do Campeonato Esportivo de final de ano, com a proposta tendo sido feita pelos educandos que também trouxeram contribuição em troféus e medalhas para serem entregues aos vencedores. Uma vez mais, percebe-se a iniciativa, a ousadia de propor e a responsabilidade pelo fazer.
Solicitação de reunião com a coordenação pedagógica do projeto, feito pelos educandos maiores para contestar mudanças não discutidas antes de serem anunciadas ao grupo geral. Esta tem sido uma das melhores atitudes que temos percebido nos educandos, é a não aceitação da imposição de regras e normas não construídas de forma democrática. Muitas vezes isso é difícil de ser conduzido, pois temos determinações a serem seguidas o que requer um grande exercício por parte da coordenação para não desrespeitar as regras de convivência elaboradas coletivamente.
Participação ativa dos integrantes da Prefeitura Mirim na organização e realização dos eventos culturais: "Saraus e Galeria", proporcionando o crescimento do número de grupos de apresentações culturais entre os educandos. Esse protagonismo tem possibilitado um crescimento visível de auto-estima e auto-desenvolvimento dos educandos e a qualidade dos eventos tem sido diretamente proporcional à esse crescimento.
Realização do I Fórum da Prefeitura Mirim, que reuniu alunos de diversas escolas públicas de Carapicuíba, discutindo a questão "Como o Estatuto da Criança e do Adolescente pode ser trabalho nas escolas?". O evento contou com a presença de representantes do CMDCA de Carapicuíba, do RISOLIDARIO – USP, e de professores de escolas públicas do município. Desse Fórum resultou uma série de jogos que serão levados para as escolas públicas durante o ano de 2006 e surgiu a proposta de levar a prefeitura mirim para o município e também a realização do primeiro Fórum em nível municipal.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ALVES, Rubem. A escola com que sempre sonhei sem imaginar que pudesse existir. 6. ed. Campinas/SP: Papirus, 2003.
ARAÚJO, Ulisses F. Assembléia Escolar – Um caminho para resolução de conflitos. 1. ed. São Paulo: Moderna, 2004.
BOFF, Leonardo. A águia e a galinha: uma metáfora da condição humana. 37 ed. Petrópolis: Vozes, 2001.
FREIRE, Paulo. A pedagogia da esperança: um reencontro com a pedagogia do oprimido. 4. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992.
FREIRE, Paulo. Pedagogia da Autonomia: saberes necessários à prática educativa. 21. ed. São Paulo: Paz e Terra, 2002.
GANDIN, Danilo. Temas para um projeto político pedagógico. Petrópolis/RJ: Vozes, 1999.
NEILL, Alexander S. Liberdade em medo (Summerhill): radical transformação na teoria e na prática da educação. 18. ed. São Paulo: Ibrasa, 1979.
WARSCHAUER, Cecília. A roda e o registro: uma parceria entre professor, alunos e conhecimento. 3 ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1993.
1 É mestranda em Educação Social pela Universidade Salesiana de São Paulo, orientada pelo Prof. Dr. Paulo de Tarso Gomes. E-mail: jparmigiani@fundacaoorsa.org.br
2 Todas as Unidades do Programa Formação da Fundação Orsa desenvolvem o trabalho da Prefeitura Mirim. Cada equipe tem autonomia para desenvolver o projeto de acordo com sua realidade local, sendo, portanto, autores de todo o processo.