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An. 1 Congr. Intern. Pedagogia Social Mar. 2006
Programas sociais, fortalecimento do mal e do bem-estar social
João Clemente de Souza Neto1
RESUMO
O objetivo deste artigo é descrever a construção dos direitos de crianças e adolescentes no Brasil e o modo pelo qual esse processo se transforma numa ferramenta pedagógica, capaz de despertar o sujeito para a autonomia, a criatividade e a capacidade de fazer escolhas. Nesse cenário, emerge uma nova concepção de homem público e de cidadania, uma forma de "competência politizada [...] em oposição à cultura tecnocrata em seu viés despolitizado" (Manzini-Covre, 1996:77). Uma outra questão é a busca dos motivos que conduzem determinadas crianças e adolescentes a transformar em vantagens as fragilidades do seu cotidiano. Quais seriam as bases da renovação das biografias e da construção de caminhos bem sucedidos em pessoas submetidas a revezes de tal monta que poderiam facilmente aniquilá-las? Acreditamos que o conteúdo central dessas categorias e questionamentos deve se circunscrever na ética da amizade ou na política da vida.
Palavras-chave: direito da criança e do adolescente; educação não-formal; pedagogia social; História da Criança.
Refletir sobre a construção das práticas sociais pela perspectiva da pedagogia social ou da sociologia da educação ou do desvio ou do direito implica a discussão do sentido e da práxis da cultura do direito. Na realidade brasileira do século passado, no final da década de oitenta e início dos anos noventa, a sociedade conquistou um reordenamento jurídico que contribuiu para a construção de uma cultura de direitos. Nesse contexto, a democratização das relações sociais alcançou um novo patamar e diferentes indagações vieram à tona. Quem são, afinal, os que têm os direitos violados e praticam a delinqüência? De que forma reagem? Como produzem conhecimento? Qual é sua relação com a ciência?
As legislações sociais anteriores aos anos oitenta estavam fundamentadas na doutrina da situação irregular, que tinha a finalidade de legitimar a ação judicial e que privilegiava a institucionalização do indivíduo. O fracasso dos programas de políticas sociais que tinham por finalidade a ressocialização dos menores supostamente abandonados e delinqüentes e o confinamento de milhares de jovens e adultos em instituições totais são "[...] apenas a ponta do iceberg do imenso processo de mistificação" (Mendez, 1998:28), em que a vítima aparece como culpada e desacreditada. As instituições, as autoridades e os violadores de direitos aparecem como bondosos e virtuosos, e, no caso dos supostamente abandonados e delinqüentes, o juiz aparece como um pai bondoso, que corrige os desvios e as injustiças. Este fato ajudou a fortalecer as ciências sociojurídicas, em detrimento das ciências educacionais.
No Brasil, o desenho da doutrina de situação irregular está na Constituição de 1969 e, principalmente, no Código do Menor, Lei Federal 6.697, de 10 de outubro de 1979, que concebiam a assistência como medida de
"[...] proteção e vigilância a menores de 18 anos de idade, que se encontram em situação irregular. E, por situação irregular, o referido Código, no artigo 2, entende o menor privado de condições essenciais de subsistência, saúde e instrução obrigatória, representatividade em razão da falta, ação ou omissão ou manifesta impossibilidade dos pais ou responsáveis" (CNBB, 1987:9).
A tônica dessa legislação era responder, com a institucionalização, à complexidade da questão do menor, responsabilizado-o, de alguma forma, por sua sina e classificado pelos rótulos de marginal, trombadinha, delinqüente, abandonado, desviado. O escopo pedagógico do Código do Menor era mais punitivo do que educativo e não visava à melhoria de condições de vida. Conseqüentemente, tinha como meta "[...] ajustar os miseráveis para ficarem no seu devido lugar na sociedade e sem perturbá-la, sem se pensar, porém, na diminuição da miséria e das escandalosas injustiças" (CNBB, 1987:13) que vitimavam essa população.
As práticas pedagógicas dessa concepção jurídica ampliaram as condições para o fortalecimento de uma educação para a criminalidade. Permeava o Código do Menor de 1969 a concepção de que a mãe pobre perdia o vínculo com os filhos. Foucault e Goffman assinalam a prática do confinamento como um dos modos de esconder aquilo que a sociedade entende como párias, de enfocar a pobreza não pela ótica social e sim como questão judicial e policial. As instituições se responsabilizam pelo tratamento, cuidado e abrigamento do menor socialmente marginalizado, em razão de conduta anti-social, abandono e negligência, em síntese, pela falta de condições econômicas da família. Neste caso, ele é concebido como um feixe de carências e sua família é tida como incapaz de manter a prole e de atender a suas necessidades, uma vez que não dispõe de condições materiais, emocionais e afetivas para esse fim. As entidades assistenciais assumem o papel de mediar esta situação, algumas delas em situação tão precária quanto a da família.
"Na prática, isto significa que quanto mais desacreditado for o menor, mais merecedor ele se torna de ser internado numa unidade mais fechada. E, ao contrário, quanto menos desacreditado ele for, mais chances julgam que ele deva ter numa unidade menos fechada. A descrença relativa à consecução dos objetivos institucionais é atribuída antes ao menor do que à ação institucional. Concebido como culpado por sua recuperação, seu fracasso serve para reafirmar as suposições feitas a priori sobre sua identidade e para justificar a reprodução das práticas institucionais." (Violante, 1985:110.)
Essas práticas pedagógicas pautadas na desvalorização e desautorização do sujeito não eram dirigidas somente ao menor, mas também a sua família. A família era e é totalmente desqualificada, num ranço que persiste em nossa cultura. As instituições sociais brasileiras, num instante, desautorizam a família como agente de educação e de cuidado de sua prole. É bom recordarmos que até os anos 30, a pobreza era julgada como uma questão policial.
No período da ditadura militar, iniciada nos anos sessenta, era encarada como questão policial ou judicial. Segundo essa doutrina, nos anos oitenta, aproximadamente 32 milhões de menores no Brasil necessitariam de confinamento, uma medida inviável quer econômica, quer socialmente. Forças sociais empenhadas na construção da democracia, da liberdade, da cidadania e da solidariedade, uniram-se, por todo o país, para reverter esse quadro. A partir da CPI sobre o menor, realizada em 1975, multiplicaram-se os estudos e teses que pesquisavam a realidade do menor privado de direitos.2
Gostaríamos de registrar que, de um lado, é importante estabelecer estudos do ponto de vista da instituição, mas que é também necessário compreender as práticas sociais desta população supostamente marginalizada e concebida como desviante. Não se pode entender essas práticas como revolucionárias ou de contestações políticas, mas antes como um a forma de denunciar as práticas de exploração e submissão, e do caos pedagógico. "São comportamentos de não submissão às condições que lhe são impostas, as quais se espera que ele se adapte pela sujeição." (Violante, 1985:190.) Na doutrina de proteção integral, preconizada no Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA, a população infanto-juvenil é protagonista.
Essa visão ultrapassa a perspectiva de Winnicott (1987:129), que concebe o furto, a agressão e comportamentos não-adequados como práticas anti-sociais e acredita que as manifestações de privação e delinqüência são ameaças à sociedade, tão perigosas quanto bombas, podendo dar margem à sustentação das práticas advindas da doutrina de segurança nacional, que via o menor como um perigo, como uma ameaça à ordem. Foucault demonstra que a sociedade sem criminalidade é um projeto de sociedade do século XVIII.
Criminalidade, delinqüência e desvio, hoje, são condições organizacionais da sociedade. Sem a delinqüência, não se justificariam os aparatos repressivos e outras formas de organização da sociedade contemporânea. Em síntese, "[...] tanto a criança quanto o adulto delinqüente justificaram a criação de uma superestrutura jurídico-burocrático-administrativa" (Silva, 1997:159), que persiste, motiva e dá uma certa explicação racional do abandono, do crime e do desvio, enquadrando todos aqueles sujeitos que são destituídos de seus direitos (cf. Foucault, 1979 e Silva, 1997).
Um outro aspecto pelo qual a doutrina de situação irregular compreende a marginalização está na linha da patologia. É uma doença que deve ser tratada. O desviante é passível de recuperação, uma vez que o mal se localiza no indivíduo, como fenômeno endógeno (cf. Velho, 1999:12). A visão atual é de tentar compreender as práticas de desvio no cerne da cultura ou das relações sociais. Se não resolve o problema, esta posição amplia o leque de possibilidades de compreensão das peculiaridades dos processos de socialização e de humanização. Isto nos permite interpretar o caráter inovador e criativo do comportamento desviante, para determinadas práticas pedagógicas ou sistemas educacionais e jurídicos. A prática desviante de hoje pode oferecer elementos para a construção de um processo civilizatório (cf. Velho, 1999:15).
O desviante não está fora da cultura, mas faz uma leitura e tem uma ação divergente. Só é considerado como tal num determinado momento e num determinado contexto. Essa teoria nos possibilita compreender a formação social do Brasil, bem como da população marginalizada ou desviante. Só existem ricos porque existem pobres, só existem instituições, porque existem aqueles que foram excluídos dos bens de consumo. Como acena Marx, "[...] um negro é um negro; apenas em determinadas condições, ele se torna escravo. Uma máquina de fiar algodão é uma máquina de fiar algodão. Ela se transforma em capital apenas em condições determinadas" (Ianni, 1982:95).
Essa compreensão nos permite afirmar que a criança e o adolescente são criança e adolescente; só são carentes abandonados ou delinqüentes dentro das relações sociais estabelecidas. Não são o que são apenas por um ato de vontade pessoal. As instituições e as políticas sociais existem, porque as relações sociais se constituem de maneira desigual. O que garante sua existência é a necessidade que os trabalhadores e o poder político têm de manter a ordem e de garantir a sobrevivência das crianças e adolescentes que vivem à margem da sociedade.
Na década de noventa, o reordenamento político, fundado na Constituição Brasileira de 1988 e no ECA, concebe crianças e adolescentes como sujeitos de direitos, sujeitos em desenvolvimento e prioridade absoluta. Este modelo político-pedagógico concebe o abrigo como um espaço de acolhimento, no qual se deve facilitar o convívio da criança com a comunidade em que está inserido. Não é a segregação, mas a inserção comunitária que prevalece. "O abrigo é o lar coletivo, de pequenas dimensões, onde o abrigado não está privado de liberdade." (Sêda, 1992:265.)
A filosofia que perpassa o ECA é a do fortalecimento da convivência familiar e comunitária, do reconhecimento do protagonismo e da ruptura das práticas de confinamento e de desvalorização do saber adquirido e construído com base na biografia. As violações de direitos, os conflitos com a lei e as práticas desviantes não são hereditárias, mas socioculturais. Num contexto em que alguns indivíduos optam pela delinqüência "[...] tudo leva a crer que o problema essencial consiste em explicar por que motivos alguns indivíduos procedentes do mesmo segmento populacional optam pela delinqüência, enquanto outros optam por construir uma trajetória de trabalhadores e cidadãos normais, questão que comporta ambigüidades essenciais" (Adorno, in Silva, 1997:138).
O desafio da pedagogia social é buscar e encontrar os motivos que conduzem determinadas crianças e adolescentes a transformar em vantagens as fragilidades do cotidiano. Quais seriam as bases da renovação das biografias e da construção de caminhos bem sucedidos em pessoas submetidas a revezes de tal monta que poderiam facilmente aniquilá-las? Acreditamos que o conteúdo central das explicações possíveis está circunscrito na ética da amizade ou na política da vida. Relações de solidariedade, amizade, justiça e confiança, geradas no cenário das tragédias, promovem um certo tipo de subjetividade.
Como tem demonstrado a história da humanidade, a práxis de um compromisso com a construção de experiências humanas marcadas pela solidariedade é uma estratégia importante na superação das adversidades humanas. Por este foco, é possível observar que a formação da subjetividade lança raízes no entrelaçamento de diferentes acontecimentos ou territórios da dinâmica da cidade e das relações cotidianas e culturais. Neste sentido, concebemos o sujeito como aquele que é capaz de produzir uma reação que altera os padrões sociais ou que busca resistir e encontrar linhas de fuga, ou, ainda, que consegue responder a uma realidade social e cultural cotidiana em mudança. A pessoa humana necessita da garantia dos direitos sociais, bem como de relações humanas saudáveis, fundadas na experiência do amor, da amizade e da ética.
Estudos de Heller sobre o instinto humano radicado em drives constituídos de impulsos e motivações contêm fundamentos para a análise da interferência recíproca entre a objetividade e a subjetividade. É nessa correlação que as pessoas se apropriam dos diferentes territórios no cotidiano, assimilam e modificam conteúdos e encontram formas de reagir à dominação e à opressão, de satisfazer suas necessidades e carecimentos radicais. Elas se firmam no pragmático, no desejo e no imaginário, muito mais do que numa racionalidade científica. Defino esse mecanismo de estratégia de sobrevivência no cotidiano entendido como locus peculiar da construção da subjetividade. Ele adquire visibilidade, quando se transforma em políticas públicas pela ação de lideranças públicas comprometidas com o desenvolvimento humano. Uma análise da doutrina de proteção integral nos permite compreender melhor essas facetas. Não podemos nos esquecer de que os dados históricos indica um corolário de que a miséria, com sua carga de criminalidade, tem sido um meio de garantir o enriquecimento e o status social de políticos, empresários, líderes religiosos e grupos organizados. Lefebvre, ao fazer uma análise da obra de Marx e de Balzac, recupera a idéia de que o
"[...] criminoso não produz somente crimes, mas também o direito criminal, o professor que faz cursos sobre o direito criminal e até o manual inevitável, onde esse professor condensa seu ensinamento, com vistas à venda. [...] O criminoso produz, além do mais, toda a organização da polícia e da justiça criminal, os juízes, os carrascos, os jurados e as diversas profissões que constituem as tantas categorias da divisão social do trabalho, que desenvolvem as diversas faculdades do espírito humano, criam novas necessidades e novas maneiras de satisfazê-las. A tortura propiciou invenções mecânicas as mais engenhosas e ocupou uma multidão de homens trabalhadores na produção desses instrumentos. O criminoso produz uma impressão seja moral seja trágica e presta assim serviço ao movimento dos sentimentos morais e estéticos do público. Além dos manuais sobre o direito criminal, do código criminal e dos legisladores, ele produz arte, literatura, romance e até tragédias. O criminoso traz uma diversão à monotonia e à calma tranqüilidade da vida burguesa... O criminoso aparece, pois, como um desses fatores que estabelecem o equilíbrio salutar e abrem uma perspectiva de ocupações úteis" (Lefèbvre, 1969:28).
Um certo olhar irônico voltado para a história da pobreza e das instituições permitiria deslindar os estigmas e preconceitos contra essa população, assim como as ideologias institucionais. Nosso desafio, porém, é contemplar atentamente o presente para compreender a cotidianidade da população excluída dos bens produzidos na cidade, mas incluída, de certa forma, como condicionante da subsistência de vários grupos sociais. As condições em que vivem as crianças e os adolescentes empobrecidos criam os juízes da infância e da juventude, os procuradores da justiça, os educadores, os assistentes sociais, os líderes comunitários, as damas de caridade, intelectuais, uma rede de pessoas que podem viver de suas tragédias. Isto, às vezes, transforma os programas e políticas sociais em uma indústria lucrativa e de manutenção do poder. Talvez, por isso, autores como Foucault demonstram que determinadas organizações não sobreviveriam sem a delinqüência.
O princípio de que uma cumplicidade só se sustenta mediante pontos de interesses convergentes pode ser visualizado na cultura brasileira. Os políticos não venceriam uma eleição sem o uso dos excluídos e os miseráveis não sobreviveriam sem as fagulhas dos políticos, damas da caridade e lideranças comunitárias. Os homens não suportariam viver uma cumplicidade abstrata, baseada apenas em promessas não cumpridas, pelo menos em parte. Em síntese, a concepção de instituição estabelecida no ECA é arquitetada a partir da idéia de res publica e não calcada em favoritismos ou culpabilizações. Este mesmo princípio repercute nas políticas sociais que atendem crianças e adolescentes
Não concebemos os programas e as políticas sociais como um mal ou um bem em si, deslocados das relações sociais, por uma perspectiva funcionalista, e sim pela ótica da dubiedade, apontada por Marx, no capítulo VII de O Capital. A concepção de cidadania e de democracia, presente no ECA, só se tornou possível com a maturação do processo histórico, que viabilizou aos trabalhadores a aquisição da consciência de direitos. Elas devem, portanto, ser analisadas pela perspectiva de dubiedade, pois "[...] as políticas sociais do Estado não são instrumentos de um bem-estar abstrato" (Faleiros, 1991:55), mas resultado de diversas lutas entre o capital e o trabalho, sociedade civil e política, governantes e governados. Elas não são apenas bem e mal. Estão circunscritas nas relações capitalistas como uma ajuda à população excluída, mas, também, como "[...] um cavalo de Tróia" (Esping-Andersen, 1991:89), que pode transpor os limites entre exclusão e inclusão.
Acreditamos que tanto a direita quanto a esquerda parecem equivocar-se ao interpretar a cultura de direitos. A primeira acredita que desmotiva a classe trabalhadora, aumenta o déficit público e a inflação; mas, em contrapartida, defende o investimento no capital, ou seja, na tecnologia. Em resumo, a direita não aceita investimentos excessivos do Estado na reprodução e sobrevivência da população excluída, com a idéia do Estado mínimo. A esquerda equivocada acredita que a cultura de direita apenas alimenta e cuida dos excluídos, para transformá-los em consumidores. A direita analisa as políticas sociais no âmbito da lei e recusam sua intervenção no mercado. O Estado deve ajudar os fracos, os doentes e as famílias carentes, uma vez que os fortes resolvem seus problemas no mercado. A esquerda reducionista ingênua conceitua-o como defensor dos interesses dos proprietários dos meios de produção ou como perpetuação do capitalismo.
Reiteramos que assumimos a perspectiva da dubiedade, pela qual a cultura de direitos tanto contribui para o desenvolvimento do capitalismo quanto para o desenvolvimento social, na dependência das articulações nacionais e internacionais dos organismos e organizações defensoras da cultura de direitos. Mais do que cumplicidade, nesta rede de relações, descobre-se que cada um dos envolvidos constrói sua história. As questões postas nas relações cotidianas não são monolíticas, mas pluralistas. Em cada indivíduo ou segmento, elas repercutem de maneira peculiar. Se a miséria gerou e gera uma burocracia parasita, de outro lado, constituiu uma rede de solidariedade que sustenta a vida.
Mais do que teorizar sobre a socialização, é necessário descrevê-la em sua processualidade.3 A proposta da rede de proteção é pedagógica no sentido de propiciar uma alternativa alterativa de conquista e construção de um espaço de cidadania, à medida que permite capturar as dimensões do protagonismo do sujeito, perscrutar sua formação e a interferência da cultura no processo pedagógico. No cotidiano, o corpo e o espírito adquirem vida. Nele, o "Zé Ninguém" (cf. Reich, 1993:22) encontra um lugar para falar e ser escutado, perder o medo de tudo e de todos, aprender a lançar-se para a vida, olhar para si, sem fugir de si mesmo, recuperar a coragem de lutar por seus direitos e de viver a liberdade de modo criativo (cf. Gramsci, 1978:42). Numa prática de abertura que desestrutura a negação dos sonhos, o sujeito é capaz de lutar pelos ideários pessoais e da humanidade, de sustentar o patamar de cidadão e de refletir sobre sua história como estratégia para evitar que se instaurem projetos de dominação.
Entretanto, discordamos da concepção de que a compaixão é uma fraqueza, que não se coaduna com a justiça. A solidariedade não é só um instrumento de alienação. Ela contribui para a emancipação e a reconstituição da justiça social. Não estamos propondo uma solidariedade mecanicista, na linha de Durkheim, mas uma solidariedade em movimento, que possibilita o encontro da felicidade. Crianças e adolescentes que têm os direitos violados ou que se encontram em situação de vulnerabilidade pessoal e social, dependentes de abrigos ou de outros serviços sociais, requerem um orientador, educador ou liderança comunitária, com uma boa formação humana, que possa compreender os emaranhados da situação de abandono e restabelecer, na medida do possível. A criança e o adolescente têm necessidade de compreender o porquê de sua situação, para que não se sintam culpados e abandonem o protagonismo de suas biografias. Um bom formador pode ajudar
"[...] a criança a colocar seus sentimentos em palavras e a elaborá-los, de forma que ela possa aceitar realmente a situação. Entregue a si mesma, a criança provavelmente permanecerá neste conflito emocional confuso, o que pode resultar em incidentes [...] Não raro as crianças suporão, por exemplo, que seu lar se desfez devido ao seu mau comportamento ou que foram mandadas embora como castigo" (Bowlby, 2002:140).
Talvez aqui resida uma base para uma elaboração de uma pedagogia social que possa sistematizar todos esses conhecimentos acumulados na história e colocá-los a favor dessa população. Se a comunidade científica e a sociedade problematizaram sobre quem são e como reagem aqueles que foram tachados de desviantes, pivetes, abandonados..., é porque já possuem condições para responder como desencadear um novo processo de socialização e humanização. Este é o desafio da pedagogia social, que deve partir do pressuposto de que a noção de sujeito humano4 como aquele que faz o cotidiano e é por ele feito permanece controvertida e ainda distante de um consenso.
Nessa relação dialética, podemos compreender a prática da autonomia5 do sujeito e superar explicações reducionistas de fundo mecanicista, que o excluem dos processos de transformação social e histórica, como simples objeto de manipulação e um ser amorfo, incapaz de reagir. A idéia de que o homem faz a história dentro de certas circunstâncias não o elimina da história e nem exclui o papel da infra-estrutura; ao contrário, compreende a história enquanto resultado das formas pelas quais os homens se organizam para manter a vida. Em decorrência, a cidadania é um processo inventivo, em que cada um dispõe de oportunidades para o autodesenvolvimento.
O desafio que enfrentam as políticas sociais em todo o Brasil é a promoção da justiça distributiva, na linha do que Oliveira denominou de antivalor. Quando prevalecem a desigualdade e a exploração, os direitos sociais só aparecem no discurso e nas leis, sem realizar as transformações sociais. Acreditamos que os seres humanos podem adquirir e desenvolver a auto-ética. A política da vida é uma utopia a ser circunscrita e construída no cerne das relações sociais, das correlações de forças sociais e da intersubjetividade. Ela não elimina conflitos e contradições sociais, mas os qualifica, sem legitimar práticas de exploração ou justificar o desenvolvimento econômico em detrimento do social.
A pedagogia social, pautada na política da vida, tende a desenvolver laços humanos saudáveis para que o indivíduo, desde criança, perceba que a felicidade do outro é também a sua. Estar ligado a um ser humano significa estar conectado com a raça humana e o cosmos. A concretização da vida depende das políticas sociais. Entretanto, a vida não se reduz a elas. Laços de amor e de solidariedade permitem ao sujeito satisfazer os seus carecimentos eticamente justificáveis. Por este olhar, evidencia-se, novamente, a necessidade do intercâmbio entre as subjetividades e o meio ambiente, para o desenvolvimento da personalidade.
Ressaltamos que a beleza do atual reordenamento jurídico brasileiro é um projeto da sociedade civil, que não concebe os meninos empobrecidos como um feixe de carências, de coitadinhos, de bandidinhos, pivetes, como se encontrava subjacente no código anterior, que os considerava em situação irregular. A lei atual concebe-os como sujeitos de sua história e seres em desenvolvimento.
"Reconhecê-los como sujeitos de direitos não significa negar, omitir a relação de subordinação das crianças e adolescentes aos adultos e nem a responsabilidade destes no crescimento e desenvolvimento daqueles. Contudo, significa questionar, impedir, denunciar aquilo que nesta relação – pessoal ou institucional – tenha marca do autoritarismo discricionário, da violência, do sofrimento, de condições adversas ao bem-estar e à saúde física e mental, que comprometem o desenvolvimento do indivíduo e do cidadão em sua realização pessoal e participação social." (Teixeira, 1991:6.)
O ECA é uma lei escrita por muitas mãos e pensada por vários segmentos sociais que procuraram envolver o maior número possível de pessoas na reflexão sobre as normas que deveria conter. A sociedade brasileira conquistou, com a promulgação da Constituição de 1988, um reordenamento jurídico que preconiza que a criança e o adolescente são sujeitos de direitos. A partir da Constituição, as leis orgânicas, como as da assistência, da educação, da saúde e o ECA, oferecem condições jurídicas para a passagem do mal ao bem-estar social. É preciso construir uma outra pedagogia social que respeite os direitos da criança e do adolescente e um ordenamento jurídico que possa oferecer bases para garantir uma outra qualidade de vida, por meio da educação, do lazer, da proteção, da garantia de liberdade e da convivência familiar e comunitária.
Temos que articular os intelectuais, os movimentos sociais, para acabar com as "[...] guerras aos nossos meninos (e meninas) brasileiros; a guerra da fome e da subnutrição; a guerra dos maus-tratos; a guerra da privação ilegal da liberdade, a guerra da desassistência na deficiência, a guerra da prostituição infanto-juvenil, a guerra do trabalho precoce e da exploração do trabalho, a guerra da marginalização social que os expõe a todo tipo de ameaças, chegando até a vitimização pela tortura e pelo extermínio" (RIVERA, 1990:36), e com a guerra do confinamento e da institucionalização, que acaba por transformá-los em criminosos.
Os direitos preconizados na Constituição de 1988 e no ECA resultam de lutas multisseculares no Brasil e fora dele, de um conflito constante entre o capital e o trabalho. Ao contrário, provêm dos embates entre classes, sociedade civil e sociedade política, governantes e governados, "[...] não são medidas boas em si mesmas como soem apresenta-las os representantes da classe dominante e os tecnocratas estatais. Não são, também, medidas más, em si mesmas, como alguns apologetas da esquerda soem dizer, afirmando que as políticas sociais são instrumentos de manipulação e de pura escamoteação da realidade da classe operária" (FALEIROS, 1991:55).
Sem as políticas sociais, a população de baixa renda, as crianças, os idosos e a mulher, estaria fadada ao genocídio. Este corolário, por si só, bane o discurso da esquerda ingênua e coloca a direita numa situação incômoda, principalmente em função do seu discurso angélico ou diabólico, que procura resolver a questão da pobreza pela esmola ou confinamento. Para isso, as políticas sociais devem ser menos burocratizadas e acessíveis aos menos favorecidos, devem organizar programas a serem desenvolvidos pelos municípios, com a participação e vigilância dos munícipes, no que se refere à aplicação dos recursos e atendimento de prioridades.
As políticas sociais brasileiras, nas últimas décadas, foram elaboradas para garantir o controle social no apagar do fogo, em meio do incêndio. Há analfabetos? Cria-se o Mobral. As crianças estão morrendo de fome? Distribuem-se leite e alimentos. As crianças estão na rua? Institucionaliza-se. Tais políticas visavam cobrir os fracassos das políticas de desenvolvimento. Os programas sociais do governo eram elaborados dentro de um caráter paternalista e assistencialista. "Políticas sociais básicas, como as de saúde e educação, conheceram um sistemático processo de desprivilegiamento no contexto do orçamento da União. Isso implicou a doação, por parte do governo, de políticas sociais compensatórias, surgidas no terreno baldio do fracasso das verdadeiras políticas sociais." (COSTA, 1990:85.)
O que o ECA apregoa é que toda criança deve ter um espaço educativo, família e um lugar para habitar. Isto é o contrário do que divulga a imprensa, ao declarar que ele defende os bandidos. Pelo contrário, ele pune os bandidos. Se uma criança, por exemplo, rouba de uma senhora que passa pela Praça da Sé uma correntinha de ouro, existe alguém que compra essa correntinha roubada. Ambos devem ser punidos, segundo a Lei. Entendemos que a Constituição e o Eca são resultantes das lutas de classes delineadas na tensão entre capital e trabalho, presente nas próprias legislações. De um lado, estas garantem a acumulação do capital e, de outro, os direitos sociais. É na convergência desses pontos que se abre um novo caminho para garantir duplamente a reprodução do trabalhador e do capital, dentro de uma nova concepção.
O Estado delineado na Constituição e reforçado no ECA não é mais o Estado como poderoso instrumento de dominação de classes. No Seminário Internacional da Criança e do Adolescente de Baixa Renda, realizado em São Paulo em 1989, Paulo Freire dizia que todo esse processo em torno das crianças tem ajudado a sociedade a se descobrir. Os "[...] meninos e meninas estão inventando outro país, e nós, mais velhos, temos que ajudar essas meninas e esses meninos a refazer o Brasil. E é com essa convicção, é com este sonho que eu falo [...] Ajudemos estes meninos a reinventar o mundo" (FREIRE, 1989:9). Assumimos as palavras de Freire e deixo a todos o desafio de sonhar com esses meninos e meninas numa nova sociedade, na vigência dos direitos sociais.
As políticas sociais devem ser, de fato, efetivadas em articulação com as políticas econômicas. O desafio é criarmos uma cultura política que ultrapasse o formalismo de querer resolver as necessidades humanas e sociais apenas pelo aspecto jurídico. A solução dos problemas sociais requer também mudanças no modelo econômico, cultural e ético. O espaço público deve buscar o equilíbrio entre o desenvolvimento social e o econômico, dar condições de acesso universal aos bens culturais, tecnológicos e econômicos. As mazelas sociais são manifestações das crises de um desenvolvimento desarticulado, que busca dar precedência ao incremento econômico em detrimento do social. Essas crises geram um modelo cultural excludente que deixa à margem negros, mulheres, crianças e jovens, mina o florescer da humanidade e impede um desenvolvimento social saudável, pautado no bem-estar.
"Estamos persuadidos das possibilidades de desenvolvimento do homem e da sociedade. Mas também estamos persuadidos de que esse desenvolvimento é inseparável de uma metamorfose social. [...] as potencialidades existem no ser humano e no ser social que ainda estão no começo de suas possibilidades evolutivas. [...] Mas não só estas forças ainda são muito fracas e dispersas, como também são errantes, desviadas, mitificadas, e imensas boas vontades que julgam agir ao serviço da revolução estão, na realidade, a trabalhar para esmagar os germes da revolução. A meu ver, é esta a grande tragédia da época, é o que aumenta a impossibilidade do novo nascimento da humanidade e do verdadeiro desenvolvimento." (Morin, 1998:350.)
A cultura opressora e autoritária que ainda toma conta da sociedade brasileira emperra a passagem do mal ao bem-estar social. É uma sociedade em que os direitos sociais e econômicos são sonegados para a maioria da população, que é tratada pelo viés de uma cidadania de segunda classe, tutelada pelo Estado. O desafio que se coloca é articular as esperanças subjetivas existentes em cada indivíduo e na sociedade com as oportunidades objetivas advindas das políticas sociais e econômicas. Finalmente, como diria Paulo Freire, a construção de uma outra pedagogia é possível. Diríamos que é também possível a construção de uma outra relação social. Talvez, a pedagogia social possa nos ajudar a refletir sobre essa perspectiva. Para isto, ela se deve apropriar e, ao mesmo tempo revisitar o acervo científico e as práticas sociais existentes na história.
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1 João Clemente de Souza Neto é mestre e doutor em Ciências Sociais, pela PUC-SP, e pós-doutorando em Sociologia Clínica, na mesma Instituição. É pesquisador e professor no Centro Universitário FIEO. É coordenador do CEPEx, Centro de Pesquisa e Extensão, pesquisador, gestor e professor na Faculdade de Filosofia, Letras e Educação da Universidade Presbiteriana Mackenzie. Membro do NESCCi, Núcleo de Estudos de Subjetividade, Cultura e Cidadania, da PUC-SP, do Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre a Infância e a Adolescência, da Universidade Presbiteriana Mackenzie, e do Instituto Catequético Secular São José. Atua como consultor da Prattein, vice-presidente da Ages, Associação Civil Gaudium et Spes, e agente da Pastoral do Menor da Região Episcopal Lapa, São Paulo, instituições que defendem os direitos da criança e do adolescente. Possui vários trabalhos publicados nas áreas da infância, adolescência, família e organizações não-governamentais. End. eletrônico: j.clemente@uol.com.br
2 Entre esses trabalhos, destacamos o livro Meninos de Rua, resultado de uma pesquisa realizada pela equipe do CEDEC, Centro de Estudos de Cultura Contemporânea, para a Comissão Justiça e Paz da Arquidiocese de São Paulo, entre fevereiro e novembro de 1979, um trabalho coordenado por Rosa Maria Fischer Ferreira.
3 No texto de Roberto da Silva, Os filhos do Governo, a meu juízo, existe um esforço para compreender essa processualidade. Em meu livro Crianças e adolescentes abandonados, estratégias de sobrevivência, há também um esforço nesse sentido.
4 Neste trabalho, a construção da categoria sujeito é centrada no homem, distintamente de outras definições, como aquelas que o entendem nos partidos, nas lutas de classes, mais precisamente, nas estruturas, o que parece levar à exclusão do sujeito e dar margem à apreensão da cidadania restrita à relação do indivíduo com as instituições. Igualmente, não se admite o paradigma cartesiano do cogito, redutor do sujeito à dimensão racional. Essas concepções minimizam a complexidade dessa categoria. Para se "[...] compreender a formação do ser desejante cabe aproximar-se do entendimento psicanalítico possível dos mecanismos da formação da subjetividade [...] Uma vez compreendido o ser desejante, pode-se especular sobre essa pessoa poder vir ser ator de práticas sociais [...] Aqui chegando, reitera-se, já existiria então como sujeito provisório no que pode se ter como o sujeito-em-constituição ou em construção na contemporaneidade" (Manzini Covre, 1996:98). Em síntese, o que se propõe é um sujeito em construção, que se altera e muda seu cotidiano de acordo com suas relações.
5 A autonomia do sujeito é que permite compreendê-lo não como algo dado, mas a ser construído. Entende-se essa autonomia como a possibilidade do sujeito fazer suas escolhas dentro dos limites históricos e circunstâncias dadas, uma vez que ele se manifesta com múltiplas possibilidades de reflexão e reação diante dos fatos do dia-a-dia. Na infância, já se percebe que a criança transforma aquilo que recebe. Castoriadis (1992:237) observa que "[...] a criança transforma o que lhe damos ou o que encontra dando-lhe um sentido - mas não sem relação com o sentido do que já lhe demos". A autonomia do sujeito é sempre limitada, pois apesar de transformá-las, o sujeito depende das informações recebidas.