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An. 1 Congr. Intern. Pedagogia Social Mar. 2006
A iconografia como desdobramento da concepção de mundo da comunidade Maxakali
Luciane Monteiro Oliveira*
RESUMO
O objetivo do presente trabalho é apresentar a iconografia da comunidade indígena Maxakali como um fenômeno estético, logo, filosófico e enfatizar as diferenças de concepção de mundo. A relevância do trabalho consiste em possibilitar uma reflexão sobre a escola Maxakali no âmbito das políticas públicas governamentais apontando as diretrizes que regem os programas de educação indígena. Os resultados alcançados demonstram que a arte é uma das linguagens possíveis em que está patente a filosofia do grupo, baseando na assertiva de que a iconografia contempla a dimensão existencial no plano físico, por meio de seus registros gráficos, e espiritual, por meio das narrativas e cantos, performance das imagens. A metodologia empregada na pesquisa é a mitohermenêutica simbólica de cunho antropológico cujo princípio é um cuidado investido na reflexão e na prática do conhecimento que proporciona demarcar os caminhos percorridos pela pesquisadora na inserção do contexto de sua investigação.
Palavras-chave: Maxakali; mitohermenêutica; iconografia; cultura indígena; educação indígena.
Introdução
Neste trabalho apresento a pesquisa desenvolvida em meu doutoramento cuja temática é a iconografia como um fenômeno estético da comunidade Maxakali. O objetivo é destacar as diferenças de concepção de mundo no que se refere ao caso da arte e da noção de belo, a partir da interpretação das imagens que compõem os desenhos. A finalidade é evidenciar as categorias estabelecidas pelos membros do grupo.
A iconografia é compreendida como texto, e a leitura das imagens é efetuada em associação com as narrativas dos autores da obra. Esta ação e produção criativas são contempladas como concretização do pensamento ou razão Maxakali. A atribuição dessa razão está na potência estética do grupo, na medida em que expressam as experiências de vida dos indivíduos do grupo e, ao mesmo tempo, as especulações de cunho ontológico que esse fenômeno provoca no seio da coletividade Maxakali, dinamizando e incrementando o seu corpus mitológico.
O escopo do estudo foi acompanhar todo o processo de produção dos desenhos de modo a apreender o contexto temporal, concebido a partir das relações sociocósmicas e a cena espacial onde essa atividade é exercida. Do mesmo modo, verificar a presença de estímulos externos, tais como recursos visuais imaginativos que contribuíssem para a manifestação criativa.
A problemática suscitada versa sobre a arte como um alicerce filosófico da cosmovisão Maxakali pautada na razão afetiva, distinta do pensamento ocidental. O contexto para a interpretação das imagens é a organização social do grupo onde se dão as relações sociais de alteridade, no caso as instituições governamentais, como a Fundação Nacional do Índio (FUNAI); Fundação Nacional de Saúde (FUNASA); Ministério da Educação - MEC e Secretaria de Estado da Educação de Minas Gerais (SEE/MG); órgãos não-governamentais como o Conselho Indigenista Missionário (CIMI) e pesquisadores que atuam no território Maxakali.
Esse aspecto do estudo se justifica por situar o estudo da iconografia indígena no contexto das relações de autodenominação e alteridade assinalando as perspectivas de concepção do mundo, cuja particularidade está, não em analisar os desenhos a partir de categorias de forma e conteúdo, mas de apresentá-los como expressão de um pensamento fundado em uma razão afetiva distinta da moderna ocidental.
A relevância desse estudo consiste, também, em possibilitar uma reflexão sobre a escola Maxakali, no âmbito das políticas públicas governamentais, apontando as diretrizes que regem os programas de educação indígena. No caso em questão, a escola é percebida pelo grupo como um espaço de negociações, e os programas de educação implantados na área são apreendidos e re-significados conforme os interesses e necessidades da coletividade.
O singular desta proposta de trabalho está em apresentar novas possibilidades de ver o mundo, seja no âmbito do perspectivismo ameríndio (VIVEIROS DE CASTRO, 1996a), ou da educação de sensibilidade – ser - com o-outro-no mundo – descobri e descobrir-se no Outro (FERREIRA SANTOS, 2003a).
Por fim, pretendo apontar que a arte é uma das linguagens possíveis em que está patente a filosofia do grupo baseando-me na assertiva de que a iconografia contempla a dimensão existencial no plano físico, por meio de seus registros gráficos, e espiritual, por meio das narrativas e cantos, performance das imagens.
O arcabouço teórico-metodológico da pesquisa se encontra em convergência com a proposta epistemológica bachelardiana ao consagrar uma nova concepção de ciência e de progresso científico em que o objeto da investigação é construído e reconstruído não se restringindo a simples reprodução do real, da experiência (BACHELARD, 1971:165).
Nesta concepção, o sujeito passa de mero receptor das verdades absolutas para autor e produtor do conhecimento científico. O conhecimento nesse espírito cientifico é uma retificação do saber, uma construção a partir da desconstrução do que estava posto, promovendo uma ampliação dos quadros do conhecimento. A essência da reflexão é compreender o que não se tenha compreendido, refletindo sobre a historicidade e a inconstância do saber científico. O pensamento deve ser focado em sua dinâmica e mobilidade (BACHELARD, 1971:125).
É essa epistemologia que coloca o homem no centro do conhecimento e que vai constituir o novo espírito científico, na medida em que a compreensão se dá a partir do ponto de vista do sujeito, superando a si próprio.
Esse movimento de compreensão do sujeito e do universo se funda na intersubjetividade pautada na fenomenologia, que de acordo com Merleau-Ponty (1999) é o estudo das essências, isto é, uma filosofia que as coloca em suspenso para compreender o homem e o mundo. É uma filosofia transcendental e, ao mesmo tempo, uma filosofia para a qual o mundo está presente a priori, antes da reflexão. Constitui em uma compreensão do mundo vivido, no espaço e no tempo, por meio de uma percepção apreendida de si próprio, como ser existente e das coisas do mundo.
O cerne desse novo espírito científico é uma proposta de "re-encantamento" do mundo. Proposta centrada na perspectiva de um retorno do pensamento simbólico e ou tradicional, no sentido da ciência holonômica, que significa o todo integrado (FERREIRA SANTOS, 2004).
Para alcançar esse todo é necessária uma conjunção de perspectivas contrárias que se opõem, mediadas por um pensamento que as agrega, religa e forma uma unidade do ser e, em boa medida, uma ciência do Homem (PAULA CARVALHO, 1999).
Ciência que se opõe ao racionalismo de base aristotélica e cartesiana que intenta almejar a universalidade por meio da divisão do senso comum ou bom senso. No entanto, o pensamento simbólico mediado por imagens, não está subordinado a um evento ou a uma situação histórica especifica ou existencial.
Esses pressupostos contribuem para a compreensão de sociedades nativas cujo tratamento recebido pela ciência é muitas vezes equivocado. Muitos dos trabalhos buscam o conhecimento dos povos nativos pelo seu exotismo, quando não foi expropriado de modo perverso, justificado pela sua condição existencial e pela superioridade da razão objetiva, divulgando-o de maneira banal e destituída de sentidos e afetividades.
A ciência holonômica que visa o re-encantamento não se encontra no outro, em paisagens desconhecidas e exóticas, e sim no cerne da própria reflexão filosófica e na interpretação que o filósofo realiza.
De certo modo essa epistemologia conduz à essência do pensamento simbólico na tentativa de compreender não só as múltiplas formas de apreender o mundo, mas principalmente a dimensão da sensibilidade do próprio autor da pesquisa, numa perspectiva da "ontologia simbólica" preconizada por Bachelard (1999) em que o cosmos nada mais é que uma revelação do ser humano no mundo vivente.
O ponto de partida dessa pesquisa pretende um novo olhar e uma nova atitude frente ao conhecimento que está sendo elaborado e implica em uma compreensão do mundo como um componente do pensamento e da ação humana. Para almejar essa condição utilizo a Mitohermenêutica, que compreende a hermenêutica simbólica de cunho antropológico que abrange tanto uma atitude reflexiva, de acuidade e indagações permanentes, quanto de método de pesquisa acadêmica que tem por finalidade a sistematização do que está sendo investigado (FERREIRA SANTOS, 2003b).
A interpretação antropológica, que visa um diálogo entre sentidos e significados, está voltada para as imagens apresentadas na iconografia que juntamente com as narrativas míticas cantadas permitem adentrar na tessitura do modo de existência Maxakali.
Existência que oferece um cenário de fenômenos que ajudam a compreender as subjetividades do outro e de certa maneira, a nossa subjetividade na medida em que confrontam conceitos e abstrações, emoções e afetividades que são o elo de diálogo entre vivências distintas que se bifurcam em um campo comum.
Tal metodologia alarga as perspectivas para uma afinidade dialógica entre ciências múltiplas seja no seio da própria cultura ou com outras culturas. O principio dessas relações não pretende uma aceitação e compreensão do outro em sua Outridade; e sim de reconhecer que o outro não é compreensível numa mesma lógica. O ato de aceitar a presença do outro com toda a sua carga de diferenças no seio de uma sociedade hegemônica, constitui freqüentemente, um processo de dominar ou subjugar o outro (Wulf, 2003:201).
Considerando esses aspectos é que a noção de pessoa, como afrontamento de presença, se constitui num pressuposto que auxilia a abrangência de uma unidade da essência da existência humana. Existência complexa de relações que se entrelaçam na rede sociocósmica.
Assim como os Maxakali conhecem o mundo a partir de sua experiência sensorial perceptiva, a proposta ao empregar a mitohermenêutica é tentar apropriar o conhecimento do outro por meio da percepção de seu modo de vida, de sua fala, de seus cantos e de seus jogos. É experimentar a lógica do outro, tecer os fios de cores e fibras distintas e, posteriormente, interpretar essa vivência subjetivamente, formando o tecido encantador.
A leitura do mundo é realizada pela corporeidade e, por meio desta, poder descrever a diversidade de formas de percepção, variáveis conforme a construção da pessoa que habita o corpo, como, por exemplo, a percepção de uma criança em relação a um adulto e das mulheres em relação aos homens.
Se por meio do corpo se conhece o mundo, o corpo de uma mulher vai ser diferente do corpo masculino, assim como o de uma mulher estrangeira aos preceitos filosóficos de um grupo humano. Assim, a leitura do mundo em que se percebe os saberes e conhecimentos advindos dessa relação com o mundo e com outro, também são realizadas de modo distinto.
Em consideração ao pensamento de infinitude dos Maxakali é que opto por uma perspectiva de continuidade e ao mesmo tempo de intersecção entre o que seria o início e o fim. A imagem que evoca essa mediação no contexto ambiental do grupo é o ponto que limita Céu e Terra, coincidentia oppositorum. No conjunto paisagístico do território Maxakali esse ponto de encontro é composto pelo arranjo de mares de morros e colinas, materializando a montanha sagrada, Mikax xap, que toca o céu no horizonte.
É nesse ponto que o sol nasce e o sol morre todos os dias. A fumaça úmida sobe (neblina) em direção ao céu e depois desce do céu para a terra sulcando-a e fecundando-a para o nascer de um novo ciclo de vida. É também o ponto onde os yamy se unem aos homens para partilharem da vida na terra. É a conjunção de dois pólos, o visível e o invisível, a dimensão do sagrado e do profano. Conjunção realizada em um movimento verticalizante.
Para os Maxakali a relação com a terra não é de propriedade, mas de habitar a grande mãe. A terra, hãmhãm é sagrada, constitui espaço e tempo da dádiva. É nela que o tempo se faz presente e atua como a memória que registra todas as ações humanas e espirituais. Logo, os filhos da terra se reconhecem nela como fruto de sua concepção e a possuem numa relação de afetividade filial. Recebem dela o alimento da alma e do corpo e dela brotam os frutos semeados que vão dar novos frutos e alimentar os seres humanos e espirituais que habitam o grande cosmos.
Os seres que moram na abóbada celeste integram a cosmologia Maxakali. O céu, pekox possui um formato arredondado, como uma cabaça que cobre a terra. Há uma integração das duas esferas, celeste e terrestre e não uma ruptura. O céu é o espelho da terra e a terra espelho do céu. No céu há um solo, um território sagrado onde se assentam os espíritos – Yamy. Entre as duas dimensões há uma troca incessante que se transformam e renovam, daí o seu caráter dinâmico de infinitude.
Caráter também presente na concepção de corporeidade. Para os Maxakali o corpo, ya é um processo contínuo de construção. Na implicação de complementaridade dos opostos, o interno e o externo, o feminino e masculino, o sensível e o inteligível, é forjada a pessoa. A constituição do corpo Maxakali se dá com o fluxo do sêmen e do sangue nos primeiros meses e posteriormente somente com o sangue. A pessoa aporta ao longo de sua vida essa condição corporal em conjunção com o alimento da palavra, koxux que é o conhecimento, alma. Nesse sentido, a palavra-alma entra pela boca da criança ao nascer.
Esse movimento de con-fusão de substâncias sintetiza a ontologia Maxakali, sendo o sangue e o sêmen, responsáveis pela reprodução física, expressão do interno, do feminino - anima, do sensível, atuando na esfera doméstica que circunda o centro da aldeia onde erigem os postos sagrados, pináculo que re-liga os homens na terra. Já o externo, masculino – animus, inteligível, são os papéis públicos, os rituais cerimoniais, os cantos e a ornamentação corporal, encerrados pelo pátio central da aldeia e estão relacionados à reprodução espiritual, trânsito dos yãmy.
O ser, tikm’n está em permanente transformação, seja pelo fluxo do sangue que marca o tempo ou pelo fluxo da palavra, koxux que possibilita a transição entre os espaços terrenos e celestiais.
A ideação de corporeidade é também revelada na conciliação de contrários tanto da diversidade de seres que participam de seu universo sócio-cósmico, bem como seres que não pertencem a esse universo como os ãynhuk.
É por meio do corpo que os Maxakali conhecem o mundo e a orbe gira em torno dos saberes apreendidos nesse entrelaçamento. Os tikm’n são seres que vivem a existência de um princípio unificador. Não há separação em seu cosmos. Ao mesmo tempo em que é uno é plural, pois experienciam a existência de outros seres que constituem o seu cosmos. Assim como pela corporeidade o ser se situa no mundo e é, este ser no mundo está em permanente construção, pois só se é na relação com o outro. É no outro que o ser se constitui.
Essa fusão do visível e do invisível vai resultar na constituição da pessoa subjetiva, pois possui uma alma, koxux. Em outras palavras, os seres que constituem o cosmos possuem uma substância material que é o corpo e uma substância imaterial que é o espírito. Por conseguinte, todos podem ser considerados pessoa, humanos, pois se trata de uma condição.
A denominação compartilhada entre os seres não é o homem como espécie, mas a humanidade como condição. O que fundamenta essa implicação é o ponto de vista de referência, sintetizado no corpo próprio. Todo animal, espécie, sujeito que estiver ocupando um corpo pleno de significados, se verá a si mesmo como humano.
A autodenominação Maxakali, "nós seres humanos" reside na articulação ontológica de instauração do ser a partir do movimento temporal e espacial. Por isso, na cosmovisão dos tikm’n, pessoas estranhas ao grupo são denominadas de ãynhuk. São estranhas por possuírem um corpo distinto dos seres que integram a categoria de humanos, pois não possuem koxux e tampouco observa o resguardo de sangue, elemento essencial para preservar a condição existencial do ser. O destino post mortem dos homens é a transformação em yãmy, espíritos cantores, portadores de saber. Quando essas prescrições não são obedecidas o indivíduo pode se transformar em Inmõxã, alma finada dos não-Maxakali, pois esses não possuem Koxux e, portanto, não se transformam em espíritos cantores.
A morte é encarada como uma passagem de uma vida na dimensão terrestre para a vida na dimensão celestial. A materialização dessa passagem que reúne esses dois níveis são os postes rituais, mmanã afixados em frente ao kuxex para que os yamy possam descer a terra e compartilhar da vida com os Maxakali. Cada poste encarna um yamy kup que possui uma função no panteão de seres espirituais, yamy xop. A cisão entre o corpo e alma gera a doença que se não tratada leva a morte, compreendida não como separação definitiva de corpo e alma, mas como re-ligare na manifestação do canto.
Para a manutenção dessa estrutura cosmológica é necessária a realização de rituais, momento em que ocorre a mediação simbólica entre o visível e o invisível, em que os corpos se espiritualizam e os espíritos se corporificam. As pinturas corporais revestem a pele de imagens que denotam a presença do koxux. A alma nesse momento é corporificada na imagem. As marcas no corpo possibilitam a emanação do espírito no corpo. O que cobre o corpo é a pele, xax. Palavra que dá a idéia de envoltório como a casca que reveste as sementes.
Por conseguinte, a pele é o continente de ser. Assim como a casca protege as sementes, sinônimos da manutenção e continuidade da vida, o corpo que encerra o sensível e o inteligível permite a longevidade da cultura Maxakali. Sutura de dimensões presentes também na apresentação dos desenhos, em que o ideal, abstrato, espiritual, está no mesmo plano que o concreto e material, terreno.
O desenho possui o mesmo coeficiente semântico dos yamy kup. Os troncos são retirados da mata, preparados e pintados com signos específicos e singulares para o ritual que se pretende realizar. Sua função no contexto cosmológico constitui a própria tessitura que liga os dois mundos, o inteligível e o sensível. As cores que o contém, vermelha e negra, marcam a sua existência no espaço e tempo cósmico. É o eixo, axis mundi, a árvore cósmica que liga o céu e a terra. O cosmos é uma grande rede onde os fios da vida dos homens são tecidos em uma trama com os fios da vida de outros seres.
O grafismo dos desenhos é a apresentação da própria existência. As imagens grafadas e cantadas no papel sintetizam a vida do autor-artista e de sua coletividade. Nos desenhos estão contidas as narrativas míticas, a vida cotidiana, os sonhos, brincadeiras, enfim, toda a atividade e inventividade humanas.
Para os Maxakali, o mundo imaginado está antes do mundo representado, ou seja, o universo está colocado antes do sujeito. Na fenomenologia da imagem é a intencionalidade da imaginação que possibilita ativar a participação no processo de criação. As imagens cósmicas pertencem a alma ou constituem a própria alma. Por isso a arte Maxakali e, de modo geral, a arte indígena não pode ser tratada como imitação e sim como um deslumbramento com e no seu universo.
No que se refere ao tema e assuntos tratados na arte gráfica Maxakali há um alto contraste e repetição regular singulares da complexidade interna de sua cosmovisão. Não há nenhum ensino formal apenas "imitação" dos gestos obtidos pela observação, criando e recriando para alcançar o belo.
Há arte e beleza em toda obra humana, daí o seu caráter de pessoalidade e socialidade. Pessoalidade porque a criação se con-funde com o criador, autor e obra são a mesma coisa. O resultado dessa fusão criação-criador é a socialidade porque expressa a alma do povo Maxakali ao partilhar a sua invenção originada no seio de uma coletividade e voltada para essa coletividade. A obra de arte depende muito do julgamento da coletividade do grupo e os temas apresentados surgem das expectativas apontadas no plano comunitário.
A estética é a expressão do pensamento cosmológico Maxakali ao versar sobre as questões da beleza e da arte em conjunção com as práticas e vivências do cotidiano e com as especulações sobre o cogito.
O fenômeno estético é definido pela presença da noção de belo, do prazer sensorial, da alegria, do entusiasmo e da transformação. Por isso as ações e criações humanas sociais e individuais são consideradas como uma experiência estética. Essa experiência perpassa pelo processo de apreciação e internalização onde as imagens são vivenciadas e transformadas motivando a catarse no seio de seu universo percebido e construído.
As idéias que os indivíduos possuem, sobre o processo de elaboração do desenho e o conteúdo nele expresso, revelam o seu conhecimento perceptivo e imaginativo. A imagem é portadora de sentidos. É o ponto de partida na produção de uma poética visual própria. A escrita e o desenho são parte de uma projeção corporal e espiritual.
Como a apreensão do mundo se dá pela corporeidade, a sensação é estética, visto que ela encerra um equilíbrio e um ritmo, tanto na gestualidade quanto na apresentação das imagens. Nesse momento há uma interação com o mundo, de interiorização e apropriação, favorecendo a realização e a possibilidade de construção do fazer artístico.
A arte pessoal e ao mesmo tempo coletiva é inédita, pela sua originalidade contida na inovação e continuidade de conservar os princípios de uma tradição. Essa característica, pessoal e social, é de complementaridade, não podendo ser interpretada separadamente. As considerações filosóficas e ontológicas da comunidade são concebidas a partir da coincidentia oppositorumn entre alma e ser, homem e cosmos, numa perspectiva dialógica.
Diálogo presente em todos os momentos de conciliação dos contrários, entre o céu e a terra, a alma e o corpo, o feminino e o masculino, o sensível e o inteligível, entre os humanos e os outros seres. No contexto dessas afetividades e das lógicas que regem as trocas entre seres que partilham de uma mesma condição e seu alter, é que se organiza e se ordena o cosmos social.
Um dos locus onde essa prática se concretiza é a escola, instituição que representa um dos condutores de políticas do Estado. O Estado se faz presente por meio de órgãos como a FUNAI, FUNASA, SEE/MG, IEF/MG e UFMG. Todos esses órgãos exprimem o poder e a força de quem os mantém sob controle e dependentes de uma autoridade investida pela coerção no que se refere a resolução de problemas e reivindicações coletivas.
Ainda prevalece na estrutura do Estado uma relação dual e dicotômica, em meio à crise que assola a modernidade, que reclama a inclusão e o papel do terceiro. A noção de terceiro demonstra o aspecto deflagrador da diferença, é aquele que abre para o infinito e para a sua ordenação. Para que tal ocorra urge uma nova postura do Estado, das organizações públicas no sentido de qualificar seus mecanismos de interpretação da realidade posta e de ampliar as suas capacidades de adaptabilidade frente a esse fato.
A ação comunicativa ainda é bem demarcada pela objetividade, pela normatização e pelo pragmatismo. O movimento para dirimir essa distância tem ocorrido no âmbito das políticas públicas no campo da saúde e da educação. O caso da educação ganha destaque pela oportunidade de absorver a lógica do outro para a exercitação do diálogo.
A escola é palco dessa dialogicidade e também de conflitos entre saberes e concepções de dois universos. Nesse ponto de intersecção, o "governo" marca a sua presença por meio de ações executadas por seus múltiplos representantes que pretendem atender as demandas requeridas pela comunidade Maxakali.
A maior parte das aldeias possui a sua escola, centrada na figura do professor. Os professores são os responsáveis pelo funcionamento e gerenciamento da escola. Em boa medida, no afrontamento de presença, ser com o Outro no mundo, vão se constituindo debates, discussões, distúrbios e acordos na vida em comunidade.
A exemplo do que ocorre também na sociedade ocidental a educação escolar no âmbito da realidade Maxakali está bastante desacreditada. A escola emanava um ideário de sucesso e bem estar social propagado no imaginário do grupo, sendo pauta de inúmeras negociações com os representantes do Estado. Com esse ideário, a comunidade se organizou para receber a escola e todo o aparato que envolve a educação escolar indígena.
Não obstante, os anseios e desejos de melhoria de bem estar social não foram contemplados por essa via. De modo que ocorreram muitos conflitos e discussões internas sobre as questões que envolviam a escola e o professor. Muitas intervenções foram realizadas por meio de agentes da Secretaria de Educação e consultores da UFMG no sentido de dissolver as contendas e buscar soluções alternativas para a resolução dos problemas suscitados.
A escola e a educação escolar indígena ainda permanecem como reivindicação do grupo para a sua manutenção e ampliação, porém com expectativas distintas daquelas postas anteriormente. É nesse ponto que a intersubjetividade do pensamento dialógico Maxakali é fundamental para as reflexões sobre o diálogo entre culturas. O diálogo pressupõe duas perspectivas de mundo, que no caso específico, são assimétricas e incomensuráveis. A indagação colocada é se o diálogo seria a abertura para a colocação das incompatibilidades culturais.
Levando em consideração que todos são sujeitos e que a comunicação não perpassa apenas a verbalização, mas outras formas de linguagem, arrisco a dizer que é possível, mas não como forma de aceitação das diferenças, uma vez que no cerne do próprio discurso de aceitação está implícito o tratamento desigual, e sim conferindo autonomia de seu modo de existência, embora distinto localizado no mesmo patamar.
Como visto a arte Maxakali sintetiza a sua filosofia, pois a concepção do mundo gira na fusão de contrários que se interpenetram e formam um terceiro ou múltiplos. É uma sociedade coimplicativa, em que a razão está calcada na afetividade. Essa compreensão, no sentido hermenêutico, dos sentidos da realidade existente que transcorre pela dialogicidade na mediação dos contrários.
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* Doutoranda pela Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo, orientada pelo Prof. Dr. Marcos Ferreira dos Santos. E-mail: lumonteirooliveira@hotmail.com