1Educação em saúde: construindo uma pedagogia do cuidado na escola públicaA escola no sistema sócio-educativo do Rio de Janeiro author indexsubject indexsearch form
Home Pagealphabetic event listing  





An. 1 Congr. Intern. Pedagogia Social Mar. 2006

 

Contemporaneidade, subjetivação e agressividade: para compreender o desejo em adolescentes infratores

 

 

Luiz Cláudio Bido1

 

 


RESUMO

O trabalho analisa material produzido em oficinas pedagógicas com adolescentes em liberdade assistida da FEBEM (Fundação para o Bem-Estar do Menor) de São Paulo. Tal material inclui especialmente letras de RAPs compostas pelos adolescentes durante os encontros ocorridos no Centro Universitário FMU. A análise do material produzido foca-se no estudo da compreensão epistemológica dos atos infracionais adolescentes, da relação da sociedade com esses atos infracionais e da visão social sobre esse grupo de adolescentes. Analisa, também, como os elementos da contemporainedade, entre eles, o consumo, o narcisismo e a violência, interferem na constituição da subjetividade dos adolescentes infratores. Essa discussão abarca também a questão do desejo e da relação com a figura paterna como constituintes subjetivos envolvidos no ato infracional.

Palavras-chave: Febem; liberdade assistida; ato infracional; adolescente; contemporaneidade; educação não-formal.


 

 

1 – Objetivos do trabalho

Em síntese, esse trabalho buscará compreender:

a) o processo de subjetivação do adolescente infrator, compreendendo a agressividade como resposta à frustração das demandas de consumo da sociedade hipermoderna;

b) a relação desse adolescente com os desafios da contemporaneidade e as respostas possíveis de serem dadas por ele, como expressão de sua cultura e de sua subjetividade.

 

2 – Problema

Nossa tese parte do princípio de que, no ato infracional, subentende-se um projeto de subjetivação, uma constituição marcada pela fruição do desejo e pela elaboração dos modos de realização do desejo no mundo contemporâneo. Na medida em que remete ao fato de que o adolescente compartilha, com a humanidade, a condição humana, a temporalidade e o espaço, ele deve, portanto, compartilhar também de uma organização psíquica semelhante aos demais seres humanos, e característica da espécie da qual faz parte. De onde se constata a obviedade de seu desejo. Entretanto, sua condição associada ao fracasso social, contemporâneo e globalizado, reserva-lhe uma humanidade claudicante, uma temporalidade intermitente e um não-espaço periférico, sede dos medos sociais, vizinho indesejado e centro de torturas e inadequações jurídicas, psicológicas e pedagógicas.

 

3 – Justificativa

A insistência em ignorar o adolescente infrator como ser desejante marca seu processo de subjetivação e descortina os constituintes narcísicos da sociedade contemporânea. Por um lado, o adolescente contrasta sua realidade cotidiana e periférica com as imagens hipermodernas do consumo, da felicidade limpa e perfumada dos adolescentes de propaganda, das carreiras milionárias da t.v. e feitos heróicos dos campos esportivos, deseja a moda e o andar na moda, deseja ser belo e limpo e inteligente, num existir narcisista, justificado pela própria condição de adolescente. Por outro lado, a sociedade contemporânea não consegue encontrar um lugar para esses narcisismos mal-ajambrados. Para ela, os adolescentes infratores são a constatação de uma falha, são o impedimento para a realização de uma sociedade equilibrada e limpa. São uma ameaça a seu próprio delírio narcísico. Deprivados de sua condição ideal, ambos – adolescentes e sociedade – engalfinham-se num acesso de agressividade cujo objetivo é a eliminação do Outro, daquilo que impede a realização narcísica.

 

4 – Embasamento teórico-metodológico

Esse trabalho procurou analisar o fenômeno dos adolescentes infratores a partir das produções recolhidas em encontros realizados no Uni - FMU, em São Paulo.

Procurou ver como a concepção em torno dos adolescentes infratores baseia-se, muitas vezes, em conceitos epistemológicos inadequados, que resultam em intervenções igualmente inadequadas. Nesse ponto, o trabalho fundamenta-se na epistemologia foucaultiana2.

Num segundo momento, analisou-se como o fenômeno dos adolescentes infratores relaciona-se com a pós-modernidade, com a questão do consumo e da performance, e a relação entre esses elementos e a questão do desejo. Nesse ponto, o diálogo se deu com Lyotard3, Lipovetsky4, Lasch5 e Sennet6.

Finalmente, procurou-se compreender o fenômeno da agressividade sob o ponto de vista da psicanálise. A teoria lacaniana7 a respeito foi o referencial.

Os estudos teóricos dos autores citados acima foram os instrumentos utilizados para a análise e compreensão do material recolhido nas oficinas pedagógicas com adolescentes infratores em liberdade assistida.

 

5 – Metodologia de pesquisa

Esse trabalho analisa a produção de jovens infratores em regime de semiliberdade, elaborada durante oficinas pedagógicas realizadas no Uni - FMU, universidade da cidade de São Paulo. Essas oficinas realizaram-se durante o período de um ano e meio, dos meses de Março de 2004 a Julho de 2005, e delas participaram diferentes grupos de meninos e meninas, com faixa etária variável entre 14 e 19 anos. Devido à sua condição institucional (quando na universidade, estavam sob a responsabilidade tutelar de uma instituição religiosa), não foi possível um registro detalhado concernente a dados pessoais dos adolescentes, de forma que esse trabalho se restringirá à análise do material produzido nas oficinas e organizado pela equipe de estudantes envolvidos no projeto. O material disponível consiste de:

1 – Convênio firmado com a instituição Três Corações, responsável tutelar pelos adolescentes atendidos no projeto do Uni - FMU;

2 – Projeto elaborado pelas professoras Maria Bernadete G Carbonari e Ana Pauloa M Tortorelli, para atendimento dos adolescentes;

3 – Relatório dos atendimentos efetuados em 2005;

4 – Material produzido pelos adolescentes nas oficinas;

5 – Fotos das oficinas.

O conjunto acima constitui o portifólio de documentos analisados nesse trabalho.

Como ferramenta, a Psicanálise abrirá os caminhos da compreensão, uma vez que se pretende o entendimento dos processos subjetivantes implicados na condição de privação parcial da liberdade. O viés da psicanálise será constituinte da análise inicial sobre a contemporaneidade e sua relação com a subjetividade dos adolescentes em liberdade assistida e semiliberdade. Nesse ponto, o objetivo será descrever as mudanças na constituição subjetiva, desde a modernidade até o evento hodierno chamado hipermodernidade. A seguir, a análise estará voltada para os meandros da agressividade como forma contemporânea de expressão da subjetividade e, especialmente, como caminho de constituição do sujeito no mundo. Finalmente, o ocaso da função paterna e as manifestações inerentes a esse processo serão analisados.

 

6- Resultados

Na teia de significados que constitui o mundo, e que se nos oferece à leitura, a conveniência atrai elos distantes e esses podem ser unidos na ampla e encadeada sintaxe, da qual depende totalmente nossa sensação de segurança.

Entretanto, os adolescentes infratores são inconvenientes.

Não encontramos lugar para eles no sentido do mundo. Sua sintaxe torta e explosiva torna impossível a leitura dos textos que nos apresentam. No noticiário de t.v., as notícias de rebeliões, fugas e assassinatos cometidos por adolescentes aproximam-nos das páginas policiais. Vã tentativa da convenientia de encontrar um lugar para eles. E eles se rebelam, gritam, explodem e incendeiam, afirmando com violenta veemência não aceitarem o elo que lhes coube na corrente social. Nossa questão nem é desconhecer a justiça da rebelião impetrada. Nossa consciência sabe que não deveríamos tratar nossos jovens dessa maneira. Nosso mal-estar vem do fato de que notícias das FEBENS deveriam estar em cadernos de educação, não em páginas policiais. A presença delas em tais contextos é a prova viva de que se trata de um elo deslocado, desencaixado, um significado em aberto, gritando contra a ordem e o sossego que tanto desejamos. Uma inconveniência.

Aí, promotor, pesadelo voltou
Chegou mais uma rima e essa aqui é um terror
Terror lá da favela, terror da zona oeste

Se liga nessa rima que essa aqui é só um teste
Um teste pra você tentar me entender
Que vida de veneno não foi feita pra você
Quem inventou as grades não sabe o que é sofrer8

O trecho acima, retirado da letra de um RAP composto por adolescentes infratores de São Paulo, enfatiza o ponto de vista da inconveniência: o promotor tem um plano para eles, ao qual, seja como for, eles não querem se submeter. A conveniência aponta para os espaços determinados e fixos, em que elos submetidos aproximam-se para formar um sentido. No caso, o ato infracional deve ser punido com a privação da liberdade. Ali, na reclusão, os elos contaminam-se com a igualdade de sua origem, com os desmazelos repartidos de sua formação escolar e familiar, e, principalmente, com a mal-ajambrada esperança de regeneração e reintegração social. Ali, a possibilidade de torná-los elos efetivos – e produtivos – da corrente social é considerada plausível. Tudo estaria correto, caso os adolescentes infratores não se tornassem inconvenientes. Mas o pesadelo voltou para aterrorizar aqueles que inventaram as grades e que não sabem o que é sofrer. Voltou para ensiná-los. Para testá-los: afinal, o que fazer com eles? Se os ignoramos – e por azar, eles sobrevivem – voltam-se contra nós em incontrolável barbárie. Se tentamos, apesar da crassa incompetência, traçar um plano mínimo de contensão da violência representada por eles, a rebelião.

Não são demônios. Se o fossem, teríamos encontrado um lugar para eles na teia de significados sobre a vida e a morte, sobre o bem e o mal. Por isso, esforçam-se os noticiários para encaixá-los em categorias das mais diversas: bandidos, coitados, demônios. Não são nada disso. São como imagens de pesadelo, deslocadas, instigantes, incômodas. Não se submetem à conveniência.

O caráter indicial da barbárie e da violência é o impedimento para que se compreenda a violência nas FEBEMs como reflexo de algo. Não se trata de refletir a desorganização social, o descuido paternal, a incompetência estatal, etc., mas de um retorno à barbárie, à desestruturação egóica fundamental, ao estado esquizóide pré-edipiano, de rompimento e desejo, de desintegração. Não é, tampouco, a emolatio, que tudo reflete, numa seqüência de espelhos. Trata-se do estado anterior à integração especular, em que não cabem imitações. A rebeldia dos adolescentes infratores, no alto dos telhados da carceragem, não é a imitação do que fazem os bandidos adultos, nem é uma resposta ou um grito à indiferença social. Antes, é loucura. Não tem um foco, um objetivo ou uma pretensão. Trata-se apenas do grito, energia liberada, catarse e medo. Não é uma revolta contra a lei (o pai, o Estado ou Deus), porque não existe a lei. É apenas um pesadelo.

Por isso, não há analogia possível para o caso dos adolescentes infratores. Vistos pela sociedade como um problema sem solução, doença sem remédio9, os adolescentes infratores não aceitam metáforas, nem mesmo essa, a da doença. Não se submetem à analogia que quer, em última análise, preservar o poder de "tornar as coisas idênticas umas às outras, de misturá-las, de fazê-las desaparecer em sua individualidade – de torná-las, pois, estranhas ao que eram."10 A analogia é recusada porque, em última análise, torna-os algo que não são, fazem-nos desaparecer. Não são coitados, nem são adultos. Não são produto, nem são consumidores. Não são marginais, nem são assistidos. Não sabemos quem eles são. No grupo atendido no Uni-FMU, alguns adolescentes não poderiam ser classificados como pobres, alguns tinham família estável, alguns comunicavam-se muito bem, alguns tinham estudado. Outros, porém, eram analfabetos funcionais. A dificuldade está em olhar para eles e vê-los como eles realmente são, porque, para nós, a analogia é uma tentação quase inevitável. Queremos (desejamos) que eles sejam algo compreensível, submetido à cadeia de assinalações que suportam nossos vínculos sociais. Eles, por outro lado, recusam as similitudes que desejam alterar sua condição, sem, no entanto, compreendê-la e aceitá-la. Recusam essa condição de deixar de ser quem são para serem idênticos a todos, massa homogênea, reduzida à morna figura do Mesmo.11

Hoje é diferente, crianças não brincam mais
Não pensam em ir pra escola, só desrespeitam os pais
A educação que é boa deixaram bem de lado
Vale mais andar no perigo do que ser de bom grado.12

A quadra acima é o trecho de um samba, criado por adolescentes infratores em oficinas pedagógicas. A princípio, parece ressaltar valores antigos, que se perderam, e que poderiam resgatar novas atitudes. Há, porém, o verso final, que nega essa interpretação e é categórico: "vale mais andar no perigo do que ser de bom grado".

Aceitar o que é de bom grado, é aceitar o lugar que se quer impor. É aceitar o lugar determinado na cadeia de elos sociais. É estabelecer uma relação, ao mesmo tempo plausível e asséptica, de analogia massificante. Frente a essa opção, vale mais andar no perigo. A opção pelo fio da navalha, pelo limite periférico, pela exclusão. O contrário seria repetir os valores burgueses: ir para a escola, respeitar os pais, encarar a educação como acesso à salvação social.

Por um lado, esses valores não implicariam numa igualdade social: não é o caso de ter acesso à gama de direitos de cidadania, como qualquer pessoa: a educação é de baixa qualidade, os membros da família estão desempregados, o bairro em que se nasce é uma favela, a criminalidade ronda. Por outro lado, são valores superados, que não têm mais espaço na mentalidade hipermoderna. O que não querem aceitar de bom grado é ser objeto dessa analogia: eles são seres humanos como qualquer um, apenas mais pobres ou mais rebeldes. "Eles são gente também, são seres humanos como nós". Se fossem, "todas as suas partes se sustentariam e se comunicariam entre si sem ruptura ou distância, como elos de metal suspensos por simpatia à atração de um único ímã".13 O problema está no fato de que aquilo que eles mais rejeitam é esse mesmo imã social, que quer submetê-los a uma compreensão apaziguante. O pesadelo voltou.

Resta, porém, a simpatia. E a antipatia. Para nós, último reduto das similitudes, última esperança de encontrar um lugar significante para a experiência da contravenção. Trata-se de um par de figuras tão díspares e tão eqüidistantes, que no intervalo entre ambas, tudo cabe. Não haveria, portanto, como recusar um significado para os adolescentes infratores no espaço entre a simpatia e a antipatia. Em última análise, cada um de nós estaria apressado em anunciar a própria simpatia ou antipatia a eles.

A identidade das coisas, o fato de que possam assemelhar-se a outras e aproximar-se delas, sem, contudo, se dissiparem, preservando sua singularidade, é o contrabalançar constante da simpatia e da antipatia que o garante. Explica que as coisas cresçam, se desenvolvam, se misturem, desapareçam, morram, mas indefinidamente se reencontrem; em suma, que haja um espaço (não, porém, sem referência nem repetição, sem amparo de similitude) e um tempo (que deixa, porém, reaparecer indefinidamente as mesmas figuras, as mesmas espécies, os mesmos elementos).14

O par simpatia/antipatia vem para nos salvar. Os que são simpáticos à causa, aproximarão os adolescentes infratores da educação e da retomada dos valores familiares tradicionais, para, dessa maneira, encontrar abrigo social à idéia de que, com educação e amor, tudo se constrói. O pensamento de grupos religiosos mais liberais e ONGs sócio-educativas encontrariam nesse grupo um espaço de referência. Os que são antipáticos aos adolescentes, buscariam no pensamento conservador os argumentos para sejam eliminados, extirpados ou tratados, como a uma doença. Mas, fosse como fosse, uma leitura qualquer seria possível, afinal, essa é a função, na extensa teia das similitudes, da simpatia e da antipatia:

Todo o volume do mundo, todas as vizinhanças da conveniência, todos os ecos da emulação, todos os encadeamentos da analogia são suportados, mantidos e duplicados por esse espaço da simpatia e da antipatia que não cessa de aproximar as coisas e de mantê-las à distância. Através desse jogo, o mundo permanece idêntico; as semelhanças continuam a ser o que são e a se assemelharem. O mesmo persiste o mesmo, trancafiado sobre si.15

Os adolescentes acompanhados nesse trabalho demonstram a preocupação em jogar o jogo. Têm noção de que cada lance efetuado durante seu período de liberdade assistida pode alterar o resultado do jogo. E o resultado do jogo não é, necessariamente, sua reintegração à sociedade. A prática mostra – e eles sabem disso – que o índice de reincidência entre adolescentes infratores da FEBEM é muito alta. O resultado esperado é outro. Entretanto, nem cabe aqui aprofundamento na questão dos resultados esperado e alcançado. Mais interessante é observar como a representação social aproxima-se de uma performance esperada. Dentro do grupo, parecem se comportar de maneira ensaiada, tratam a todos os professores e monitores por senhor e dificilmente se permitem uma manifestação com autenticidade. Suas respostas são rígidas, estruturadas e soam como treinadas. São respostas como ecos de discursos várias vezes proferidos. Discursos que parecem querer substituir, numa apropriação mimética, a subjetividade de cada garoto ou garota.

Lasch16 acredita que o narcisismo é a melhor forma de luta em condições de igualdade com as tensões e ansiedades. Mesmo quando aponta a trivialização das relações pessoais como característica do narcisismo contemporâneo, o autor justifica a superficialidade como uma forma de se manter intacto frente aos conflitos da vida cotidiana.

Não é de se espantar, portanto, que os adolescentes atendidos no Uni-FMU tenham se apresentado distantes e ou formais, alheios às propostas e defensivos. Essa atitude pode ser considerada uma defesa frente a um ambiente percebido como hostil.

Paralelamente, a esfera social aponta para o indivíduo contemporâneo um modelo mercantil de relacionamento, baseado exclusivamente em trocas. Através dessas trocas, o indivíduo marca sua forma de ser dentro das relações sociais: o que tem e o que pode dar, o que quer receber e o que lhe falta. Parece-me que a privação da liberdade e a situação em que os adolescentes infratores encontram-se impede sobremaneira essas trocas. Nesse sentido, ficam privados de se constituírem como seres individuais e sociais, pois a forma de constituição (nesse caso, as trocas – ou, como se verá adiante – o consumo) não está acessível a eles.

Além disso, a percepção social fica fortemente comprometida, uma vez que, para os indivíduos de um grupo, conhecerem-se é um pressuposto fundamental para o funcionamento social, especialmente porque as ações de cada um dentro do grupo devem ser justificadas pelos traços de personalidade individual. Entretanto, há processos imobilizadores que impedem o conhecimento profundo do outro e de sua personalidade. A tarefa de atuar em grupo, portanto, fica impossibilitada porque girará em falso, em torno dessas premissas narcísicas. O resultado é o declínio da experiência pública e a supervalorização da experiência pessoal, individualizada.

Abre-se aí um campo importante para a performance como fator social. Um indivíduo vale não pela personalidade que é, mas por aquela que representa. Cada vez mais os papéis ganham importância social. O indivíduo que não consegue satisfazer-se com suas experiências pessoais procura, ao menos, fazer bem um papel que julga ser o seu.

O grupo de amigos surge entre os adolescentes infratores acompanhados no trabalho do Uni-FMU com grande destaque de importância. O grupo não é considerado sociedade, pois é mais concreto, protetor e confiável que aquela. Os amigos são irmãos, manos, em quem a confiança incondicional estará sempre depositada. Trata-se da frátia, instância criadora dos discursos identificatórios de amizade. Os manos formam o regime de irmãos, diferentes do opressor regime patriarcal. Na fraternidade, vale a lei do mais fraco. Trata-se de uma nova estrutura, um novo lugar de identificação.17 Esse novo lugar aparece com destaque nos versos criados pelos adolescentes durante as atividades. Foram cantados na forma de RAP:

"Somos cinco jovens, aqui é só união
Logo mais vamos sair da solidão (...)
Cinco jovens sangue bom
Que é considerado pelos irmãos"18

Outro exemplo:

"Eu vou finalizar, não somos rimador,
Mas vamo improvisando e pra finalizar
Esse salve eu vou mandar
Pros mano lá da Penha
E também do Mandaqui
E os mano lá do Brás
Tá chegando aí (...)"19

Essas manifestações são uma forma de negar ou opor-se à lei do mais forte, representada por toda a hierarquia paternalista (o pai, o professor, o chefe, o policial, o Estado, etc.). Opõem-se, portanto, à figura do pai autoritário, monopolizador, frente ao qual se tornam impotentes, marginalizados e imóveis.

Lacan20 afirma que a agressividade é uma experiência subjetiva. Torna-se sujeito de várias maneiras, também através da agressividade. É possível constituir a subjetividade reconhecendo-se como alguém agressivo, ou que agiu agressivamente ou que tornou capaz de agredir.

O tormento representado pela agressividade fica marcado no próprio corpo do homem: piercings, esfoliações, tatuagens, incisões, circuncisões. Também se manifesta em outras práticas sociais: cinema, tv, livros, fotos, Internet, etc. São variados os canais que nos lembram de que nosso caráter agressivo faz parte de nosso processo de identificação.

Uma sociedade agressiva – e agressora – também se torna alvo da agressividade, porque legitima a ação violenta como substituta do diálogo e da compreensão. Por um lado, a agressividade externalizar os maus objetos internos de cada um (ausência paterna, deprivação, frustração frente aos desejos consumistas e narcísicos, etc.). Essa elaboração enviezada da agressividade transforma a sociedade no duplo do agressor, aumentando o nível de angústia a patamares incontroláveis, seguindo o processo agressividade – internalização da agressividade – transferência da agressividade – angústia.

Dessa forma, vê-se que a agressividade toca tanto ao eu quanto ao objeto, interferindo nos atributos de permanência, identidade e substancialidade: a criança que bate num colega justifica-se dizendo que bateram nela.21 Tal constatação aponta-nos a agressividade em seu caráter espectral, imagético, esquizofrênico e sua relação com os agressores.

Obviamente, pode-se discutir muito sobre a forma de tratamento dada aos adolescentes infratores e se esse tratamento é uma ação desencadeadora da agressividade dos adolescentes, ou, ao contrário, é uma reação à agressividade inata daqueles adolescentes. Seja como for, a inserção deles numa sociedade agressiva, irresponsável e distante não pode ser o ponto de partida para uma atitude menos agressiva por parte deles. A relação especular fica clara: adolescentes e sociedade são agressivos e se vêem representados, cada um deles, na agressividade e violência do outro. Sentem-se justificados em suas atitudes violentas pela atitude violenta do outro.

Num patamar mais profundo, os adolescentes infratores e sua atitude violenta e agressiva estão inscritos no desejo social pela violência e agressividade. Não tenho dúvidas de que há uma construção social do adolescente infrator. Essa construção se dá pelo viés do delírio paranóico da sociedade contemporânea. E nessa relação, marcada pela desordem interna de cada uma das partes, ambos – sociedade e adolescentes infratores – constituem-se mutuamente.

Nota-se tal questão na letra do RAP abaixo:

Aí, promotor, pesadelo voltou
Chegou mais uma rima e essa aqui é um terror
Terror lá da favela, terror da zona oeste
Se liga nessa rima que essa aqui é só um teste
Um teste pra você tentar me entender
Que vida de veneno não foi feita pra você
Quem inventou as grades não sabe o que é sofrer
Se liga no refrão – é o Boião que vai dizer –
Sobreviver na favela tem que ser
É só ter humildade que você vai entender
Entender que a vida não é assim
Eu quero bem pra você e para mim
Quem inventou as grades não sabe o que é sofrer
Essa é a rima que eu mando pra você
Não tente me entender e sim compreender
Não é tudo que se quer que a gente pode ter
Sou lá do FM – Francisco Morato –
Mais um dos bairros humildes da zona oeste de S Paulo
Tou começando agora, mas não estou sozinho
Comigo, aliados, inclusive o Neguinho.
Sobreviver na favela tem que ser
É só ter humildade que você vai entender
Entender que a vida não é assim
Eu quero bem pra você e para mim22

Será preciso, por outro lado, discutir o ressentimento. Esse sentimento arcaico de ciúme e frustração está nas coordenadas psíquicas e somáticas da agressividade. Sentimentos de inferioridade e medo do despedaçamento da identidade e da estrutura narcísica estão, também, associados ao ressentimento e, por conseguinte, à agressividade.

O ressentimento ligado à frustração e ao medo permeia as relações entre a sociedade e os adolescentes infratores. Da primeira, o ressentimento liga-se à ferida narcísica oriunda da agressividade violenta dos adolescentes contra o sonho de bem-estar social. Os segundos, devido a se verem exatamente como a chaga social, a ferida aberta, o que não deu certo no sonho da sociedade ideal.

Nota-se nas observações dos adolescentes infratores sobre a sociedade:

"Observo que há muita coisa errada na sociedade."
"Faço guerra com a sociedade."
"Sinto ódio da sociedade."
"Sinto muito não poder fazer nada no mundão."
"Não sei muito bem o que é uma sociedade"
"Penso em melhorar a sociedade, quero coisas boas, não faço nada, não sinto nada, observo coisas ruins."
"Sociedade vale nada."
"Sinto ódio"
"Sinto que a sociedade está distante."
"Penso que a sociedade está cada vez pior."23

Freud24 afirma que o presente é uma experiência ingênua. O presente necessita tornar-se passado para produzir sentido. Eis o porquê do distanciamento. Entretanto, a hipermodernidade é o tempo do futuro. Nem o presente, nem o passado. Nada de análise ou compreensão da realidade, mas o futuro acelerado, mergulhando-nos na cadeia dos desejos em seqüência.

Emergindo nessa experiência de ânsia do futuro, do bem-estar a ser alcançado, do desejo que não se realiza, a experiência dos adolescentes infratores em liberdade assistida parece querer negar o fluxo acelerado em direção ao futuro. Parece querer afirmar o tempo todo que algo no nosso presente precisa ser corrigido, compreendido, resgatado. E esse algo exigiria um mergulho profundo em feridas do passado, às quais já gostaríamos de ter esquecido. Temos pressa em achar uma solução para o caso da delinqüência juvenil, mas não temos tempo de nos voltarmos ao passado que poderia explicá-la. Queremos resolver isso tudo, porque o futuro nos seduz e nos convoca. Mas, "o pesadelo voltou", como anuncia o rap produzido pelos adolescentes. O pesadelo voltou para indicar que ainda devemos resgatar algo do nosso passado, algo que está prestes a voltar para nosso tormento.

As restrições sociais representam privações que não podem, muitas vezes, serem internalizadas. O trabalho humano gera riquezas, mas estas não são compartilhadas. A hostilidade representada pelas atitudes violentas é uma forma ataque à cultura de exclusão e aos postulados culturais em que ela se baseia. Se nós construímos o Ideal de nossa civilização, se somos nossa cultura, nossa história, é óbvia a natureza narcísica dos valores culturais que cultivamos. Um ataque a essa cultura é um ataque sentido como pessoal, um ataque aos nossos valores e tradições. Um ataque ao nosso narcisismo, portanto.

Dessa forma, os adolescentes infratores buscam encontrar espaço cultural que os considerem como participantes. Em última análise, querem compartilhar do sentimento de bem-estar derivado do reconhecimento narcísico dos valores culturais e sociais.

Ao serem excluídos dessa possibilidade, sentem-se feridos em seu narcisismo. Sentem-se excluídos e rejeitados. Num primeiro momento, buscam satisfações substitutivas, como a arte (o rap, o hip-hop, por exemplo) ou a identificação com os grupos (como no caso das tribos urbanas). Num segundo momento, reagem agressivamente.

O fenômeno dos adolescentes infratores precisa ser compreendido sob todos os aspectos apresentados, para que seja possível considerar a hipótese inicial de que a infração é uma constituinte subjetiva. Em outras palavras, agressividade e performance marcam a forma de ser desses adolescentes. Compreender esses fenômenos é necessário para compreender como esses adolescentes desejam, como se compreendem, como vêem a sociedade e a si mesmos.

Apenas com a compreensão dessas dimensões é que poderemos propor intervenções mais adequadas e eficazes no trato com os adolescentes infratores.

 

7 – REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

COUTINHO, Luciana G. Da metáfora paterna à metonímia das tribos: um estudo psicanalítico sobre as tribos urbanas e as novas configurações do individualismo. In www.rubedo.psc.br (acessado em 12/05/2005).

DONATELLI, Dante. A FEBEM e as nossas doenças. AOL notícias, acessado em 11/05/2005

FIGUEIREDO, Luis Cláudio. O apelo ao pai e o pai como apelo no Brasil contemporâneo. Revista de Psicanálise. Ano XI. Número 21. 1998.

FOUCAULT, M. As palavras e as coisas. São Paulo. Martins Fontes. 1985

FREUD, Sigmund. O Futuro de uma ilusão. In Obras Completas. Imago. Rio de Janeiro. S/d.

KEHL, Maria Rita (Org) Função fraterna. Rio de Janeiro. Relume Dumará. 2000

LACAN, J. Escritos.Tradução de Vera Ribeiro. Rio de Janeiro. Zahar. 1998.

LASCH, C. A cultura do narcisismo. A vida americana numa era de esperanças em declínio. Rio de Janeiro. Imago. 1983.

_________ O mínimo eu. Sobrevivência psíquica em tempos difíceis. São Paulo. Brasiliense. 1986.

LYPOVETSKY, G. Os tempos hipermodernos. Tradução de Mario Vilela. São Paulo. Barcarolla. 2004

LYOTARD, J. F. A condição pós-moderna. Rio de Janeiro. José Olímpio. 1998

MATHEUS, Tiago C. Ideais na Adolescência: diálogo entre psicanálise e outros saberes. Revista Percurso. Número 28. Ano XV. 2002. p 77

MOSCOVICI, Serge. A representação social da psicanálise. Rio de Janeiro. Zahar. 1978.

SENNET, R. A corrosão do caráter. São Paulo. Record. 1999.

________ O declínio do homem público. As tiranias da intimidade. São Paulo. Cia. das Letras. 1988.

 

 

1 Mestre em Psicologia, pesquisador do Grupo de Pesquisa "Educação e Inclusão Social", da UniFMU, na linha "Ética, cidadania e cultura". Psicólogo, educador, bacharel em Letras. Professor da pós-graduação em Educação da UniFMU, SP. Membro da equipe de Assessoria Pedagógica da reitoria da UniFMU. E-mail: bido@fmu.br
2 FOUCAULT, M. As palavras e as coisas. São Paulo. Martins Fontes. 1985
3 LYOTARD, J. F. A condição pós-moderna. Rio de Janeiro. José Olímpio. 1998
4 LYPOVETSKY, G. Os tempos hipermodernos. Tradução de Mario Vilela. São Paulo. Barcarolla. 2004
5 LASCH, C. A cultura do narcisismo. A vida americana numa era de esperanças em declínio. Rio de Janeiro. Imago. 1983.
6 SENNET, R. A corrosão do caráter. São Paulo. Record. 1999.
7 LACAN, J. Escritos. Tradução de Vera Ribeiro. Rio de Janeiro. Zahar. 1998. p. 105
8 Uni-FMU. Faculdade de Pedagogia. RAP. Criação coletiva em ambiente pedagógico. Oficinas pedagógicas realizadas com adolescentes infratores em semiliberdade. São Paulo. 2004.
9 Donatelli, Dante. A FEBEM e as nossas doenças. AOL notícias, acessado em 11/05/2005. Nesse artigo, o autor inicia seu texto com a seguinte afirmação: "A FEBEM é uma doença no Estado de São Paulo e, até o momento, parece não haver médico capaz de tratá-la."
10 FOUCAULT, M . As palavras e as coisas. Op. cit, p. 40.
11 Idem.
12 Uni-FMU. Faculdade de Pedagogia. Velhos tempos. Criação coletiva em ambiente pedagógico. Oficinas pedagógicas realizadas com adolescentes infratores em semiliberdade. São Paulo. 2004.
13 FOUCAULT, M. Op. cit. p. 40.
14 FOUCAULT, M. Op. cit. p. 41
15 Idem.
16 LASCH, 1986, op. cit.
17 KEHL, Maria Rita (Org) Função fraterna. Rio de Janeiro. Relume Dumará. 2000
18 Letra de Rap produzido em oficina no Uni-FMU. Autores: Jéferson, Sidney, Cícero, Carlos e Leandro. (primeiro semestre de 2005).
19 Idem. Autores: Thiago, Gleidson, Roberto, Michael, Valdir.
20 LACAN, J. Escritos. Tradução de Vera Ribeiro. Rio de Janeiro. Zahar. 1998. p. 105
21 LACAN. Op. Cit., p. 116
22 RAP criado coletivamente em oficinas pedagógicas com adolescentes infratores no Uni-FMU.
23 Notas das observações feitas pelos adolescentes infratores em dinâmica realizada no Uni-FMU, primeiro semestre de 2005.
24 Freud, Sigmund. O Futuro de uma ilusão. In Obras Completas. Imago. Rio de Janeiro. S/d.