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An. 1 Congr. Intern. Pedagogia Social Mar. 2006

 

Ser educador, o que significa isso? Um estudo do sentido do ser educador para as formandas de Pedagogia, curso que hoje apresenta a perspectiva de atuação na educação informal

 

 

Maria Elisa de Mattos Pires Ferreira1

 

 


RESUMO

O estudo apresentado resultou de uma inquietação originada de minha vivência como formadora de educadores, atividade que exerço há cerca de três décadas. Nesse exercício, algumas questões ganharam importância dentre minhas preocupações: Quem são os sujeitos que buscam se tornar educadores? Como pensam? Como vivem? Por que escolheram ser educadores e como se sentem em relação a essa opção? Minha angústia cresceu à medida que refletia sobre o fato de a realidade ser destituída de existência em si, já que depende de relações simbólicas, fazendo-se conforme os significados ou sentidos que atribuímos às coisas. Tal reflexão fez vir à luz um ponto altamente importante: os futuros educadores exercerão suas profissões a partir do sentido que atribuem ao "ser educador". Movida por essas questões, em 2005, realizei uma pesquisa qualitativa, modalidade fenomenológica, sobre os significados do "ser educador" que possuíam as concluintes de Pedagogia da IES onde leciono, porque dentre as perspectivas profissionais do pedagogo, originada das novas demandas sócio-educacionais e possibilitada pela legislação vigente, está a de atuar na educação informal. Dessa pesquisa resultou o presente trabalho, cujo cerne consiste em refletir sobre como estas novas pedagogas podem contribuir para uma sociedade mais justa numa realidade em constante transformação. Como apoio teórico para a reflexão feita, tomei Anthony Giddens e autores da Sociologia Clínica, em especial Maria de Lourdes Manzini-Covre.

Palavras-chave: formação de educadores; educação não-formal; pedagogia social.


 

 

Introduzindo a questão

O texto aqui apresentado tem como intenção efetuar uma reflexão sobre o sentido que as formandas de Pedagogia de uma dada instituição de ensino superior da Grande São Paulo atribuem ao ser educador. O trabalho surgiu de uma inquietação que vi nascer e crescer em meu íntimo no decurso de minha vivência profissional, a qual pode ser expressa pela pergunta: o que significa ser educador para os alunos das diversas licenciaturas e da pedagogia? Ministrando aulas nesses cursos há cerca de três décadas, essa questão foi ganhando importância para mim. Passei a interrogar-me a respeito de quem são os sujeitos que buscam se tornar educadores, como pensam e porque fizeram essa opção.

Quanto mais eu refletia sobre o fato de a realidade ser destituída de existência em si, porque é dependente de relações simbólicas, mais crescia minha angústia sobre os significados ou sentidos que os futuros educadores atribuem à profissão que escolheram; afinal, a forma como atuarão dependerá da idéia que possuem sobre o papel do educador na sociedade atual. Foi a partir dessa inquietação que me decidi por efetuar a investigação aqui comentada.

Dentre os cursos voltados à formação de educadores, elegi o de pedagogia para realizar minha pesquisa porque, desde a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, aprovada em dezembro de 1996, este se abriu para a formação de educadores que não necessariamente atuarão no restrito ambiente escolar. Hoje, o exercício profissional do pedagogo está se ampliando e encontrando possibilidades em diferentes áreas da sociedade. Com o advento da Pedagogia Social, despontou uma nova perspectiva para o Curso de Pedagogia, voltada para a educação não formal. A ampliação do espaço de atuação do pedagogo, possibilitada pela legislação vigente, nasceu das recentes demandas sócio-educacionais. Frente a essa realidade, pergunto-me: como as futuras educadoras pensam as possibilidades de exercício profissional para a carreira que escolheram?

Movida por essas questões, em 2005, realizei uma pesquisa qualitativa, modalidade fenomenológica, sobre os significados do ser educador que possuíam as concluintes de Pedagogia de uma dada instituição de ensino superior. Dessa pesquisa resultou o presente trabalho, cujo objetivo maior consiste em trazer ao debate as novas possibilidades de atuação do pedagogo e como esse profissional poderá contribuir para a constituição de uma sociedade mais justa numa realidade marcada pela contínua transformação.

 

Contextualizando o problema

Como já explicitei, minha questão foi tomando corpo a partir de um certo mal-estar que se apoderou de mim à medida que me conscientizava de que a realidade não possui existência em si, porque depende de relações simbólicas, fazendo-se a partir dos significados ou sentidos que atribuímos às coisas. Para aplacar a angústia que ia se apoderando de meu ser, decidi-me ir a campo e investigar qual o significado que as formandas de pedagogia atribuem ao "ser educador" e quais as possíveis implicações de tais significações.

Centrei a reflexão nos modos possíveis dessas futuras profissionais poderem contribuir para uma sociedade como a nossa, em constante transformação e marcada pelas conseqüências da Alta Modernidade (GIDDENS, 1991), em que muitas pessoas se percebem desvalidas, isto é, se percebem impotentes tanto no aspecto material quanto no afetivo. Os que se vêem desvalidos, passam por um grande sofrimento porque sentem que lhes falta espaço no mundo. Hoje, tanto os indivíduos quanto os grupos se apresentam desorientados, sem saber como encaminhar adequadamente suas reivindicações, com dificuldades para lidar com os desejos tanto pessoais quanto coletivos (MANZINI-COVRE, 2004).

Com o advento da modernidade, perdeu-se o referencial dos tempos anteriores, o da pequena comunidade e o da tradição, que dava segurança às pessoas, surgindo em seu lugar as grandes organizações, caracterizadas pela impessoalidade. Nesse mundo mais recente, o indivíduo passou a se sentir inseguro e solitário, desprovido do apoio psicológico e da proteção que encontrava nos ambientes mais antigos (GIDDENS, 2002). Por outro lado, juntamente com os problemas surgidos, despontaram oportunidades desconhecidas de nossos antepassados, dentre as quais as de mudança progressiva em termos sociais e subjetivos (MANZINI-COVRE, 2003).

Entretanto, todos nós, mesmo aqueles que têm ciência das novas oportunidades e das perspectivas de transformação do status quo, carregamos a sensação de desamparo porque observamos que dia-a-dia as desigualdades vêm sendo reproduzidas e ampliadas tanto em intensidade quanto em extensão. No caso do Brasil, as políticas adotadas nas últimas décadas criaram grandes impasses nas mais diversas áreas da sociedade, dificultando aos indivíduos posicionarem-se como cidadãos (MANZINI-COVRE, 1993). Nesse contexto, pergunto-me, como as futuras pedagogas procurarão se situar enquanto sujeitos e contribuir para a constituição de novos sujeitos, conforme delas se espera?

Existir no contexto esboçado acarreta nas pessoas vários tipos de desorganização afetiva, porque muitas vezes elas sequer conseguem dar conta da vida material, ou seja, possuir um emprego ou mesmo um trabalho. Viver em tensão é a regra: há enorme insegurança quanto ao futuro, mesmo porque o desemprego tornou-se uma preocupação permanente. As políticas nacionais e internacionais têm conseguido que a concentração de renda e a pobreza cresçam em ritmo acelerado, ampliando os diferentes tipos de conflitos sociais. A insegurança afetiva nascida dessa organização político-sócio-econômica desvela-se nos relacionamentos precários e na perda de valores sociais que anteriormente se mostravam muito importantes (MANZINI-COVRE, 2004).

A tomada de consciência do que está ocorrendo em nosso mundo nos leva ao imperativo de repensarmos nossa civilização, em cujo bojo encontra-se a formação de educadores. Em tal contexto, a Pedagogia Social adquire importância inequívoca porque surge da necessidade de se atender as novas demandas sociais e das características próprias dos novos sujeitos, que as transformações sociais trouxeram à luz.

Alguns estudiosos, como é o caso de Lyotard (1985), defendem a idéia de que a modernidade já teria sido superada. Entretanto, Giddens (1991) discorda dessa posição; para ele, não é suficiente criar novas palavras se desejamos explicar o que ocorre hoje. Compartilhando do ponto de vista do segundo autor, percebo a formação de educadores inserida no espaço das contradições e exacerbações próprias da modernidade. Essa percepção justifica, para mim, que nos voltemos para a Pedagogia Social, pois, tendo as questões sociais como centro, ela investe nas possibilidades de os sujeitos agirem sobre si mesmos e com os outros, viabilizando o desenvolvimento de todos e a melhoria das condições de vida na Terra.

A Pedagogia Social apresenta-se, portanto, como uma via muito promissora para lidarmos construtivamente com os desafios sociais que necessariamente temos que enfrentar, dentre os quais está o direito de todo indivíduo poder gozar os direitos da cidadania. Teoricamente, a categoria cidadania surgiu entre os gregos, tendo sido retomada pelos intelectuais que deram suporte teórico às revoluções burguesas, especialmente a francesa. Porém, foi com as práticas revolucionárias dos habitantes das cidades que ela foi se concretizando e melhor se delineando. Para cada pensador, a cidadania se apresenta de uma dada forma. Locke e Rousseau, por exemplo, a assumiram como igualdade entre os homens, embora defendessem aspectos diversos dessa igualdade (MANZINI-COVRE, 2004). De acordo com a Carta de Direitos da Organização das Nações Unidas (ONU), de 1948, ser cidadão significa ter direitos e deveres. Hoje, numa tentativa de síntese, poderíamos dizer que a essência da cidadania consiste em se admitir a igualdade, perante a lei, entre todos os homens, sem distinção de raça, credo, cor, gênero, idade ou qualquer outro atributo particular.

Diante dessas considerações, não nos é difícil perceber que a cidadania somente poderá florescer num espaço onde haja a possibilidade do exercício pleno dos direitos civis, políticos e sociais, sendo que liberdade, igualdade, democracia e educação têm necessariamente que fazer parte dele — por isso me preocupa muito qual o significado de ser educador para as futuras pedagogas.

 

Situando a Pedagogia Social no contexto da pesquisa

Dentre as características da realidade atual, duas delas têm que ser necessariamente consideradas sempre que nos aventurarmos em algum estudo que vise compreendê-la: a primeira é a sua não-existência em si, pois desde os inícios do século XX, com o advento da fenomenologia moderna e da física quântica, somos obrigados a acatar que, de certo modo, a realidade em si não existe porque depende das relações que o sujeito estabelece com ela; a segunda característica é o seu movimento incessante ou sua transformação contínua.

Portanto, toda e qualquer reflexão séria sobre temas relacionados à Educação precisa levar em conta essas duas características. Quando nos referimos à velocidade com que a realidade se transforma, a atual situação é de tal ordem que, pela primeira vez na história, o que um estudante aprende na academia não poderá ser por ele empregado por muito tempo após a conclusão do curso que frequentou: exercer um ofício e manter-se capacitado para o mesmo tornou-se um desafio. As modificações ocorridas na realidade são tantas e tão velozes que temos de assumir que nem tudo o que os futuros profissionais aprenderão e deles será exigido durante sua formação acadêmica poderá ser claramente imaginado e planejado com antecedência (LÉVY, 1998).

Nesse turbilhão de transformações e de exigências, o sujeito se vê atordoado e fragilizado. Essa situação é muito preocupante uma vez que o ser sujeito serve de base para o despontar do sujeito-cidadão, que é o cidadão no seu nível mais elevado, ou seja, aquele que vai a público e defende direitos, movido pelo interesse da coletividade (MANZINI-COVRE, 2004). Paralelamente à fragilização do sujeito particular, "novos sujeitos" surgiram após a queda do Muro de Berlim: são os constituídos pelos movimentos sociais emergentes, como os de gênero, os de raça, os ecológicos, os que se voltam para a paz, entre outros, e recentes organizações da sociedade civil. Esses "novos sujeitos" são mais dispersos, fragmentados e imediatistas; porque necessitam se voltar para as lutas de sobrevivência, envolvem-se fortemente com as questões do cotidiano. Diríamos que são "sujeitos do e no cotidiano, que se apresentam nos sindicatos, nas igrejas, nos movimentos populares. Pelo fato de emergirem da e se inserirem na cotidianidade, ao pensarem tanto a política quanto alguma inovadora forma de sociabilidade, valorizam sobremaneira os acontecimentos (MANZINI-COVRE, 2004).

É nesse contexto que encontramos a Pedagogia Social. Ela nasceu das necessidades próprias de espaços sociais cujos contornos educativos não estão claros, o que lhes deixa, muitas vezes, à margem de projetos educacionais intencionalmente estruturados. Entretanto, a cada dia que passa as pessoas que estão presentes em tais espaços demonstram sentir a necessidade e a importância de se ultrapassar as ações espontaneístas (CARVALHO, 2003). Aos poucos, as intervenções não formais — que inicialmente se relacionavam a projetos, quase sempre desarticulados, voltados à educação popular ou a projetos assistencialistas — começaram a se transformar e incluir discussões sobre políticas sociais públicas para diferentes setores da sociedade. À medida que as discussões foram se ampliando, cresceram a participação da própria sociedade nos debates e sua iniciativa em diversos tipos de intervenções sociais, mesmo que por vezes de forma bastante limitada (MACHADO, 2002).

Refletindo sobre essas questões, concluí que procurar saber qual o sentido de ser educador para as futuras pedagogas seria academicamente relevante, uma vez que os resultados obtidos poderiam não somente iluminar com que idéias elas estariam partindo para assumir as diversas possibilidades de exercício da Pedagogia como ainda algumas implicações daí decorrentes. Os resultados obtidos também poderiam desvelar o que nós, que nos dedicamos à formação de educadores, estamos conseguindo atingir após três ou mais anos de trabalho pedagógico e, dessa forma, avaliá-lo e adequá-lo aos novos tempos.

 

Indo à coisa mesma

Quando me decidi por trazer à luz os sentidos que as futuras pedagogas atribuem ao ser educador, entendi que o melhor meio para alcançar esse objetivo seria uma pesquisa qualitativa porque a vejo como um refinamento metodológico quando nosso objeto de estudo se refere a fenômenos humanos. Graças à singularidade desses fenômenos, os trabalhos elaborados nas abordagens qualitativas costumam apresentar resultados mais significativos, quer para os sujeitos pesquisados quer para o campo do conhecimento ao qual os estudos realizados pertencem (BICUDO e MARTINS, 1989).

Dentre as modalidades de pesquisa qualitativa, optei pela fenomenológica. A escolha que fiz está intimamente à minha história de vida, porque tanto no Mestrado quanto no Doutorado em Educação, foi essa a trajetória que segui ao realizar minhas pesquisas.

Para atingir o objetivo visado, decidi efetuar uma análise dos discursos das moças entrevistadas, o que exigiu que eu me aproximasse delas e lhes solicitasse que falassem de si próprias, de suas idéias sobre a profissão que escolheram e por que a escolheram. Para trabalhar os dados obtidos, conjuguei a análise de conteúdo com a interpretação fenomenológica, cuidado que me pareceu necessário para que eu não restringisse a investigação à subjetividade do meu olhar. Entendi que o rigor próprio da interpretação fenomenológica aproximar-me-ia de forma bastante satisfatória da essência do fenômeno a ser desvelado.

Seguindo a metodologia exposta, entrevistei 33 formandas de pedagogia que, no conjunto, apresentaram o seguinte perfil: moças na faixa de 22 a 27 anos, solteiras e sem filhos, nascidas na capital de São Paulo ou no município sede da instituição de ensino superior que freqüentam; moram em casa própria, já trabalham como professoras do Ensino Básico, recebendo salários que variam entre R$600,00 e R$ 1500, 00, e custeiam sua própria formação, mas com o benefício de algum tipo de bolsa de estudos (em torno de 25 a 30% da mensalidade).

 

Os sentidos que se iluminaram

Após a realização da pesquisa, foi-me possível desvelar alguns sentidos do ser educador para as futuras pedagogas. Um desses sentidos — o que apareceu com maior freqüência — foi o de "agente de transformação". No discurso que fizeram, a transformação ora se dirigia à sociedade, ora às pessoas, ora deixava indeterminado o objeto a ser transformado.

Ao refletir sobre esse primeiro significado, preocupou-me o fato das estudantes se referirem ao educador transformador quase sempre de forma descontextualizada e individualizada. Até onde o educador pode ser pensado como um agente individual de transformação? Como é possível o educador se enxergar como alguém que busca transformar a realidade sem levar em conta o contexto no qual sua existência ocorre e sem considerar as outras pessoas com as quais convive? Como poderão atuar no campo da Pedagogia Social se esta se dirige para a área social, extra-escolar, como prática intervencionista?

Se levarmos em conta que na América Latina em geral e no Brasil em particular o pedagogo social é solicitado a participar de intervenções que envolvem programas relacionados a populações indígenas; a pesquisa participativa em ação de resgate da cultura; a participações comunitárias voltadas à identificação de programas educacionais que envolvem pais, professores e alunos; à educação popular, visando questões da terra, por exemplo; à formação política por meio de recursos e atividades educacionais, como a alfabetização e necessidades de populações marginalizadas, procurando auxiliá-las na organização e mobilização na busca de transformações de estruturas sociais e do poder do Estado (MACHADO, 2002), com que bagagem essas moças estão partindo para um possível desempenho da função de pedagogo social?

Esses questionamentos me levaram a pensar nas dificuldades dos indivíduos e dos grupos em se tornarem sujeitos quando lhes faltam as condições fundamentais para tanto. Para que um profissional da educação possa atingir o patamar de agente de transformação, será necessário um mínimo de condições materiais que lhe permita se manter como pessoa no mundo e de condições afetivas que sustentem uma identidade provisória. Estou chamando de identidade provisória, a representação que o indivíduo faz de si, e que se apresenta limitada pela sua consciência, a qual é marcada pela transformação: por se tratar de uma identidade que é revista e reconstruída constantemente pelo sujeito, cabe-lhe a adjetivação de provisória (ou em movimento).

Sem essas condições mínimas, os indivíduos ou grupos não conseguem atingir a situação de sujeitos e, portanto, não conseguirão atuar, seja individual, seja coletivamente. Contudo, ainda que essas condições mínimas sejam satisfeitas, os possíveis sujeitos terão que vencer comportamentos narcisistas para que possam exercer a reciprocidade, favorecendo certa solidariedade grupal (MANZINI-COVRE, 2004, s/p). Se eles se prenderem ao narcisismo, a uma identidade fixa, pouco poderão realizar em termos educacionais, mormente visando à transformação. Talvez, no máximo, conseguirão reproduzir o status quo.

Então, se as futuras pedagogas chegarem a ser educadoras transformadoras, terão avançado na direção de se constituírem sujeitos-cidadãos porque colaborarão para o desabrochar de uma nova realidade social. Se vierem a se dedicar à Pedagogia Social, devido à especificidade dessa pedagogia, exercerão sua profissão junto a populações que necessitam atenção e dedicação redobradas. Um dos grandes objetivos que deverão perseguir nessa condição é o da construção intersubjetiva do social, ou seja, investir esforços no desenvolvimento da responsabilidade coletiva pelas decisões que o grupo tomou e pelas ações que o mesmo decidiu implementar, de modo que a responsabilidade individual não se dilua ou até mesmo deixe de existir.

Um segundo sentido que emergiu do discurso das entrevistadas foi o de que ser educador significa ser formador. Esse significado trouxe-me o pensamento de que a crença na possibilidade de exercer uma ação profunda e global na pessoa do outro pontuará seu ingresso no mundo do trabalho. Se elas se dedicarem à Pedagogia Social, essa perspectiva poderá ser concretizada porque em uma de suas vertentes o que se busca é a formação social do indivíduo. Na verdade, essa vertente está associada ao modo clássico de se compreender a Pedagogia Social, cuja origem encontra-se na própria história da Pedagogia, isto é, refere-se à educação voltada para a vida em sociedade e que pode se realizar por meio de processos de socialização. Historicamente, encontram-se alinhados nessa concepção autores como H. Pestalozzi, H. Nohl e B. Suchodolski (QUINTANA, apud MACHADO, 2002).

Nesse ponto de minhas considerações, uma vez mais a angústia tomou conta de mim porque não notei em seus discursos a noção de que há limitações na possibilidade do educador atuar como formador. De certo modo, até mesmo por causa da ingenuidade de muitas das entrevistadas frente às exigências que costumam ser feitas ao educador, especialmente ao educador social, elas demonstraram uma certa onipotência quanto à possibilidade de formar, esquecendo-se de que muitos fatores podem limitar a atuação formadora, dentre os quais se encontram as conseqüências desastrosas da globalização da economia, que provocam nas pessoas sentimentos de desvalimento social, os quais minam sua capacidade de se constituírem sujeitos. E esse tipo de desvalimento impregna o ser tanto social quanto subjetivamente.

Então, sob o efeito de tais condições, como elas poderão formar as pessoas, os alunos, os cidadãos, conforme idealizam? Se, como nos coloca Freud (1900), o sujeito desejante se realiza nos objetos que lhe oferece o contexto social, e apenas o Desejo é capaz de colocar o aparelho psíquico em movimento, o Desejo que essas moças demonstram de ser educadoras será forte o necessário para torná-las formadoras? Estarão elas suficientemente amadurecidas para ir a público e defender direitos, tendo como fatores propulsores dessa atuação os interesses da coletividade e a ética? E como os cursos de formação de educadores poderão atuar para reforçar o Desejo que possuem os estudantes no sentido de se tornarem formadores e superarem essa ingenuidade inicial?

Essas questões levantadas não dizem respeito a problemas individuais, relacionados a uma pessoa ou outra, porque a dificuldade em constituir-se sujeito-cidadão não é algo que esteja afetando os indivíduos de forma particular: é algo que está atingindo a sociedade indiscriminadamente. São as pessoas e os grupos de forma geral que se percebem desvalidos, o que os leva a perder o rumo de seus sonhos, ideais e reivindicações.

Um terceiro sentido que emergiu das falas das alunas e que decidi trazer à reflexão é a de ser o educador um exemplo para o educando.

É inegável que a aprendizagem por identificação é uma realidade universal. Em não poucas ocasiões, quem educa é percebido como um paradigma a ser seguido. É comum ocorrer de alguém na situação de educador se colocar, intencionalmente ou não, como modelo para aqueles com quem convive. Seja lá como for, um educador não poderá adquirir credibilidade se não observar e incorporar aquilo que pretende assimilado ou realizado por outros. A título de ilustração podemos imaginar o caso de quem esteja envolvido com programas de educação não formal, enfocando questões ecológicas ou culturais; de que modo poderia essa pessoa se isentar de ser exemplo? Contudo, sabemos que se ela se sentir um sujeito desvalido, apresentar-se-á como um ser regredido, exibindo uma imagem infantilizada de si mesma. Como ocorrerão, em tais condições, as identificações? Será esse o modelo que os educandos terão de um cidadão?

A possibilidade de se construir a cidadania depende da ação dos sujeitos e dos grupos sociais em conflito, tanto quanto das condições gerais da sociedade. Por isso, o indivíduo ou o grupo que se sente desvalido, que se apresenta regredido ou toma a posição de vítima está impedido de alçar à posição de sujeito e, conseqüentemente, de sujeito-cidadão. Em tal situação, quem assim se percebe até poderá chegar a ser um profissional responsável e interessado, mas isto não significa que essa pessoa avance até o nível de um sujeito-cidadão. É nesse ponto que novas preocupações despontaram para mim: pode até ser que as futuras pedagogas entrevistadas por mim cheguem a viver de forma irrepreensível o que legalmente se propõe à profissão que escolheram, mostrem-se responsáveis em tudo o que realizarem, porém, essa situação não será garantia de que atingirão o que esperamos, isto é, o nível de sujeitos-cidadãos. Como então poderão formar os futuros sujeitos-cidadãos, conforme imaginam?

Que contribuição quem se sente desvalido poderá oferecer para as populações mais necessitadas de nosso país? Como essas moças, dentro do contexto da Pedagogia Social, lidarão com a alteridade, com a subjetividade do próximo, se sentirem desvalorizadas, regredidas ou vítimas? Poderá o Desejo que carregam de ser educador" impulsioná-las a vencer os obstáculos que encontrarão e que serão muitos e às vezes quase intransponíveis?

Nesse ponto de meus questionamentos, entendi que a chave para a transformação social tão necessária está na subjetividade. A existência do sujeito-cidadão depende da subjetividade. Por isso, os cursos que se dedicam à formação de educadores precisam se voltar para a constituição das subjetividades de seus alunos.

 

A título de conclusão....

Diante das representações que se desvelaram das falas das formandas de pedagogia que entrevistei, foi possível constatar que elas não apresentam dúvidas quanto à importância social do educador. De forma implícita ou explícita, expressaram que esse profissional ocupa na sociedade a função de um agente de transformação — e seria este o principal motivo da escolha profissional que fizeram.

Embora não tenham declarado textualmente que optarão por uma atividade especificamente da Pedagogia Social, em vários momentos colocaram suas preocupações quanto às questões sociais. Percebi nas entrelinhas do discurso que fizeram que, se vierem a ser um Educador Social, sabem de que sua função diverge da que cabe ao Trabalhador Social, porque demonstraram estar cientes de que o primeiro atua no campo de intervenção sócio-educativa enquanto ao segundo compete a assistência social, e o que desejam para si é o primeiro percurso.

Ao concluir a pesquisa, ficou claro para mim que elas possuem Desejo de se tornarem sujeitos-cidadãos, e estão inclusive procurando atuar como sujeitos; vejo-as como sujeitos-em-constituição, tentando agir como autoras e buscando a transformação da sociedade, mesmo que ainda não se percebam claramente dessa situação. Por atribuírem o significado de "formador" ao educador, tendem à busca de reconfiguração de saberes — foi isso que eu pude captar de suas colocações.

Porém, no meu entender, as futuras pedagogas, para se tornarem de fato formadoras, terão que investir na elaboração de afetos próprios para que possam interferir em situações que envolvem afetos alheios, isto é, daqueles com os quais estarão profissionalmente comprometidas. Esta é uma condição necessária para que surjam novas formas de subjetivação e conseqüente organização pessoal. Como nos coloca Manzini-Covre (2004), é esta a parte invisível da constituição da cidadania.

Ao finalizar (provisoriamente) o trabalho a que me propus, percebo que os resultados que obtive representam uma ponta ínfima de um iceberg. Há ainda muitíssimo por desvelar em relação ao que pensam os futuros educadores sobre a profissão que exercerão. Será por meio de estudos desse tipo que poderemos encontrar os pontos frágeis da formação de educadores e, dessa forma, investir na melhoria dos cursos nos quais trabalhamos. Penso que outros estudos nessa direção devam ser realizados, aprofundando as reflexões aqui apresentadas e abordando outros pontos que nesta primeira investida permaneceram na sombra.

Entendo, também, que precisamos pensar de modo sério e competente sobre os rumos do curso de Pedagogia em nosso país. Trata-se de um curso que carrega consigo questões altamente conflitantes, havendo o risco ser oficializada a fragmentação do trabalho do pedagogo. Sabemos da necessidade de incluirmos no curso as novas possibilidades de atuação do profissional que ele forma, não mais a restringindo ao espaço escolar, mas isto tem que ser feito sem que haja fragmentação do curso, da formação dos educadores e do exercício profissional dos mesmos. Fica-me evidente o caráter interdisciplinar quer da formação quer da atuação do pedagogo. Quanto mais nossa sociedade se complexifica, mais os novos profissionais terão que agir em equipe, contracenando com outros profissionais, de diferentes áreas; somente assim a educação poderá ocorrer e o trabalho social também. Os desafios atuais exigem que trabalhemos em equipes, para que projetos possam ser viabilizados.

 

Referências Bibliográficas

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1 Docente atuante na UNIFIEO, é orientada pela Profa. Dra. Maria de Lourdes Manzini-Covre. E-mail: elisamattos@ig.com.br