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An. 1 Congr. Intern. Pedagogia Social Mar. 2006
Programa de educação de rua: Fundação Projeto Travessia
Patrícia Rodrigues Rocha1; Carla Alexandra do Amaral Todesco2
RESUMO
O Programa de Educação de Rua (PER), da Fundação Projeto Travessia, tem realizado, ao longo destes 10 anos, atendimentos com crianças e adolescentes em situação de rua em São Paulo. Acreditamos que toda criança e adolescente tem saberes, é sujeito de ação e traz consigo potencialidades para a transformação de sua realidade: este é o primeiro passo do processo educativo. A relação de troca entre educando e educador é muito valorizada neste processo, já que entendemos que só existe educador quando este é reconhecido pelo menino. Busca-se uma relação de confiança, por meio de atividades, cujo objetivo é fazer com que o educando estreite relações com o educador e traga à tona seus conteúdos e experiências de vida, para que, a partir de então, possamos criar estratégias particularizadas, numa parceria na qual o ponto de partida é a proposta do educando. Para a elaboração deste projeto do educando, valorizamos a retomada de laços com a família e a comunidade. Neste congresso, pretendemos descrever a trajetória do PER, que acompanhou a mudança do perfil dos meninos e meninas em situação de rua nesta década e, sobretudo, proporcionou um repensar sobre o papel e a ação do educador, além de detalhar a metodologia atual utilizada para a educação de rua.
Palavras-chave: Fundação Travessia; Educação de Rua; pedagogia social; educação não-formal; metodologia.
Objetivo
Durante uma década a Fundação Projeto Travessia vem atuando com crianças e adolescentes em situação de rua na cidade de São Paulo.
Neste período políticas de atendimentos à esta parcela da população surgiram e avanços metodológicos ocorreram oferecendo um maior dinamismo e eficácia ao trabalho de Educação de Rua.
Este artigo procurará discorrer sobre a trajetória do Programa de Educação de Rua (PER) e detalhar a metodologia atual da proposta pedagógica com crianças e adolescentes em situação de rua.
Problema
"Não são meninos de rua, são meninos da miséria..."
Mary Del Priori, 2004.
A formação do Estado brasileiro está inserido dentro de um processo histórico no qual se privilegiou, na maioria das vezes, a concentração de renda e poder nas mãos de uma pequena elite, em detrimento e marginalização política, social, cultural e econômica da maior parte desta população.
Dentro deste processo, crianças e adolescentes oriundas das famílias de baixa renda são aquelas mais diretamente atingidas por toda uma situação de miséria e privação. Em virtude destes inúmeros problemas, se tornam mais suscetíveis a fragilização dos vínculos familiares e comunitários, fazendo com que circunstancialmente as ruas se tornem seus espaços de sobrevivência e moradia.
Viver nas ruas, mesmo que seja temporariamente, significa uma situação de risco e um processo de desfiliação (CASTEL, 1994), uma vez que a inserção no "mundo da rua" implica instabilidade e fragilidade nas relações afetivas básicas, falta de relação permanente com adultos, exposição à violência de todo tipo, evasão ou exclusão do sistema de educação formal, sem mencionar questões relacionadas à saúde, à dignidade e ao exercício da cidadania.
O trabalho de educação na rua procura intervir nesta realidade por meio de práticas educativas que têm por objetivo desencadear processos pessoais de inclusão social, de modo a garantir o exercício dos direitos fundamentais inerentes à pessoa humana3 assim como, sensibilizar a sociedade para contribuir e mobilizar-se à favor da proteção integral4 de crianças e adolescentes, como pessoas em desenvolvimento.
Justificativa
O trabalho de educação5 nas ruas diz respeito a uma concepção de cidadania que pressupõe a responsabilidade pessoal e social de cada cidadão no processo de educação das gerações mais novas.
É uma proposta de educação não-formal para crianças e adolescentes em situação de rua, que busca promover mudanças qualitativas no processo de construção da própria identidade – novos valores, atitudes, percepções, representações mentais, e formas de socialização que viabilizem transformações nas significações acerca da própria vida e do mundo que o cerca, estimulando o desejo de deixar as ruas como espaço de moradia e sobrevivência.
Trata-se de uma construção pessoal que se dá através de experiências individuais e coletivas, promovidas por uma equipe de educadores, e que envolvem as crianças e adolescentes, suas famílias e a comunidade com que se relacionam.
É um processo longo, com altos e baixos, idas e vindas, encontros e desencontros, na tentativa de viabilizar e garantir o exercício de direitos com cada um dos educandos.
Considerando que Educar é transformar, e que transformar também pode ser educar, a relevância do trabalho de educação na rua está no fato de que a transformação da realidade dos meninos e meninas que vivem em situação de rua6 é responsabilidade de todos nós – dos educadores, da família, da comunidade, do poder público e da sociedade em geral.
O convívio familiar é fundamental para qualquer ser humano, pois a família é o elemento básico da sociedade e o meio natural para o crescimento e o bem estar de todos os seus membros, como declara a Convenção da Nações Unidas sobre o Direitos da Criança (1989) e o Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei 8069/90).
Boa parte das famílias de crianças e adolescentes que vivem em situação de rua está inscrita em uma zona de vulnerabilidade, onde há a precariedade da relação com trabalho e a precariedade do vinculo social (CASTEL, 1994).
Metodologia de Trabalho
Inicialmente, a metodologia de atuação baseou-se no Projeto Axé – a Pedagogia do Desejo - e suas três fases: paquera, namoro e aconchego pedagógico. Esse método foi sendo adaptado, ajustado e transformado ao longo dos anos, visando adequar o processo a realidade do Centro de São Paulo.
Após 5 anos de atuação nas ruas de São Paulo, a metodologia estava estruturada em três grandes momentos, que faziam parte do processo pedagógico sem tempo determinado e que respeitavam diferenças individuais dos educandos:
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Fase de Observação e aproximação – na qual a aproximação com os meninos era realizada de forma gradual e o recurso da observação visual era mais utilizado que o verbal;
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Fase da relação interativa – quando a relação entre educador/educando tornava-se mais próxima e iniciavam-se as conversas verbais e as realizações de atividades na rua, utilizando a estratégia de problematização das situações vividas pelas crianças e adolescentes e estimulando sua reflexão crítica;
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Fase de Encaminhamentos – com as relações já fortalecidas foram construídos junto com os educandos vários encaminhamentos, que tinham como objetivo maior a construção de um novo projeto de vida e sua saída da rua.
Entre 2002 e 2004 a Fundação Projeto Travessia atuou em parceria com a prefeitura de São Paulo no atendimento a esta população. Nesta época as bases para o trabalho do Programa de Educação de Rua eram um tanto diferenciadas pelas perspectivas da prefeitura em poder atender toda a população de crianças e adolescentes em situação de rua, o que levou a um trabalho muito mais relacionado com a rede de atendimento público e com as comunidades de origem destas crianças e adolescentes.
Hoje o Programa de Educação de Rua reconhece que todo o processo de transformação social que se espera da criança e adolescente em situação de rua tem base na potencialidade desta mesma criança.
Acredita-se que toda criança e adolescente tem saberes, é sujeito de ação e traz consigo potencialidades para a superação de sua realidade, sendo esta crença o primeiro passo do processo pedagógico.
A presença constante dos educadores em espaços fixos assegura a construção e consolidação de vínculos afetivos que são essenciais para o desenvolvimento do trabalho e também para diminuir a possibilidade dos educadores entrarem na viração7 dos meninos e meninas.
Para que estes espaços fixos não se tornem áreas ou regiões com fronteiras rígidas, os educadores com freqüência circulam pelas imediações com o objetivo de observar a presença e a movimentação de crianças e adolescentes e, se necessário, ampliar o espaço de atuação.
Com a intenção de criar uma referência para os meninos e meninas que costumam freqüentar cada área de atuação, delimita-se um local para a realização das atividades que estabelece o espaço pedagógico do trabalho desenvolvido.
O objetivo inicial é a construção de vínculos de confiança e de determinação de papeis, onde o educador tem sua função reconhecida e diferenciada dos demais atores da rua.
As atividades8 são ferramentas constantes para a mediação destas relações, inicialmente este espaço pedagógico é preenchido com uma série de objetos lúdicos familiares para os meninos e meninas (brinquedos, jogos, blocos, revistas, livros, papéis etc.) dispostos em um baú colorido que serve como atrativo para as primeiras interações entre educadores e educandos. Acredita-se que as atividades já conhecidas das crianças e adolescentes e que têm regras mais claras e definidas compõem um ambiente acolhedor e seguro para as primeiras relações a serem estabelecidas.
Gradualmente as relações entre educadores e educandos tornam-se mais fortalecidas e as atividades começam também a diferenciar-se. A partir de então os vínculos de confiança possibilitam o uso de atividades que proponham uma comunicação mais direta e que sejam construídas em comunhão.
Estas atividades semi-estruturadas permitem que os educandos tragam seu conteúdo e falem de si de forma mais detalhada, ocasionando reflexões. É necessário que sejam atrativas, de fácil reconhecimento e apropriação pelos educandos.
Neste momento as possibilidades de remeter-se a sua história de vida e às experiências comunitárias torna-se mais real, fomentando as propostas de visitas a comunidade e da retomada de contatos familiares. Segundo Barros (2002, p.102)