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An. 1 Congr. Intern. Pedagogia Social Mar. 2006

 

Intervenção escolar em hospitais para crianças internadas: a formação alternativa re-socializadora1

 

 

Profa. Dra. Sandra Maia Farias Vasconcelos2

 

 


RESUMO

Esse estudo teve como objetivo perceber como a presença de atividades escolares nos leitos de hospitais infantis pode contribuir para a reconstrução da identidade social de crianças e adolescentes. A metodologia utilizada foi a observação participante e a analise do discurso em historia de vida do sujeito coletivo, incluindo quatro grupos envolvidos no processo: os profissionais de saúde, os pedagogos, os pacientes e os acompanhantes. Para os profissionais e acompanhantes, a escola é um recurso de ocupação para as crianças; os pedagogos estimaram que a escolarização é uma recurso à recuperação da auto-estima dos doentes. Essas respostas levaram a ver junto aos adolescentes, o que eles pensavam sobre a intervenção escolar no hospital. Suas respostas foram além das questões. Os adolescentes não vêem a intervenção escolar no hospital como escolarização. Entretanto, aceitam e até pedem a presença dos pedagogos junto a eles. Esse fato apareceu como um paradoxo no início. A escuta desses adolescentes mostrou que o que se pensava ser uma contradição, na verdade, para eles era lógico. Os adolescentes demonstraram um forte desejo de falar sobre a situação que estavam vivendo naquele momento e sobre sua própria historia. A intervenção pedagógica era pedida pelos adolescentes como uma maneira de ter junto a eles alguém que fosse exterior ao serviço médico e familiar e que lhes garantisse a manutenção de sua identidade escolar tida como principal identidade social.

Palavras-chave: Educação ; pedagogia hospitalar ; crianças e adoelscentes ; escolarização ; intervenção pedagógica.


 

 

Objetivo

Esse artigo tem como objetivo mostrar a realidade da intervenção escolar em hospitais como estímulo de re-inserção social de crianças e adolescentes. Trataremos sobre a formação dos professores para atuar em ambiente hospitalar, sua conduta re-socializadora e sobre a representação desse serviço para os pacientes-alunos.

 

Problema

O serviço hospitalar sempre foi tradicionalmente exclusivo dos profissionais de saúde. Desde o início do século XX, entretanto, outros serviços são propostos, como apoio psicológico, fisioterapêutico, aos quais vem se juntar a proposta de intervenção escolar, muitas vezes proposta por pesquisadores de universidades em todo o mundo. É também uma iniciativa de grupos voluntários, que solidarizados com o isolamento provocado por algumas doenças crônicas e graves, integraram-se aos serviços médicos com apoio pedagógico, com atividades recreativas, leituras, contação de histórias e demais ações educativas. O diagnóstico de uma doença grave ou a chegada de uma situação diferente e excluidora comprometem o desenvolvimento psico-intelectual da criança por provocar sensações de confusão entre as noções de continuidade, de ruptura e de plenitude (SNYDERS,1986). Consideramos que a presença de professores em hospitais, seguindo a demanda dos pacientes, seria de grande ajuda no processo de recuperação da auto-estima dessas crianças. Concomitante a essa inserção da escola no hospital infantil, nasceu a necessidade de capacitar esses professores para o trabalho educativo junto às crianças hospitalizadas.

 

Justificativa

Formar professores para trabalhar junto a crianças doentes é um desafio que implica em descobrir estratégias diferenciadas e adaptáveis à realidade, assim como despertar para os momentos de aplicação.

O problema que se põe desde o início diz respeito ao modo de abordar os sujeitos doentes e provocar seu interesse em aprender, diante de um quadro de doença grave e crônica. Esse caminho a traçar nos impulsiona a estabelecer um método adaptado a cada necessidade para o grupo diversificado e ainda sem ferir as desigualdades, enquanto valorizamos os pontos comuns.

A realidade pode influenciar fortemente o pensamento, daí não podermos ignorar que hospitalizados, esses sujeitos estão a todo o momento em contato com sua dor e com a dor dos outros, por isso é imprescindível que consideremos todas as dificuldades, constrangimentos, limitações a que são expostos, como os horários das intervenções médicas e o próprio estado de saúde de cada um deles.

Foi necessário, desde os primeiros passos dessa iniciativa, ainda em regime de voluntariado, criar um método individual nessa situação coletiva, sempre em função da criança que se vai acompanhar. Do mesmo modo, foi preciso compreender o quanto era importante respeitar tempo e espaço com atendimentos individuais, à moda do preceptorado (VASCONCELOS, 2003). Mas nem só de boa vontade vive uma prática, é essencial que se estabeleça um conjunto de regras ou normas, a fim de que a atividade escolar em hospitais não caia no conceito de diversão, de passa-tempo, sobretudo que esses dois termos são muitas vezes usados em conotação pejorativa.

 

Embasamento teórico-metodológico

Os primeiros ensaios de intervenção escolar em hospitais, bem antes que se chamasse Classe Hospitalar, têm seu início em 1935, quando Henri Sellier inaugura a primeira escola para crianças inadaptadas, nos arredores de Paris (VASCONCELOS, 2003). Essa primeira experiência chegou a atender cerca de 80 crianças hospitalizadas por mês. Seu exemplo foi seguido na Alemanha, em toda a França, na Europa e nos Estados Unidos, com o objetivo de suprir as dificuldades escolares de crianças tuberculosas, moléstia fatal à época e grandemente contagiosa. Pode-se considerar como marco decisório das escolas em hospital a Segunda Guerra Mundial. O grande número de crianças e adolescentes atingidos, mutilados e impossibilitados de ir à escola, fez criar um engajamento sobretudo dos médicos, que hoje são defensores da escola em seu serviço. Mas sem dúvida foi no seio do voluntariado, sobretudo religioso, que essa escola ganhou espaço na sociedade, sendo difundido por toda a Europa (DELORME, 2000).

Em 1939 é Criado o Centro Nacional de Estudos e de Formação para a Infância Inadaptada de Suresnes (C.N.E.F.E.I.), cidade periférica de Paris, tendo como objetivo a formação de professores para o trabalho em institutos especiais e em hospitais. Em 1939 é criado o Cargo de Professor Hospitalar junto ao Ministério da Educação na França. O C.N.E.F.E.I. tem como missão até hoje sensibilizar a sociedade para o fato de que a escola não é um espaço fechado, estritamente entre quatro paredes, mas no encontro do sujeito com um novo saber. A formação proposta aos professores interessados pelo trabalho, entretanto, é bastante rigorosa. O centro promove estágios em regime de internato dirigido a professores e diretores de escolas; a médicos de saúde escolar e a assistentes sociais. A Formação de Professores para atendimento escolar hospitalar no CNEFEI tem duração de dois anos. Desde 1939, o C.N.E.F.E.I. já formou 1.000 professores para as classes hospitalares, cerca de 30 professores a cada turma. A cada ano ingressam 15 novos professores no Centro. Hoje todos os hospitais públicos na França têm em seu quadro 4 professores: dois de ensino fundamental e dois de ensino médio. Cada dupla trabalha em expedientes diferentes, de segunda a sexta.

No Brasil, a legislação reconheceu por meio do Estatuto da Criança e do Adolescente Hospitalizado, através da Resolução nº 41 de outubro de 1995, no item 9, o "Direito de desfrutar de alguma forma de recreação, programas de educação para a saúde, acompanhamento do currículo escolar durante sua permanência hospitalar". Em 2002 o Ministério da Educação, por meio de sua Secretaria de Educação Especial, elaborou um documento de estratégias e orientações para o atendimento nas classes hospitalares, assegurando o acesso à educação básica. De acordo com esse documento, a educação tem potência para reconstituir a integralidade e a humanização nas práticas de atenção à saúde; para efetivar e defender a autodeterminação das crianças diante do cuidado; para propor um outro tipo de acolhimento das famílias nos hospitais, inserindo a sua participação como uma interação de aposta no crescimento das crianças; para entabular uma educação do olhar e da escuta na equipe de saúde mais significativa à afirmação da vida.

Dentre os objetivos da Classe Hospitalar está a possibilidade de compensar faltas e devolver um pouco de normalidade à maneira de viver da criança. O professor hospitalar será o tutor global da criança para que ela possa ser tratada de seu problema de doença, sem esquecer as necessidades pessoais. A intervenção faz com que a criança mantenha rastros que a ajudem a recuperar seu caminho e garantir o reconhecimento de sua identidade. O contato com sua escolarização faz do hospital uma agência educacional para a criança hospitalizada desenvolver atividades que a ajudem a construir um percurso cognitivo, emocional e social para manter uma ligação com a vida familiar e social e a realidade no hospital.

 

Metodologia da Formação dos Professores

Nossa experiência foi junto a professores do curso de Pedagogia da Universidade Estadual do Ceará. A escolha do lugar de estágio era voluntária, mas tivemos a priori a disponibilidade de um hospital infantil da rede pública estadual, que era hospital de referência em tratamento de câncer infantil e adolescente. Tivemos durante quatro anos (1998-2002) o engajamento de um total de 60 estudantes de pedagogia na prática de ensino em ambiente hospitalar. Esses professores-alunos foram selecionados segundo o critério de estarem em conclusão de curso e em período de estágio curricular. Todos já haviam cumprido as disciplinas de didática nas diversas áreas. Antes de entrarem no hospital, esses estudantes receberam uma formação intensiva de 20 horas sobre as diversas enfermidades encontradas no hospital de estágio. Essa formação foi oferecida sob forma de seminário proposto semestralmente pelo Grupo de Estudos e Educação em Oncologia (GEEON), da Universidade Federal do Ceará. Foram realizadas dinâmicas de sensibilização com esses professores, a fim de trazer à tona suas próprias enfermidades, suas experiências relativas ao tema e abordagem dos conhecimentos que tinham sobre o assunto.

Durante a formação dos professores, torna-se muito difícil conceber uma educação que se fundamenta na sensibilização, na quebra de preconceitos e na solidariedade se não conseguirmos antes nos sensibilizar da situação desses profissionais junto a quem vamos trabalhar. Precisamos ter uma escuta sensível às dificuldades de nosso corpo de alunos-professores, partindo da prerrogativa de que o trabalho pedagógico em hospital apresenta uma justificativa de cidadania, de direito dessas crianças à escola. Porém a doença não é inócua, muitas dessas crianças chegam a óbito, o que leva uma boa parte dos alunos estagiários a recusarem o trabalho. Fatores como esses podem levar os professores a questionarem sobre seu papel no hospital, no que diz respeito à função pedagógica diante da morte. Algumas respostas foram encontradas em estudos anteriores (VASCONCELOS, 1998, 2000; 2001; 2003), a partir das quais formulamos de forma resumida um conjunto de estímulos aos nossos formandos:

É nesse contexto que se insere a escolarização e o aporte educativo de professores em hospital. A questão central da formação desses profissionais é tornar pertinente a escolarização no ambiente hospitalar, a partir da visão atual que a criança doente formou da escola, na qual agora ela está ausente, em relação a esta escola atual no hospital.

Os processos de ensino operados na realidade hospitalar não são os mesmos que os de uma escola ordinária. As condições são externas às normas educativas da escola, onde habitualmente a saúde é uma exigência, onde a palavra não é necessariamente prioritária e onde o silêncio equivale freqüentemente à atenção. Ao contrário, no hospital as condições são bem mais abrangentes e a palavra da criança é prioridade.

Para execução desse trabalho, os pedagogos receberam uma formação específica para o desenvolvimento de certas competências sugeridas por Paré (1977, III), a saber:

Obviamente essas competências não dizem respeito somente aos professores em hospitais, mas também devem fazer parte do currículo emocional escolar em geral. Somente o desenvolvimento emocional da criança é capaz de lhe garantir sociabilidade e resiliência.

O trabalho dos professores em hospital acontece sistematicamente no leito dos pacientes, onde começam desde o estágio de formação. O uso de pranchetas auxilia na realização de tarefas escritas. Um dos objetivos precisos dessa parte prática no hospital é o auto-conhecimento dos professores no que concerne à resistência individual a situações chocantes como as que vivenciamos cotidianamente em hospitais. É durante o trabalho prático que esses professores vão definir se têm estrutura psicológica para continuarem na atuação hospitalar. O acompanhamento por supervisões é feito diariamente e junto a todos os formandos por uma equipe formada por um pedagogo, um psicopedagogo e um psicólogo. Ao final do estágio, cada formando deve apresentar um relatório de sua ação pedagógica e de seu envolvimento com o tema.

O processo de formação dos professores se deu em duas etapas concomitantes: uma em sala de aula na universidade; a segunda no próprio hospital. Em ambos os casos, a metodologia foi sempre de abordagem humanística, fundamentada em documentos escritos desses profissionais, notadamente os diários de campo. Para formação junto aos professores, escolhemos o método de escuta dos sujeitos, por intermédio de uma aproximação assentada em afetividade, voltada para o bem-estar do professor e com fortes sinais de relação de amizade. O método de formação utilizou como premissa a cumplicidade entre formando e formador. Dessa forma, convidamos nossos formandos a perceberem o quanto o sujeito a quem nos dirigimos têm a dizer sobre si mesmos, o quanto seu próprio contexto e sua própria história são importantes em seu desenvolvimento intelectual e profissional.

Levados à prática com esses alunos tão especiais, em salas de aulas transfiguradas em enfermarias, os pedagogos foram estimulados a proceder a uma intervenção em que predominou a escuta do paciente, de acordo com as teorias de escuta sensível de Barbier (1997). De acordo com essa metodologia, é o próprio paciente que pela sua fala reflete sobre sua condição atual, sobre seu passado, sobre as mudanças provocadas pela doença, sobre as velhas e novas aprendizagens e sobre a utilidade de seus conhecimentos. Desse ponto de vista, muito freqüentemente o paciente-aluno enxerga no professor um amigo, muito mais que um profissional escolar. O professor foi orientado a fazer emergir os saberes diversos que essas crianças têm, mas nem sempre sabem, por meio da técnica da Clínica do Discurso (VASCONCELOS, 2005). Cientes do que sabem, vêem-se mais capazes, o que eleva sua auto-estima.

Diante de um sujeito doente grave, as ações devem ser precisas e rápidas para que a relação de ajuda seja eficaz e útil. Não sugerimos trazer tarefas de longo desenrolar Os professores são preparados para enfrentar certas surpresas, mas não para evitá-las ou fugir delas. O papel de amigo desempenhado é essencial quando uma criança morre. A ligação com a família está selada, é preciso saber afastar-se. Isso corresponde ao que Lani-Bayle (1999) chama démarche clinique, no sentido de movimento. Mireille Cifali (1993) nos afirma que não existe "démarche clinique" de oposição entre conhecimento e ação. Essas ações que, segundo a autora, são produtoras de conhecimento. Essas definições nos levam à metonímia da démarche clinique: o texto pelo contexto e vice-versa. Transformar o sujeito, junto a quem trabalhamos, em um conceito é opróbrio e contra todas as considerações do humanismo. O sujeito deve ser visto, compreendido e aceito em toda sua dimensão a fim de ser realmente conhecido.

A démarche clinique exige o contato, a aproximação em que as trocas podem ser feitas. A escolha desse método como metodologia de formação de professores foi pela possibilidade de realização de engajamentos interpessoais que rompem com a onipotência do formador em relação ao seu aluno. A démarche clinique não acontece em linha reta, é o efeito de espiral que compreende sua dinâmica e integra sua complexidade. Isso permite, não somente um ir-e-vir, mas desvios, movimentos em círculo que podem expressar a organização própria do sujeito. Esse movimento engaja também o formador, visto que ele é parte de seu trabalho, ele está em sua escrita. Não há, efetivamente, escrita sem autor, mesmo se esse autor pensa colocar-se a distância, ele passa através da extensão do seu braço que segura essa mão que escreve.

Jean Blanc (1999) nos afirma que a linguagem nunca é um objeto separado da história de quem se utiliza dela, pois o momento da utilização corresponde a um momento de descoberta de novas possibilidades de linguagem. A escrita, por ser eminentemente subjetiva, exige a inscrição do formando e do formador em seu texto. A démarche clínica permite essa apreciação do fato de que não existe bom procedimento que seja garantido antes de ser aplicado (CIFALI, 2001). A experiência da escrita como auto-escrita e como escrita do outro constrói a conscientização formadora. A démarche responde e corresponde a uma dinâmica de encontro entre o observador e o observado. Dessa maneira, a escolha metodológica de démarche clínica tornou-se um duplo desafio que começa na escolha do lugar de estágio e se completa na escrita do relato de experiência de estágio, quando os formandos vão deixar por escrito suas expressões anotadas no diário de campo durante o estágio e o enfrentamento com a visão atual.

 

Resultados

O principal objetivo da classe hospitalar é, como já vimos, fazer um acompanhamento pedagógico a crianças e jovens com dificuldades graves de saúde física ou mental e que estão definitiva ou temporariamente impedidos de freqüentar a escola regular. Não se trata de Educação Especial. É a Educação Escolar ordinária, aquela que nutre o sujeito de informações sobre o mundo dentro do currículo escolar definido pela educação nacional. Marca-se como diferença entre a classe hospitalar e a classe especial o fato de que a segregação das crianças não se deve à rejeição por outras classes, mas à fragilidade de sua saúde que as impede de ir à escola. Longe de rejeitá-los, a escola vai até eles, no hospital.

Outro fator preponderante na perda de escolarização vem da própria doença, acarretadora de grande sofrimento, e ainda promovedora do grande dilema do preconceito e do estigma massacrador. O doente ora é o coitado, ora é o excluído, o perigoso, o contagioso. As escolas para crianças e adolescentes não informam seus alunos sobre doenças, e logo que um colega é acometido de uma enfermidade grave, os pares não estão preparados para prover um apoio. Não raro acontece o pior: o afastamento dos colegas sadios e o isolamento do colega doente. Muitos pais de crianças sadias se sentem incomodados com o contato do filho com um colega atingido por câncer ou Aids, por exemplo. A deficiência física e mental também é um obstáculo para muitas famílias sadias. Na maior parte das vezes, segundo depoimentos de professores hospitalares, esse preconceito se deve à desinformação dos pais.

O hospital infantil, em qualquer circunstância, é por excelência um ambiente carregado de emoções. A doença exclui a criança de seu ambiente, imobilizando-a social e intelectualmente. Junto ao fato de estar excluída de seu ambiente, de estar doente e ser diferente de seus colegas de escola, aparece com freqüência uma queda da auto-estima. A criança atingida por doença de tratamento em longo prazo, vê-se inconcebível e contrária à vida: talvez daí derive o silêncio em que freqüentemente se afunda e se marca como depressão infanto-juvenil (CECCIM e CARVALHO, 1997).

Nessa abordagem, Vincent de Gaulejac(1993) defende a necessidade de um olhar sobre a interação psicossocial do sujeito-objeto, a fim de compreender seu funcionamento. Gaulejac concebe o fenômeno social como a fonte do fenômeno psicológico, ou seja, o meio como determinante das inclinações e gostos. Assim, o autor nos garante que o psiquismo que é produzido pelo social produzirá mais tarde esse social, doente ou sadio. É também o que Morin chamou recursividade, esses movimentos constantes de ida e vinda que põem em relação integral os inúmeros aspectos da vida, conservando-os ao mesmo tempo distintos e formadores da complexidade humana.

Esse fator nos remete ao círculo da relação e ao termo próprio de démarche clinique pelo sentido de se inclinar em movimento para ver o sujeito de perto em toda sua integralidade. No contexto da Clínica do Discurso dizemos que junto aos pacientes, metaforicamente esse círculo se fecha quando me abaixo para olhar meus sujeitos e vejo também meus pés. Percebo assim que o corpo humano não comporta extremidades nem físicas, nem sociais, nem psíquicas. Tudo é composto de um conjunto que não nega sua individualidade – essa indivisível dualidade do sujeito com quem tratamos e que também somos nós no mundo e com o mundo (FREIRE, 1996). Logo que o círculo entra em movimento recíproco e contínuo, acontece o que chamamos de enroscamento vivencial, quando as experiências formulam um jogo de reflexos e perdendo um pouco a viciosa circulação, ganha um curvamento mais sinuoso em "oito", como podemos ver na representação abaixo:

 

 

O jogo reflexivo garante a reciprocidade que compreendemos como processo essencial à formação do sujeito, como a recidiva positiva do processo de reconhecimento humano (VASCONCELOS e PENHA, 2000). Por intermédio dessa abordagem, percebemos o quanto o homem está em constante formação e evidentemente em contínua necessidade de reinserção em seu meio a fim de não se tornar um estrangeiro em seu próprio corpo. Já o corpo doente causa o estranhamento, o desencontro intrapessoal do sujeito, que não se reconhece mais em si mesmo. Além disso, se ainda não forem resguardadas suas prioridades sociais, o surgimento de silêncios depressivos e o investimento sobre o auto-estigma será uma constante na vida desse sujeito. Corpo sofrido leva com facilidade ao sofrimento psíquico. A inclusão da escolarização é um meio de retomar a auto-estima do paciente por retratar em sua prática, através de tarefas escolares, compromisso de horário e reconhecimento de valores que ultrapassam a medida do fisiológico e do biológico.

 

Reflexos de alguns resultados...

A resposta positiva desse tipo de formação profissional pelo enfrentamento da fragilidade humana é sentida pelos formandos desde o primeiro dia de estágio. Pela escuta feita nas enfermarias, junto ao leito do paciente durante as intervenções supervisionadas, e pelos relatos dos alunos-professores durante as reuniões de supervisão e escritos, pudemos entreouvir sempre o desabafo de queixas de crianças e adolescentes sobre o isolamento e a exclusão provocados pela doença e pela hospitalização. A doença que levou à perda da escola implicou na perda de seus amigos, companheiros de rua e de bairro, longos períodos de internação, portanto de distanciamento dos colegas e familiares. A queixa de perda de identidade de pessoa humana e forte apreensão do sentimento de ser mais um doente em hospital é uma constante nos discursos. Deixar de ser o colega de sala e assumir uma postura de colega de enfermaria tem grande repercussão na vida dos alunos-pacientes, mas promove nos alunos-professores um desencontro identitário bastante marcante também; o lugar de um professor em sentido formal não é nas enfermarias, mas nas salas de aula. A formação dos profissionais contempla desde o primeiro encontro a noção de que os saberes não pertencem aos muros escolares. A possibilidade de levar a escola a um outro ambiente reformula muitas das idéias pré-concebidas da academia. Fazer uma pedagogia socializadora é reconhecer o potencial humano de todos os indivíduos, sem que as diferenças e fragilidades sejam consideradas.

Para a maioria das crianças, a escola é seu meio social, é o lugar em que as primeiras descobertas são feitas, os primeiros amores, as primeiras dores e onde se marcam as primeiras histórias fora do seio da família direta. Essas crianças sofrem pela doença, pelo distanciamento do ambiente familiar e dos amigos, e de seu ambiente social, a escola. Em alguns casos de doenças graves, esses jovens passam meses, quem sabe anos, sem freqüentar a escola, longe do processo de escolarização. Assim o jovem abandona a escola e a escola abandona o jovem. A escola por vezes esquece o aluno que se tornou ex-aluno por uma contingência que escapa à sua vontade de ser humano participante de uma sociedade em movimento. A classe hospitalar recupera a socialização da criança por um processo de inclusão, dando continuidade a sua escolarização e valorizando sua nova aprendizagem. A inclusão social será o resultado do processo educativo e reeducativo. A escola é um fator externo à patologia, logo, a inserção da escola no hospital é um vínculo que a criança mantém com seu mundo exterior. Se a escola deve ser promotora da saúde, o hospital pode ser mantenedor da escolarização. E escolarização indica criação de hábitos, respeito à rotina; fatores que estimulam a auto-estima e o desenvolvimento da criança e do adolescente.

Dessa forma, a démarche clínica se apresenta como uma estratégia para a formação de profissionais de educação que trabalham junto a pessoas em situação de sofrimento, em situações extremas, de dor psíquica, porque leva a uma tomada de responsabilidades em duplo sentido – do profissional com o sujeito em crise e do sujeito em crise com o profissional. Essa responsabilidade permite ao profissional em formação, no caso em estudo, o professor hospitalar, dar-se conta de que a formação está sempre presente na vida profissional e pessoal. Estamos sempre engatinhando em formação profissional, e talvez seja esse fator que nos mantenha mais estáveis, pois engatinhando estamos sobre quatro pés.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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1 Trabalho distinguido com Menção Honrosa no I Congresso Internacional de Pedagogia Social, realizado pela Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo, Universidade Presbiteriana Mackenzie e Centro Universitário UniFMU, no período de 8 a 11 de março de 2006.
2 É doutora em Educação pela Université de Nantes/ França. É professora colaboradora da Universidade Estadual do Ceará. Pesquisadora CNPq e professora adjunta da Universidade Federal do Ceará. E-mail: sandramaia@uece.br