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Congr. Intern. Pedagogia Social Mar. 2009

 

Educação do Campo: processo de ocupação social e escolar

 

 

Fernando José Martins1

 

 


RESUMO

Denominar a Educação do campo como um processo é uma maneira de destacar a recente introdução da categoria educacional e, também, sua própria dinâmica de consolidação, que se faz em movimento e por movimentos. A temática aqui exposta abrangerá três dimensões fundamentais: o próprio conceito de Educação do Campo, sua gênese e sua abrangência, a relação existente entre essa categoria e outras categorias sociais, no caso, o campo e seus sujeitos e considerações acerca da materialização da Educação do Campo como ocupação. Indicar como recente a Educação do campo, é de saída, delimitar as diferenças entre esta e a educação rural, o processo de escolarização existente na zona rural brasileira. Pode-se caracterizar educação do campo como um movimento, constituído pelos sujeitos sociais que integram as realidades camponesas, e que, almeja vincular o processo de vida no campo com os pressupostos educacionais, aliando assim escola e vida, os pressupostos da cotidianidade rural e os processos educativos formais. A diferenciação dessa proposta reside na sua construção, que é idealizada, operacionalizada pelos sujeitos do campo. A proposta da Educação do Campo, não é meramente pedagógica, ao buscar relacionar escola e vida, também se almeja a veiculação de uma determinada concepção de campo, na qual esse seja um lugar de vida. Essa compreensão de distingue da concepção de campo hegemônico, na qual o campo é apenas um espaço de produção, na qual não os meios para socialização, cultura, educação para os moradores da zona rural, não estão inseridos. Assim, compreender o processo de Educação do Campo, e não no campo, é também constituir esse com um espaço de existência, com todos os elementos disponíveis em outros espaços, como as cidades. Ao evidenciar tais características e perspectivas, cumpre assinalar que a Educação do Campo não encontra-se somente em torno de aspirações. As práticas construídas coletivamente, já ganham espaços consideráveis na realidade escolar brasileira. Como sua essência conflita com interesses socialmente estabelecidos para a educação, os avanços da educação do campo configuram-se como ocupações no embate político e ideológico. Propor uma escola do e no campo, opondo-se ao processo de racionalização das escolas rurais, e reverter esse quadro com a expansão da referida rede, só se vez com a ocupação dos espaços pelos sujeitos neles inseridos. Outros indícios da referida ocupação podem ser evidenciados pelos elementos curriculares, preencher, ou melhor, ocupar disciplinas, atividades escolares com conteúdos relacionados à realidade camponesa é ume exemplo dessa prática. Pode-se citar ainda o caráter metodológico, como a organização curricular por temas geradores, calendários específicos, e a pedagogia da alternância, são instrumentos que apontam para a ocupação consistente dos sujeitos sociais na escola que a eles pertence. A relação entre essas três dimensões, que em síntese é a conquista dos espaços sociais pelos sujeitos que os constitui, permeada por um projeto societal contra-hegemônico é um dos elementos que caracteriza a Educação do Campo e denota seu diferencial em relação às práticas educativas hegemônicas.

Palavras-chave: Educação do Campo - Ocupação.


 

 

O presente texto tem como objetivo central demonstrar um fenômeno social e educacional - a educação do campo - que vem se construindo e consolidando, principalmente nas últimas duas décadas no Brasil. Na presente demonstração, três características específicas também serão evidenciadas: o próprio conceito de Educação do Campo, sua gênese e sua abrangência; a relação existente entre essa categoria e outras categorias sociais, no caso, o campo e seus sujeitos e considerações acerca da materialização da Educação do Campo como "ocupação".

A constituição da Educação do Campo no cenário educacional do País, como categoria construída socialmente e pelos sujeitos sociais que a compõem, leva ao problema: "como se apresenta a educação do campo no cenário educacional hoje"? Assim, quais são as principais características, como se apresentam os desdobramentos da questão central (principalmente a prática social efetiva da educação do campo), ocupando espaços importantes no cenário educativo do país, são objetos a serem aqui expostos e investigados. Para maior facilidade didática, o texto é composto por três subdivisões equivalentes as três características evidenciadas no debate.

Metodologicamente, cumpre assinalar que o exposto aqui é um fragmento da pesquisa de doutorado do autor que tem como foco central a ocupação da escola. Trata-se de uma "pesquisa participante", realizada em escolas do campo, situada no interior de um assentamento de reforma agrária. A metodologia utilizada permite a vinculação orgânica, permanente com a base empírica da pesquisa. Os recursos mais utilizados são a observação, a prática educativa coletiva. Essa ressalva sobre a metodologia não é necessária somente por se tratar de uma exigência de estruturação do texto, mas porque os apontamentos da presente exposição, à primeira vista, podem parecer somente efetuados a partir de um debate teórico. Contudo, é justamente o contrário: a partir das relações educativas produzidas coletivamente é que são expressos os conceitos aqui apresentados.

 

Educação do campo: construção, conceito e trajetória

Muitos estudos realizados, como os de Leite (1999) e Calazans (1993), evidenciam que a educação rural no Brasil - até a década de 1990, quando a categoria educação do campo inicia sua construção - está atrelada a um modelo de política econômica comprometido com as elites e ligada às oligarquias rurais. Em suma, desde a inserção da discussão acerca da problemática da educação do campo na legislação e na prática educacional de nosso país, as iniciativas que intuem remeter-se à questão são, direta ou indiretamente, protagonizadas por representantes das minorias da questão agrária. Os verdadeiros interessados na questão (camponeses em todas as categorias de sem-terras a pequenos produtores) ficaram à margem do debate. O que se pretende aqui é situar a necessidade do debate brasileiro na atualidade, posto sobre outras bases, que democraticamente priorizem-se as maiorias dos componentes da vida camponesa, visando à unidade do sistema escolar, respeitando as diversidades do mesmo. Em uma palavra, cumprir o movimento dialético da unidade na diversidade.

Os posicionamentos a favor da especificidade da educação do campo encontram uma crítica constante, pautada na seguinte premissa: Ao estabelecer a especificidade da educação do campo, incorre-se no erro de dicotomizar o sistema de ensino, fazer uma oposição frontal entre rural e urbano, campo e cidade, matuto e cidadão.

Em nome de uma pretensa unidade, o que se observa é o descaso em relação à população camponesa; o estabelecimento de uma política de "extensão"2 dos saberes "cultos" da "vida urbana" para o campo. Enfim, a escola do campo é tratada como um apêndice da escola urbana, precariamente estabelecida sobre bases estranhas à sua síntese social, que é responsável por sua condição de existência.

No entanto, é perceptível que a dicotomia está estabelecida em uma esfera mais ampla do convívio social, classificada por Marx como classes sociais. Em síntese, tal dicotomia encontra-se socialmente instituída na cisão entre os detentores dos meios de produção - aqui compreendidos também enquanto propriedade privada da terra - e os que necessitam vender sua força de trabalho. Entender a educação rural como elemento ratificador da ordem mantenedora dessa relação de submissão do trabalho ao capital é, de forma direta ou indireta, antagônico à idéia de educação enquanto emancipação humana.

Por ser um problema de classes, a oposição entre rural e urbano é uma questão social, que produz a exclusão do homem do campo. O conjunto das ações executadas, com base na racionalização econômica neoliberal, gera, em toda a sua extensão, sérias conseqüências sociais materializadas nos altos índices de exclusão social. Correntemente, no meio educacional, utiliza-se o termo "exclusão" para definir a prática discriminatória em relação aos portadores de necessidades educativas especiais - deficientes físicos, mentais, cegos, surdos e mudos. O que se pretende aqui é ampliar o sentido da exclusão em educação para categorias culturais e econômicas, como os privados financeiramente do acesso à escola, os povos indígenas, alunos que levam para a escola um linguagem estigmatizada socialmente e, especificamente, os habitantes da zona rural, que por privação de direitos sociais cada vez mais aguda, têm o seu direito à educação negado.

E na realidade camponesa atual no Brasil, que conta com 31.835.143 de pessoas no campo, ou seja, 19% do total da população3, o atendimento escolar junto à população rural é escasso, quando não inexistente. Esses dados, longe de pretender uma análise mais profunda das políticas educacionais para as escolas do campo, figuram como elementos que destacam o alto índice de exclusão e de privação dos direitos aos quais são submetidos os educandos e as educandas que se encontram na zona rural.

Nesse sentido, ao observar a estrutura educacional brasileira nos dias atuais, seus altos índices de analfabetismo, evasão escolar, as diferenças sociais regionais, enfim, o panorama educacional contemporâneo, constata-se que a exclusão é um fenômeno crescente. Especificamente em relação ao campo, os dados são avassaladores.

Propor uma educação inclusiva é, antes de qualquer coisa, compreender as especificidades desses excluídos, que, mesmo nessas condições, fornecem elementos culturalmente ricos, de suma relevância para a prática pedagógica. Em uma palavra: incluir as minorias privadas de direitos pressupõe a compreensão de suas especificidades como componentes de uma totalidade na qual eles estejam inseridos.

Remeter-se às especificidades das minorias excluídas e das camadas populacionais situadas à margem do processo educacional não é somente destacar suas carências, mas também salientar seus elementos culturais singulares, que se constituem, além de ponto de partida para uma ação pedagógica, uma "riqueza cultural". "O tratamento específico da educação rural, teria, pois, dois fundamentos: a condição carente do homem do campo ou sua pobreza econômica e, em contraste, sua riqueza cultural". (ARROYO, 1982, p. 3) Pois frente à carência de estruturas, possibilidades e ações estatais no meio rural, é possível se identificar um rico alicerce de atividades culturais, tradições, costumes e envolvimento social local nas atividades localizadas no campo.

Para postular a educação do campo é necessária uma caracterização, na qual fique expressa a natureza da identidade específica constituinte da educação do campo. A expressão "Por uma educação do Campo" é fruto de uma série de discussões, nas quais são envolvidos os protagonistas de fato dessa modalidade: educadores e educandos do campo.

Em linhas gerais, pode-se afirmar que essa expressão traz em si uma postura que assume a especificidade da educação do campo, pois rompe com a idéia de que a escola, no campo, deve se constituir como uma extensão ou um apêndice das escolas urbanas. Também se pode destacar que não é somente uma expressão. Educação do Campo vem se consolidando como uma categoria, ou, como apontam os documentos educacionais, uma modalidade educativa no interior do sistema. É mais apropriado falar em categoria, pois o conteúdo, o significado e o movimento que a envolver produz novas práticas e compreensões sobre um determinado fenômeno educativo no Brasil.

O campo é mais que uma concentração espacial geográfica; é o cenário de uma série de lutas e movimentos sociais; é ponto de partida para uma série de reflexões sociais; é um espaço culturalmente próprio, detentor de tradições, místicas e costumes singulares; é ainda um espaço com dimensões temporais independentes do calendário convencional civil. Enfim, o homem e a mulher do campo são sujeitos historicamente construídos a partir de determinadas sínteses sociais, que são específicas, de dimensões diferentes das urbanas.

Assumir essa premissa pressupõe corroborar com a afirmação da insuficiência da extensão da escola urbana para o campo. Um dos resultados visíveis no Brasil da reivindicação acerca da especificidade da educação do campo está expresso na inserção de tal elemento na legislação educacional brasileira, mais especificamente nas Diretrizes Operacionais para Educação Básica das Escolas do Campo. No seu artigo 2º Parágrafo único, aponta os elementos que definem a identidade da educação e da escola do campo que, por sua vez, anota também sua especificidade.

A identidade da escola do campo é definida pela sua vinculação às questões inerentes à sua realidade, ancorando-se na temporalidade e saberes próprios dos estudantes, na memória coletiva que sinaliza futuros, na rede de ciência e tecnologia disponível na sociedade e nos movimentos sociais em defesa de projetos que associem as soluções exigidas por essas questões à qualidade social da vida coletiva no país. (BRASIL, 2001)

Nesse sentido, são excludentes atitudes como afirmar que a educação do campo e urbana devem ser tratadas uniformemente. Ou ainda, estabelecer a ótica da racionalização econômica para o atendimento das crianças do campo, arrancando-as de suas realidades, com um processo desgastante4 de transporte rural e as depositando em escolas estranhas à sua realidade. A exclusão mais brutal é aquela que priva totalmente os moradores do campo de seu direito à educação.

Esse movimento de exclusão social que caracteriza a problemática da educação do campo, observada do ponto de vista dialético, carrega consigo um índice de positividade, pois uma vez frente a uma realidade excludente, o tecido social fornecerá elementos capazes de atuar visando à reversão desse quadro. Essa afirmação delineia a forma de intervenção que se pretende alcançar frente a esse quadro: inserir a escola no debate de que são insuficientes as condições dadas no sistema de organização social atual, para viabilizar qualquer possibilidade de emancipação humana ou social.

Ao valorizar a identidade cultural do homem/mulher do campo, ao estabelecer que a educação condizente com as necessidades desse povo vai além da apreensão de novas técnicas agropecuárias, ao buscar condições reais para que os povos do campo tenham acesso à educação (vista como desenvolvimento das potencialidades humanas) está se proclamando um projeto societal pautado em valores que privilegiam o ser em detrimento do ter, que estabelecem prioridades ao ser humano e não ao capital; está se propondo uma sociedade que procure na solidariedade e não na competição alicerce para as relações sociais.

Com esse objetivo maior, a sociedade organizada5 em torno da questão da educação do campo implementa ações e reflexões sobre a questão e, nesse movimento de busca e de construção coletiva, materializa as condições para efetivação do direito à escola para a população do campo. Resumidamente, e de forma restrita à educação formal, os integrantes da Conferência Nacional "Por Uma Educação do Campo" postulam as seguintes conquistas: ampliação da Educação de Jovens e Adultos; implementação de programas de formação para os educadores do campo; garantia da Educação Infantil e da Educação Fundamental nas comunidades do campo; formação técnica voltada às demandas de capacitação dos trabalhadores do campo; implementação de políticas públicas de valorização profissional dos educadores do campo; implantação de bibliotecas, brinquedotecas, salas de leitura, salas de informática com acesso à Internet nas escolas do campo; criação de secretaria ou coordenação da Educação do Campo no Ministério da Educação; criação de política de financiamento para a educação do campo, em todos os níveis.

A própria existência da articulação é uma prática que merece uma atenção. Trata-se de um movimento que congrega forças sociais relacionadas às questões camponesas, de distintas orientações políticas e que, numa identidade coletiva, postula um atendimento educativo condizente com as necessidades sociais dos sujeitos que compõem o campo demandatário. E ainda, cabe salientar que o projeto educativo almejado se contrapõe ao projeto de campo e de agricultura vigente no país, tornando a tarefa do referido movimento mais penosa, portanto, mais significativa.

 

A Educação do campo, o campo e a comunidade.

Um dos principais elementos que consolidam e dão solidez à prática da educação do campo é o envolvimento com a comunidade. As políticas para a chamada "educação rural" sempre tiveram como objetivo uma vinculação a um projeto de ruralidade do país. Dessa maneira, os conteúdos da educação rural estão a serviço de um projeto de agricultura e de campo, em que a mecanização e a inserção do controle químico das culturas são prioridades em detrimento das condições de vida do homem no campo.

Assim, pode-se afirmar que a educação rural é um dos elementos condutores de uma compreensão econômico-social de campo, um paradigma que orientou políticas e práticas educativas efetuadas nas zonas rurais, promovendo a exclusão educacional já aludida anteriormente. Em relação a esse paradigma hegemônico de campo, cabe ressaltar:

Na relação homem-terra, esse paradigma se fortalece pelo princípio da exclusão de tudo que não o comporta. No paradigma do rural tradicional, há, pois, seleção e rejeição de idéias integradas nas teorias que fundamentam esse modelo. No contexto discutido, as idéias são perceptíveis por produção em larga escala, uso desmesurado de agrotóxicos, rejeição de conhecimentos e saberes da tradição de trabalhadores, dentre outros. Desse modo, o paradigma do rural tradicional elege, seleciona o que lhe interessa como modelo econômico e cultural. (FERNANDES, MOLINA, 2005: 57)

Na contraposição desse projeto de campo, os sujeitos que constituem, que almejam esse mesmo campo como lugar de vida, procuram desenhar uma prática educativa condizendo com os espaços culturais nos quais produzem sua existência. A prática educativa nomeada de "educação do campo" é oriunda da construção coletiva dos sujeitos sociais camponeses, que antes de debrussarem-se sobre uma proposta educativa, se manifestam por um projeto contra-hegemonico de campo, fato indispensável para a manutenção de qualquer outro projeto a ser realizado no campo, uma vez que a possibilidade de promover a vida no campo é fundamental antes de qualquer outra atividade.

É essa articulação com um projeto de lugar e de sociedade que confere à educação do campo a essência de sua singularidade. A distinção com a "educação rural", o apreço pela apresentação gramatical da expressão educação DO campo, contrapõem-se à educação NO campo, por entender que mais que uma prática educativa realizada na zona urbana, é uma prática educativa que se constrói a partir do local. Frisar que a educação é DO campo é acentuar a reconstrução social desse espaço pelos seus sujeitos, fato que antecede a prática educativa formal.

Esta visão do campo como um espaço que tem suas particularidades e que é ao mesmo tempo um campo de possibilidades de relação dos seres humanos com a produção das condições de existência social confere à Educação do Campo o papel de fomentar reflexões que acumulem força e espaço no sentido de contribuir na desconstrução do imaginário coletivo sobre a visão hierárquica que há entre campo e cidade; sobre a visão tradicional do jeca tatu, do campo como lugar do atraso. A Educação do Campo, indissocia-se da reflexão sobre um novo modelo de desenvolvimento e o papel para o campo nele. (FERNANDES, MOLINA, 2005: 68)

Para efetivação dessa prática da educação do campo, está sendo inserida uma prática que muito se aproxima de uma ferramenta criada por um movimento social que constitui o movimento mais amplo de educação do campo: o MST - Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra. A inserção da perspectiva de campo, na contracorrente da hegemonia vigente, só se consolida com a ocupação dos espaços possíveis, sejam no debate teórico e acadêmico, seja nos espaços rurais com a "ocupação" da terra propriamente dita, ou ainda, na prática educativa, fato constituinte das características do debate sobre a educação do campo no Brasil. Dessa maneira, será dedicado um espaço especifico, a seguir, para essa "ocupação" no presente texto.

 

Ocupação e Educação do Campo

Ao abordar a temática, é perceptível que essa não seja uma concepção hegemônica. A educação do campo está se forjando e ganhando espaços no debate educacional, legal e científico. Essa construção coletiva tem a inserção, por vezes efetuada pelos movimentos sociais, mas, de maneira geral, pelos sujeitos do campo. Dessa forma, a educação do campo ocupa espaço de debate educacional em nível nacional. Isso é um processo de ocupação da escola. Tal processo se materializa em diversas instâncias: no plano legal, com o estabelecimento das Diretrizes Operacionais para Educação Básica nas Escolas do Campo e, principalmente, com seu conteúdo; no plano político, com a contenção do processo de extinção das escolas rurais, sua re-inserção no debate educacional e na estrutura estatal; e, principalmente, no plano identitário, com a promoção do debate sobre a cultura camponesa, seus valores e a manutenção da vida no campo. Esse é um pequeno exemplo, mas cumpre a função de evidenciar que o conceito a ser trabalhado aqui, embora tenha vínculo imediato às práticas educativas do MST, tem uma função e alcance mais amplo, pois articula as instâncias já citadas e debatidas, como concepção de Estado, modo de produção, público/privado, democracia e, sobretudo, de sociedade.

Contudo, mesmo com o avanço acima destacado, a viabilização da educação do campo (em sua plenitude e na escola pública como um todo) necessita de uma ocupação política bem maior e em todos os aspectos, iniciando na própria existência de unidades escolares. Por mais que seja propagado em termos numéricos a "quase" universalização da educação básica para a totalidade da população, essa universalização não se completou. Ainda há no país crianças em idade escolar sem acesso à educação formal e a estatística cresce quando aumenta a idade dos educandos. Isso pode ser averiguado com a tabela abaixo, que além de apontar a média de escolarização evidencia o distanciamento entro os índices rurais e urbanos. (INEP, 2007:15)

 

Tabela 3

 

Acompanhando a ausência de escolaridade, o fato apontado acima (de quanto maior o nível de escolarização, maior ainda a privação por parte da população do campo à escola) é uma realidade numérica, quando os dados de taxa de freqüência escolar são analisados. As tabelas abaixo, mostram esse declínio crescente e evidenciam ainda mais o distanciamento entre campo e cidade. (INEP, 2007:17-8).

 

 

Ocupar a escola politicamente se faz com a reivindicação direta pela educação pública como direito de todos. Ou seja, que a escola exista. Principalmente no campo, onde é sensível sua ausência.

Historicamente, a educação do campo é precarizada (LEITE, 1999). É no campo que se concentra o maior número de índices educativos negativos, A estrutura escolar nessas áreas é muito tímida e ficou ainda mais precarizada com a alternativa neoliberal amplamente utilizada (principalmente na década de 1990) de nuclearização das escolas rurais, cujos alunos, de diversas localidades eram transportados para escolas localizadas nas sedes dos municípios. Essa ação encolheu ainda mais a rede escolar rural. A síntese estatística oferecida pelo próprio Estado evidencia esse fato. (INEP, 2007)

Dessa maneira, politicamente, a ampliação da rede de escolas no campo é um avanço extremamente necessário. E a ocupação com qualidade é um fenômeno, infelizmente raro, pois as escolas da zona rural assumem uma tendência de contarem com uma infra-estrutura mínima, precariedade estendida a vários aspectos, inclusive nas condições de trabalho docente. Assim, no presente estudo (considerando a realidade material do sujeito de estudo) um aspecto que integra o relato da ocupação se relaciona com o aspecto político, e o avanço nas condições materiais (sejam de infra-estrutura, ou de condições de trabalho ou ainda a formação de seus professores). Especificamente em relação à infra-estrutura, o quadro comparativo (INEP, 2007:29) aponta alguns elementos que denotam o caráter as diferenças entre as escolas urbanas e rurais.

 

 

O simples fato de o movimento da Educação do Campo estar sensibilizando e revertendo as carências educacionais da condição escolar na zona rural já seria suficiente para demonstrar a ocupação desse espaço que vem se consolidando no país. Contudo, cabe ressaltar provisoriamente que a ocupação é um processo que não se esgota na materialidade escolar, na escola propriamente dita. .A ocupação se faz pedagogicamente, na estrutura, conteúdos e práticas pedagógicas, na própria organização do trabalho pedagógico da escola do campo e, sobretudo, na estrutura social, na compreensão de campo imperante no país e nas relações sociais que nele se estabelecem. Assim, não é somente amparada e constituída por um movimento social: a educação do campo, também é movimento e só se efetiva quando em movimento.

 

Considerações Finais

Falar em considerações finais não é bem apropriado para a metodologia utilizada tanto no trabalho, quanto nos "objetos" sociais do trabalho aqui apresentado. Contudo, propõe-se aqui a emitir apreciações sobre a relevância das experiências demonstradas e, ainda, o que diz respeito a sua contribuição para um projeto educacional contra-hegemônico.

Das experiências aqui narradas, duas constatações as fundamentais: primeiro, seja no MST ou mais amplamente, na educação do campo, o trabalho coletivo é fundamental. Não seria possível a realização de tais práticas pautada na individualidade e a segunda é que o processo educativo, embora muitas vezes a própria escola se esqueça disso, é um processo social. Dessa maneira, é fundamental a articulação entre escola e vida, escola e realidade, escola e prática social. De tais constatações, a sua pormenorização constituirá as considerações que concluem o texto.

O trabalho coletivo, que se vincula ao sentimento de pertença ao empreendimento educativo, é um dos fatores constituintes do êxito das atividades educativas da educação do campo e também, pode-se dizer, de sua atividade singular enquanto movimento social. Além de determinado organizacionalmente, o trabalho coletivo sustenta materialmente atividades como a Pedagogia da Terra6, por exemplo, em que a organização dos tempos escolares é feita, basicamente, pelos envolvidos na atividade, ou ainda, na existência da maioria da escola do movimento, que, frente à necessidade da existência da escola, pais e mães, organização do movimento, lideres e os estudantes, se organizam em várias atividades para garantir o direito à educação. Tarefas como a construção material da escola, o tensionamento aos poderes públicos, a organização dos estudantes, só se consolidam com a participação de todos. A coletividade se expressa no movimento mais amplo de educação do campo.

O "casamento" da escola com a vida é que torna possível a efetivação de diversas práticas educativas aqui relatadas. A ampliação da rede escolar rural é um exemplo emblemático da afirmação. Se o olhar da educação do campo permanecesse fixo na escola, a rede não seria ampliada e sim diminuída, pois o projeto hegemônico de ruralidade brasileira não contempla a manutenção da vida na terra, mas sim a concentração demográfica no perímetro urbano. Somente um projeto de campo, pautado na valorização da cultura camponesa, na reprodução da existência da vida no campo se articula com a ampliação das redes escolares em tais localidades. Essa articulação evidencia, de acordo com exemplos citados anteriormente, a viabilidade da existência de ações contra-hegemônicas, que apontam, para os mais céticos, a possibilidade concreta da construção de uma educação emancipatória.

Para finalizar, o maior êxito das experiências descritas reside na articulação de suas práticas educativas com um projeto societal mais amplo do que se faz presente na realidade mundial, socialista ou emancipador. O projeto presente na Educação do Campo, se contrapõe ao projeto de educação e de escola do capital e faz isso, antes, no tipo de sociedade que produz essa escola e essa educação. Ou seja, a proposta educativa não é encontrada na escola, mas na sociedade. O processo chamado educação não reside na instituição, nas agências educativas, mas no ser humano e na produção de sua existência.

 

Referências:

ARROYO, Miguel. Gonzalez. Escola Cidadania e Participação no Campo. Em Aberto. Brasília: nº 9, Set., 1992.

BRASIL. MEC/CNE. Diretrizes Operacionais para Educação Básica nas Escolas do Campo. Parecer CNE/CEB nº 36/2001, aprovado em 4 de dezembro de 2001.

CALAZANS, Maria Julieta. "Para Compreender a Educação do Estado no Meio Rural". In: TERRIEN Jacques. Educação e Escola no Campo. Campinas: Papirus, 1993.

FERNANDES, Bernardo Maçando. MOLINA, Mônica Castagna. O campo da Educação do Campo. IN: MOLINA, Mônica Castagna e JESUS, Sonia M.S.A. (Orgs.). Por uma educação do campo - contribuições para a construção de um projeto de Educação do Campo. 2. ed. Brasília, DF: Articulação Nacional "Por uma Educação do Campo", 2005.

INEP. Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira. Panorama da Educação do Campo. INEP. Brasília: 2007.

KOLLING, Edgar. José. [et. al] [orgs.] Por uma educação básica do campo - Memória. Brasília: Educação, UNB, 1999.

LEITE, S. C. Escola Rural: Urbanização e Políticas Educacionais. São Paulo. Cortez, 1999.

MARTINS, Fernando José. Gestão Democrática e Ocupação da Escola: o MST e a Educação. Porto Alegre: EST, 2004.

MST. "Caderno de Educação" Princípios da educação no MST. n° 8: . 3ª ed Brasília: 1999.

MST. Dossiê - MST Escola - Documentos e Estudos 1990-2001. Caderno de Educação. n. 13 - edição especial, Veranópolis: Iterra, 2005.

 

 

1 Docente do Colegiado de Pedagogia da Unioeste - Universidade Estadual do Oeste do Paraná - campus de Foz do Iguaçu. Doutorando em Educação pela UFRGS - Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Bolsista do CNPq. fernandomartins@unioeste.br
2 Extensão no sentido dado por Paulo Freire, de estender os "saberes corretos, científicos" aos camponeses. Cf. FREIRE, Paulo. Extensão ou Comunicação? 11. ed. São Paulo: Paz e Terra, 2001.
3 Fonte: Censo Demográfico 2000 - IBGE.
4 Há casos narrados por moradores rurais, em que as crianças saem de suas casas às cinco e trinta da manhã, para seguir por estradas precárias mais de 50 km em um ônibus com lotação superior a cem passageiros, retornando a seus lares ao anoitecer.
5 Há um movimento constituído por educadores e educandos e entidades voltadas para a Educação do Campo, que conta com o acúmulo de discussões sobre a temática. Os vários materiais publicados por este movimento estão relacionados nas referências. As reivindicações citadas a seguir referem-se à Declaração 2002, aprovada no Seminário Nacional Por Uma Educação do Campo, realizado em Brasília de 26 a 29 de novembro de 2002.
6 Curso de formação de professores, realizado em várias universidades brasileiras, e oferecido para educadores(as) do campo, viabilizado pelo Ministério do Desenvolvimento Agrário.