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Congr. Intern. Pedagogia Social Mar. 2009

 

O desafio das escolas públicas e dos Conselhos Tutelares na defesa do Estatuto da Criança e do Adolescente

 

 

Isis S. Longo1

 


RESUMO

O trabalho intitulado O desafio das escolas públicas e dos conselhos tutelares de São Paulo na defesa do Estatuto da Criança e do Adolescente é resultado da tese de doutorado apresentada na Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo, na área de Sociologia da Educação. O objetivo da pesquisa ao analisar os motivos pelos quais as escolas públicas de São Paulo procuram os conselhos tutelares de suas regiões é apontar os limites e possibilidades da relação entre escola e Conselho Tutelar na defesa dos direitos da criança e do adolescente a partir das prerrogativas da Lei Federal 8.069/90 - Estatuto da Criança e do Adolescente. O trabalho de investigação e análise compreendeu pesquisa de campo em 10 escolas públicas e a totalidade dos 35 conselhos tutelares de São Paulo sobre as requisições das escolas no período do ano 2001 a 2006. O referencial teórico do trabalho foi o pensador italiano Antonio Gramsci, portanto, os conselhos tutelares e escolas públicas são defendidos enquanto espaços de transformação política e social, bem como os conselheiros(as) tutelares e os educadores(as) são compreendidos enquanto intelectuais orgânicos da classe trabalhadora.

Palavras-chave: Estatuto da Criança e do Adolescente - Conselho Tutelar - Direitos - Escola Pública.


 

 

Introdução

O presente trabalho, O desafio das escolas públicas e dos conselhos tutelares na defesa do Estatuto da Criança e do Adolescente é parte de pesquisa de doutorado desenvolvida na Faculdade de Educação da USP, na área de Sociologia da Educação. O objetivo deste artigo é destacar a atuação de duas instituições distintas: o Conselho Tutelar e a escola pública - para a garantia dos direitos do segmento infanto-juvenil.

No caso da instituição secular escola, é fato que no Brasil ela se fez uma realidade presente na vida da maioria da população há muito pouco tempo, porém, a tradição de uma cultura escolar liberal permanece no imaginário e práticas da sociedade brasileira. O Conselho Tutelar, por sua vez, é um órgão recente gestado na democracia participativa, não tem duas décadas de existência, mas o seu impacto no cotidiano das instituições sociais, entre elas, as escolas públicas, fez-se e faz-se sentir ora de acordo com as expectativas destas instituições, ora contrário às mesmas.

O trabalho de investigação e análise compreendeu a totalidade dos 35 Conselhos Tutelares existentes na cidade de São Paulo e a pesquisa em dez escolas públicas, sobre quais as queixas mais freqüentes que as escolas demandam aos Conselhos Tutelares de suas regiões. O referencial teórico é a análise gramsciana sobre a organização da sociedade civil e a compreensão dos conselheiros tutelares e educadores(as) enquanto intelectuais orgânicos da classe trabalhadora.

Para localizarmos os limites e as possibilidades de uma relação mais precisa entre estes organismos, procuramos nas raízes históricas do liberalismo à brasileira2 (que sempre defendeu a liberdade de comércio e a propriedade privada, sem, contudo, defender o princípio da igualdade jurídica) a concepção do conceito dos "menores" - delinqüentes e abandonados - e a concepção do direito à educação, com a criação de uma rede de ensino pública, para contemplar à maioria da massa pobre no interior da escola pública, laica, gratuita e para todos.

Para compreendermos as práticas discursivas dos educadores(as), tomamos os discursos como elementos históricos, que traduzem visões de mundo e posicionamentos ideológicos que implicam correlações de força e relações de poder. Pelos discursos dos educadores(as) e dos conselheiros(as) tutelares delineamos o papel da escola como locus de transformação e reprodução dos valores liberais que responsabilizam o sujeito por seu sucesso ou fracasso social.

Como a defesa da proteção integral é prerrogativa para a garantia de efetivação dos direitos do segmento infanto-juvenil, não há como coadunar a lógica liberal meritocrática dos direitos apenas para os que se esforçam, portanto merecedores dos direitos. Para que a sociedade brasileira não continue apenas reproduzindo os princípios do liberalismo que acentuam as desigualdades sociais, como o direito à liberdade e à propriedade, o direito à igualdade deve ser garantido. Desta forma, os conselheiros tutelares ao defenderem o ECA têm a tarefa histórica de reafirmar para as escolas públicas a irreversibilidade da democratização do ensino, na qual os filhos da classe trabalhadora são os sujeitos históricos titulares do direito à Educação e que estão e estarão dentro das escolas públicas com o potencial para formação de uma consciência crítica, para a organização e transformação social.

 

O Conselho Tutelar enquanto conquista da Democracia Participativa

Os conselhos tutelares (CTs) são órgãos criados a partir da promulgação do Estatuto da Criança e do Adolescente conforme prescreve o artigo 131: " O Conselho Tutelar é um órgão permanente e autônomo, não jurisdicional, encarregado pela sociedade de zelar pelo cumprimento dos direitos da criança e do adolescente, definidos nesta Lei".

Enquanto um órgão da democracia participativa o CT é um espaço público no âmbito municipal para defesa e garantia dos direitos do segmento infanto-juvenil e é tarefa da comunidade fiscalizar os trabalhos deste órgão. Ele tem como características centrais ser permanente, ter autonomia e não ter a jurisdicionalização de seus atos.

Ter um caráter permanente significa dizer que o CT deverá desenvolver uma ação contínua, as ocorrências que envolvam os direitos das crianças e dos adolescentes deverão ser atendidas de imediato e, por isso, o conselho não pode prescindir a continuidade de seus trabalhos, apenas há a renovação de seus membros a cada três anos. Assim que criado por lei municipal o funcionamento do CT terá caráter duradouro, pois o conselho apresenta-se como um órgão público que integra o ordenamento jurídico do país.

A característica da autonomia está relacionada à independência no exercício das atribuições do órgão que delibera e atua na aplicação de medidas previstas no artigo 101 do ECA. Esta autonomia de funções não impede que o CT esteja subordinado administrativamente a outro órgão público, como, por exemplo, dependa financeiramente de alguma secretaria municipal ou das subprefeituras, como ocorre com os CTs de São Paulo. Mesmo sendo um órgão autônomo sua atuação é fiscalizada pelo Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente (CMDCA), pela autoridade judiciária, pelo Ministério Público (MP) e pelas entidades que trabalham com o segmento infanto-juvenil.

O fato do CT ser um órgão não-jurisdicional significa que o conselho não pode exercer o papel e as funções do Poder Judiciário. Ele não pode fazer cumprir determinações legais ou punir quem as infrinja. No entanto, conforme artigo 136 do ECA , o CT pode encaminhar ao MP denúncia sobre infração administrativa ou penal contra os direitos da criança e do adolescente. Pode também, pelo artigo 95, fiscalizar as entidades de atendimento e iniciar procedimentos para apuração de irregularidades através de representações (artigo 191) e apuração de infrações administrativas (artigo 194).

O artigo 131 que define a característica de órgão autônomo, permanente e não jurisdicional do CT, complementa sua finalidade como um órgão encarregado pela sociedade (portanto, escolhido pela comunidade) para dividir com o Estado e a família a responsabilidade pelo cumprimento dos direitos da criança e do adolescente.

Os direitos que o CT deve proteger estão previstos no artigo 227 da Constituição Federal de 1988 que fora regulamentado pelo ECA em 1990 no seu artigo 4º:

É dever da família, da comunidade, da sociedade em geral e do poder público assegurar, com absoluta prioridade, a efetivação dos direitos referentes à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao esporte, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária. Parágrafo único. A garantia de prioridade compreende: a] primazia de receber proteção e socorro em quaisquer circunstâncias; b] precedência de atendimento nos serviços públicos ou de relevância pública; c] preferência na formulação e na execução das políticas sociais públicas; d] destinação privilegiada de recursos públicos nas áreas relacionadas com a proteção à infância e à juventude.

Para conseguir garantir o cumprimento dos direitos da criança e do adolescente o conselheiro(a) tutelar deve dominar o ECA, conhecer sua realidade local, conhecer a demanda e os equipamentos sociais existentes e deve elaborar conjuntamente com o CMDCA o plano municipal de atendimento à criança e ao adolescente para poder vislumbrar a efetividade de suas atribuições legais. Novamente, nos deparamos com a importância da existência da lei e com a insuficiência da mesma, pois a lei é uma ferramenta para cobrança de seus enunciados, mas é na organização e na luta política que os direitos serão conquistados. Somente o cumprimento burocrático da lei, com a criação do órgão CT, não será garantia à efetivação dos direitos. Há a necessidade de engajamento político e de uma ação orgânica do grupo dos conselheiros tutelares, junto aos trabalhadores(as), para que haja o enfrentamento ao modelo excludente de sociedade que ainda resiste na implantação de políticas públicas de caráter universal.

Como um órgão público partícipe do conjunto de instituições brasileiras os CTs compõe a estrutura da política municipal de atendimento à criança e adolescente, sob a prerrogativa constitucional do artigo 204 que se refere à descentralização político-administrativa e à participação da comunidade na formulação e controle das políticas sociais básicas.3

O espírito da Carta Maior de 1988 expresso no parágrafo único do artigo 1º.: "todo poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição"; fundamenta as diretrizes da descentralização político-administrativa e da participação da comunidade. Estes princípios simbolizam o momento da democratização do país, no qual os municípios reivindicavam maior autonomia na gestão das políticas e nos repasses de recursos federais e estaduais. O período militar com o centralismo nos recursos e direcionamento das políticas e programas públicos alimentava o clientelismo nos municípios e provocava a baixa execução de políticas públicas não condizentes com a realidade local. Estas práticas foram rechaçadas pela nova ordem democrática.

O novo formato do desenho das políticas sociais via representação e participação nos conselhos das políticas públicas, acalentava a idéia de que a participação dos segmentos sociais na formulação e na fiscalização das políticas seria a garantia à efetivação da democracia no país. No entanto, como a democracia política veio acompanhada do receituário neoliberal para o desenvolvimento econômico, as expectativas democráticas sobre a municipalização das políticas apresentaram a contradição da desresponsabilização do Executivo em garantir a efetivação das políticas. O Estado passa a transferir a responsabilidade da execução das políticas públicas para a comunidade, por meio das parcerias e da terceirização dos serviços públicos, principalmente na área da assistência social, com a proliferação das ONG - Organizações Não Governamentais no decorrer dos anos de 1990.

O órgão Conselho Tutelar com sua autonomia frente ao poder Executivo e sua competência legal para requisitar serviços públicos para atender a universalização dos direitos sociais ao segmento infanto-juvenil, precisa contar com a atuação política de conselheiros conscientes de seu compromisso histórico para a superação das mazelas das desigualdades de classe, gênero e etnia da sociedade brasileira. Os conselheiros tutelares como intelectuais orgânicos e agentes multiplicadores do ECA necessitam atuar junto às instâncias da democracia participativa, como os Fóruns Regionais dos Direitos das Crianças e dos Adolescentes, Fóruns de Educação, reuniões de associações de bairro e reuniões de Conselhos de Escola. Estes espaços de participação da comunidade são essenciais para o fortalecimento dos CTs, pois a comunidade se apropria das bases legais e se organiza para lutar por mais direitos. No âmbito das esferas de poder da máquina estatal, os conselheiros(as) tutelares têm que pautar a discussão do ECA junto às coordenadorias e diretorias de ensino, bem como demais organismos da administração pública (órgãos da saúde, da assistência social e outros) para que a rede de proteção integral aos direitos da criança e do adolescente seja uma realidade.

Como parte fundamental da rede de proteção integral, as escolas públicas são os locais que atendem cotidianamente o segmento infanto-juvenil na categoria aluno(a). Desta forma, entender o processo histórico da construção da rede pública de ensino no nosso país, nos auxilia na reflexão sobre a demora e a resistência ao ECA, por parte das escolas públicas que relutam em falar e vivenciar os direitos no seu cotidiano.

 

O Direito à Educação no Brasil como um direito de todos

A escola com sua cultural institucional4 enfrenta as contradições de uma sociedade de classe e tem sua dinâmica exposta a um permanente processo de crise, seja sobre os paradigmas de ensino-aprendizagem, seja pela inclusão massiva dos filhos e filhas da classe trabalhadora no seu interior, seja pela precarização profissional, seja pela perda de seu paradigma de indutora do progresso individual e social. A escola pública brasileira, com a massificação do acesso propiciado pelos militares com a Lei no. 5.692/71 se depara com críticas, cobranças e acusações, o que para Marília Sposito pode significar um momento propício para o questionamento da crise da escola pública como uma crise do modelo vigente que implicaria mudanças profícuas para uma nova concepção de escola pública.

Este momento de mudança de rumo pode significar o pertencimento da instituição escola pública a um projeto mais coletivo de constituição de sujeitos protagonistas de suas histórias, sendo possível vislumbrar um trabalho mais próximo às outras instituições que atuam com crianças e adolescentes, como os Conselhos Tutelares.

A crise da escola pública do século XXI recai na luta pela escola pública popular iniciada no século passado. A luta por uma escola dotada de recursos públicos suficientes para o exercício da autonomia escolar, por meio da gestão democrática e participação ativa da comunidade. A tese do sistema único nacional e popular de educação pública é atualíssima, visto que o sistema dual de ensino só acentuou as mazelas das desigualdades sociais, com uma escola pública burocratizada e submissa, sem recursos financeiros condizentes a uma política pública de qualidade.

Superar o ensino dual para formação de governantes e governados implica a criação da uma escola unitária, com a formação técnica e política, para que a classe trabalhadora organize uma política contra-hegemônica ao projeto neoliberal. A educação se estabelece na relação do indivíduo com o outro, do indivíduo com a sociedade e do indivíduo com a natureza; portanto, a hegemonia da classe dominante ao dissimular as contradições das classes sociais, inclusive por meio da mesma educação dominadora das elites pode possibilitar ao dominado a consciência das contradições e gerar a contra-hegemonia. Essa é a estratégia de luta de posições que Antonio Gramsci defende, com a criação de uma contra-hegemonia através dos agentes e instituições educacionais comuns a todas as classes.

O poder da hegemonia da educação derruba o mito da neutralidade do intelectual, no qual o intelectual orgânico é o que reflete conscientemente os pontos de vista do grupo social ao qual está vinculado. Há a necessidade histórica da luta por uma contra-hegemonia, para criar uma nova cultura intelectual popular e de massa, onde as contradições motivem a guerra de posição, para criar condições à classe trabalhadora para se apoderar progressivamente e democraticamente dos meandros de controle do Estado, como dos conselhos gestores de políticas públicas e dos conselhos tutelares.

Concordamos que o papel do intelectual orgânico da classe dominante seja o de fortalecer o aparato de coerção estatal que assegura a disciplina dos grupos subalternos, sendo papel do intelectual orgânico da classe dominada enfraquecer ideologicamente este aparato repressivo. Nos séculos XIX e XX Marx e Lenin foram os grandes intelectuais orgânicos do proletariado, e na atualidade, os novos intelectuais orgânicos são os pesquisadores e as lideranças da sociedade civil e da sociedade política. Os educadores e os dirigentes têm o conhecimento técnico e político, o que se traduz em munição necessária para a luta de classes e transformação da sociedade vigente, com a ação de um novo bloco histórico.

Se uma das funções da escola liberal é esclarecer os indivíduos das diferentes classes sociais sobre os direitos e deveres da sociedade moderna, na concepção de Gramsci, a própria escola liberal teria um potencial de transformação, ao possibilitar à classe dirigida conhecer os códigos e valores de quem a governa e criar dirigentes para poder governar. Para Mochcovitch, Gramsci analisa a escola burguesa como um projeto para a elevação cultural das massas, por meio da subordinação intelectual e dominação ideológica, sendo que a interiorização da ideologia dominante seria passível de refutação à medida que o direito de educação para todos é um processo de disputa de concepções de mundo entre indivíduos de classes divergentes e em permanente contradição.

Para que a classe trabalhadora se aproprie dos espaços públicos deliberativos, como os conselhos populares de diversas áreas e esferas governamentais, a lógica é a luta conjunta entre os movimentos populares e os intelectuais da classe trabalhadora. Para que haja possibilidade de uma escola popular apoderada pela comunidade, para que seja de fato um local de produção de cultura e não um local de consumo de mercadoria, é necessária a aproximação entre os movimentos de defesa da escola pública, movimentos de defesa da educação popular, movimentos pela melhoria das condições da vida da classe trabalhadora, movimento da infância, juntamente com os intelectuais da classe trabalhadora, entre eles os educadores e conselheiros tutelares.

A dificuldade histórica de se viabilizar um projeto contra-hegemônico de sociedade pela classe trabalhadora, conforme detalhado anteriormente, advém da formação da sociedade brasileira assentada em privilégios de classe, repressão violenta aos movimentos populares e vários golpes de Estado que sufocaram barbaramente os opositores dos regimes de exceção. Estes componentes de violência da nossa sociedade autoritária e excludente refletem também a concepção da burocracia do Estado, que no corporativismo de seu funcionalismo, mantém privilégios de categorias de servidores estatais, que coadunam com a lógica patrimonialista de apropriação dos espaços públicos e distanciamento da estrutura do aparelho estatal a serviço da população.

No que se refere às escolas públicas, a cultura institucional reproduz o atendimento das repartições públicas, com o distanciamento da população desde a presença no espaço físico, até a tomada de decisões sobre as questões administrativas, financeiras e pedagógicas. A organização dos movimentos populares do século XX impulsionou a mudança dos marcos legislativos para garantir o direito à participação efetiva da comunidade nos espaços de decisão das políticas públicas, no entanto, a apropriação destes espaços ainda carece da participação ativa das comunidades. Pelo aprendizado político no cotidiano das instituições escolares percebe-se que a escola tem resistido a transformar suas práticas autoritárias de séculos de história de exclusão, em um espaço democrático de garantia de direitos.

Se entendermos a escola pública, exclusivamente, como aparelho ideológico do Estado, o seu papel seria reforçar o modelo neoliberal colocando para o sujeito a responsabilidade pelo seu sucesso ou fracasso escolar. Para nós que entendemos a escola pública como uma instituição partícipe do sistema capitalista, mas potencialmente carregada de elementos de transformação, haja vista a diversidade de idéias, pessoas, crenças, ideologias e projetos políticos que compõe a 'massa' dos intelectuais das escolas, há vários tipos de resistências no interior da escola, como por exemplo, a resistência à hegemonia neoliberal.

Ao pensarmos a resistência ao modelo neoliberal na educação, ressaltamos o aspecto positivo da resistência enquanto estratégia política e ideológica de defesa da escola pública enquanto espaço de construção de idéias, formação de cidadãos críticos e autônomos, desafiadores da ordem vigente.

Ainda no plano da reflexão sobre o conceito de resistência há implicações negativas no fato de haver resistências da escola pública a mudanças de concepções e atitudes e da instituição que muitas vezes utiliza o argumento do apego às tradições e valores arcaicos para justificar práticas autoritárias que revelam uma resistência ao novo. Sobretudo, revelam a lógica de poder, a qual na instituição escolar é hierárquica e traduz essa verticalização do uso e abuso do poder e desconsidera a necessidade da mudança.

No caso das dez escolas públicas de São Paulo em que desenvolvemos nossa pesquisa, a implementação dos preceitos do Estatuto da Criança e do Adolescente no cotidiano escolar e a atuação do CT junto às escolas são temas polêmicos no interior destas instituições, que denotam a resistência à defesa do paradigma da proteção integral dos direitos dos nossos alunos, em virtude de perpetuação da visão meritocrática dos direitos em função do cumprimento primeiramente dos deveres.

A legislação dos anos 90 é fruto do momento histórico da luta pela redemocratização política do Brasil, após a promulgação da Constituição de 1988 houve a possibilidade de alteração das leis do regime militar, entre elas, o antigo Código de Menores datado de 1927 e reeditado pelos militares em 1979. O antigo código abertamente discriminava as crianças e adolescentes pobres, qualificando-os como menores abandonados ou menores infratores e não como sujeitos de direitos.

Com a promulgação do ECA crianças e adolescentes são reconhecidos como sujeitos em condição peculiar de desenvolvimento, portanto, seus direitos devem ser garantidos por todos, família, sociedade e Estado. Em razão de sua conduta, o adolescente não deve sofrer punição e nem o cumprimento de penas como os adultos e sim, ter direito a aplicação de medidas sócio-educativas que têm por tarefa socializar o adolescente e não excluí-lo da sociedade, confinando-o em depósitos prisionais como as FEBEMs.

O que temos nas escolas é o senso-comum de que: " o ECA é uma lei que só deu direitos para os adolescente e não deu deveres, portanto, não há mais controle dos meninos e meninas" Os problemas cotidianos com indisciplina, transgressões, enfrentamentos aos professores e diretores que antes eram tratados como casos de polícia, com a expulsão sumária dos delinqüentes, com a nova lei, são problemas de relacionamento e descumprimento de regras que devem ser encaminhados de forma pedagógica. Isso seria motivo para rejeitar ao ECA? Lidar de forma pedagógica com sujeitos em condição peculiar de desenvolvimento, num ambiente escolar causa estranheza ao corpo docente e à direção?

O destaque que apresentamos à resistência à nova legislação não recai necessariamente à lógica impositiva dos diferentes governos que assumem a administração e lançam novos programas obrigatórios por portarias e decretos e as escolas públicas resistem como protesto pela imposição. O que estamos avaliando é a resistência das escolas em mudar sua mentalidade punitiva em relação aos alunos(as), a lógica de que só merece ter direitos quem cumpre deveres. O saudosismo da época do regime militar, da época da repetência, da época da expulsão, da grande evasão, ou seja, da época que o ensino público não era um direito para todos.

Quando procuramos respostas para nossos questionamentos sobre a resistência das escolas para com a legislação do ECA nos deparamos com a visão elitista do ensino, conforme discurso dos professores entrevistados. Afirmações como: "Nem todo mundo nasceu para estudar!"; "Deveria haver diferentes tipos de escolas, uma para quem quer de fato estudar e outra para quem só quer brincar! Posicionamentos em defesa do corporativismo e do patrimonialismo, com o uso do espaço público, para funcionários concursados. "A escola ideal é a escola sem os maus alunos!"; o fato da escola ser para todos, inclusive para os alunos(as) que não se enquadram no modelo padrão de disciplina, produtividade, passividade, não é um princípio defendido.

Com essa mentalidade, o indivíduo usurpou e usa o bem público para seu próprio benefício e acaba por privatizar o espaço público, à medida que se apropria do espaço. Pela lógica de dono do poder submete aos demais que têm direitos de participar das instituições públicas como cidadãos ativos, participativos, mas que são cerceados pela burocracia. Intimidados pelos que sabem, pelos que têm o conhecimento, que falam bem, portanto, os cidadãos comuns justificariam o exercício do poder centralizador.

A resistência da escola pública em vivenciar o ECA no seu cotidiano é também reflexo de uma escola que não se abriu à comunidade, que não assumiu a gestão democrática como uma prática e que não assumiu a inclusão dos filhos da massa trabalhadora no seu interior como um direito. Esta escola, que não é um ente abstrato e sim um conjunto de interlocutores, tem um discurso de que estas questões teriam sido contempladas, mas suas práticas diárias seriam contraditórias ao discurso pronto, como bem registrou um grupo de formadores em direitos humanos 5.

No caso da nossa pesquisa, o descrença no ECA e no papel dos CTs segundo a visão de educadores e dirigentes de 10 escolas públicas de São Paulo, sem dúvida, não significa a unanimidade do pensamento das escolas das redes públicas de ensino municipal e estadual, no entanto, o olhar e o discurso de 15 educadores(as) sobre suas realidades escolares, possibilita a reflexão sobre mudanças e permanências de práticas institucionais que podem facilitar ou não a garantia dos direitos infanto-juvenis no interior das escolas públicas.

Novamente nos apoiaremos nas reflexões do grupo de formadores em direitos humanos, para problematizarmos a resistência dos professores frente à ingerência no espaço escolar. Os formadores em direitos humanos avaliaram como ambígua a situação do projeto de formação, pois o professor desejava soluções frente à dura realidade da sala de aula, mas negava sua autoridade para ação. Os formadores ao construírem um relativo consenso teórico e valorativo sobre educação para democracia e direitos humanos, vislumbravam possíveis formas de intervenções práticas, no entanto, estas possibilidades eram rechaçadas pelos professores que não as consideravam ações legítimas por não terem sido definidas pela Secretaria Estadual da Educação. Situação semelhante ocorre com os conselheiros tutelares que são considerados estrangeiros no território escolar, portanto, suas ações não deveriam ser incorporadas nas práticas escolares, pois, a hierarquia institucional não permitiria a escola acatar intervenções externas, mesmo que a autonomia escolar seja um princípio da gestão democrática, mesmo que a lei federal do ECA determine o reordenamento institucional.

Estudos acadêmicos, por nós analisados, apontaram as dificuldades de diálogo entre as escolas públicas e os CTs, principalmente, no que tange às relações institucionais, quando escola e Conselho Tutelar disputam o poder burocratizado, competindo socialmente para definir qual instituição teria a palavra final, no cumprimento de suas determinações.

Vivenciar experiências democráticas dentro de instituições escolares é o aprendizado necessário à formação de sujeitos autônomo, responsáveis e republicanos. Portanto, o Estatuto da Criança e do Adolescente é um mapa a ser pesquisado por todos nós envolvidos com a construção de uma sociedade mais justa, pois lidar com sujeitos em condição peculiar de desenvolvimento pressupõe conhecimento e comprometimento com a proteção integral do segmento infanto-juvenil.

Desta forma, ampliar o diálogo entre escolas e conselhos tutelares é fundamental para aproximar estas duas instituições co-responsáveis pela garantia dos direitos do segmento infanto-juvenil, que ora se reconhecem como parceiras, ora opositoras. Os CTs e as escolas públicas têm em comum a tarefa histórica de socializar uma legislação que universalizam direitos e não podem ser coniventes com uma sociedade do cidadão-consumidor, na qual o deus mercado com seu modelo de exclusão social define por classe, gênero e etnia quem merece ter direitos.

Ao analisarmos os discursos e os exemplos dos conselheiros tutelares e dos educadores(as) sobre suas relações cotidianas, a partir das questões que as escolas demandam para os CTs, pudemos inferir que há três formas distintas das escolas públicas acionarem o CT de sua região:

a) aproximação burocrática - quando a escola pública só demanda ao CT a lista dos alunos faltosos, como uma obrigação legal, do contrário a escola poderia ter uma sanção administrativa;

b) aproximação autoritária - quando a escola demanda ao CT casos de alunos indisciplinados, em busca de uma punição exemplar, com o extremo do referendo do CT para a 'transferência' compulsória;

c) aproximação para a garantia de direitos - quando a escola demanda ao CT casos de maus-tratos envolvendo seus alunos, casos que denotem a evasão escolar após a escola esgotar todos os seus recursos e casos que necessitem do CT aplicação de medida protetiva aos pais ou responsáveis.

Para que os CTs e escolas públicas estabeleçam relações de aproximação e parceria para a defesa integral dos direitos das crianças e dos adolescentes, a legislação do ECA tem que necessariamente ser conhecida e compreendida por todos. É fato que os conselheiros tutelares não têm 'pernas' para percorrer todas as escolas publicas da sua região, no entanto, é fato que só o trabalho de difusão dos preceitos do ECA junto às escolas públicas e demais instituições sociais poderá desmistificar os discursos preconceituosos sobre os direitos das crianças e sobre o papel fundamental que os CTs representam numa sociedade tão excludente como a nossa.

Nas falas dos educadores(as) entrevistados há a afirmação recorrente de que os CTs são órgãos importantes, mas pouco atuantes, e em virtude disso as escolas procurariam pouco o CT. Alguns educadores mais críticos fizeram reflexões sobre uma certa resistência da escola, e deles próprios em conhecerem melhor o trabalho dos conselheiros. A falta de conhecimento mais efetivo das atribuições do Conselho, bem como da legislação do ECA, foram observações destacadas pelos educadores.

As análises dos educadores sobre a decisão dos encaminhamentos ao CT foram bem diversificadas, o que indica que não há um parâmetro de procedimentos de como atuar em conjunto com os conselhos tutelares. Na questão sobre como a escola decide que este ou aquele caso deve ser encaminhado ao CT, para 40% dos entrevistados a decisão é de equipe técnica [direção e coordenação], para outros 40% a decisão é do Conselho de Escola, 13% afirmaram que é uma decisão do coletivo da escola [professores, coordenação e direção], e ainda houve um entrevistado que desconhece a forma de como a escola decide quando deve encaminhar um aluno para o conselho tutelar.

Pela diversidade de respostas, nos parece que dependendo dos casos há formas de encaminhamentos diferenciados. Um dos casos mais graves, que significa a decisão da escola transferir o aluno por problemas graves de indisciplina, nas falas dos entrevistados, é recorrente afirmar que o Conselho de Escola decide pela "transferência compulsória" do aluno, mas como esse procedimento fere a legislação, o conselho de escola realiza sua reunião para comunicar à família que o aluno/a, devido seu comportamento, não deverá permanecer na escola, e que se a família não assinar a transferência, o aluno será encaminhado ao Conselho Tutelar. Ou seja, a escola pelo Conselho de Escola usa de ameaça do envio do caso ao CT, como uma forma de punição ao aluno.

Os conselheiros tutelares fizeram avaliação semelhante de que as escolas utilizam ameaça do envio dos alunos ao Conselho Tutelar como se lá haveria uma punição exemplar para os casos de indisciplina, como o absurdo de afirmações de que, dependendo dos casos, o CT enviaria o aluno para a FEBEM. Segundo o relato de vários conselheiros(as) a gestão atual [2005/2208] procurou estabelecer uma relação de maior cordialidade com as escolas, no entanto, o fato das escolas demandarem quase que exclusivamente casos de indisciplina, e muitas exigirem a presença do conselheiro tutelar para referendar o processo de transferência compulsória do chamado aluno-problema, o relacionamento entre as diferentes instituições torna-se tenso e desmobilizador para futuras ações conjuntas.

Para nós, militantes do movimento da infância e militantes e educadores(as) da escola pública, conselho tutelar e escola pública, são e serão instituições fundamentais para o combate à violação e para a garantia dos direitos das crianças e dos adolescentes, imperativos para a concretização de uma sociedade mais justa e mais humana.

O Estatuto da Criança e do Adolescente, com a magnitude de sua legislação, com a previsão da existência de um órgão autônomo e democrático, como o Conselho Tutelar e a Constituição Federal e a LBD da Educação, com a prerrogativa da gestão democrática das escolas públicas, por meio dos conselhos de escolas, foram legislações preciosas conquistadas no momento de redemocratização do Brasil. A primeira década do século XXI, com o aprofundamento das contradições do capitalismo, que aumenta a concentração de renda e acirra os problemas sociais, impulsiona os movimentos sociais a tomarem a história nas mãos e ocuparem os espaços institucionais para movimentarem um processo de mudança de mentalidade e mudança das práticas cotidianas frente à defesa integral dos direitos das crianças e adolescentes. A participação orgânica dos movimentos populares na transformação das injustiças sociais e violação dos direitos humanos é essencial para a conscientização da nossa juventude que se apropriando do protagonismo infanto-juvenil constrói no coletivo a sua história.

 

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1 Historiadora, Mestre em Educação pela FEUSP, Doutoranda em Educação pela FEUSP. Coordenadora Pedagógica da EMEF Cecília Moraes de Vasconcelos, membro da AETD - Associação Educativa TECER DIREITOS - Assessoria, Pesquisa e Formação para Democracia e Direitos Humanos. E-mail: isislongo@ig.com.br
2 Nosso referencial para o conceito de liberalismo à brasileira é a obra de Alfredo Bosi, Dialética da Colonização. - 4ª. Ed -São Paulo: Cia das Letras, 2001.
3 Artigo 204 da CF: "As ações governamentais na área da assistência social serão realizadas com recursos do orçamento da seguridade social, previstos no artigo 195, além de outras fontes, e organizadas com base nas seguintes diretrizes: I- descentralização político-administrativa, cabendo a coordenação e as normas gerais à esfera federal e a coordenação e a execução dos respectivos programas às esferas estadual e municipal, bem como a entidades beneficentes e de assistência social; II - participação da população, por meio de organizações representativas, na formulação das políticas e no controle das ações em todos os níveis".
4 Entendemos por cultura institucional o conjunto de práticas, concepções, valores e relações que é produzido e reproduzido dentro de uma estrutura social e histórica repleta de contradições entre os sujeitos da instituição.
5 CARVALHO, J.S.F. [Coord.] Educação e Direitos Humanos: experiências em formação de professores e em práticas escolares. In: SCHILLING, F. Direitos Humanos e Educação - outras palavras, outras práticas. São Paulo: Cortez, 2005, p. 189.