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Congr. Intern. Pedagogia Social Mar. 2009

 

As propostas pedagógicas do movimento negro no Brasil

 

 

Ivan Costa Lima1

 

 


RESUMO

Esta pesquisa de mestrado tratou sobre uma das propostas pedagógicas construídas pelo Movimento Negro no Brasil, no final da década de 70. A questão foi contextualizar e visibilizar na prática social a contribuição do Movimento Negro na construção de pedagogias, suas referências, suas relações, os valores e a história de uma delas. Destaca-se a elaboração das seguintes iniciativas: a Pedagogia Interétnica de Salvador (1978), a Pedagogia Multirracial, no Rio de Janeiro (1986) e a Pedagogia Multirracial e Popular do NEN, em Santa Catarina (2001). Pesquisei a Pedagogia Interétnica (PI), por ser esta a primeira a ser sistematizada pelo Movimento Negro. Com isso, busco reconstruir historicamente a PI, utilizando para isto uma abordagem sócio-histórica, alicerçada pela leitura de documentos e complementada por entrevistas com os sujeitos que construíram o Movimento Negro baiano e a pedagogia em foco. Com este estudo procuro a possibilidade de entender a trajetória da militância negra na área da educação, onde a construção de uma prática pedagógica, preconizada por este movimento social, se encontra sem interlocutores no espaço acadêmico que possam traduzir e divulgar o significado destes referenciais para a sociedade brasileira. Assim, em tempos de ações afirmativas, contribuir em minimizar o desconhecimento da história da educação e da sociedade brasileira de propostas educativas de combate ao racismo nos sistemas de ensino."

Palavras-chaves: Movimento Negro, Negros e Educação, Movimentos Sociais e relações raciais


 

 

Introdução

A preocupação norteadora deste trabalho foi procurar identificar o alcance do debate travado durante a década de 70 e 80 do século XX, referente à organização de uma proposta pedagógica nos espaços educativos, a partir da emergência de novas formas coletivas da sociedade civil, em especial do Movimento Social Negro.

Neste caso, tomei como referência uma das entidades deste movimento, situada em Salvador, o Núcleo Cultural Afro-Brasileiro (NCAB). A premissa aqui foi a de que esta organização pode de fato ser tomada como uma expressão da luta anti-racista no Brasil, principalmente pelo fato de seus participantes serem autores e atores políticos relevantes desse debate de organização do Movimento Negro e de formulação de uma proposta pedagógica de combate ao racismo.

O contexto da mobilização racial em Salvador, na década de 70 do século XX, esteve ligado com a retomada dos movimentos sociais em sua reorganização, buscando questionar a ditadura e a necessidade da redemocratização do país. O MN nesta esteira, além destas questões mais gerais, buscou trazer para a cena nacional o questionamento da "democracia racial" brasileira, denunciando a existência do racismo e buscando colocar na ordem do dia que as desigualdades existentes não se situam apenas no âmbito das relações de classe.

Para alcançar o conhecimento desta experiência educativa a pesquisa procurou responder as seguintes questões centrais:

• qual o contexto social e político que levou à construção de uma proposta pedagógica com enfoque racial no Brasil, no final da década de 70?

• quais os pressupostos teóricos, políticos e culturais que foram utilizados para a construção desta proposta pedagógica?

Para tanto, utilizou-se de entrevistas semi-estruturadas junto aos seus formuladores e integrantes do MN, e de matérias veiculadas pela mídia impressa tendo-se como fontes a Universidade Federal da Bahia (UFBA), a Universidade Estadual da Bahia (UNEB) e o Centro de Estudos Afro-Orientais (CEAO). Assim como, de periódicos contidos na Fundação Gregório de Matos do Arquivo Histórico Municipal de Salvador.

As entrevistas foram realizadas na cidade de Salvador, em janeiro e setembro de 2003, tendo como interlocutores:

- Manoel de Almeida Cruz (1950-2004), sociólogo, um dos fundadores do Núcleo Cultural Afro-Brasileiro (NCAB) e o principal formulador da Pedagogia Interétnica.

- Geruza Bispo dos Santos, pedagoga, trabalhou como coordenadora pedagógica na Escola Criativa Olodum e na implementação da PI, no período de 1993 a 1997.

- Lino Almeida, um dos fundadores do Movimento Negro Unificado (MNU) na Bahia. Começou a militância originalmente na Sociedade Male Cultura e Arte Negra, posteriormente constituiu o NCAB.

- Jônatas C. da Silva, atuou desde 1978 no MNU, primeiramente em São Paulo e depois na Bahia. É diretor e coordenador do projeto de extensão pedagógica do Ilê Aiyê.

- Ana Célia da Silva é professora da Universidade Estadual da Bahia (Uneb), fundadora do MNU/BA, responsável pela formação no projeto de extensão pedagógica do Ilê Aiyê;

- Raimunda Rodrigues Pedro, pedagoga, professora e ex-diretora da Escola Municipal Alexandrina dos Santos Pita, que implementou a PI em 1984.

Portanto, a pesquisa se situou numa perspectiva sócio-histórica, mostrando-se que a evolução do ensino brasileiro está relacionada a injunções sociais e políticas, e com isso contornar o desconhecimento da história da educação e sociedade brasileira sobre este tema.

 

Movimento Negro e Educação no Brasil

As trajetórias dos processos organizativos dos movimentos sociais no Brasil foram marcadas pela retomada das organizações coletivas: de mulheres, ecológicas, e raciais e étnicas, acarretando o desenvolvimento de estudos e campos de pesquisa em vários centros acadêmicos (Scherer-Warren, 1999).

Os anos 70 e 80 do século XX se constituíram no período de busca de afirmação do debate das relações raciais em vários campos da ação social. O Movimento Negro brasileiro se organizava tendo como referência às experiências das lutas anteriores engendradas pelas várias formas do processo de resistência à escravidão, o processo de constituição dos quilombos, a estruturação das irmandades e das tradições religiosas de matriz africana, da imprensa negra e as várias expressões culturais e políticas.

No sistema de ensino brasileiro estudos têm apontado que o racismo não tem como único fundamento à escravidão do negro, mas que se encontra vinculado a um projeto político social fundamentado em teorias sobre raças inferiores, determinismo biológico, evolucionismos (Schwarcz, 1993), que explicam as desigualdades sociais sem ferir os preceitos liberais de oportunidades iguais para todos (Viotti da Costa, 1999).

Na emergência do ressurgimento dos movimentos sociais, e em especial a do Movimento Negro no Brasil, a educação foi apontada como estratégica, porque seria uma das políticas públicas indispensáveis para a organização dos setores marginalizados.

Para Winant (1994) os novos movimentos sociais recriaram a sociedade civil expandindo o território da política. Tornaram públicos os temas que eram antes considerados pessoais ou privados, ou seja, impróprios para a ação coletiva. Assim, nestes grupos se encontrava sob novas formas uma gama de temas democráticos radicais - religiosos, feministas, mas principalmente "humanistas". Sob este enfoque, Winant (1994, p. 124) afirma que: "[...] o ascenso negro foi uma combinação de dois fatores: a reemergência da sociedade civil, que necessariamente abriu território político para a iniciativa do movimento social, e a politização das identidades raciais sobre este território".

O MN numa perspectiva de rediscutir o território da educação trouxe não somente reivindicações, mas também problematizações teóricas e ênfases específicas (Gomes, 1997). A referida autora aponta as contribuições a partir do ponto de vista do próprio Movimento Negro, para a educação brasileira. A primeira contribuição refere-se à denúncia de que a escola reproduz o racismo presente na sociedade. A segunda contribuição dos negros para o pensamento educacional brasileiro refere-se à ênfase no processo de resistência negra. A terceira contribuição refere-se à centralidade da cultura. A quarta contribuição diz respeito à existência de diferentes identidades, discutindo o caráter homogeneizador da escola brasileira.

A partir dessas concepções o MN buscou na sua trajetória construir e desenvolver propostas pedagógicas no sentido de modificar o espaço da educação2.

Dentre elas, destaca-se em 1978, a Pedagogia Interétnica do Núcleo Cultural Afro-Brasileiro (NCAB), em Salvador, objeto deste estudo.

Em 1986, a Pedagogia Multirracial desenvolvida por Maria José Lopes e um grupo de educadoras, no Rio de Janeiro, que utiliza como referencia a PI argumenta que:

[...] escola deve ser considerada não apenas o espaço para a apropriação do saber sistematizado - como entendem algumas concepções pedagógicas - mas também o espaço de reapropriação da cultura produzida pelos grupos sociais e étnicos excluídos [...] a escola deve deixar de ser o espaço e negação dos saberes para enfatizar a afirmação da diferença, num processo em que os indivíduos e grupos sejam aceitos e valorizados pelas suas singularidades, ao invés de buscar a igualdade pela tentativa de anulação e inferiorização das diferenças (LOPES, 1997a, p. 25).

Em 2000, tem-se a proposta desenvolvida em Santa Catarina, pelo Programa de Educação do Núcleo de Estudos Negros (NEN), intitulada Pedagogia Multirracial e Popular, que, além de se basear nas concepções apresentadas pela proposta do Rio de Janeiro, busca incluir as práticas educativas que se desenvolvem em outros tempos e espaços, para além da escola.

 

A mobilização negra no contexto baiano

Na Bahia uma das primeiras grandes capitais, desenrolou-se na década de 70, entre outros acontecimentos políticos e sociais, uma das primeiras experiências de construção de uma proposta pedagógica de combate às desigualdades raciais nos espaços educativos.

Na "Roma Negra"3 essa década, em termos econômicos e sociais, representou uma nova etapa na consolidação da industrialização na Bahia, e em mudanças estruturais na capital, Salvador. Foi o momento de aporte de recursos advindos dos benefícios fiscais do governo, por intermédio da Sudene, surgindo o Centro Industrial de Aratu (CIA), e pela instalação do Pólo Petroquímico de Camaçari.

Esse tipo de desenvolvimento capitalista consolidou o processo de formalidade do mercado de trabalho em vista do abrupto aumento populacional, tal crescimento da cidade de Salvador não foi seguido de um respaldo pelo poder público no que se refere à absorção desta população empobrecida que se deslocou para os centros urbanos.

Do ponto de vista cultural, essa década foi o momento em que se definiu realmente uma política governamental de cultura e turismo, onde se institui a vertente africana como uma marca de afirmação do ser baiano, alicerçado pelo candomblé e outras manifestações da cultura afro-brasileira (Bacelar, 2003). Assim, esse novo enfoque oficial corroborou a existência em Salvador de uma verdadeira "democracia racial".

Dessa dinâmica sociocultural, encontram-se as bases para a construção do Movimento Negro baiano, que se pode caracterizar por dois momentos: num primeiro, constitui-se na esteira das várias ações de caráter cultural, com especial atenção ao espaço religioso. Num segundo momento, uma intervenção de caráter político e ideológico na perspectiva de denúncia explícita do racismo.

A década de 70 trouxe elementos essenciais4 para a criação de organizações negras, estruturadas em torno de uma ação cultural e política do negro, em vários espaços sociais, como o Núcleo Cultural Afro-Brasileiro (1974), a Sociedade Male Cultura e Arte Negra (1975), o Grupo de Teatro Palmares Inaron (s/d), dos Blocos Afros, como Ilê Aiyê (1974) entre outros; e o surgimento do Movimento Unificado Contra a Discriminação Racial (1978), que assumiu um caráter mais contestatório da condição racial no Brasil e na Bahia.

Tem-se como ação inicial do questionamento do papel da cultura diante os agentes do estado, o surgimento do Bloco Afro Ilê Aiyê, fundado em 1974, com a perspectiva de problematizar a ideologia dominante (Silva, 1988, p. 281).

Posteriormente, essas e várias outras mobilizações criaram o caldo para o surgimento, em 1978, do Movimento Negro Unificado Contra a Discriminação Racial (MNUCDR), a partir da manifestação na cidade de São Paulo, que entre outras questões teciam críticas à forma como a cultura afro-brasileira era manipulada e cooptada pelo poder vigente.

 

O NCAB da ação política a pedagogia interétnica

É nessa configuração que o NCAB surgiu, em 1º de agosto de 1974, numa perspectiva de ação política voltada para o questionamento da situação dos negros em Salvador, sua perspectiva era insurgir-se contra a ideologia do mito da "democracia racial", e estabelecer uma releitura da herança africana, buscando se diferenciar do que os setores hegemônicos da sociedade baiana e da academia entendiam sobre a cultura afro-brasileira (Bacelar, 2003).

Contudo, nota-se que para obter reconhecimento público, mesmo com críticas ao mundo acadêmico, o NCAB estruturou-se de forma paralela a departamentos existentes na universidade, compreendendo coordenadoria, vice-coordenadoria, tesouraria, secretaria e vários departamentos, tais como de Sociologia, História, Relações Públicas, Psicologia, Antropologia e Artes.

Essa postura alicerçou-se não apenas pela luta cultural, como apostou o Ilê Aiyê, mas pela via da pesquisa e da construção de um conhecimento científico sobre a história e a cultura, que desembocaria na construção de uma proposta pedagógica.

A construção da Pedagogia Interétnica (PI) se deu pelo processo de acúmulos dos vários seminários, cursos, encontros entre outras ações promovidos pelo NCAB, tendo como aporte áreas como a Sociologia e a Antropologia.

Dentre essas ações, destaca-se uma pesquisa sobre o preconceito racial contra o negro desenvolvida na cidade de Salvador, no ano de 1975. A referida pesquisa afirmou o viés acadêmico perseguido pelo NCAB, a fim de consolidar a existência de um pensamento próprio acerca das relações raciais, em Salvador.

Denota-se, que essas considerações contribuíram para colocar o debate educacional não só como causa, mas, também, como resposta ao desafio do combate ao racismo, como se verifica nesse depoimento:

[...] surgiu à idéia de uma intervenção no processo educacional, a partir de nossos estudos e pesquisas nós detectamos que o preconceito racial e o racismo eram transmitidos pelo processo educacional, e só uma intervenção sistemática poderia dar uma resposta mais científica e positiva com relação a este fenômeno [...] veja bem, a escola é um dos fatores, há a família, a própria comunidade, os meios de comunicação social que integram todo este complexo, que formam fatores transmissores de preconceito racial e estereótipos (Manoel).

Como resultado desses processos, realizou-se o I Seminário Experimental sobre Educação Interétnica5, em 1979, onde se apresentou como subsídio para a discussão os resultados da pesquisa sobre preconceito racial contra o negro.

Com isso, tem-se a justificativa para a necessidade de elaboração de um sistema de educação interétnica voltada "[...] para a nossa realidade sócio-cultural, política e econômica, e dentro de uma concepção cientifica, dialética e conjuntural, que permita a compreensão do nosso mundo, sem perder de vista as estruturas que oprimem o homem".6

Estas reflexões foram centrais no seminário, levando seus participantes a delinearem o que seria o sustentáculo, dali em diante, da proposta pedagógica do NCAB, definida por um sistema que contou de cinco pontos, a saber:

1) aspecto histórico - busca-se as raízes históricas do preconceito e da discriminação racial contra o negro;

2) aspecto culturológico - estudo do preconceito cultural e do etnocentrismo, e uma análise da linguagem e do discurso racista;

3) aspecto antropobiológico - análise das teorias pseudocientíficas de superioridade racial, desmistificando-as;

4) aspecto sociológico - estudo da situação socioeconômica do negro na sociedade investigando as situações de baixa renda;

5) aspecto psicológico - estudo dos mecanismos de auto-rejeição e os reflexos condicionados objetivando a mudança de comportamento e de atitudes preconceituosas contra o negro.

Com essa estrutura inicial, em 1980, aconteceu o 2º Seminário de Educação Interétnica7, infere-se que nesse momento delineou-se a idéia de pedagogia. Pedagogia entendida, como um pensar e agir sobre a educação de maneira mais sistemática, centrada na idéia de operacionalização.

Essa percepção reforçou-se, porque o seminário teve como resultado prático à criação de uma comissão8 encarregada de elaborar um programa escolar9 fundamentado na cultura negra (Cruz, 1989).

De posse dessas elaborações, realizou-se, em 1985, o I Seminário de Pedagogia Interétnica. Percebe-se que a PI delineou-se de forma mais completa: apresentou-se com sua estrutura básica dos cincos pilares; desenvolveu-se de forma mais sistemática dos métodos e de procedimentos metodológicos; assim como, ampliou-se a partir da concepção de um currículo baseado nos valores e na cultura dos grupos étnicos dominados.

Assim, tem-se como estratégia de disseminação da PI, o lançamento do livro: Alternativas para combater o racismo: um estudo sobre o preconceito racial e o racismo, uma proposta de intervenção científica para eliminá-los, em 1989, escrito e editado por Manoel de Almeida Cruz.

Essa obra sistematizou os referenciais teóricos da PI, e reuniu o que já havia sido desenvolvido nos seminários anteriores e na divulgação da proposta pedagógica em vários encontros pelo Brasil.

A obra estrutura-se em dois blocos: o primeiro conceitua-se os usos, os sentidos e os estudos realizados até este período sobre as idéias de raça, preconceito, discriminação, etnia e cultura - aqui se atualiza o debate destas categorias à luz das Ciências Sociais, principalmente a Sociologia e a Antropologia. Tecem-se críticas ao caráter biológico da noção de raça, e do seu uso como destituído de fundamento científico. A etnia se apresenta como uma categoria capaz de se sobrepor a estas interpretações e de abarcar os conceitos de raça e cultura; o segundo bloco apresenta-se, sistematicamente, como se estrutura a PI, a partir da utilização de procedimentos e métodos10, assim esquematizados:

- métodos de pesquisas sobre o preconceito e o racismo: sociológico, análise da linguagem ordinária, semiológico; assinala-se que tais métodos devem ser aplicados com os pressupostos da pesquisa participante;

- métodos operacionais de combate ao racismo: curricular, etnodramático e comunicação total;

- aspectos estruturais: psicológico, histórico, sociológico, axiológico e antropobiológico;

- procedimento metodológico: etnofenomenológico e procedimento dialético;

- conteúdos para a didática do negro, do índio e da alfabetização de adultos.

Com isso, pode-se analisar a PI como uma construção eminentemente sociológica, que contribuiu na crítica da construção de raça como fator biológico. Por isso, a PI apropriou-se do conceito de etnia, enfatizando seu caráter mais abrangente, o que permitiria seu uso por outros povos em conflitos étnicos

Ressalta-se que no decorrer do livro, não se aprofunda o debate teórico de conceitos como didática, pedagogia, escola, currículo, entre outros, pois, aponta-se como maior preocupação, da PI, o caráter de intervenção no processo educativo.

Foi esse caráter de intervenção que levou a PI a outros espaços educativos a fim de afirmar as suas bases teórico-metodológicas, numa conjuntura em que a legislação educacional foi abrindo brechas para a cultura afro-brasileira.

 

A PI na Escola Criativa Olodum (ECO)...

Anunciada a PI para a sociedade baiana, o NCAB construiu uma trajetória de divulgação e socialização de sua proposta pedagógica, no início da década de 90. Esse processo se reforçou pela promulgação em 13 de maio de 1993 de uma lei municipal da Câmara de Salvador11, na esteira de outras legislações12 em âmbito nacional, que abrem espaços para o debate das relações raciais no campo educacional.

Com isso, permitiu-se um processo de reencontro com os espaços educativos a partir do convite formulado pelo Grupo Cultural Olodum13, em 1993, para Manoel integrar a equipe pedagógica da Escola Criativa Olodum (ECO)14.

O Grupo Cultural Olodum foi fundado em abril de 1979, e centrou sua ação política em atividades artísticas e culturais (Carvalho, 1994), na socialização de informações entre os participantes e a integração social da comunidade do Maciel e Pelourinho.

Como parte da iniciativa do bloco em envolver as crianças desse bairro em um projeto educacional, a Escola Criativa Olodum (ECO) foi criada em 1991, idealizada pelos diretores do Grupo Cultural Olodum, João Jorge Rodrigues, Cristina Rodrigues e Maria Auxiliadora Dias, respaldado pela experiência de sua ação e de um projeto anterior intitulado Rufar dos Tambores15. Posteriormente, num processo de reavaliação de sua experiência apostou-se no oferecimento de ensino escolar regular e profissionalizante. Para tanto, busca-se a Pedagogia Interétnica como suporte ao desenvolvimento teórico-metodológico dessa nova fase da ECO16.

Tem-se como grande desafio o debate entre o currículo tradicional, caracterizado por um padrão cultural centrado numa perspectiva eurocêntrica, e a PI propondo novos parâmetros para o ensino e a aprendizagem na qual o mundo negro era central. O enfoque, portanto, estaria em articular o currículo formal com a base cultural e histórica presente na ECO. Nesse sentido para uma das entrevistadas torna-se necessário:

[...] que a escola não perdesse a característica que ela já tem, que é uma escola musical, uma escola percussiva, que esse seria o ponto forte, o aliado da gente, porque escola, a gente tem o que a gente precisa é manter o aluno na escola, e como manter esse aluno na escola? A partir do momento em que ele se identifica com a escola, e para ele se identificar com a escola é preciso que a escola tenha um olhar para ele, que a escola fale sobre a vida dele, tenha um olhar para a história dele, e aí pensamos nisso, que a escola continuaria como uma escola de música, uma escola de arte, mas que teria também toda essa parte do ensino fundamental, essa parte obrigatória de currículo, etc. (Geruza).

Definido o perfil que a ECO assumiria o processo inicial foi à capacitação dos professores/as, a fim de que eles se apropriassem em nível teórico-metodológico da filosofia da PI.

Mesmo assim aparecem dificuldades, tendo em vista as fragilidades que tais profissionais demonstravam no debate mais aprofundado das relações raciais preconizadas pela PI, gerando resistências no enfrentamento dessa realidade. Na avaliação da coordenadora pedagógica isso se deu em função de que:

[...] a educação, o sistema educacional, ele foi tão violento para com a gente, ele nos negou tanta coisa, vou dizer negou tudo para a gente, que os professores e as professoras chegavam assim, vou ser até pesada, mas chegavam com uma ignorância tão total, que para os professores e as professoras era até difícil aceitar que o Egito ficava na África... Então a resistência era muito grande, porque a gente foi violentado, então o currículo é muito cruel para a história do negro, mesmo dentro da ECO (Geruza).

Assim, nota-se que os professores e as professoras da ECO se defrontaram ao mesmo tempo com o trabalho do Grupo Cultural Olodum, de valorização da consciência racial de seus componentes e diretores, assim como de uma nova abordagem educacional.

Dessa ótica, evidencia-se que o processo de formação dos educadores/as foi uma ferramenta fundamental para um debate mais consistente sobre as relações raciais e para a concretização de outra prática pedagógica preconizada pela PI.

Pode-se considerar que a proposta desenvolvida possibilitou construir mecanismos de resistência contra uma padronização ideológica expressada por valores de uma cultura européia, no ensino formal.

Por não contar com a legalização da Escola Criativa Olodum, por parte do poder estadual, e passado quatro anos de atuação da PI, o propósito de uma escola regular gerida por uma organização não-governamental enfrentou problemas na sua continuidade. Sem o aporte oficial para sua estrutura e manutenção, por ser considerado um projeto caro e cuja pretensão era dar conta de outra dinâmica educacional, a ECO encerrou suas atividades formais em 1997.

Paralelamente à intervenção na ECO, a equipe pedagógica, a partir de convênio17 estabelecido com a Secretaria Municipal de Educação, e apoiada por uma legislação indicativa para tal, procurou ampliar sua experiência numa escola municipal, tendo como base os pressupostos teórico-metodológicos da PI.

Assim, no ano de 1994, foi iniciado o processo na escola Professora Alexandrina dos Santos Pita, no bairro Pirajá18, com a finalidade de se realizar um projeto piloto que pretendia se estender posteriormente por outras escolas municipais.

 

... e na escola Municipal Alexandrina dos Santos Pita

Tem-se como referência que o projeto chegou até esta escola com o apoio da professora Raimunda, então diretora da escola e amiga de Manoel. Para além dessa relação de amizade, essa professora esteve comprometida com a luta de combate ao racismo, pois também fez parte dos eventos que estabeleceram o MN de Salvador, fato que reforçou a escolha dessa escola.

Identificado o espaço escolar da rede municipal a ser implementada a PI, o primeiro passo foi à apresentação do projeto a ser desenvolvido aos seus educadores, momento que se contou com a presença de representantes do poder público municipal que referendaram o desenvolvimento dessa proposta.

Apresentado o projeto, o processo de implementação se iniciou com a preocupação em subsidiar os educadores com os pressupostos teórico-metodológicos que constituíram a PI e sensibilizar os educadores sobre o tema das relações raciais.

"O primeiro passo era tentar sensibiliza-los e depois discutir se existia ou não este fenômeno no contexto da sociedade brasileira e logo depois desta discussão, encerrando esta discussão a gente trabalhava os conteúdos do seminário, a noção de cultura, a noção de etnia, a noção de raça, os efeitos negativos da discriminação, as leis proibitivas da discriminação, os mecanismos de transmissão do preconceito racial e por ai ia. (...) A gente terminava sempre convencendo"(Manoel).

Essa formação inicial teve como suporte o livro Alternativas para combater o racismo, de 1989. Após se trazer o repertório de conceitos e idéias defendidas pela PI, a preocupação era que tais conteúdos contribuíssem na prática pedagógica.

Esse processo envolvia se definir alguns tópicos sobre o tema das relações raciais, as disciplinas desenvolviam os trabalhos com seus alunos em sala de aula, buscando trazer para o cotidiano da escola esses temas.

Assim, procurou-se na escola recuperar os processos sociais nos quais a população negra se educava e construía sua identidade, numa perspectiva em alterar-se o quadro de rejeição e se construir uma auto-imagem positiva dos negros. No entanto, para efetivação dessa discussão, os educadores/as se deparavam com falta de materiais didáticos que dessem suporte a essa intervenção. Esse desafio foi superado em parte pelo apoio da Secretaria de Educação e pela produção desses materiais na própria escola.

Mesmo com essas dificuldades, o projeto se desenvolveu durante o ano de 1994, contando com aproximadamente 42 professores dessa escola, que apresentaram seus resultados mediante uma exposição da qual participaram também os alunos e professores.

Para Raimunda o resultado mais significativo nesse período de intervenção da PI foi à elevação da auto-estima de jovens negros e negras da escola:

[...] eu acho que a melhor coisa que aconteceu mesmo foi os jovens, aquelas crianças, adolescentes daquela época começaram, porque depois eles estão se amando de montão, a maioria não tá fritando seu cabelo, a maioria tem trançado, se achado realmente bela e vendo que a coisa mais importante é ter saúde, ter sabedoria, é saber como conviver em sociedade, é ter aprendizado de tudo bom que houver na vida, de se dar o valor a si para ser respeitado por si porque quando se respeita a si todo, mundo respeita, então o negro daqui agora, isso melhorou a cabeça deles (Raimunda).

Apesar do considerável impacto da ação dentro da Escola Alexandrina dos Santos Pita, constata-se que não houve a continuidade do processo. Justifica-se pela falta de ampliação da proposta em nível estadual e pela opção governamental de assumir as diretrizes advindas dos Parâmetros Curriculares Nacionais como estratégia suficiente para discutir as relações raciais, em detrimento de uma proposta pedagógica considerada localizada como a PI.

 

Considerações finais

Ao longo desse estudo demonstrou-se, que esta proposta pedagógica se caracterizou como uma das primeiras estratégias do MN de intervenção no processo educacional para o debate das relações raciais. Ficou evidente, na percepção de seus formuladores, de como a sociedade baiana e brasileira estabelecia mecanismos que dificultavam o acesso da população negra a estes espaços.

Nesse sentido, a Pedagogia Interétnica se mostra como um instrumento estratégico na formulação de novas práticas educativas para o combate ao racismo, apresentando ações educativas e investigativas que pudessem contribuir na alteração do processo de alienação e exclusão que o negro vivenciava na estrutura educacional brasileira.

Contudo, essa proposta educacional, no que se refere a continuidade de sua implantação, não alcançou pleno êxito, em razão da ausência de uma mobilização de outros setores sociais e populares que em face da repressão e da crença da falta de conflitos raciais existentes no Brasil, não permitiu a PI tornar-se uma política pública para o conjunto do sistema educacional em Salvador.

Para a história da Educação esta proposta pedagógica, apesar dos seus quase 30 anos de existência, trouxe aos educadores que sempre tiveram seus olhares para educação popular contribuições no debate sobre a democratização do ensino, ao colocar em foco o debate das relações étnico-raciais no país, ampliando o foco dos currículos escolares para a diversidade cultural, racial, social e econômica brasileira.

 

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1 Doutorando em Educação Brasileira - Universidade Federal do Ceará/UFC. Orientador: professor doutor Henrique Cunha Junior. Bolsista do CNPq. Mestre em Educação - Universidade Federal de Santa Catarina/UFSC. Membro do Núcleo Brasileiro, Latino Americano e Caribenho de Estudos em Relações Raciais, Gênero e Movimentos Sociais - N'BLAC/UFC - Juazeiro do Norte. Membro fundador do Núcleo de Estudos Negros (NEN), organização do movimento negro de Santa Catarina. Email: dofonosc@gmail.com.
2 No campo educacional Cunha Júnior (1999), Barcelos (1996) entre outros, têm contribuído no balanço da produção e na revisão de literatura sobre o tema no Brasil.
3 Essa expressão, Roma Negra, metaforicamente, procura caracterizar, de um lado, a Bahia como uma polis, que confere existência transatlântica à África negra, foi usada por uma sacerdotisa de candomblé, Mãe Aninha, fundadora da comunidade-terreiro Ilê Axé Opô Afonjá, em Salvador (Luz, 2000, p. 47).
4 Do ponto de vista estético a influência da moda representada pelos cabelos e roupas como do grupo Jackson Five, e da grande influencia do Black Soul, "[...] movimento expressivo em termos de mobilização, influenciando a trajetória de importantes militantes do Movimento Negro" (Barcelos, 1996, p. 198), que se espalhavam pelo território nacional. Do ponto de vista políticos temos " o movimento dos pantera negras nos Estados Unidos e as notícias sobre as figuras emblemáticas das organizações negras norte-americanas, como Martin Luther King, Malcom X, Ângela Davis. Porém, não só, tomava-se conhecimento da existência de fortes movimentos de resistência popular contra o jugo colonial nos países africanos lusófonos, ou seja, Angola, Moçambique e Guiné-Bissal". (Bacelar, 2003, p. 232).
5 O documento a que se teve acesso é o programa do seminário, no qual se apresenta uma proposta de educação interétnica, prefaciado de considerações acerca do conceito de racismo e preconceito racial, assim como dos cinco pontos que subsidiaram esta proposta e que foram os temas centrais do evento.
6 Cf. documento do seminário.
7 Deste seminário não se teve acesso a nenhum documento original, mas ele é citado por Manoel no artigo apresentado ao Caderno Afro-Asiático (1983), e no livro de sua autoria de 1989.
8 A comissão era integrada por Lino Almeida, Nelson Rigaud e Eduardo Batista.
9 Cruz (1989, p. 85) aponta como programa: música, dança e contos afro-brasileiros; teatro; e modelagem.
10 Para a compreensão de cada um destes aspectos e métodos consultar Cruz (1989).
11 A referida lei instituiu a "[...] criação de curso preparatório para o corpo docente e outros especialistas da rede municipal de ensino, visando à implantação de disciplinas ou de conteúdos programáticos no currículo da referida rede, baseado na cultura e na história do negro e do índio e dá outras providências" (NEN, 1997, p. 98).
12 Para maiores informações sobre algumas das leis sancionadas em âmbito nacional sobre o tema ver caderno do NEN (1997).
13 Para saber mais sobre o Grupo Cultural Olodum, ver Carvalho (1994).
14 Para maiores informações sobre a trajetória da ECO, ver Carvalho (1994), a autora analisa o processo de implementação do projeto Rufar dos Tambores até chegar à ECO, num momento anterior da fase de implantação da PI.
15 Conforme Carvalho (1994, p. 110), este projeto desenvolvido de 1984 a 1989, num primeiro momento buscava "[...] resgatar a auto-estima dos moradores da área, como também estimula-los a encontrarem alternativas capazes de combater os problemas econômicos, políticos e sociais ali existentes".
16 Os diálogos se efetuaram com Manoel de Almeida e Geruza.
17 Buscou-se na referida Secretaria documentação sobre o convênio, no entanto nada foi encontrado. A funcionária alegou se tratar de uma data muito distante, e que não há registros em função da troca de gestão, e com isso não havia um cuidado em se registrar todos os processos anteriores que passaram pelo órgão.
18 O processo de implementação teve como interlocutores Raimunda e Manoel.