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Congr. Intern. Pedagogia Social Mar. 2009

 

Uma escola diferente: a construção de um projeto pedagógico de escola no sistema sócio-educativo do Rio de Janeiro

 

 

Marcos Antonio da Costa Santos1

 

 


RESUMO

O presente trabalho apresenta resultados preliminares da pesquisa realizada pelo autor junto ao Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal do Rio de Janeiro. O trabalho tematiza as relações institucionais que envolvem uma escola da Secretaria Estadual de Educação do Rio de Janeiro que está instalada no interior de uma unidade do Departamento Geral de Ações Sócio-Educativas (DEASE), responsável por administrar a medida sócio-educativa aos jovens que cometeram algum tipo de ato infracional de acordo com o Estatuto da Criança e do Adolescente. O projeto pedagógico da escola constitui-se em uma proposta alternativa para fazer frente às dificuldades estruturais do sistema, ao mesmo tempo visa a atender ao período de internação provisória que inviabiliza a administração de um currículo regular em conformidade com as escolas regulares, chamadas pelos jovens internos de "lá de fora". O eixo principal do projeto pedagógico é a reflexão sobre cidadania e cultura. A partir desse eixo são estruturadas oficinas pedagógicas que agrupam as diversas disciplinas do currículo comum do ensino básico. Dessa forma são propostos temas geradores com o objetivo de provocar nos jovens reflexão sobre o ato infracional cometido, ao mesmo tempo em que procura novos horizontes a partir do envolvimento social e da re-significação da escola em suas vidas. A escolarização é obrigatória de acordo com o ECA, e nos discursos e documentos oficiais ocupa um lugar importante no cumprimento da medida sócio-educativa, apesar de evidências, como resultado preliminar de nossas investigações, uma relação conflituosa entre as duas instituições envolvidas. O problema guia da pesquisa é o de que como se desenvolve uma cultura escolar no interior de uma instituição de privação de liberdade e o seu reflexo na configuração do Projeto Pedagógico da unidade escolar. A observação nos indica que o caráter de instituição total e punitiva prevalece sobre o da educação, limitando assim as atividades pedagógicas e o processo de escolarização, que, assim nos parece, está desconectado da avaliação da medida sócio-educativa. Buscamos também compreender o efeito dessa escolarização nos jovens internos e como se manifestam quando estão no espaço da escola, procurando assim determinar a sua participação na configuração da cultura desse tipo de escola como sujeitos ativos. Os conceitos-chave para compreender as instituições sociais são o de instituição total, de Goffman, e o de disciplina, de Foucault . Em relação à escola estamos trabalhando com o conceito de cultura escolar desenvolvido por Nóvoa e Juliá. A escola, enquanto instituição social é estuda a partir dos trabalhos de Maria Helena de Souza Patto e Lúcia Garay. A reflexão sobre o papel da escola também como instituição de disciplinamento é baseada nos estudos de Julia Varela e Alvarez-Uria. A pesquisa possui um caráter qualitativo e está sendo desenvolvida com base em observação participante, grupos focais e entrevistas semi-estruturadas. A análise dos dados da pesquisa está sendo realizada de acordo com os princípios da sociologia compreensiva, que triangula os diversos dados coletados através de diversos instrumentos utilizados.

Palavras-chave: ECA - sistema sócio-educativo - projeto pedagógico - instituição total - disciplina.


 

 

A presente proposta de trabalho acadêmico surgiu a partir do nosso trabalho como professor em uma das instituições sócio-educativas no Rio de Janeiro, o Departamento Geral de Ações Sócio-Educativas (DEGASE), subordinado, hoje, à Secretaria Estadual de Governo (SEGOV). A escolarização é implementada pela Secretaria Estadual de Educação do Rio de Janeiro (SEDUC) que possui nas unidades de internação do DEGASE cinco unidades escolares oferecendo o ensino fundamental (na modalidade jovens e adultos) e o ensino médio.

Pretendemos refletir, como tema da dissertação de mestrado, sobre a significação desse processo de escolarização para os jovens quando em cumprimento de uma medida sócio-educativa de internação. Poderíamos assim estar contribuindo para a formulação de uma proposta pedagógica que levasse em conta as dificuldades sociais e econômicas desses jovens, as suas potencialidades e desejos, bem como contribuir para que a medida sócio-educativa seja eficiente no que diz respeito ao cumprimento do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) e de outras normativas que garantem direitos sociais a esses jovens, mesmo quando praticaram um ato infracional (Volpi, 2002). Acreditamos que garantir a escolarização desses jovens é um passo importante na implementação do ECA no que diz respeito à garantia de direitos de quem cumpre medida sócio-educativa de internação

Como podemos perceber, através de levantamento de pesquisas acadêmicas sobre o tema da escolarização no regime sócio-educativo, apesar de ser central para o cumprimento desse tipo de punição para jovens que cometeram um ato infracional, são escassas no campo da pesquisa educacional trabalhos que revelem como se dá essa escolarização. Reveste-se de importância social pesquisas que tragam discussões sobre a escolarização de jovens em cumprimento de medida sócio-educativa pela necessidade de reinserção social e reforço de políticas públicas visando à diminuição do envolvimento com o crime desse segmento populacional e lhes coloquem diante de outras opções para suas vidas. Não pretendemos abarcar todos os problemas inerentes a esse processo, porém temos como objetivo deixar a porta aberta a outros tipos de pesquisa (currículo, cultura, didática, entre outros). Atrai-nos, inicialmente, a perspectiva de discutir como se constrói um projeto político-pedagógico de uma escola no interior de outra instituição, a sócio-educativa.

 

PROBLEMA DA PESQUISA

A pesquisa tem como principal problema as relações institucionais entre uma escola pública e uma instituição de cumprimento de medida sócio-educativa2 no Rio de Janeiro.

A escola por si só possui um forte significado no imaginário social, ao ponto de pensarmos que é uma das instituições imortais de nossa sociedade. Uma escola que funciona no interior de uma outra instituição, a exemplo dos presídios e do sistema sócio-educativo, possui uma missão específica, que varia daquelas do mundo exterior que na maioria das vezes estão voltadas para o preparo do indivíduo para ocupar postos na escala social e invariavelmente reforçam o espírito meritocrático. A missão dessa escola é contribuir para a "recuperação" de indivíduos que cometeram algum tipo de ato criminoso e estão cumprindo suas penas determinadas pelo sistema judiciário.

A instituição prisão possui também um forte significado no imaginário social, e pelo que podemos perceber das leituras de opiniões de jornais e revistas, e do recrudescimento da violência urbana em nosso país, a sociedade clama por sua ampliação, como se houvesse a necessidade de uma purificação dos males sociais através da construção desse tipo de instituição.

O tema de nossa pesquisa passa por essa reflexão inicial. Uma escola pública que está inserida em uma unidade de internação de uma instituição que se destina ao cumprimento de uma medida sócio-educativa.

O problema guia da pesquisa é o de que como se desenvolve uma cultura escolar no interior de uma instituição de privação de liberdade e o seu reflexo na configuração do Projeto Pedagógico da unidade escolar:

- De que forma as relações entre as duas instituições influenciam na constituição de uma cultura escolar?

- Quais são as formas de integração entre as duas instituições, a escola e a instituição sócio-educativa reflete em seu projeto pedagógico?

O objetivo principal dessa pesquisa é compreender as relações entre uma escola pública e uma instituição de cumprimento de medida sócio-educativa. Somam-se a esse objetivo:

- analisar as relações entre a escolarização e o cumprimento da medida sócio-educativa;

- caracterizar a escolarização no interior de uma instituição sócio-educativa;

 

INSTITUIÇÃO TOTAL

A escola da SEDUC, que denominaremos a Escola Liberdade, funciona dentro de uma Instituição Total, como definida por Goffman (2001), que leva em consideração o fato do individuo viver isolado em relação à sociedade mais ampla e submete-se a algumas limitações de suas vontades pessoais.

São do tipo destinadas a proteger a comunidade de perigosos intencionais. Ainda de acordo com Goffman (op.cit), a Instituições Totais igualam-se assim, a finalidade das prisões, campos de prisioneiros de guerra, campos de concentração etc. Sendo assim, a instituição, do ponto de vista sociológico, funciona como "estufas para medir pessoas" (op.cit.), pois regula o comportamento do individuo com o objetivo de modificar o seu eu.

Para o interno adaptar-se às regras da instituição pode garantir que a liberdade aconteça mais rapidamente. De acordo com esse comportamento desejado pela instituição, o internado vive a angústia da espera pela liberdade, cria uma "fantasia da libertação" (op.cit., p.51). Seus atos podem abreviar a sua internação ou retardá-la, por isto o problema da liberdade se inclui no "sistema de privilégios" (op.cit., p.52). Em relação ao nosso tema de trabalho, essa questão é central. O internado, ao se apropriar do cotidiano da instituição, encontra nela lugares aprazíveis, de fuga, como afirma Goffman (op.cit, p.66), as pequenas ilhas de conforto diante das práticas institucionais. A Escola Liberdade poderia cumprir esse papel diante das agruras da Instituição Sócio-Educativa.

Completando o papel das instituições totais, de controle do comportamento do indivíduo internado, outra função pode ser dada às instituições totais: a de transformar o indivíduo em um delinqüente através do uso de tecnologias de disciplina. A esse respeito tomar-se-á a obra de Foucault (1977), Vigiar e Punir, para elucidar as condições em que os adolescentes do DEGASE cumprem a medida sócio-educativa, envolta no paradigma de segurança.

Para Foucault (1977) o individuo delinqüente é construído na prisão, que se desenvolve, para este autor, para substituir as formas de suplício marcadas pela dor e sofrimento público, "pois não é mais o corpo é a alma" (ibid., p.21) que se quer atingir. A recuperação do indivíduo passa pelo remorso. Sendo assim, todas as atividades que estimulem a participação coletiva são mal vistas pela instituição, pois o objetivo não é fazê-lo esquecer do crime que cometeu, função que poderia ser atribuída à escola nesse momento da vida dos jovens institucionalizados.

Ainda de acordo com Foucault (op.cit), o cumprimento da pena se dá sob um constante abuso do poder. Este abuso de poder pode se dar por "arbitrariedades administrativas", "corrupção, medo e incapacidade" por parte dos guardas e "exploração do trabalho penal" (ibid.,p.235). Para o autor o único efeito é acender ainda mais o ódio do prisioneiro contra as regras sociais e a própria justiça responsável por mantê-lo na prisão.

Para Foucault (ibid), o objetivo da instituição penal é alcançado pelas tecnologias das disciplinas. A disciplina se constitui numa tecnologia de exercício de um tipo de poder, comportando um conjunto de instrumentos, técnicas, procedimentos, alvos a cargo das instituições (especializadas ou não). Porém, as "disciplinas" não podem exercer o seu poder sobre os indivíduos sem a prática do "exame". Para Foucault (ibid., p.164), o exame é "controle normalizante, uma vigilância que permite qualificar, classificar e punir." O exame, como prática institucional é uma forma de exercício de poder, pois o seu objetivo é conhecer o individuo para impor-lhe a disciplina. Através dele se obtém a objetivação do comportamento desejado. Sua eficiência torna um ato cerimonioso a sua prática "no espaço que domina, o poder disciplinar manifesta, para o essencial, seu poderio organizando os objetos" (op.cit., p.167).

A leitura de Vigiar e Punir nos dá pistas sobre as contradições encontradas no sistema sócio-educativo do Rio de Janeiro. Enquanto a Lei (o ECA) garante os direitos, na prática, o sistema de disciplina da Instituição, o que nos parece, é quem determina o tipo de tratamento educacional aos jovens.

 

ESCOLA E SOCIEDADE

No texto A Maquinaria Escolar, Varela e Alvarez-Uria (1992) afirmam que a escola, pelo menos da forma como é hoje, não existiu sempre e como instituição está situada historicamente. Esses autores explicam o aparecimento da escola na modernidade como resultado de uma luta religiosa entre católicos e protestantes. A Igreja católica busca, a partir da Reforma Protestante, novos mecanismos de manutenção do poder na modernidade e encontra na escola um dos mecanismos de manutenção desse poder.

A definição e diferenciação de um estatuto de infância, o surgimento de um espaço específico para educação de crianças, o surgimento de especialistas, a elaboração de códigos teóricos, a disputa e destruição de outros modos de educação e por último a institucionalização da escolarização através da imposição da obrigatoriedade do ensino primário permitiram o aparecimento da escola nacional, de acordo com Varela e Alvarez-Uria (op.cit).

O surgimento de dispositivos disciplinares está em consonância com o surgimento da escola como espaço de educação. A construção da noção de infância e das fases de desenvolvimento, separando-as do mundo adulto, leva ao surgimento de "espaços fechados" que tomarão os conventos como modelos. Espaços também serão diferenciados de acordo a origem social dos educandos. De acordo com Varela e Alvarez-Uria (ibid) à criança pobre seria destinado o espaço de confinamento, os internatos, mais voltados à prática da caridade.

A partir do século XIX, com o surgimento de novas classes sociais em disputa, e principalmente a classe operária, a escola irá assumir uma nova função de tratamento moral das classes laboriosas e de controle social baseada numa "disciplina de gestos". A deferência ao professor, a exigência de silêncio e o isolamento em fileiras de carteiras exemplificam a disciplina imposta aos alunos das classes populares.

Sendo assim caberia uma reflexão sobre o papel histórico desempenhado pela escola no final do séc.XIX e em todo o século passado, recorrendo as obras de Patto (1999) e Garay (1998).

De acordo com Patto (op.cit) o processo de escolarização surge no contexto revolucionário de transformação da ordem feudal, aristocrática, para a ordem social burguesa na Europa. A burguesia passa a ver no mérito a única forma de ascensão social. Dessa forma a escola será vista como a instituição que irá promover a igualdade social e uma sociedade democrática, bem no espírito do iluminismo. A vitória da burguesia sobre o regime feudal é responsável pelo surgimento das categorias sucesso individual, mérito pessoal, racionalidade (ibid).

A lógica de funcionamento das instituições está em consonância com a função que adquirem na sociedade, que se articula a partir do funcionamento de suas instituições. A escola para Garay (op.cit, p.112), "satisfaz outras funções, além das educativas: econômica, de trabalho, de crédito, assistenciais, de contenção psíquica, de controle social, de poder, de prestígio".

Garay (ibid, p.112), ainda, coloca a escola na classificação de "instituição de existência", pois "centram-se nas relações humanas, na trama simbólica e imaginária em que essas se inscrevem, mas não nas relações econômicas". Como "instituição de existência" a escola pode ou não possibilitar os seres humanos a viver, trabalhar, educar-se e criar o mundo a sua imagem (GARAY, ibid). Sendo assim ela pode assumir uma importância no contexto da instituição de cumprimento da medida sócio-educativa, o que retornando a PATTO (op.cit, p.112) podemos entender que a escola é "último elo de uma extensa cadeia de dominação, a sala de aula é um lugar privilegiado no qual professores e alunos contribuem ativamente para a constituição da escola como realidade rebelde.

O sucesso de uma escolarização, que requer uma profunda compreensão dos processos sociais que trouxeram esses adolescentes e jovens para a instituição sócio-educativa, como afirma Garay (op.cit, p.117), "supõe construir novas simbolizações, aposta na construção da vida institucional com tempo e espaço pedagógicos centrados nos atores que constituem o princípio de fundamento de toda instituição educativa, aprendentes e ensinantes"

É dessa forma que vai se constituindo um projeto pedagógico da Escola Liberdade envolto nas práticas institucionais de onde se origina a sua cultura. Para Antonio Cândido (Cândido, 1983, p.107) a "estrutura administrativa de uma escola exprime a sua organização no plano consciente, e corresponde a uma ordenação racional deliberada pelo Poder Público". Porém, como explica Cândido (ibid), no interior da escola, enquanto grupo social, se desenvolve uma estrutura própria característica das conjugações dos elementos sociais próprios ou seja cada uma desenvolve a sua cultura própria, baseada em normas e valores que emergem de sua prática. Concordando com essa tese, António Nóvoa (NÓVOA,1995, p.15) afirma que "as intituições escolares adquirem uma dimensão própria, enquanto espaço organizacional onde também se tomam importantes decisões educativas, curriculares e pedagógicas". Para esse autor a sociologia da educação deve considerar o espaço da escola como fundamental para uma pesquisa sobre os sistemas de ensino, passando pela "compreensão das instituições escolares em toda a sua complexidade técnica, científica e humana" (op.cit, p.16). Ainda de acordo com Nóvoa (op.cit) as escolas devem ser consideradas como organizações, que funcionam com autonomia pedagógica, curricular e profissional, "funcionando numa tensão dinâmica entre a produção e a reprodução, entre a liberdade e a responsabilidade" (p.18). Para Nóvoa (op.cit) o funcionamento da escola é resultante de compromissos entre a estrutura formal e a dinâmicas dos diversos grupos envolvidos em seu processo.

É também fundamental para esse autor a compreensão de que é no contexto da escola, enquanto organização, que é possível surgir inovações pedagógicas significativas com mais chances de se consolidarem em detrimento das imposições dos órgãos centrais que gerem a educação.

Lançamos mão ainda da definição de Dominique Juliá (2001, p.10) sobre a cultura escolar. Para a autora a cultura escolar seria:

um conjunto de normas que definem conhecimentos a ensinar e condutas a inculcar, e um conjunto de práticas que permitem a transmissão desses conhecimentos e a incorporação desses comportamentos; normas e práticas coordenadas a finalidades que podem variar segundo as épocas (finalidades religiosas, sociopolíticas ou simplesmente de socialização).

Essa autora nos abre um caminho de investigação sobre o nosso objeto de estudo. Que normas e práticas estariam sendo instituídas pelo projeto político-pedagógico de uma escola que garante a escolaridade de jovens em cumprimento de medida sócio-educativa?

 

PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS

De acordo com os nossos objetivos nossa pesquisa é de caráter qualitativo, o que ao nosso ver , adequa-se ao nosso objeto de pesquisa e nos dará mais segurança em tentar responder às nossas indagações a cerca dos problemas de uma escolarização em cumprimento de medida sócio-educativa de internação e da construção de um projeto pedagógico. A pesquisa qualitativa para Cecília Minayo (Minayo,1994, p.10) são aquelas que "incorporam a questão do significado e da intencionalidade como inerentes aos atos, às relações, e às estruturas sociais, sendo essas últimas tomadas tanto no seu advento quanto na sua transformação, como construções humanas".

Podemos justificar essa escolha com a afirmação de Nóvoa (op.cit, p.16) de que uma análise da escola só possui sentido quando mobiliza todas "as dimensões pessoais, simbólicas, e políticas da vida escolar, não reduzindo o pensamento e a ação educativa a perspectivas técnicas, de gestão ou de eficácia strictu sensu".

Os seguintes instrumentos de pesquisa estão sendo utilizados:

A- A observação participante. Entende-se como o mergulho do pesquisador no campo para colher os seus dados. A anotação de comportamentos, conversas informais e dos acontecimentos em um "caderneta de campo" (ibid, 2007) contribui para um aprofundamento daquilo que as entrevistas e questionários não conseguem captar. B- Entrevistas semi-estruturadas com os atores sociais do processo (alunos, professores, equipe técnica e agentes). A entrevista semi-estruturada é montada a partir de perguntas fechadas e abertas, formuladas durante a entrevista (Rizzini,1999). Para Minayo (op.cit) entre os objetivos da entrevista semi-estruturada estão a compreensão das especificidades culturais mais profundas dos grupos e a comparabilidade diversos casos. Podemos fazer uso aqui do recurso da "história de vida" com o objetivo de se aproximar das experiências escolares dos jovens internados no sistema sócio-educativo.

C- Análise de documentos administrativos, pedagógicos e relatórios que envolvam o processo de escolarização e avaliação no sistema sócio-educativo.

Seguimos os conselhos de Minayo (op.cit) e Gomes (2007) que para pesquisas qualitativas não cabe a definição a priori do quantitativo de entrevistados. Para esses autores o quantitativo ideal é aquele que, a princípio, já demonstra uma repetição das informações sobre representações, práticas, conhecimentos e atitudes. Esse é, de acordo com Gomes (op. cit) o "critério de saturação".

A análise de dados da pesquisa qualitativa será realizada com base no que Gomes (ibid) denomina de Método de Interpretação de Sentidos, baseado na Sociologia Compreensiva (Minayo, op. cit). Assim leva-se em consideração palavras, ações, conjunto de inter-relações, grupos, instituições e conjunturas (Gomes, 2007). Para Gomes (op.cit, p.100) os princípios que balizam a interpretação dos sentidos são:

a) buscar a lógica interna dos fatos, dos relatos e das observações; b) situar os fatos, os relatos e as observações no contexto dos atores; c) produzir um relato dos fatos em que seus atores neles se reconheçam.

Para Mynaio (op.cit, p.242) uma abordagem compreensiva deve estar aberta a receber outros elementos interpretativos que poderiam surgir no campo. Sendo assim, a demonstração dos resultados ou a síntese interpretativa seria construída a partir de uma "triangulação" que consistiria na "combinação e cruzamento de múltiplos pontos de vistas através do trabalho conjunto de vários pesquisadores, de múltiplos informantes e múltiplas técnicas de coleta de dados".

 

CONSTRUINDO UMA ESCOLA DIFERENTE

O oferecimento de escolaridade obrigatória, como determina o ECA (art.124, inciso XI), deve se ater à realidade da internação provisória - curto período de permanência do adolescente na instituição e ausência de documentos comprobatórios de escolarização- e ao diagnóstico de baixa escolaridade dos jovens atendidos, em sua maioria das primeiras séries do ensino fundamental ou um longo período sem freqüentar escola3.

O Projeto Pedagógico da escola constitui-se em uma proposta alternativa para fazer frente às dificuldades estruturais do sistema DEGASE (segurança das unidades, reduzido número de profissionais etc), ao mesmo tempo visa a atender ao período de internação provisória (máximo de 45 dias) que inviabiliza a administração de um currículo regular em conformidade com as escolas regulares da rede estadual de ensino do Rio de Janeiro, chamadas pelos jovens internos de "lá de fora". O eixo principal do projeto pedagógico é a reflexão sobre cidadania, sociedade e cultura. A partir desse eixo são estruturadas oficinas pedagógicas que agrupam as diversas disciplinas do currículo comum do ensino básico e desenvolvem temas geradores durante o ano letivo. Essas oficinas são:

-Oficina Ambiental. O objetivo é ministrar de forma integrada história, geografia e ciências de acordo com os temas geradores sugeridos durante o ano letivo.

-Oficina de Vivência. Trabalha com dinâmica de grupo, refletindo sobre valores e ética. Agrupa a Educação Artística, a Filosofia (quando há professores) e o ensino religioso .

-Oficina de Linguagem. A construção de textos, o estímulo a expressão escrita e a leitura são os objetivos dessa oficina. Agrupa os professores de Língua Portuguesa e Inglesa.

- Oficina de Matemática. Procura desenvolver a matemática de acordo com o cotidiano.

- Oficina Recriarte. Realiza atividades recreativas e esportivas.

- Oficina de Informática. Desenvolve noções básicas de microinformática, através da plataforma Linux.

O Projeto Político Pedagógico da Escola Liberdade está ancorado na Lei de Diretrizes e Bases da Educação (Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996) que em diversos artigos garante a participação da comunidade escolar na sua elaboração e abre um leque de formas de organização das classes e de avaliação.

Encontramos também a garantia de um projeto de escolarização diferenciado no Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei 8069/90). Em seu Capítulo IV (Do Direito à Educação, à Cultura, ao Esporte e ao Lazer), art.57:

O poder público estimulará pesquisas, experiências e novas propostas relativas a calendário, seriação, currículo, metodologia, didática e avaliação, com vistas à inserção de crianças e adolescentes excluídos do ensino fundamental obrigatório.

Os esforços dos docentes e da direção da Escola Liberdade vão nesse sentido: criar um projeto pedagógico que estimule um retorno à escola.

A Escola Liberdade optou por agrupar as séries em etapas de acordo com o rendimento dos jovens internos no processo denominado de classificação, fase inicial de ingresso na escola onde se aplica um teste para verificar suas habilidades na escrita e na matemática. A classificação possui inicialmente esse objetivo e mais o de garantir a certificação para que o interno possa retomar o seu processo de escolarização. Uma problemática que ainda não possui solução esgotada: é possível rebaixar o aluno de série, mesmo quando não possui documentos comprobatórios de escolaridade anterior? O Projeto Pedagógico, como foi detectado, ainda não possui resposta para essa questão.

Dessa forma são propostos temas geradores com o objetivo de provocar nos jovens internos uma reflexão sobre o ato infracional cometido, ao mesmo tempo em que procura novos horizontes a partir do envolvimento social e da re-significação da escola em suas vidas, como demonstra dados iniciais da pesquisa. A escolarização é obrigatória de acordo com o ECA, e nos discursos e documentos oficiais ocupam um lugar importante no cumprimento da medida sócio-educativa, apesar de evidências, como resultado preliminar de nossas investigações, uma relação conflituosa entre as duas instituições envolvidas.

A observação nos indica que o caráter de instituição total e punitiva prevalece sobre o da educação, limitando assim as atividades pedagógicas e o processo de escolarização, que, assim nos parece, está desconectado do conjunto da medida sócio-educativa aplicada.

Uma outra questão que se coloca é o grau de autonomia que essa escola adquiriu diante dos órgãos de administração central. As imposições normativas da SEDUC não são viáveis diante da realidade de funcionamento institucional, obrigando então a se desenvolver mecanismos de gestão administrativa e pedagógicos originais. Poderíamos estar diante do que Mello (1998) chama de binômio "abandono-descompromisso". Essa autonomia surge do descompromisso com o funcionamento desse tipo de escola por parte da SEDUC.

A SEDUC não desenvolve um aporte técnico-administrativo-pedagógico para essas escolas. Um bom exemplo é a falta de regulamentação de seu funcionamento como projeto pedagógico diferenciado, apesar de existir uma mobilização de propostas nesse sentido que partiram do corpo docente4. Um aporte maior de recursos e de pessoal também não é levado em consideração. É limitado ao quantitativo de alunos matriculados e não em relação à função social que essa escola desempenha.

Observa-se que na maioria das vezes as direções das escolas estaduais que funcionam dentro do DEGASE entram em choque, por diversos motivos e interesses, diretamente com a direção desse órgão. O que demonstra uma desarticulação do funcionamento dessas escolas com os órgãos centrais e com o próprio DEGASE.

Para a Instituição Sócio-Educativa a escola não faz parte da sua missão, não é importante integrá-la ao tipo de atendimento. O fato de constituir-se em privilégio para alguns jovens que são seletivamente escolhidos para freqüentar as aulas demonstra essa tese. Aqueles que não são trazidos para a escola são ameaças a segurança da instituição.

A arquitetura do prédio onde funciona a escola é um fator que dificulta a garantia de "segurança" da instituição, conforme as queixas ouvidas pelos Agentes de Disciplina5. Bem melhor dizer que, na verdade, o que quer se evitar é a fuga, e cada um dos jovens é um fugitivo em potencial, segundo este paradigma. A missão desta instituição é isolar estes indivíduos perigosos do conjunto da sociedade, a fuga iria se constituir num fracasso institucional, não importando, porém as condições em que estes jovens são internados ou se terão realmente as atividades sócio-educativas preconizadas pelo ECA, como a escolarização.

Para estes jovens, como estamos detectando na pesquisa, a escola ainda representa a possibilidade de ascensão social e o acesso aos bens de consumo conforme demonstramos através das falas. Porém classificam estas escolas como chatas, sem atrativos e os professores que não lhes dão atenção. A rua quase sempre é mais atrativa como os próprios jovens dizem.

A ausência de atividades culturais e esportivas, como foi anotado e presente na fala dos jovens, torna a Escola Liberdade um privilégio. Na verdade, é uma ilha dentro da Instituição Sócio-Educativa.

Como não são todos os jovens que freqüentam a escola, o sentimento de ser necessário ter um bom comportamento durante as aulas para conseguir algumas regalias momentâneas se faz presente. Ler revistas velhas, participar de comemorações, merendar e assistir a filmes são regalias dentro da Instituição Sócio-Educativa para quem se submete à sua disciplina.

A representação que os jovens fazem é que ela é melhor do que a escola "lá de fora", uma referência a escola onde estudaram até abandonarem os estudos. Ela é uma antítese da escola "lá de fora", pois, segundo eles, os professores da Escola Liberdade são "bons", são "atenciosos", são "doces" e ensinam "melhor". Entende-se que a emergência destes aspectos subjetivos está relacionada com a situação de privação de liberdade a que estão submetidos estes jovens. A ausência de outras atividades torna a Escola Liberdade atrativa, mesmo para os que não gostam da escola. Isolados do convívio social, bodes expiatórios de um sistema econômico excludente, da sociedade onde é perigoso ser pobre. Dentro do Sistema Sócio-Educativo que lhe oferece como recuperação a tortura mental de não ter nada o que fazer em porões mau-cheirosos, segundo o que relatam na pesquisa . Jogam com as palavras, elogiam a escola como se assim conseguissem um aliado na busca da liberdade.

Porém, a instituição sócio-educativa, marcadamente uma instituição total, é quem consegue impor a sua disciplina. É incomodada por outra instituição que ao invés de isolar, de tornar os corpos dóceis, trabalha com o coletivo, aplica afetividade e poderia abrir espaço para o questionamento da instituição, embora a escola tenha um caráter também disciplinador (fator comum às duas instituições). A instituição sócio-educativa impõe a sua disciplina dificultando o funcionamento das aulas de diversas maneiras, seja não trazendo os alunos matriculados ou encurtando o horário de funcionamento da escola.

Os discursos dos jovens envolvidos na pesquisa demonstram a influência das práticas institucionais em seu comportamento. A ausência de outras atividades sócio-culturais e a dificuldade de ser chamado para a escola cria nos jovens uma perspectiva de liberdade a todo custo.

Buscamos também compreender o efeito dessa escolarização nos jovens internos e como se manifestam quando estão no espaço da escola, procurando assim determinar a sua participação na configuração da cultura escolar como sujeitos ativos e continuamos tentando compreender em que medida o corpo docente constrói esse projeto pedagógico, rompendo com o binômio exclusão-punição, valorizando os seus direitos e refletindo sobre o "ato infracional" praticado como recomenda Volpi (op.cit).

GUERREIRO

Não é por serem difíceis as coisas

Que não ousamos

E por não ousarmos

Que elas são difíceis

Você pode vencer

Quando não há alternativas

Para lutar. (jovem cumprindo medida sócio-educativa)

 

Referências

_______. Congresso Nacional. Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional. (Lei Federal nº 9394/96).Brasília, 1996.

BRASIL. Congresso Nacional. Estatuto da Criança e do Adolescente. ( Lei Federal 8.069, de 13 de julho de 1990). Brasília, 1990.

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GADOTTI, Moacir. Projeto Político-Pedagógico da escola: fundamentos para a sua realização. In Gadotti, Moacir;Romão, José E..Autonomia da Escola:Princípios e Propostas. 5ª ed., São Paulo, Cortez:Instituto Paulo Freire, 2002.

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Volpi, Mario (org). O adolescente e o ato infracional. 4ªed. São Paulo: Cortez, 2002.

 

 

1 Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Educação da UFRJ. E-mail: marcoscarol@oi.com.br
2 Denomina-se medida sócio-educativa a punição dada ao cometimento de um ato infracional por um adolescente ou jovem de acordo com o Estatuto da Criança e do Adolescente.
3 Dados da 2ªVara da Infância e da Adolescência e SEDUC-RJ.
4 Essas propostas foram incorporadas ao Plano Estadual de Educação do Rio de Janeiro que está em tramitação na Assembléia Legislativa desse estado.
5 Os Agentes de Disciplina são aqueles funcionários responsáveis pela manutenção da ordem e condução dos adolescentes e jovens na instituição sócio-educativa.