Congr. Intern. Pedagogia Social Mar. 2010
O fim da era FEBEM: novas perspectivas para o atendimento socioeducativo no estado de São Paulo
Cauê Nogueira de Lima
Mestrando do programa de Pós Graduação em Educação da Universidade de São Paulo sob orientação do Prof. Dr. Roberto da Silva
RESUMO
O corrente estudo intenta investigar o escopo das alterações realizadas pelo governo do Estado de São Paulo na instituição responsável pela execução das medidas socioeducativas de internação no Estado. Tais alterações foram consubstanciadas, especialmente, na mudança de nomenclatura da Fundação Estadual do Bem Estar do Menor (FEBEM) para Fundação Centro de Atendimento Socioeducativo ao Adolescente (Fundação CASA), o que possibilitou trazer para o sistema de execução das medidas socioeducativas aportes teóricos e metodológicos resultantes tanto do processo de municipalização quanto das relações de parcerias que a nova fundação estabeleceu. Tais alterações tinham em vista a adequação da Fundação CASA aos princípios da Constituição Federal e do Estatuto da Criança e do Adolescente, consubstanciados no SINASE. A pesquisa se iniciou em 2004 se estendendo até o ano de 2009. Foram observadas 15 unidades, sendo cinco delas pertencentes ao Complexo Raposo Tavares - que faz uso de modelos tradicionais de aplicação da medida - e as demais, fora da Capital - que fazem uso de novos modelos pedagógicos, de gestão e arquitetônico. Para a coleta dos dados foram utilizados métodos tais como a observações direta e indireta, visitas in loco, entrevistas com gestores, agentes de segurança, educacionais e da equipe técnica, além de conversas informais com adolescentes e funcionários.
Palavras-chave: Ato Infracional, FEBEM, Fundação CASA, SINASE, Medida socioeducativa de internação, modelos pedagógicos.
ABSTRACT
The current study intends to investigate the scope of the changes made by the government of the State of Sao Paulo in the institution responsible for the implementation of educational measures of confinement in the State. These changes were especially implemented based on the name change (from Fundação Estadual do Bem Estar do Menor - FEBEM - to Fundação Centro de Atendimento Socioeducativo ao Adolescente - Fundação CASA). This change has allowed the implementation of social-theoretical and methodological measures in the system, resulting from both the municipalization process and partnerships that the new foundation has established. These changes aimed the adequacy of the CASA Foundation to the principles of the Federal Constitution and the Statute of Children and Adolescents, based on SINASE. The research began in 2004 and ended in 2009. 15 units were observed, five of them belonging to the complex Raposo Tavares - which use traditional correctional measures - and the others, outside the capital - which use new pedagogical, management and architecture models. For data collection, methods such as direct and indirect observations, site visits, interviews with administrators, security officers, educational and technical staff, and informal conversations with people and officials were used.
Keywords: Offenses, FEBEM, CASA Foundation, Sinase, Socioeducative Measure, Pedagogical Models.
OBJETIVO
O objetivo deste artigo, oriundo da dissertação de mestrado com o mesmo nome, é analisar as modificações no caráter socioeducativo das medidas aplicáveis a adolescentes a quem se atribui a autoria de ato infracional, em especial, as práticas da instituição responsável pela execução da medida socioeducativa de internação e as mudanças no modelo administrativo que a levaram ao atual (gestão compartilhada).
PROBLEMA
Tais modificações sugerem alguns questionamentos para os quais esta pesquisa pretendeu buscar as respostas:
1. Que mudanças conceitual, teórica e metodológica esta implícita na alteração de nome da Fundação paulista executora das medidas socioeducativas?
2. Que alternativas de modelos de gestão são considerados a partir dos princípios de descentralização administrativa, de municipalização e de corresponsabilidade das comunidades / sociedade civil na execução das medidas.
3. Diante das novas possibilidades de parcerias e diferentes atores quais são as novas propostas pedagógicas a serem consideradas pela Fundação.
JUSTIFICATIVA
Os problemas gerados pela delinquência juvenil não são novos e nem específicos do Brasil, ao contrário, trata-se de questão historicamente debatida em diversos países. Não obstante, a forma que os distintos Estados e sociedades encontraram para lidar com os mesmos difere enormemente como na determinação da idade penal, nas formas de penalização das infrações cometidas por crianças e adolescentes, no aparato jurídico, policial e administrativo que o Estado institui para lidar com a questão, na arquitetura das instituições correcionais, no perfil dos recursos humanos empregados e nos modelos pedagógicos adotados.
As mudanças promovidas no sistema de execução das medidas socioeducativas no Brasil e no Estado de São Paulo suscitam a necessidade de estudos detalhados quanto ao seu significado. Em especial, importa investigar o que significou a mudança de nomenclatura da Fundação Estadual do Bem Estar do Menor - historicamente responsável pela custódia de adolescentes autores de ato infracional.
Neste mesmo sentido importa melhor conhecer as implicações da criação do Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo (SINASE) e a efetividade de princípios básicos do Estatuto da Criança do Adolescente, tais como a descentralização, a municipalização e a corresponsabilidade da comunidade na execução das medidas socioeducativas.
EMBASAMENTO TEÓRICO-METODOLÓGICO E METODOLOGIA DE PESQUISA
Para a consecução dos objetivos desta pesquisa foram feitos os necessários entendimentos com o gabinete da presidência e a superintendência de educação da Fundação CASA para delinear conjuntamente um roteiro de investigações onde melhor estivessem evidenciadas as propostas de mudanças. Tal entendimento foi facilitado pelo fato de já ter trabalhado na instituição, como professor da rede estadual de ensino, no Complexo Raposo Tavares, por cinco anos. Também influiu na pesquisa a situação de membro da Comissão dos Direitos da Criança e do Adolescente da OAB/SP e possuir formação acadêmica em duas áreas (Letras e Direito) o que possibilitou partir de uma análise das relações institucionais internas (micro) para alcançar uma visão mais abrangente acerca do funcionamento do sistema (macro).
Além disso, por meio da pesquisa documental, foram estudadas as normas internas da Fundação - resoluções, portarias e atos normativos - que orientaram o conveniamento com novas parcerias e os planos de trabalhos que expressam a intencionalidade das novas parcerias firmadas.
De comum acordo com as instâncias dirigentes da Fundação e utilizando-se do método de observação direta foram visitadas unidades de internação geridas segundo o modelo de gestão compartilhada adotado tanto para satisfazer ao quesito municipalização quanto ao quesito participação da sociedade civil.
Por meio da revisão bibliográfica, a prática pedagógica historicamente consolidada na FEBEM exaustivamente estudada por autores como Roberto da Silva, deu lugar ao estudo dos modelos pedagógicos sobre os quais recaem as apostas da Fundação para consubstanciação da mudança, quais sejam: o modelo pedagógico contextualizado (MPC) e a comunidade Terapêutica (CT).
Para a delimitação e explanação teórica das referidas modificações foi realizada primordialmente a pesquisa documental tendo por base a legislação, o Caderno da Gestão Compartilhada e portarias pertinentes ao tema. Além desta, também foram executadas entrevistas formais com os funcionários e informais com os adolescentes concomitantemente a pesquisa descritiva por meio da observação individual, não participante e sistemática, realizada em unidades de internação que apresentavam a época características pronunciadas que remetiam a algum elemento do novo modelo legalmente imposto. Isto, para aferir na prática o efeito das mutações normativas, buscando comparar a aplicação da medida de internação anterior à modificação na nomenclatura com a posterior.
Para se estabelecer o modelo anteriormente empregado, foi realizada pesquisa descritiva por meio da observação individual, participante e assistemática, desenvolvida durante o período de cinco anos (2004-2008) em todas as unidades de internação do Complexo Raposo Tavares (SP). Como parte da pesquisa descritiva, para dar os referenciais teóricos, foram utilizados principalmente os escritos de Winnicott e Roberto da Silva.
Desta forma foi possível comparar os modelos empregados anteriormente (Complexo Raposo Tavares) aos novos, inclusive valorando-os tendo por base os parâmetros instituídos pelo SINASE, assim como sugestões colhidas dos funcionários, adolescentes e pessoais que poderão ser empregadas no aperfeiçoamento do modelo institucional.
A medida de internação nas Unidades com Gestão Compartilhada da CASA
Novos Cargos
Não obstante as semelhanças, interessa primordialmente neste subitem o estudo dos novos cargos e funções criados para o novo modelo conforme demonstram a tabela extraída do caderno de gestão (2009) e o organograma realizado com base na pesquisa de campo:
O principal novo cargo instituído pelo modelo de gestão compartilhada é o de Gerente. Trata-se do mais alto posto atribuído a um funcionário da ONG. Ao gerente cabe a administração do pessoal - sobretudo dos funcionários da ONG (que são a maioria) - e também do orçamento assim como da burocracia envolvendo a prestação de contas. São tarefas de cunho eminentemente formal. Apesar disso, alguns gerentes conseguiram se destacar e efetivamente acrescer à administração direta da unidade (material). O gerente é hierarquicamente o mais próximo do diretor da unidade, mas a vontade deste prevalece sobre a daquele.
Todos os gerentes entrevistados afirmaram possuírem um excelente ou no mínimo um bom relacionamento com o diretor. Não é difícil imaginar os problemas que um relacionamento ruim entre as pessoas que ocupam estas duas funções poderia gerar (todos os entrevistados demonstraram consciência disso).
Outra mudança percebida foi um significativo aumento na equipe administrativa o que pode ser atribuído principalmente a necessidade de prestar contas sobre os gastos da unidade e sobre o orçamento. Tal procedimento foi citado recorrentemente nas entrevistas como extremamente penosos e burocrático; capaz de absorver os serviços de muitos funcionários além do gerente.
De todos os novos cargos o de articulador social foi o que mais surpreendeu ao longo da pesquisa. Um bom profissional nesta função é capaz de realizar parcerias e convênios fundamentais para a instituição além de obter doações e auxílio de outras entidades. Foram observadas parcerias com museus, clubes, teatros, empresas que empregaram os adolescentes e/ou que realizaram doações, asilos, orfanatos, instituições educacionais como faculdades, universidades, cursos técnicos...
É sem dúvida uma função primordial para o desenvolvimento da rede de amparo ao adolescente. Além dos convênios, parcerias e doações, os articuladores também funcionam como uma espécie de relações públicas que, se bem preparados, são capazes de minar a resistência que muitas localidades apresentam com relação à Fundação por meio de apresentações culturais e de serviços prestados pelos adolescentes. Como dito, é uma função primordial na medida em que pode possibilitar a abertura da instituição para a sociedade e, o que é mais importante, desta para a instituição e seus egressos.
Nos grandes Complexos a equipe médica era centralizada e não fazia parte da equipe da unidade (eram subordinados às regionais). No novo modelo todas as unidades possuem uma equipe médica - o que constitui um feliz avanço nesta área que outrora fora tão negligenciada. Com isso os tratamentos ocorrem de maneira muito mais rápida e efetiva. Além disso, como os médicos normalmente são da própria região - podem contribuir na montagem da rede de atendimento extraunidade para os casos de maior gravidade.
Outro novo cargo que merece destaque é o de instrutor de formação profissional. Este é um profissional contratado pela ONG para ensinar um ofício aos adolescentes que se encontram em cumprimento de medida socioeducativa de internação. Com a flexibilidade de escolha permitida às ONGs tornou-se possível explorar os campos mais promissores da cada região. É o que ocorre em Franca (trabalho com couro) e em Sorocaba (transportadoras).
Atendimentos
O atendimento religioso ocorre semanalmente e é oferecido por parceiros da instituição. Em todas as unidades observadas percebeu-se a oferta diversificada do atendimento religioso (ao menos duas religiões em cada unidade). Foram citadas as seguintes igrejas / religiões: Batista, Universal do Reino de Deus, Evangélica, Católica e Presbiteriana.
Todas as unidades visitadas relataram que o atendimento psicossocial individual ocorre ao menos uma vez por semana. A maior parte afirmou trabalhar também com o atendimento em grupo. O PIA é uma exigência do SINASE e por isso é empregados em todos os casos de todas as unidades. Para sua confecção foram citadas as seguintes ferramentas de trabalho: o ecomapa1, o genograma2 e o polidimensional3. Tais ferramentas são utilizadas nas unidades avaliadas conforme demonstram os gráficos abaixo:
Apesar dos avanços, um campo importante permaneceu sem a previsão de um profissional responsável: o jurídico. Nenhuma unidade analisada possuía profissionais capacitados para atuar nesta área. De todos os atendimentos observados nas entrevistas e visitas (social, psicológico, religioso e jurídico) é sem sombra de dúvidas o que apresentou os piores resultados. A maioria das unidades relatou não possuir ou receber qualquer profissional da área para atender aos adolescentes (e nem às unidades) e nenhuma afirmou possuir atendimento regular com intervalo inferior a um mês conforme demonstra o gráfico abaixo:
Capacitações
Outro ponto que merece destaque é a realização de capacitações, principalmente para os funcionários contratados pela ONG que, conforme fica claro no item 6.3., foram contratados para desempenhar determinada função dentro da unidade sem necessariamente conhecer a mesma ou o modo de funcionamento da unidade ou mesmo o projeto pedagógico nela desenvolvido. As capacitações ocorreram conforme o gráfico abaixo:
Sistemas e mecanismos de controle
Nas dez unidades visitadas a segurança patrimonial (externa / sem contato direto com os adolescentes em cumprimento de medida socioeducativa de internação), assim como a do Complexo Raposos Tavares, é terceirizada. Já a equipe de segurança interna é composta por agentes e coordenadores contratados pela Fundação CASA. O comportamento mais observado foi a completa não intervenção das ONGs no concernente às questões de segurança excetuando-se a essa regra apenas a Pastoral do Menor que conseguiu flexibilizar algumas limitações, inclusive arquitetônicas, sendo, por exemplo, a primeira a ligar a área destinada a Unidade de Internação Provisória com a destinada a Unidade de Internação por meio da sala dos coordenadores.
As dez unidades pesquisadas relataram problemas mais ou menos intensos com alguns antigos agentes de segurança da Fundação que não conseguiram se adequar a nova realidade disciplinar objetivada pelos projetos pedagógicos em voga. A solução mais relatada para os problemas mais sérios foi a transferência dos mesmos. Na maioria dos relatos os funcionários envolvidos estavam acostumados ao que denominamos no item 5.3.1. de modelos autoritários nos quais o poder se encontrava quase que exclusivamente nas mão da equipe de segurança e, por isso, não aceitaram o modelo que no mesmo item foi chamado de misto - e que impera nestas unidades. Problemas desta natureza, segundo Yamamoto, já ocorreram anteriormente na instituição conforme fica claro no excerto a seguir em que comenta a mudança ocorrida em 1976:
(...) em 1976, teve o nome alterado para Fundação Estadual do Bem-Estar do Menor, adaptando-se à política federal de atendimento ao adolescente em conflito com a lei e centralizando todos os aspectos referentes ao atendimento de crianças e adolescentes. Como herança, recebeu todos os funcionários daquela, acostumados ao sistema militar de tratamento ao menor. Em 2006, quando o nome da FEBEM foi alterado para Fundação CASA, também não houve alteração no seu quadro funcional. (2009, p. 23)
Em dezenas de conversas informais com os adolescentes, durante as visitas de observação direta nas 10 unidades analisadas, houve apenas uma denúncia de maus tratos dirigida a um funcionário que já havia sido transferido. Além disso, por meio da observação visual, que tive oportunidade de fazer, não identifiquei quaisquer indícios de violência física nos adolescentes observados (hematomas, arranhões, luxações, lesões, irregularidades no caminhar, marcas nos pés ou mãos...) o que infelizmente era relativamente corriqueiro em algumas unidades do Complexo.
Os mecanismos de controle assim como os próprios sistemas de controle empregados nas unidades oscilaram bastante conforme o modelo pedagógico adotado pelas mesmas. As que mantém o modelo pedagógico tradicional (bastante semelhante ao encontrado no Complexo Raposo Tavares) se utilizam de mecanismos também tradicionais, ainda que não se tenha observado em nenhuma delas o sistema chamado de autoritário e, menos ainda, o de barganhas. Há, como dito, o império do sistema misto. Neste, as questões de segurança ainda estão centralizadas na equipe de segurança que não se percebe completamente enquanto educadora. Em três das quatro unidades estudadas que aplicam este modelo, observei que os adolescentes andavam com as mãos para trás - comportamento típico dos grandes complexos baseados no modelo autoritário, o que demonstra a forte influencia deste sendo uma das justificativas para o enquadramento do sistema de controle na categoria misto (sistema ainda autoritário e um tanto centralizador, mas que respeita o regimento interno e a legislação pertinente aos cuidados com os adolescentes e a preservação da integridade física dos mesmos).
Nas unidades que fazem uso do MPC observei um fator bastante curioso. No primeiro nível os adolescentes experimentam um sistema muito próximo ao misto com todas as características já mencionadas, porém, com a progressão dentro dos níveis, o mesmo conquista considerável liberdade (relacionada à locomoção, escolha das atividades, serviços prestados, saídas externas...) abandonando, logo no segundo nível, o sistema misto. Após este nível surge um sistema que foge à classificação proposta para o Complexo, possibilitando inclusive, como mencionado, a vivência do jovem numa república com baixíssimo nível de controle ou o trabalho sem supervisão direta. A este sistema chamarei de controle regressivo efetivo.
Neste, as equipes trabalham em conjunto deliberando acerca da possibilidade de passagem de nível do adolescente o que acarreta, consequentemente, na decisão conjunta sobre a viabilidade/necessidade de se conceder maior liberdade ao mesmo. Percebeu-se através das entrevistas (formais - funcionários / informais - adolescentes) e da observação deste sistema uma grande interação entre as equipes, a ausência de denuncias de maus tratos por parte dos adolescentes, um bom relacionamento entre os adolescentes e a equipe de segurança (nos níveis mais avançados conversavam com amigos), a humanização das relações internas e uma maior satisfação com seu serviço por parte dos funcionários, principalmente dos da segurança, que nos outros modelos frequentemente apresentavam uma visão pessimista, incrédula acerca dos adolescentes e insatisfeita no concernente as suas funções.
Em entrevistas com os adolescentes submetidos a este sistema, não houve qualquer menção de inconformidade com relação ao mesmo (nem mesmo críticas leves ou reclamações), ao contrário, eles se mostraram bastante satisfeitos com os benefícios obtidos nos níveis finais e ansiosos em obtê-los nos níveis originais. A diferença existente entre o grupo de entrevistados do primeiro nível e o do último foi bastante impressionante, pois abarcou diferentes aspectos do comportamento humano tais como a interação verbal, a construção de um projeto de vida com objetivos definidos, as expectativas e sonhos... É possível afirmar que o primeiro grupo se aproximava do que foi observado no Complexo nos cinco anos de pesquisa ao passo que o segundo se acercava ao encontrado em escolas.
Na unidade que adota o modelo pedagógico da Comunidade Terapêutica foi observado o sistema denominado de controle regressivo coletivo. A ideia central de progressão de nível com progressão de liberdades é a mesma, porém, o nível de liberdade que o adolescente submetido a este regime encontra no último nível é menor do que o equivalente no MPC (não há república e nem o trabalho externo sem supervisão). Além disso, os mecanismos de controle adotados são executados primordialmente pelos próprios adolescentes que cumprem a medida socioeducativa - razão pela qual o modelo foi denominado coletivo. Segundo o Caderno de Gestão (2009), os mecanismos que podem ser utilizados são os seguintes:
1. Slogans: são modos simples de transmitir conceitos complexos ou abstratos. São expressos em frases curtas como:
Atue como se;
Tudo o que é lançado retorna;
Dance conforme a música;
2. Falando com
Lembrete amistoso de um membro mais antigo para um mais jovem (proporciona informações e advertências);
Conversa privada.
3. Quando falam com você
Conversa séria de um membro mais antigo e um dos pares com um membro mais jovem;
Conversa privada e formal.
4. Lidando com
Uma reprimenda séria e firme feita por um membro mais antigo e por dois pares;
Feito de forma privada e formal.
5. Reprimenda verbal
Uma reprimida verbal é feita com diferentes conotações por um painel de membros formados por: funcionários, membros mais antigos e pares (todos os funcionários interagem entre si para esclarecer assuntos, planejar intervenção eficaz e fazer uso de dramatização);
Deve-se programar a reprimenda com uso de um livro de registro de incidentes. Portanto, ela deve ser cuidadosamente estruturada e planejada, com a organização de um critério e roteiro para a reprimenda.
6. Experiência de aprendizado (contrato de comportamento) usado quando um indivíduo da comunidade inflige os modos ou regras de comportamento aceitáveis combinados previamente;
A tarefa deve ocorrer por tempo determinado;
Geralmente a tarefa contém algum limite quanto à interação do indivíduo com seus pares e/ou comunidade;
A tarefa pode ser na forma de trabalho escrito para ressaltar o aprendizado pessoal;
Uso da interação estruturada entre pares para maximizar o aprendizado.
7. Sanção:
Limita certos privilégios para toda ou uma parte da casa;
Privilégio limitado deve ter impacto, mas não devem limitar a capacidade da pessoa de suprir as necessidades básicas emocionais, de higiene pessoal e nutricional, pedagógica. (200 p. 62)
As entrevistas formais realizadas na unidade revelaram a insatisfação de alguns funcionários no concernente a (não) aplicação do projeto da CT. Foi indicado pelos mesmos e observado que muitos dos procedimentos tais como as reuniões ou mesmo os mecanismos apontados acima são adotados como meras formalidades (ou nem são mais adotados) que com o tempo perderam a efetividade e o próprio sentido. O que havia de mais interessante no modelo que é a participação efetiva dos adolescentes na administração da micro sociedade que vive dentro da unidade, inclusive no concernente a imposição de algumas regras de convivência e conduta, está claramente se perdendo face a burocracia e a imposições do judiciário local que simplesmente não acredita nos relatórios realizados pela equipe técnica desconsiderando-os. Por tudo isso a unidade se aproxima cada vez mais de um modelo pedagógico tradicional e menos eficaz que dá ênfase a produção de documentos escritos em detrimento do auxílio ao adolescente.
Os jovens entrevistados demonstraram insatisfação com a limitação do modelo e com a demora na concessão das liberdades fruto de problemas de relacionamento entre a unidade e o poder judiciário da região. Quando comentei as possibilidades que o MPC adotado em outras unidades prevê em seu último nível como devaneios / hipóteses advindas do imaginário -- para não causar problemas à unidade aos adolescentes do último nível do CT, os mesmos ficaram eufóricos e afirmaram que a ideia apresentada era excelente e que seria muito bom se fosse posta em prática.
Mesmo com todas estas questões a diferença existente entre o grupo de entrevistados do primeiro nível e o do último foi tão significativa quanto à observada nas unidades que utilizam efetivamente o MPC. Da mesma forma é possível afirmar que o primeiro grupo se aproximava do que fora observado no Complexo e que o segundo se acercava ao encontrado em escolas principalmente no concernente aos projetos de vida como cursar uma faculdade ou desempenhar determinada função dentro da sociedade.
O Plano de Trabalho e a Formação da Rede de Atendimento
Durante as visitas de observação foi possível inquirir os informantes quanto a existência ou não de registro do projeto pedagógico da unidade no Conselho Municipal da Criança e do Adolescente, requisito este importante em face dos princípios da municipalização e da corresponsabilização da sociedade civil. o gráfico abaixo, aponta que sete das unidades funcionam sem a aprovação de seus planos de trabalho pelos respectivos Conselhos Municipais. O argumento predominante, por parte dos informantes, é que normalmente a aprovação ou não do plano se relaciona mais a questões políticas (como os partidos que estão no comando da prefeitura das localidades) do que a questões técnicas.
Também foi estudado o processo de formação da rede de atendimento ao adolescente preconizada pela já referida Doutrina da Proteção Integral e, posteriormente, pelo SINASE. Todas as dez unidades relataram êxito com relação às parcerias com a iniciativa privada (ainda que algumas tenham desenvolvido as mesmas de forma mais efetiva e produtiva que outras). E, ao contrário do que poderia ser imaginado, nem todas conseguiram estabelecer uma relação tão positiva com outros entes do próprio setor público conforme indica o gráfico abaixo:
É importante salientar que o índice de 80% de bons relacionamentos em oposição ao de 20% em todos os itens foi uma coincidência já que não necessariamente a unidade que relatou um bom relacionamento com o Judiciário também o possuía com o Executivo ou com a própria Fundação.
Outro ponto intrigante é que nem todas as unidades da Fundação mantém um bom relacionamento com a mesma, ou seja, com a sede que fica na capital. Duas das 10 unidades inquiridas relataram que a instituição promove uma série de dificuldades e percalços ao desenvolvimento das mesmas e às propostas da ONG que as administra conjuntamente. Foi possível notar também que algumas unidades conseguiram flexibilizar o projeto (até o arquitetônico) de uma forma que outras relataram ser impossível. Isto aponta para a necessidade, inclusive, de se construir um bom relacionamento internamente.
Em geral, as unidades que descreveram um relacionamento menos amistoso com o Executivo local (prefeitura e suas secretarias) demonstravam maiores dificuldades e menor qualidade no atendimento aos adolescentes, porém, o mesmo não chegou a ser obstado posto que a própria Fundação construiu uma infraestrutura de atendimento razoavelmente suficiente e independente da do Município. Os casos mais graves eram remetidos ao sistema de atendimento do Governo Estadual.
O mesmo não pode ser afirmado acerca do relacionamento com o Judiciário. As unidades que apresentaram relacionamento conflituoso com este ficaram paralisadas. As saídas não eram autorizadas, os relatórios eram desacreditados e os relatórios conclusivos muitas vezes voltavam negados. Quando a tensão alcançava o Ministério Público, a situação tornava-se insustentável. Durante as visitas, funcionários relataram e apresentaram documentos em que o Juiz declarava abertamente que não reconhecia a legitimidade dos relatórios e afirmava que puniria o membro da equipe técnica que não enviasse relatórios verossímeis dentro do prazo estabelecido pelo mesmo. Neste caso em especial, os informantes relataram que a unidade se burocratizou para produzir os documentos no volume e prazo desejados relegando a um segundo plano o atendimento aos adolescentes.
Dados referentes ao cometimento de novas infrações durante a internação
Um dos itens do questionário utilizado para as entrevistas se refere ao cometimento de infrações durante o período de execução da medida socioeducativa de internação, desde a abertura da unidade. O gráfico abaixo foi montado tendo por base as respostas dadas agrupadas por modelo pedagógico.
O gráfico acima apresenta informações das 10 unidades pesquisadas, todas funcionando há mais de um ano. É interessante notar que em nenhuma das unidades com gestão compartilhada houve rebelião4 ainda que tenham ocorrido dois tumultos5. Não é possível comparar diretamente estes dados com os de outras unidades da Fundação CASA, mas o conhecimento empírico da realidade do Complexo Raposo Tavares, no mesmo período; é possível afirmar que de novembro de 2004 até o final de 2005 não houve um único mês sem tumultos em alguma unidade do Complexo e ao menos seis rebeliões. Isto tendo como base cinco unidades no período de um ano.
Dentre as 10 unidades visitadas só encontrei um registro caracterizado como violência sexual: uma relação homossexuais consentida entre dois adolescentes, ocorrida na CT.
Nas dez unidades visitadas localizei registros de cinco casos de uso de drogas sendo que em um deles a mãe do adolescente era a fornecedora e nos outros, funcionários contratados.
Dentre as 10 unidades observadas constatei registro de uma única fuga, ocorrida no modelo tradicional. Tratava-se de um adolescente que não estava na unidade, pois se encontrava numa clínica de reabilitação para dependentes químicos e de lá se evadiu.
No MPC encontrei registros de seis fugas. Não obstante, é importante salientar que dos seis casos, três retornaram á unidade sem a intervenção da polícia: trazido pelos familiares, pelos próprios agentes de segurança que foram à casa do mesmo buscá-lo e um por conta própria, por ter se arrependido da fuga. A maior quantidade de fugas no modelo MPC, se comparado aos outros modelos que utilizam a administração compartilhada,. já era esperada dado o regime de maior liberdade em que se encontram os jovens no último e penúltimo níveis. Levando em consideração a ausência de supervisão direta e a peculiaridade de serem adolescentes, o número de fugas deve ser considerado mais do que satisfatório reforçando, inclusive, a viabilidade do projeto dos último e penúltimo níveis do MPC.
Dados referentes ao acompanhamento dos adolescentes após o cumprimento da medida socioeducativa de internação
Apenas a unidade de internação de Franca possuía os dados de acompanhamento dos adolescentes após a internação. Por meio destes foram estruturados os gráficos abaixo:
O motivo que levou a equipe técnica a qualificar 16% das desinternações como casos que inspiram cuidados é bastante variável e vai desde a falta de estrutura familiar até o local em que o adolescente reside (influência do tráfico). O que mais chama atenção é a taxa que casos positivos (78%) em oposição à taxa de reincidência (6%) que pode ser considerada baixíssima inclusive comparada à taxa recentemente divulgada pela Fundação de 13,5%6 que ao contrário daquela, só computa como reincidente os casos em que o adolescente volta para a Fundação, deixando de fora os casos em que os mesmos, por não terem mais idade, vão para o sistema prisional.
Apesar da divulgação da taxa de reincidência, existe um índice mais importante que não é contabilizado pela Fundação, mas que foi pela unidade, que é o número de casos positivos. Este número é mais importante na medida em que pode ser menos distorcido que a taxa de reincidência. Por exemplo, a atual taxa de reincidência da Fundação pode ser reduzida por um aumento no número de óbitos ou desaparecimentos ou ainda pela ampliação do período de internação (o que impediria, pela idade, que o adolescente voltasse à instituição). Os 78% alcançados por Franca levam em consideração todos estes fatores - daí a maior confiabilidade e importância deste dado quando comparado a taxa de reincidência. O gráfico abaixo aponta a situação dos adolescentes desinternados:
A análise deste gráfico indica a necessidade de ampliar a rede de atendimento externo principalmente com o acréscimo na oferta de cursos para aumentar a possibilidade de colocação no mercado de trabalho daqueles que ainda não conseguiram tal intento. Ainda assim, os números apresentados são tidos como positivos - mesmo sem ter como compará-los diretamente aos do Complexo dada a inexistência dos dados de acompanhamento similares.
Sugestões e recomendações
Diante do exposto torna-se possível sugerir algumas mudanças:
○ A ampliação do modelo de gestão compartilhada para todas as unidades de internação da Fundação.
○ A valorização dos novos modelos pedagógicos propostos pelas ONGs e o incremento do treinamento dos profissionais que dele se utilizarão.
○ Maior atenção a escolha das ONGs parceiras para que sejam aprovadas apenas aquelas que acumulam experiências de atendimento social, com metodologias de trabalhos já sistematizadas e que, por isso, sejam capazes de acrescer aos modelos e a execução dos mesmos.
○ Maior liberdade e flexibilidade para que as ONGs consigam, na elaboração do Plano de Trabalho que constitui o convênio, aplicar suas metodologias e envolver rede de parcerias na execução da medida.
○ Criação dos cargos de assessoria jurídica e de orientador de medida socioeducativa para que efetivamente sejam feitos os acompanhamentos necessários à execução da medida socioeducativa. A assessoria jurídica poderia facilitar e melhorar a relação entre a unidade e o Judiciário e o orientador de medida socioeducativa melhor acompanhar a evolução pós-internação.
○ Ampliação do nível república, existente no MPC a todos os modelos pedagógicos e unidades.
○ Reformulação do modelo arquitetônico para que o mesmo seja adequado ao trabalho sociopedagogico e contribua com o modelo pedagógico adotado, possibilitando ainda à ONG sua modificação dada eventual necessidade do projeto em execução.
○ Em caso de reincidência, previsão, no projeto pedagógico, de retorno obrigatório do adolescente à unidade com o mesmo modelo pedagógico para cumprimento das etapas restantes do processo de ressocialização .
○ Trabalho ainda mais intensivo da equipe técnica visando à modificação das circunstancias externas que contribuíram para a ocorrência delitiva tais como as intercorrências que afetam a família e a própria comunidade, como é o caso do tráfico de drogas.
○ Intensificação da oferta de serviços comunitários prestados voluntariamente pelos adolescentes dada a grande capacidade que desta modalidade para modificar a visão que a sociedade possui acerca dos jovens em cumprimento de medida socioeducativa de internação, facilitando o estabelecimentos de vínculos entre os envolvidos direta e indiretamente.
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YAMAMOTO, Karina Ribeiro. Riso e Temos: trajetórias teatrais no internato Pirituba - Fundação CASA. 2009. 172 p. Dissertação (Mestrado em Artes Cênicas) - Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo, São Paulo.
1 Segundo informaram os entrevistados da equipe técnica que utilizam esta ferramenta, trata-se de um estudo do local onde o adolescente vivia antes do cumprimento da medida de internação - à data do cometimento do delito. Tal estudo objetiva conhecer o meio em que o adolescente residia assim como as possibilidades (positivas e negativas) oferecidas pela localidade.
2 Segundo informaram os entrevistados da equipe técnica que utilizam esta ferramenta, trata-se de um estudo que consiste na representação gráfica da família do adolescente, juntando num mesmo esquema, os membros dessa família (normalmente três gerações), as relações que os unem, a qualidade destas relações e as informações médicas e psicossociais pertinentes.
3 Segundo informaram os entrevistados da equipe técnica que utilizam esta ferramenta, trata-se de um diagnóstico realizado por profissionais das seguintes áreas e que aborda as seguintes questões: saúde (física e mental); psicológica (afetivo-sexual -dificuldades, necessidades, potencialidades, avanços e retrocessos); social (relações sociais, familiares e comunitárias, aspectos facilitadores e dificultadores da inclusão social, necessidades, avanços e retrocessos); pedagógica (escolarização, profissionalização, cultura, lazer, esporte, oficinas e autocuidado).
4 Revolta generalizada que foge completamente ao controle da instituição onde o poder passa (durante a mesma) totalmente para o polo dos adolescentes e só é contida com a intervenção externa (grupo de intervenção rápida / policia militar / tropa de choque). Normalmente a unidade é destruída durante a rebelião.
5 Revolta pontual, restrita, circunscrita, advinda de um grupo de adolescentes descontentes que não consegue mobiliza a maioria dos colegas. Normalmente alguns objetos ou cômodos são avariados, não havendo danos significativos à unidade. É contida pelos próprios agentes de segurança da Fundação.
6 Taxa divulgada em diversos veículos de comunicação e presente no site da instituição <http://www.casa.sp.gov.br/site/noticias.php?cod=2479> acessado em 11 de dezembro de 2009.