Congr. Intern. Pedagogia Social Mar. 2010
Reflexões acerca dos direitos humanos e as medidas sócio-educativas
Ivana Aparecida Weissbach Moreira1
RESUMO
Este artigo tem por objetivo contribuir para a reflexão acerca dos direitos humanos e as medidas sócio-educativas destinadas aos adolescentes em conflito com a lei. Deste modo, busca-se apreender elementos conceituais sobre a dignidade da pessoa humana e a doutrina da proteção integral tendo estes como parâmetros que devem pautar as ações voltadas ao atendimento sócio-educativo, garantindo-se assim, o cumprimento dos pressupostos legais referente aos direitos humanos.
Palavras-chave: direitos humanos, medidas sócio-educativas, adolescente em conflito com a lei.
ABSTRACT
This paper aims to contribute to the debate about human rights and socio-educational measures directed at children in conflict with the law. Thus, we seek to understand the conceptual elements of human dignity and the doctrine of full protection and how these parameters which should guide its actions to the social-educational, thus ensuring the fulfillment of legal requirements relating to human rights.
Keywords: human rights, social and educational measures, adolescents in conflict with the law.
INTRODUÇÃO
Ao incluir na Constituição a garantia dos direitos da infância e da adolescência, o constituinte brasileiro o fez tendo a opção clara pela doutrina da proteção integral2. Esta doutrina surgiu no cenário jurídico, inspirada nos movimentos internacionais de proteção à infância, materializados em tratados e convenções.
O paradigma norteador de qualquer reflexão sociopolítica e jurídica acerca da criança e do adolescente não poderá deixar de ter, como princípio, a compreensão de que estes sujeitos de direitos encontram-se em fase de desenvolvimento e que assim devem ser tratados. Deve buscar, sempre, um crescimento saudável desses sujeitos, amparado pelo respeito aos direitos fundamentais, incluindo o direito de participação, não permitindo qualquer forma de negligência que venha a causar prejuízos ao seu desenvolvimento psíquico e físico.
Sempre com esse paradigma de respeito à condição peculiar de pessoa em desenvolvimento, de garantia plena de acesso a direitos, de tratamento pautado pelo respeito à dignidade humana, deve-se compreender a execução e a aplicação das medidas sócio-educativas3.
Os documentos internacionais de defesa dos direitos humanos e a legislação nacional estão repletos de enunciados que tratam as medidas sócio-educativas, servindo de instrumentos e normativas que devem respeitar o desenvolvimento dos adolescentes, sua dignidade, a capacidade de cumpri-las e a possibilidade do exercício de seus direitos.
1. Considerações sobre o princípio da dignidade humana
Interpretar direitos humanos passa pela busca do equilíbrio entre o direito natural e o direito positivo, tomando-se por base fundamental a dignidade humana. Apesar das diferenças individuais, culturais, sociais e biológicas, a essência do ser humano é uma só e, por isso, merece respeito e proteção em todas as partes do mundo.
Para Bobbio:
Partimos do pressuposto de que os direitos humanos são coisas desejáveis, isto é, que merecem ser perseguidos, e de que, apesar de sua desejabilidade, não foram ainda todos eles (por toda a parte) reconhecidos; e estamos convencidos de que lhes encontrar um fundamento, ou seja, aduzir motivos para justificar a escolha que fizemos e que gostaríamos fosse feita também pelos outros, é um meio adequado para obter para eles um mais amplo reconhecimento (2004, p. 15-16).
Na busca deste fundamento dos direitos humanos que, segundo Bobbio (2004), está no mundo das idéias, assim como o poder absoluto durante séculos, os jusnaturalistas4 os colocaram acima da possibilidade de qualquer contestação, derivando-os da própria natureza humana. Para tanto, basta recordar que muitos direitos "foram subordinados à generosa e complacente natureza do homem" (p. 16). Inicialmente, a derivação de direitos do homem não é absoluta, existindo uma condição para a sua realização. Estes direitos do homem se modificam, e continuam se modificando de acordo "com a mudança das condições históricas, dos interesses, das classes no poder, dos meios disponíveis para realização dos mesmos, das transformações técnicas, etc" (p. 18).
Neste ínterim, além do fundamento do direito e da sua modificação, é preciso pensar em outras questões, como por exemplo, nos direitos que são específicos e coletivos. Pensar que uns direitos excluem outros direitos, porém, todos têm sua razão de existirem ou de serem negados e esta escolha resulta da introdução de limites para a sua preservação.
Assim, os direitos individuais tradicionais, que consistem em liberdades, bem como os direitos sociais, que consistem em poderes, estão previstos em todas as declarações recentes do direito do homem. Porém, quanto mais aumentam os poderes dos indivíduos, menor é seu grau de liberdade. Os principais argumentos para introduzir algumas liberdades entre os direitos fundamentais são: a irredutibilidade das crenças e a crença de que ser livre propicia a sua progressão moral e material na sociedade. Entretanto, estes argumentos se revelam falsos, pois o fundamento absoluto é uma ilusão e também um pretexto para defender posições conservadoras. Assim, o argumento possível para a garantia dos direitos dos homens não é a sua falta de fundamento, justificativa, mas sua não execução e não proteção, sendo este um problema político. Deste modo, existe uma crise de fundamentos, segundo Bobbio (2004), que é o estudo filosófico e a análise, não estando estes dissociados dos problemas históricos, sociais, econômicos e psicológicos inerentes a sua realização, pois a crise do fundamento é também a crise da filosofia. O problema dos direitos do homem não é fundamentá-los, mas protegê-los e é a dimensão jurídica e, especialmente, a dimensão política a sua garantia.
Neste sentido, pode-se dizer que o problema do fundamento dos direitos do homem teve sua solução atual na Declaração Universal dos direitos do Homem (1948), fundada na garantia da dignidade da pessoa humana, baseada em razões jurídicas, com forte conteúdo ético. Ela acabou por fazer uma afirmação do valor fundamental da vida em sociedade e baseou-se num duplo reconhecimento: em primeiro lugar reconheceu que há uma lei maior de natureza ética que está acima das leis emanadas do poder dominante; em segundo lugar, que essa lei se fundamenta no respeito à dignidade da pessoa humana.
Desta forma:
Somente depois da Declaração Universal é que podemos ter a certeza histórica de que a humanidade partilha alguns valores comuns; e podemos, finalmente, crer na universalidade dos valores, no único sentido em que tal crença é historicamente legítima, ou seja, no sentido em que universal significa não algo dado objetivamente, mas algo subjetivamente acolhido pelo universo dos homens (BOBBIO, 2004, p. 28).
A idéia de que os direitos do homem são universais, inalienáveis e intransferíveis, vêm do jusnaturalismo moderno. Seu pai é John Locke que refere que o verdadeiro estado do homem não é o civil, mas o natural, no qual os homens são livres e iguais. A liberdade e igualdade são ideais a se perseguir, não uma existência, mas um valor, não um ser, mas um dever ser. São universais em relação ao conteúdo, mas limitados a sua eficácia. Os direitos do homem deixam de expressar apenas uma exigência e tornam-se o início da instituição de um verdadeiro sistema de direitos. Os direitos são históricos e emergem gradualmente das lutas que o homem trava com a emancipação e as transformações das condições de vida (BOBBIO, 2004).
Assim, o poder econômico, no campo do direito, torna-se cada vez mais determinante nas decisões políticas e nas condições de vida dos indivíduos. Já os direitos sociais estão em contínuo movimento. Assim como as demandas de proteção social, que nasceram com o advento da Revolução Industrial, os avanços tecnológicos e econômicos trazem junto de si novas demandas para o mundo moderno. As condições econômicas dos países em desenvolvimento, apesar das políticas instituídas, não garantem a proteção da maioria dos direitos sociais. Para tanto, é preciso compreender que efetivação da proteção dos direitos está diretamente relacionada ao desenvolvimento da civilização humana, não podendo desconsiderar que esta ação relaciona-se intrinsecamente com a miséria e com a pobreza.
Desta forma, ao tratar de direitos humanos deve-se levar em consideração que o direito positivo não pode contrariar os direitos fundamentais das pessoas, bem como o direito interno de cada nação não pode contrariar os direitos humanos que foram consagrados de maneira universal.
Em relação ao princípio da dignidade humana é importante relembrar que os avanços têm base na dor física e no sofrimento moral, que são resultados de violências, torturas, mutilações, massacres, enfim, de situações desprezíveis que fizeram surgir consciências de que novas regras de respeito a uma vida digna para todas as pessoas eram necessárias (COMPARATO, 2005). A partir desse princípio, a dignidade humana é um valor supremo, um valor ético, moral e espiritual intocável, dotado de uma natureza sagrada e de direitos inalienáveis. O princípio serve de fundamento para o próprio sistema jurídico.
No âmbito do Brasil, pode-se destacar que o valor mais importante na ordem jurídica, instituído como fundamental pela Constituição Federal de 1988 (CF), decorrente das pressões dos movimentos sociais, foi a dignidade humana, que determina que o ser humano deve ser a base de todo o sistema jurídico. A dignidade humana serve, então, como fundamento da vida do homem, e dela deriva o respeito à integridade física e psíquica do ser humano, a admissão de pressupostos materiais mínimos para que se possa viver e os fundamentos de liberdade e igualdade.
Quando se busca interpretar os direitos humanos, é necessário considerar que a pessoa humana é o valor principal que o direito deve proteger, tanto no campo da legislação interna das nações, quanto no âmbito internacional. A partir desta perspectiva, destaca-se a dignidade humana, que funciona como fonte jurídica, de direito natural e positivo, para a garantia dos direitos fundamentais, que são especificações deste princípio.
1.1. O princípio da dignidade humana e as medidas sócio-educativas
Diante do processo histórico e de lutas da sociedade comprometida com a garantia de direitos da criança e do adolescente, alguns instrumentos normativos passaram a compor uma legislação voltada a este público, em especial aos adolescentes em conflito com a lei. Esta mobilização levou o legislador brasileiro a propor um conjunto de instrumentos que foram denominados de medidas sócio-educativas. O artigo 112, da Lei 8069/90 - Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), disciplina estas medidas e as dispõe como: 1) Advertência; 2) Obrigação de reparar o dano; 3) Prestação de serviços à comunidade; 4) Liberdade assistida; 5) Inserção em regime de semiliberdade; 6) Internação em estabelecimento educacional; 7) Qualquer uma das previstas no art. 101, I a IV.
Para aplicação destas medidas o legislador preocupou-se em: a) levar em conta a capacidade de cumprimento, as circunstâncias e a gravidade da infração, b) não permitir a prestação de trabalho forçado; c) dispensar tratamento especializado aos adolescentes portadores de doença ou deficiência mental em local adequado às suas condições.
Com isto pretendeu disciplinar as medidas de maneira a garantir um leque de opções para que a autoridade judiciária, considerando a doutrina da proteção integral, através de meios pedagógicos, pudesse auxiliar o adolescente a superar as violações cometidas. Neste sentido, afirma Maior apud Cury (2004):
[...] para o adolescente autor de ato infracional a proposta é de que, no contexto da proteção integral, receba ele medidas socioeducativas (portanto, não punitivas) tendentes a interferir no seu processo de desenvolvimento, objetivando melhor compreensão da realidade e efetiva integração social. (pg. 378)
Assim, é necessário compreender que as medidas sócio-educativas têm por intenção disponibilizar um conjunto de condições que viabilizem ao adolescente a construção de um projeto de vida, respeitando a sua comunidade e sendo protagonista de uma cidadania de convivência coletiva, com base no respeito entre as pessoas e na busca pela paz social.
Pôr em prática a execução e a aplicação das medidas sócio-educativas pressupõe o respeito aos direitos humanos. Entretanto, são muitas as interpretações ambíguas que permeiam a execução e a aplicação das medidas e várias são as violações cometidas, dentre elas as que por vezes privilegiam a medida de internação em prejuízo de outras medidas em meio aberto.
De modo geral, a sociedade pouco conhece sobre as medidas sócio-educativas, atribuindo assim, as leigas afirmações de que o ECA seria um instrumento de estímulo à impunidade. Porém, contrariando o real sentido comum, estas medidas apresentam uma carga retributiva, ou seja, propõem-se a dar uma resposta à sociedade, com a aplicação de sanções aos adolescentes em conflito com a lei. "Isto significa que esses sujeitos não ficaram 'impunes', mas deverão ser submetidos ao procedimento definido pela legislação especial" (LIBERATI, 2002, p. 95).
Historicamente, no Brasil, o atendimento a crianças e adolescentes é norteado pelo desrespeito aos direitos humanos e tal conteúdo histórico parece ainda garantir forte influência na execução e na aplicação das medidas sócio-educativas.
Conforme Piovesan (2006):
[...] no momento em que os seres humanos se tornam supérfluos e descartáveis, no momento em que vige a lógica da destruição, em que é cruelmente abolido o valor da pessoa humana, torna-se necessária a reconstrução dos direitos humanos, como paradigma ético capaz de restaurar a lógica do razoável (pg. 9).
Tal situação também pode ser observada na maneira como são tratados muitos adolescentes, numa demonstração de desrespeito e esquecimento de seus direitos. Portanto, a dignidade humana deve ser o norte para todo o atendimento aos adolescentes que se encontram em cumprimento de medidas sócio-educativas.
Por fim, são tantas as violações que se deve considerar necessária uma efetiva resposta, tanto do Estado como da sociedade. Ao compreender que os direitos humanos derivam da dignidade humana, ferir esta dignidade significa tirar da pessoa os seus direitos fundamentais. Neste sentido Comparato (2005, pg. 226) diz que "a dignidade da pessoa humana não pode ser reduzida à condição de puro conceito".
2. O ato infracional e as medidas sócio-educativas
Pensar em medidas sócio-educativas requer compreender de onde elas derivam, ou porque elas surgiram. Assim, é necessário comentar que o ato infracional resulta de múltiplos fatores e é previsto na lei como "conduta descrita como crime ou contravenção penal" (Artigo 103, do ECA). De acordo com a doutrina da proteção integral o adolescente, a quem se atribua autoria de ato infracional, tem assegurado o devido processo legal5 e demais garantias constitucionais na apuração do mesmo. Do mesmo modo, alguns comportamentos ou tarefas são prescritos aos adolescentes e "se de seu ato infracional lhe resulta a obrigação de cumprir certas medidas, o adolescente é responsável pelo que faz" (OLIVEIRA apud VERONESE, 2001, p. 39).
Em relação à prática de um ato infracional e a aplicação das medidas sócio-educativas, parece indispensável considerar que, sendo estes jovens menores de dezoito anos, são inimputáveis, de acordo com o Código Penal - art. 26. Embora as medidas sócio-educativas assemelhem-se, em alguns pontos, aos procedimentos das esferas jurídicas, civil e penal, há de se ater para as diferenças em relação a sua aplicação aos adolescentes. Conforme evidencia Oliveira apud Veronese (2001), na esfera civil a inquietação é com a vítima do dano e, na esfera penal, o importante é a repressão ao criminoso, sendo que nestas duas situações há uma preocupação moral, com o direito alheio. A diferença recai no fato de que as medidas sócio-educativas possuem uma especificidade voltada a educar e ensinar, que é parte da própria regra.
Assim:
(...) as medidas sócio-educativas são determinadas pelas "necessidades pedagógicas, preferindo-se aquelas que visem ao fortalecimento dos vínculos familiares e comunitários", ou seja, as medidas devem ter por objetivo educar o adolescente, e a proteção do restante da sociedade passa a ser um efeito sucessório (OLIVEIRA apud VERONESE, 2001, P. 44).
Com base na afirmativa, pode-se refletir e correlacionar todo um conjunto de fatores sociais, econômicos e psicológicos que contribuem para que o adolescente encontre-se em situação de conflito com a lei. Deve-se considerar a relação do adolescente com o mundo pautado no mercado de consumo, pois há um incentivo ao acúmulo de bens materiais, o que pode gerar ansiedade e frustração, e estimular esse adolescente a ter acesso ao que é colocado como valor social.
Neste ínterim, uma das maneiras com que o adolescente reage ao universo de situações adversas que se colocam em seu cotidiano é agir em desconformidade com a lei. Nota-se, pois, que da reprodução deste comportamento surge o ato infracional.
Para fazer frente ao cometimento de atos infracionais surgem as medidas sócio-educativas, previstas no ECA. Estas medidas comportam aspectos de natureza retributiva, visto que impõem "restrições" aos adolescentes em conflito com a lei, responsabilizando-os socialmente, e aspectos essencialmente educativos, baseados na doutrina da proteção integral, com oportunidades de acesso à formação e à informação, bem como a inclusão social. Elas devem proporcionar aos adolescentes a superação de sua condição de exclusão, assim como a formação de valores essenciais à participação na vida social (LIBERATI, 2002; VOLPI, 2006).
Considerando-se o grau de complexidade desta questão, o conceito sócio-educativo deve ser entendido com base em pressupostos de interdisciplinaridade e incompletude institucional, definidos na perspectiva da integração entre as diferentes áreas do saber e entre as diversas instituições existentes na sociedade.
O ato infracional atribuído ao adolescente deve ser percebido, analisado e trabalhado de maneira pedagógica e terapêutica, levando-se em consideração o seu contexto e suas múltiplas causas. Em determinado momento este ato passa a fazer parte do processo de vida do adolescente, porém não pode ser visto como sua identidade, pois o adolescente não se define pelo ato praticado.
Desta maneira entende-se que o termo sócio-educativo denota a compreensão de duas dimensões em intensa articulação -a pedagógica e a terapêutica. Uma vez que não existe o cognitivo sem o afetivo, nem o afetivo sem o cognitivo, a medida sócio-educativa deve, na visão de Maior apud Cury (2004, p.340), "(...) interferir no seu processo de desenvolvimento objetivando melhor compreensão da realidade e efetiva integração social".
Assim:
[...] o educar para a vida social visa, na essência, ao alcance de realização pessoal e de participação comunitária, predicados inerentes à cidadania. Assim, imagina-se que a excelência das medidas sócio-educativas se fará presente quando propiciar aos adolescentes oportunidade de deixarem de ser meras vítimas da sociedade injusta em que vivemos para se constituírem em agentes transformadores desta mesma realidade (MAIOR apud CURY, 2004, p. 340).
Pelo exposto, encontram-se disponíveis vários instrumentos necessários para a execução das medidas sócio-educativas. No entanto, é imperioso acreditar que, para romper com um paradigma, outro necessariamente deve surgir no seu lugar. É preciso romper com a cultura da internação violenta e incorporar a possibilidade de um olhar para esses adolescentes que proporcione a oportunidade de um processo de efetiva educação social, que os desperte para um novo projeto de vida e que mude o atual paradigma de violação de direitos.
Nesta direção, o processo educativo de atendimento a adolescentes em conflito com a lei implica a compreensão de que a ação sócio-educativa tem uma dimensão pedagógica que deve ser conhecida de todos os sujeitos que atuam no processo e, desta forma, exige uma definição sobre os elementos básicos para a sua realização.
Esse processo deve ser construído em conjunto - entre a equipe de sócio-educadores e os adolescentes -, de modo que desperte para o fato de que o ser humano é um ser em permanente transformação e que tem condições de descobrir suas potencialidade e seus limites. Da mesma maneira que ele pode ver o mundo de outras formas e, especialmente, compreender a educação como um processo com duplo sentido e que deve ser construído com base na relação educador/educando. Essa relação entre educador/educando visa o estabelecimento de vínculos, bem como a necessidade de uma formação voltada para a responsabilidade e para a liberdade, de forma que o adolescente tenha condições de desenvolver uma relação ética com os outros e consigo mesmo. (MAIOR apud CURY, 2004).
A educação passa necessariamente por um ideal de liberdade, ou seja, num processo de educação é indispensável a idéia de liberdade. A educação é um processo de construção orientado, pelo qual o homem, situado no mundo e com o mundo, transforma a si mesmo e o que está em sua volta. A construção do homem cidadão, capaz de fazer a sua história, assumindo um projeto de vida pessoal e social, pode ser alcançada quando se desvenda para ele a consciência dos seus direitos e de sua potencialidade como agente de transformação.
A teoria materialista de que os homens são produtos das circunstâncias e da educação e de que, portanto, homens modificados são produto de circunstâncias diferentes e de educação modificada, esquece que as circunstâncias são modificadas precisamente pelos homens e que o próprio educador precisa ser educado. Leva, pois, forçosamente, à divisão da sociedade em duas partes, uma das quais se sobrepõe à sociedade [...]. A coincidência da modificação das circunstâncias e da atividade humana só pode ser aprendida e racionalmente compreendida com prática transformadora. (MARX apud MESZÁROS, 2005, p. 21).
Deste modo, os regimes sócio-educativos devem constituir-se em condição de garantia de acesso do adolescente às oportunidades de superação de sua condição de exclusão social, bem como de acesso à formação de valores positivos de participação na vida em sociedade, prevendo, obrigatoriamente, a participação da família e da comunidade, mesmo nos casos de privação de liberdade.
A sócio-educação, como práxis pedagógica, propõe objetivos e critérios metodológicos próprios de um trabalho social reflexivo, crítico e construtivo, mediante processos educativos orientados à transformação das circunstâncias que limitam a inclusão social. Nesse sentido, o trabalho sócio-educativo é uma resposta às premissas legais do ECA. Sendo assim, o planejamento da ação sócio-educativa exige a busca de princípios e metodologias capazes de desenvolver as dimensões acima tratadas. Em síntese, o trabalho com o adolescente deve criar um ambiente educativo, atmosfera estimulante, um cotidiano organizado e seguro.
Dentro desta perspectiva, o Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (CONANDA)6, órgão responsável pela deliberação da política de atenção à infância e adolescência, realizou debates com os demais atores do Sistema de Garantia de Direitos (SGD)7 na busca de uma legislação que garanta um atendimento sócio-educativo de qualidade e que vislumbre ao adolescente em conflito com a lei a perspectiva de sua inclusão social. Esta mobilização possibilitou a criação do Sistema Nacional de Atendimento Sócio-educativo (SINASE)8.
Por estar inserido no SGD, o SINASE deve servir, também, como fonte de produção de dados e informações que favoreçam a construção e o desenvolvimento de novos planos, políticas, programas e ações para a garantia de direitos dos adolescentes, propiciando a redução à vulnerabilidade e a exclusão social a qual muitos estão expostos.
CONSIDERAÇÕES
O contexto de violência envolvendo adolescentes em conflito com a lei retoma a discussão da sociedade e requer a reflexão e atenção especial quanto à responsabilização destes jovens. Assim, as normativas instituídas dão parâmetros para a atuação dos agentes na execução e desenvolvimento das medidas sócio-educativas aplicadas a estes adolescentes.
Entretanto, embora as normativas tenham um aparato baseado na dignidade da pessoa humana, o entendimento da sociedade e de alguns programas de medidas sócio-educativos não possui a atenção e os cuidados necessários às pessoas em desenvolvimento, conforme preconiza o ECA. As medidas sócio-educativas, diferentemente das medidas aplicadas aos adultos pelos Códigos Penal e Civil, devem manifestar-se através de ações sóciopedagógicas favorecendo aos adolescentes a possibilidade de experimentar e vivenciar a aceitação e o reconhecimento perante a sociedade, promovendo a formação integral destes.
Assim, falar em direitos humanos e dignidade da pessoa humana requer analisar o desenvolvimento histórico desses direitos e como eles se configuram na sociedade capitalista moderna. Entender que a instituição de normativas sem as condições objetivas de efetivação não correspondem às necessidades e especificidades do atendimento aos adolescentes em medidas sócio-educativas. Priorizar o processo reflexivo acerca da aplicação e da qualidade na execução destas medidas torna-se urgente, na proporção em que, no imaginário social, estas se constituem, por vezes, com caráter punitivo e não educativo.
Ainda, compreender que a articulação das políticas sociais deve levar em consideração que, através das relações estabelecidas pelo ser humano no meio social, busca-se constantemente a sua aceitação e reconhecimento diante desta mesma sociedade. Vale ressaltar o mesmo, também, para a aplicação das medidas sócio-educativas inerentes aos adolescentes. Por fim, considerar a necessidade da preparação destes sujeitos em desenvolvimento para o enfrentamento das vicissitudes da sociedade capitalista, visando sua inclusão social, importa fundamentalmente em consagrar a aplicação dos direitos relativos à pessoa humana, notadamente a sua dignidade.
REFERÊNCIAS
BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. 9. ed. Rio de Janeiro: Campus, 2004.
BRASIL. Presidência da República. Secretaria Especial de Direitos Humanos. Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente. Sistema Nacional de Atendimento Socieducativo - SINASE. Brasília-DF: CONANDA, 2006.
COMPARATO. Fábio Konder. A afirmação histórica dos direitos humanos. 4. ed. Saraiva: São Paulo 2005.
LIBERATI, Wilson Donizeti. Adolescente e ato infracional: medida socioeducativa é pena? São Paulo: Juarez de Oliveira, 2002.
MAIOR, Olimpio Sotto. Medidas socioeducativas. In: CURY, Munir (Coord.). Estatuto da Criança e do Adolescente comentado: comentários jurídicos e sociais. 7. ed. São Paulo: Malheiros, 2004.
MÉSZÁROS, István. A educação para além do capital / István Mészáros; tradução de Isa Tavares. - São Paulo: Boitempo, 2005.
OLIVEIRA, Luciene de Cássia Policarpo; QUANDT, Guilherme de Oliveira; VERONESE, Josiane Rose Petry. O ato infracional e a aplicação das medidas sócio-educativas: algumas considerações pedagógicas. In: VERONESE, Josiane Rose Petry. Infância e Adolescência, o conflito com a lei: algumas discussões / Josiane Rose Petry Veronese, Marli Palma Souza, Regina Célia Tamaso Mioto. - Florianópolis: Fundação Boiteux, 2001.
PIOVESAN, Flávia. Direitos humanos e justiça internacional. São Paulo: Saraiva, 2006.
VOLPI, Mário. O adolescente e o ato infracional (org.). 6. ed. São Paulo: Cortez, 2006.
1 Trabalho de pesquisa desenvolvido junto ao Programa de Pós-Graduação em Serviço Social da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), sob orientação da Profª Drª Marli Palma Souza. E-mail: ivanawmoreira@hotmail.com
2 Conjunto de instrumentos jurídicos de caráter internacional que representa um salto qualitativo e fundamental na consideração social da infância, consagrada no art. 227 da Constituição Federal de 1988 e nos arts. 1º ao 6º do Estatuto da Criança e do Adolescente, rompendo, definitivamente, com a doutrina da situação irregular, prevista no antigo Código de Menores, Lei 6697/79.
3 Trata-se da responsabilização, prevista em lei, para o adolescente que incide na prática de ato infracional.
4 São juristas que afirmam a existência do direito natural. O jusnaturalismo é "a doutrina filosófica que fez do indivíduo, e não mais da sociedade, o ponto de partida para a construção de uma doutrina da moral e do direito" (BOBBIO, 2004, p. 55).
5 O ECA ao estabelecer o princípio da legalidade sinaliza sua integração com o ordenamento penal, ou seja, a conduta infracional praticada por adolescentes deverá estar adequada àquela figura típica descrita como crime ou contravenção penal a que todos estão sujeitos (LIBERATI, 2002, p. 93).
6 O CONANDA foi criado pela Lei nº 8.242/1991, atendendo ao disposto no art. 88, II, do ECA.
7 Conjunto articulado de pessoas e instituições que atuam para efetivar os direitos infanto-juvenis. Fazem parte desse sistema: a família, as organizações da sociedade (instituições sociais, sindicatos, escolas, etc.), os Conselhos de Direitos, Conselhos Tutelares e as diferentes instâncias do poder público (Ministério Público, Juizado da Infância e da Juventude, Defensoria Pública, etc.) CONANDA, Resolução 113/2006.
8 Criado em 2006 e orientado em nível nacional pela Constituição Federal e pelo Estatuto da Criança e do Adolescente e em nível internacional pelas normativas das quais o Brasil é signatário. É imprescindível compreender que o processo sócio-educativo deve manter como premissa a articulação com a rede de proteção social, como forma a propiciar os suportes necessários à efetivação e a execução das medidas sócio-educativas.