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Congr. Intern. Pedagogia Social Mar. 2010

 

Epistemologia da educação social de rua

 

 

Jacyara Silva de Paiva

Doutoranda em Educação na Universidade Federal do Espírito Santo (UFES) sob orientação do Prof. Dr. Hiran Pinel e co-orientação do Prof. Dr. Roberto da (FEUSP). E-mail: jacyara@superig.com.br

 

 


RESUMO

Essa pesquisa tem sua relevância científica dada pela própria extensão do fenômeno social, em que a Educação Social de Rua, buscando no aporte teórico e metodológico da Pedagogia Social: o movimento social e histórico, possibilita desvelar novos instrumentos para compreensão dos saberes produzidos na e a partir da rua no presente e também no futuro.

Palavras chaves: Educador Social, Pedagogia Social, Educação Social.


ABSTRACT

This research has its scientifical relevance given by the extension of the social phenomenon itself, in wich the Street Social Education, searching in the theoretical and methodological contribution of Social Pedagogy: the social and historical activity, makes it possible unveiling new instruments to understand the knowledges produced in and from the street in the present and also in the future.

Keys words: Social Educator, Social Pedagogy, Social Education.


 

 

Introdução

Como Educadora Social de Rua, reafirmada na condição de pesquisadora, sinto a necessidade de olhar no espaço exterior, nas margens, nos entre lugares invisibilizados socialmente, pois sei que, como pesquisadora, preciso explorar as fronteiras simbólicas que separam crianças e adolescentes em situação de rua daqueles que com elas dialogam.

A relevância científica da pesquisa é dada pela própria extensão do fenômeno social, não mais circunscrito às grandes cidades brasileiras nem aos países subdesenvolvidos, onde a Educação Social de Rua, agora iluminada pelo aporte teórico e metodológico da Pedagogia Social, possibilita desvelar novos instrumentos para compreensão dos saberes produzidos na e a partir da rua, assim como novos marcos teóricos e metodológicos para a formação dos Educadores Sociais de Rua.

Como Educadora Social de Rua trabalho com pessoas também andarilhas, que assim são por ser essa a condição possível no momento atual. No mestrado, caminhei com elas, escutando-as de todas as formas que eu conseguia, afinal, "É condição essencial escutar vozes jamais escutadas [...] das mulheres, dos negros, dos índios, dos pobres, dos civis [...] pertencemos a nações que nasceram mutiladas [...] elas têm uma cultura passada, literatura, que também está mutilada". (GALEANO, 1987).

Galeano ainda nos convoca a recuperar essas vozes perdidas, por isso no doutorado minha "consciência andarilha" se dirige ao processo da epistemologia da Educação Social de Rua. Sentia necessidade de me pôr a caminho, à procura das vozes, das experiências, agora de outros Educadores Sociais de Rua que se encontram por vezes invisíveis, às margens da sociedade, com os vitimizados.

Meu cenário atual de investig(ação) é a Educação, fazendo interface com outros saberes, sabedora que não existe uma Educação, mas "educações" que se constituem em vários espaços e nesse caminho serei andarilha. Andarei nesse campo amplo tentando não reduzi-lo, não limitá-lo, pois, quando falo em Educação, falo, assim como Freire, em um processo de emancipação humana, por isso não posso limitá-lo à educação escolar, apesar de saber e sentir a importância desse tipo de educação.

Quando opto por tomar a práxis pedagógica de rua como processo, como leitura da realidade, conscientização, dialogicidade, e ação-reflexão-ação (LIBERALESSO, 2008) penso que ao fazer assim, de alguma forma estarei contribuindo para que essa prática de ser Educador Social de Rua seja pensada, conhecida, compreendida, enquanto realidade única, complexa e plural, cheia de entornos, de possibilidades, de potencialidades e provisoriedades, pois, essa prática que se desvela a mim não é estática, definitiva, mas está sempre em movimento e sendo compreendida de várias formas. Contudo, essas várias formas de compreensão podem de maneira efetiva contribuir para a mudança da educação bem como para formação de educadores sociais e escolares.

Pensar a prática, desvelar a experiência de ser Educador Social de Rua, perceber sua epistemologia é de alguma forma contribuir para uma possível visão diferenciada, cheia de significação, possível porque o contexto do Educador Social de Rua possui muitas faces e pode ser visto de várias formas, compreendido através de diversos olhares. Para isso é fundamental que os colaboradores desta pesquisa se percebam como ser-ao-mundo e no mundo, capazes de agir conscientemente nesse nosso espaço latino americano ajudando a criar outros modos de viver e ser, talvez mais humano. "[...] Modos de ser sendo si mesmo no cotidiano do mundo" (PINEL, 2003a). Freire nos diz a este respeito que:

[...] a conscientização é, nesse sentido, um teste da realidade. Quanto maior a conscientização, mais se desvela a realidade, mais se penetra na essência fenomênica do objeto ante o qual nos encontramos para analisá-lo. Por essa razão a conscientização não consiste em estarmos diante da realidade assumindo uma posição falsamente intelectual. A consciência não pode existir fora da práxis, isto é, sem o ato ação-reflexão. Esta unidade dialética constitui de maneira permanente o modo de ser ou de transformar o mundo que caracteriza os homens (FREIRE, 1974, p. 30).

 

O CONTEXTO - O CENÁRIO QUE ESTÁ DIANTE DE MIM: A PEDAGOGIA SOCIAL E EDUCAÇÃO SOCIAL, QUE CAMINHO É ESSE?

A educação é global, social e acontece ao longo da vida. O objetivo da educação é capacitar o indivíduo para viver em sociedade (PETRUS, 2000). A Educação Social costuma ser mais hábil, flexível, versátil e dinâmica. É uma prática pedagógica da Pedagogia Social que se transforma num instrumento de promoção, libertação pessoal e comunitária, contribuindo para construção de um mundo mais justo.

A educação nasce como uma contribuição ao atendimento daqueles que se encontram excluídos de qualquer proteção necessária para o seu desenvolvimento. Não é uma solução, mas uma inter(in)venção (PINEL, 2006, p. 278).

Compreendemos a Educação Social como uma prática da Pedagogia Social que está além da informação, pois, acredita no ser humano como ser incompleto e que está sempre sendo, um ser inacabado em constante desenvolvimento, por isso não limitamos a Educação Social às classes sociais ou à criança, tão pouco aos chamados excluídos pela sociedade. A Educação Social é para todos, e está presente durante toda vida neste ser sensível, perceptível, capaz de transcender em seu meio social que se chama humano.

Essa educação consiste em um modo de educar voltado aos interesses e necessidades dos educandos em um ambiente adaptado ao aluno, à sua cultura e ao seu meio social, conseguindo de forma integral compreender o indivíduo, como o tal pensa em sua formação e realiza o fazer da "ensinagem" social, em que o olhar atento para a pessoa e seu capital social se torna condição essencial conseguindo de forma integral compreender o indivíduo, como o tal pensa em sua formação e realiza o fazer da "ensinagem" social, em que o olhar atento para a pessoa e seu capital social se torna condição essencial.

No Brasil, a pedagogia tem se voltado prioritariamente ao sistema formal de educação, não se preocupando com a educação que ocorre fora dos âmbitos escolares. Talvez essa não se pré(ocupe) porque não consegue sistematizar ou colocar numa grade curricular o saber que é produzido por crianças que vivem em desvantagem econômica. Sem dúvida que o ensino formal abriu suas portas para que todas as crianças brasileiras entrassem, contudo a porta de saída também se abriu a partir do momento em que a escola não dá conta de compreender o ser dessa criança. Além disso, muitas vezes observamos profissionais da Pedagogia que se assustam com a diversidade de profissionais que se interessam por esse campo da Pedagogia Social e muito vêm colaborando com seus saberes no processo diferenciado dessa ação pedagógica.

A questão social do mundo globalizado e sua contextualização no Brasil recolocam a problemática da produção e distribuição da riqueza, discutida nos clássicos da sociologia. Nessa realidade é que o educador constrói um conhecimento que tende a ajudar a humanidade a encontrar formas de superar ou amenizar a desigualdade. Portanto a práxis do Educador Social, cujo projeto político pedagógico é incluir as vítimas da desigualdade social, ocorre num caldeirão de conflitos humanos, políticos e sociais (RYYNÄNEN; SILVA, 2009).

Segundo o principio constitucional inscrito no Artigo 205 da Constituição Federal de 1988 "A educação é um direito de todos e dever do Estado e da família, e será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho (SILVA; SOUZA NETO; MOURA, 2009).

Além desse importante princípio constitucional podemos perceber um avanço no artigo 1º da LBD, quando amplia o conceito de educação para além dos muros da escola, e nos diz que esse processo se desenvolve na família, na convivência humana, nas instituições de ensino e pesquisa, nos movimentos sociais e organizações da sociedade cível e nas manifestações culturais.

Fica claro então que nesta minha caminhada de pesquisadora meus colaboradores são Educadores Sociais de Rua e, de acordo com as pesquisas realizadas, exercem práticas educativas cheia de sentido, que segundo seus relatos é na maioria das vezes invisibilizadas e destituídas de seu real valor social e educacional; são educadores que, teimosamente, mesmo contra todas as adversidades na práxis confiam no potencial de seu educando, acreditando que ele pode mudar sua história, que ele pode sair da condição de vítima emancipando-se.

Penso que devido a esses fatores em nosso país, essa invisibilidade marginal tem contribuído para não sistematização de toda riqueza da prática pedagógica construída nos "entre lugares" (BHABHA, 2003), nas margens, junto com as vítimas sociais. Quanto à formação profissional, encontram-se, muitas vezes, somente em cursos de capacitação, que se preocupam com a informação, talvez com a conscientização, mas dificilmente com a formação pessoal do educador que trabalha em campos específicos com metodologias diferenciadas, que atua dialogando com as vítimas, com aqueles que se encontram na margem, na periferia das periferias.

A Pedagogia Social surge enfim no Brasil como um caminho para se pensar a Educação Social, um novo paradigma alternativo e aberto que vem refletindo a complexidade da sociedade que vivenciamos, caminho esse que não devemos desprezar, pois seu conteúdo é riquíssimo para a ação do educador e o desenvolvimento do educando.

A Pedagogia Social é reconhecida como ciência destinada à formação profissional, ainda que com diferentes matizes para contemplar a especificidade de cada país (SILVA; SOUZA NETO; MOURA, 2009), portanto não é propósito dessa pedagogia utilizar-se de modelos prontos de outros países, a especificidade, a singularidade econômica, política e social é que darão a tonalidade da Pedagogia Social no Brasil, que representa hoje um outro modo de pensar a educação, que não pode ser classificado de melhor ou pior, mas, sim, com outro olhar.

Vivemos hoje no Brasil um momento de desvelamento teórico em relação à Pedagogia Social, um momento de pesquisa em que vários pesquisadores em educação escolhem o campo da Pedagogia Social para sua produção. Esse movimento acontece hoje principalmente na Universidade de São Paulo, Mackenzie, Unicamp e Universidade Católica e por meio dos esforços do grupo de pesquisa de Pedagogia Social, coordenado pelo professor Dr. Roberto da Silva, esse movimento tem se estendido a outras Universidades de outros Estados através das Jornadas Brasileiras de Pedagogia Social

Convém esclarecermos que os termos Pedagogia Social e Educação Social, não são sinônimos. Pedagogia Social é disciplina científica, teoria que irá fornecer as ferramentas para a Educação Social que é a práxis, na verdade uma está intrinsecamente ligada a outra.

A pedagogia social exige um processo permanente de teorização sobre a prática, para o avanço histórico do movimento popular que se insere. A criação e recriação dos fundamentos metodológicos favorece a formação sólida e consistente da postura do Educador Social, principalmente transformando-o e um agente multiplicador, ou seja, formador de formadores, na prática social, junto aos setores populares. Os momentos de reflexão e de sistematização coletiva favorecem o crescimento, a autonomia e a independência dos educadores sociais, bem como a autocrítica e a autorevisão constante de seu processo como agente de mudança, também do grupo com o qual partilha sua ação educativa (GRACIANI, 2009).

Graciani (2009) de maneira muito feliz nos diz que a Pedagogia Social não exige apenas competência técnica especial do educador, talvez esse seja um dos nossos diferenciais, mas também solidariedade humana e compromisso político com o educando uma vez que o que almejamos com nosso educando é que ele seja um sujeito de direitos, que tome posse de sua cidadania.

Diante dos horizontes que vemos com a Pedagogia Social percebemos como é próxima sua relação com a pesquisa. Compreender como ocorre essa produção de conhecimento no campo da Educação Social de Rua constituiu-se o desafio principal desta pesquisa, sabemos que ele não se produz apenas por uma via, mas é um resultado de um processo colaborativo entre educador e educando, eles agem o tempo todo em parceria, contaminados um pelo outro, numa açãoreflexão constante, pois sem isso o conhecimento seria algo mecânico e irrefletido.

O conhecimento vai existir na medida em que for contaminando pessoas, tornando-as cúmplices, parceiras uma das outras dentro deste processo de permanente construção e reconstrução, pois o mesmo não é estático, não possui um final, é constantemente processual, uma andarilhagem que tem sempre novas paisagens a mostrar. O conhecimento se constitui na união dos seres, na experiência existencial compartilhada entre educador e educando no mundo em constante inter(in)vencão, num diálogo que envolve uma constante reflexão e ação no campo da Pedagogia Social/Educação Social.

A Pedagogia Social seria enfim um inédito viável, um acreditar em um outro possível processo educativo que na verdade já ocorre nas margens, nas diversas periferias. A palavra inédito viável é empregada por Freire (1980), é carregada de crenças, sonhos, desejos, aspirações, medos, angústias, ansiedades, vontade de fazer; essa palavra traz em seus modos de ser e fazer que devemos nos incomodar, nos inconformar e lutar por mudanças. A Pedagogia Social hoje seria então um inédito viável pelo que devemos lutar, pois não há nada definitivo nem acabado, por isso o sonho ainda é possível, mas somente no que se dá na coletividade, na relação com o outro.

Para Graciani (2009) a Pedagogia Social exige um processo permanente de teorização sobre a prática para o avanço histórico do movimento popular no qual se insere, os movimentos de reflexão e de sistematização coletiva favorecem o crescimento, a autonomia e a independência dos Educadores Sociais. O desejo de teorização dessas práticas me movem à compreensão das práticas educativas sociais de rua realizadas na cidade de Porto Alegre, Salvador e Vitória. Mergulhar na existência desses educadores desvelando seus modos de fazer e assim contribuindo para sistematização da pedagogia social faz de mim uma pesquisadora apaixonada pelo que faço, sabedora que a Pedagogia Social exige não só competência técnica mas também compromisso ético, político, solidário e um olhar para com o ser humano.

A Pedagogia Social possui diferentes perspectivas, lugares onde pode ser pensada, repensada e refletida [...] Nós escolhemos as ruas como um espaço de onde podemos pensar a Pedagogia Social e suas práticas educativas de rua.

 

EDUCAÇÃO SOCIAL DE RUA: UM DIREITO OU UMA CONFIRMAÇÃO DO NÃO DIREITO?

Na escolha das cidades de Porto Alegre, Salvador e Vitória, não tivemos a intenção de realizar um estudo comparativo, são realidades políticas, culturais bem diversas e comparar seria empobrecer a prática dos educadores desses locais. No entanto ao escolher as cidades procuramos cidades cujo trabalho de Educação Social de rua tivesse nascido de formas diferenciadas; em Porto Alegre o trabalho surge através da iniciativa do Partido dos Trabalhadores que permaneceu a frente da cidade por 16 anos, em Salvador o trabalho surge através do Projeto Axé na coordenação do Ítalo-brasileira Cesare La roca e em Vitória o trabalho surge e ressurge a cada nova administração.

Além de serem mal remunerados, não são inseridos em políticas sociais e sim em programas assistenciais precários que desanimam tanto os que já estão, quanto os que pretendem aderir a causa, não existe legitimidade normativa em seu ofício, no entanto esse profissional é capaz de provocar rupturas no ciclo da marginalização social, mediando junto às crianças e adolescentes em situação de rua mecanismos de exigibilidade do direito.

Algumas questões que hoje pre(ocupam) não só a mim como pesquisadora, mas também aos meus colaboradores de pesquisa nas cidades de Porto Alegre e Salvador, são o como lidar diariamente com os não iguais, que estão a margem, os que estão credenciados à inexistência cívica, por não se enquadrarem ao padrão hegemônico de cor, raça, sexo, orientação sexual, religioso e consumista, tendo sido reservados aos excluídos a cidadania lacunosa e frágil, em que o Estado é o principal promotor do espaço de negação ativa. Paulo Freire define o trabalho de Educador Social de Rua como sendo político, ideológico e pedagógico. "É preciso levar o menino a pensar a prática como o melhor caminho para pensar certo" (FREIRE, 1988, p. 11-15).

No cenário de hoje temos as crianças e adolescentes nas ruas, andarilhando sem e com esperança, que sempre me deram um desassossego, indignação, por isso a Educação Social de Rua não confirma um não direito, ao contrário ela existe como processo de intersubjetividade e de encontro [humanidade], numa perspectiva claramente emancipadora. Os Educadores Sociais de Rua surgem na história com a alternativa de uma outra pedagogia, invisibilizados, mas sempre assumindo a luta pela construção de alternativas possíveis e emancipadoras, transforma(dor)as para as crianças e adolescentes que se encontram em situação de rua privadas de seus direitos constitucionais.

O Educador Social de Rua está sempre em busca de alternativas, de brechas, e é nessa busca de alternativas que Diniz (2000) nos diz que o educador deve se precaver para que a relação com o educando tenha um caráter pedagógico, ou seja, ela deve ser construída com o educando e não sobre o educando, provocando em seu dizer uma "forçosa socialização". Segundo Diniz ao cair no desejo de normatização ocorre a perda da tão necessária comparsaria pedagógica.

 

O QUE PRETENDO NESSA ANDARILHAGEM, QUAIS OS QUESTIONAMENTOS QUE PULSAM DENTRO DE MEU SER?

Compreender as percepções e as vivências, bem como procurar desvelar como os pressupostos educacionais se apresentam por meio da experiência de ser Educador Social de Rua e contribuem na prática educativa no âmbito da Educação Social de Rua. As vivências e experiências foram buscadas em três cidades brasileiras. Porto Alegre, cuja Educação Social de Rua constitui-se uma política pública elaborada desde a primeira gestão do Partido dos Trabalhadores; onde temos um grupo de Educadores Sociais concursados como "monitores" e mais 13 grupos de educadores ligados a ONGS.

Salvador onde o trabalho de Educação Social de Rua é realizado há 15 anos por meio da ONG AXÉ, que, sustentada principalmente por empresas estrangeiras, atua realizando o trabalho educativo de rua, fiscaliza as ações do governo tendo com ele vários embates, e possui em sua sede um importante centro de formação para o Educador Social de Rua.

E, por fim, Vitória, onde a Educação de Rua ainda não chegou a ser política de Estado mas se apresenta, por ora, como política de governo, e está sempre se fazendo e se refazendo conforme a administração. Seus educadores são basicamente assistentes sociais que não sentem a necessidade de pedagogos no trabalho.

Desvelar as experiências, a existência dos educadores nesses três territórios distintos, com caminhadas distintas, nos leva a ficar mais atentos enquanto pesquisadores, para saber como ocorre o entrelaçamento da teoria com a prática no cotidiano do Educador Social de Rua, quais as potencialidades inventivas dos praticantes produtores de saberes teóricos-práticos. Por vezes não poderemos nos omitir de fazer contra pontos, contudo esse não é um estudo comparativo, até porque estamos lidando com culturas diferentes e situações políticas distintas. Trabalhar com a escuta do ser Educador Social de Rua, suas subjetividades,

O que é e como é a epistemologia da Educação Social desenvolvida na práxis pelos Educadores Sociais de Rua em territórios distintos como Salvador, Porto Alegre e Vitória? Como podem ser compreendidas, por meio de suas existências, as contribuições para as políticas públicas desenvolvidas para a criança e adolescente em situação de rua no Brasil?

São perguntas complexas que podem ser respondidas ou não, pois vivemos o momento de construção teórica e como tal temos perguntas complexas com respostas por vezes inacabadas, com uma incompletude positiva que nos impulsiona; buscamos a compreensão fenomenológica da experiência que a nós é desvelada por meio da fala, dos gestos e dos seus modos de ser dos educadores sociais, mas esse é um processo que vivemos com paciência, mas não acomod(ação), ao contrário, como comunidade cientifica buscamos a desacomodação pois reconhecemos que "a paciência nunca é alienante nem alienada em relação a um processo histórico. Paciência não é ficar: Eu nunca usei o verbo ficar, porque seria um absurdo. Eu tenho sempre usado o verbo partir" (FREIRE, 2004, p.102).

 

CAMINHO DE PESQUISA

Andarilho por esse caminho por perceber e sentir que a Pedagogia Social é hoje no Brasil uma ciência ainda em construção e que a compreensão de suas práticas por meio da Educação Social de rua certamente contribuirá para o aprofundamento dessa ciência.

A Pedagogia Escolar tem uma história e é amplamente desenvolvida pela didática, ciência ensinada nas universidades. A Pedagogia Social se desenvolve dentro de instituições não formais de educação, é uma disciplina mais recente que a anterior. Nasce e se desenvolve de modo particular no século XIX como respostas às exigências da educação de crianças e adolescentes que vivem em condições de marginalidade e pobreza, de dificuldades na área social, em geral essas pessoas não freqüentam ou não puderam freqüentar as instituições formais de educação. Um dos principais objetivos da Pedagogia Social é o de agir sobre a prevenção e recuperação das deficiências de socialização, de um modo especial lá onde as pessoas são vitimas da insatisfação das necessidades fundamentais. Podemos afirmar que no Brasil a Pedagogia Social vive um momento de grande fertilidade. É um momento de criatividade pedagógica mais de que criação de métodos e conteúdos. Ao mesmo tempo nos damos conta que é chegado o momento no qual precisamos sistematizar toda essa gama de conhecimentos pedagógicos para compreender melhor, interpretar o mundo e projetar intervenções educativas efetivas.

O desejo de pisar em territórios com uma produção significativa como Porto Alegre, Salvador e Vitória me permitem viver a potência do que me é estranho e ao mesmo tempo muito conhecido, me permite identificar sentimentos de solidão que eu sentia e vivia enquanto Educadora Social de Rua.

Nos propomos ao desafio de problematizar a epistemologia da Educação Social de Rua por meio da compreensão fenomenológica existencial, da experiência do Educador Social junto a criança e adolescente em situação de rua, por entendermos que o processo de construção do conhecimento surge na prática, pela experiência vivida, sentida, no cotidiano do educador/educando. Essa compreensão do educando que vivi no mestrado com as crianças e adolescentes, e agora a de educadora vivenciada no doutorado, se constituem em fontes de conhecimento cheia de sentido e com horizontes abertos para o presente e o futuro, em que encontro caminhos possíveis. O foco desta pesquisa é na experiência subjetiva do sujeito, naquilo que ele narra, por isso, como uma boa andarilha, não posso ter ansiedades excessivas, preciso acompanhar as passadas de meu colaborador de pesquisa e com ele contemplar as visões e os horizontes que se desvelam. Assim como desoculto-me, também, para que este compreenda meu pensamento, envolvemo-nos um com o outro então tomados por nossos gestos linguísticos.

 

OS FENÔMENOS SE DESVELAVAM PELOS CAMINHOS. PORTO ALEGRE

Desde que iniciamos nosso trabalho como Educadora Social em Recife, Porto Alegre sempre foi uma de nossas principais referências, por ser uma das pioneiras do trabalho de Educação Social de Rua, possuindo inclusive uma escola para crianças e adolescentes em situação de rua; alguns dos poucos títulos que tínhamos sobre o assunto vinham de lá, bem como várias pesquisas na área. Todos esses aspectos nos levaram ao desejo de uma maior compreensão do fenômeno de Educação Social de Rua que existia nesta cidade.

Em duas gestões do Partido dos Trabalhadores (PT), o trabalho com as crianças e adolescentes, que se encontravam nas ruas de Porto Alegre, consolidou-se, contudo, com a troca partidária no comando da cidade, a Educação Social de Rua ganha novos desenhos.

A cidade é dividida em 13 regiões, doze delas coordenadas por ONGS e uma delas composta apenas por funcionários efetivos concursados; após reunir-me com outros grupos pertencentes a algumas regiões coordenadas por ONGS, decidimos realizar a pesquisa no núcleo de educadores estatutários. Senti-me mais a vontade com eles, uma vez que possuem uma capacidade crítica reflexiva apuradíssima e segundo eles podem fazer essa reflexão crítica sem correr o risco de serem mandados embora.

Atuando como educadores, mas na verdade possuindo o cargo de "monitores", nomenclatura pela qual se negam a ser chamados, eles possuem formação nas mais diversas áreas; escolhemos para entrevistar 2 pedagogas, 1 historiador, 1 psicóloga e um tecnólogo em informática, com idades entre 35 a 53 anos, todos atuando como Educadores Sociais de Rua.

 

SALVADOR

A Escolha da cidade de Salvador aconteceu de forma semelhante a de Porto Alegre, já sabíamos que Paulo Freire havia sido organizador do setor de formação do projeto Axé, dando formação aos primeiros Educadores Sociais do Axé. O Projeto Axé constitui-se em ONG que possui um centro de formação para educadores, uma biblioteca, com vários trabalhos científicos, grande parte de estrangeiros, e vários títulos sistematizados. O projeto Axé sempre nos chamou atenção e chegamos a ler algumas de suas publicações, esses fatores nos levaram a escolhê-lo como um território a ser desvelado.

Em Salvador, os Educadores Sociais possuem uma estrutura de trabalho pautada principalmente na formação, nenhum educador vai as ruas sem uma formação mínima de seis meses no projeto Axé, ONG responsável pelo desenvolvimento do projeto.

Ao iniciarem a ONG Axé, segundo seu fundador Cesare Laroca, o objetivo era que essa se transformasse em política pública e que o Estado pudesse assumir o trabalho depois de devidamente estruturado, mas isso não ocorreu e até hoje o projeto Axé assume esse trabalho tendo cerca de 120 Educadores Sociais atuando. Os educadores possuem contratos regidos pela CLT e uma parte significativa desses já são fruto do próprio trabalho do Axé.

Os educadores entrevistados contam com mais de 10 anos de experiências e vivências, alguns estão desde a fundação do Axé e participaram de várias formações com Paulo Freire; eles chegam a transpirar, literalmente, as categorias teóricas de Paulo Freire, seus olhos brilham ao falar do pensador, o ambiente é completamente contaminado pela teoria de Freire. "Aqui compreendemos ser impossível pensar em educação de rua ignorando a pedagogia freiriana, ele é nosso suporte, ele esteve na criação do projeto Axé, sonhou junto conosco, por isso sua metodologia é usada até hoje por nós, vamos dando leituras diferenciadas claro" (S3, SALVADOR).

As entrevistas acontecem sempre sob a forma de existência, em que o encontro é o mais importante; não o encontro carne e osso, mas o encontro existencial. Esse é um fenômeno que sempre se apresenta de maneira imprevista, é um acontecimento que sempre exige muito de mim, que ocupo o duplo lugar de Educadora Social de Rua e Pesquisadora. É como se eu fosse sacudida a cada encontro diante da força da alteridade do outro.

Extremamente abertos ao desvelamento de suas experiências falavam com propriedade e segurança de alguém que sabe o que realmente está fazendo e porque está fazendo. Em Salvador, compartilhei diálogos com uma pedagoga, um historiador, um educador graduado em letras, que faz doutorado nos EUA, uma assistente social, todos se autodenominando, o tempo inteiro, como Educadores Sociais em processo de formação.

 

VITÓRIA

Vitória é o meu território, o chão em que piso, onde está localizada a Universidade, na qual fiz minha graduação em Direito, a especialização, o mestrado e, atualmente, realizo o doutorado, por isso sinto um compromisso político e uma vontade de contribuir com os educadores e educadoras que militam nas ruas dessa cidade que me acolhe.

Neste contexto, tanto em Porto Alegre, quanto em Salvador e até mesmo em Vitória, onde só iniciamos o processo e os dados foram produzidos colaborativamente, ao mesmo tempo em que pesquisava, aprendia, ensinava, dialogava e participava de processos formativos, não havia como separar essas perspectivas. Interagíamos, dialogicamente, em torno do conjunto de experiências apreendidas processualmente com Educadores Sociais de Rua e essa foi para mim uma experiência única e singular em cada território que pisei.

Durante a entre(vista) dialógica percorremos um espaço único, onde são realizados todos os movimentos e atos necessários, procurando captar a experiência integral no gesto em movimento; naquele momento-movimento estou atenta àquele mundo. Nesse sentido escreve Merleau-Ponty:

Por meu campo perceptivo, com seus horizontes espaciais, estou presente em meu meio, coexistindo com todas as outras paisagens que se estendem além, e todas essas perspectivas formam juntas uma única onda temporal, um instante do mundo; por meu campo perceptivo, com seus horizontes temporais, estou presente em meu presente, em todo passado que o precedeu e num futuro (MERLEAU-PONTY, 1971, p. 336).

Nessa pesquisa estão sendo utilizados meus diários de campo, gravações de todos os encontros com os educadores, depoimentos e conversas espontâneas com moradores de rua das cidades mencionadas, conseguidos por meio do acompanhamento aos educadores em seus campos de trabalho. Utilizei, também, enquanto análise documental, as informações sistematizadas nos diversos territórios, em que estive presente, além de prontuários, livros etc.

 

TEORIAS QUE SE DESVELAM NO CAMINHO (BASE TEÓRICA)

Com essa pesquisa, quis poder vasculhar diferentes territórios e áreas de conhecimento que me falassem das margens, sem perder de vista o caráter essencialmente pedagógico; é na verdade, uma tentativa de romper com estruturas coercitivas, colonizadoras e domesticadoras. Dussel e Freire me apontam diversos caminhos revolucionários nessa encruzilhada, pois são teóricos que se propuseram não somente a falar sobre o oprimido ou a vítima, mas que teorizaram a partir deles e com eles, que sentiram em suas próprias existências o que é ser periferia, que optaram por ter uma utopia esperançosa. O registro das falas mais frequentes e significativas está resultando em um emaranhado de categorias, sempre submetidas à aprovação dos Educadores Sociais envolvidos na pesquisa.

A pesquisa e a produção de dados por meio de entrevistas visualizaram a utilização dos teóricos citados e não o contrário. Enrique Dussel é um filósofo da práxis. Nasceu em Mendoza, na Argentina de 1934, sua história de luta pela libertação latino-americana é longa, tendo sido vítima de um atentado a bomba por parte do governo militar argentino. Podemos sentir, por meio de seus escritos, a influência marxista, pois o mesmo a todo instante dialoga com os conceitos trazidos por essa corrente filosófica.

Dussel nos aproxima de algumas categorias como proximidade, totalidade, exterioridade, libertação, alienação, o olhar da vítima, tomando como ponto alto a ética da libertação baseada na materialidade humana, a partir da alteridade, do valor do outro. O diálogo é algo bem característico em sua filosofia. Essas categorias parecem existir dentro da cultura judaico-cristã e o que Dussel faz é ter um novo olhar em relação a elas, um olhar a partir do povo oprimido e vitimado da América Latina. O pobre, o oprimido tem destaque, ele é o ponto chave dos pressupostos do autor. Dussel nos leva a refletir sobre a proximidade como algo que é gênesis na relação, isto é, o Educador Social de Rua, na relação dialógica com o educando, precisa aproximar-se antes de estabelecer qualquer relação, isto é o que o Projeto Axe denomina "paquera pedagógica".

Freire e Dussel mostram, por meio de suas práxis, que a vítima é sua responsabilidade e não se eximem de assumi-la de todas as formas que podem, mesmo correndo riscos de chamarem seus escritos de não científicos, em virtudes de suas posturas políticos sociais. Em relação a esta critica, Freire responde com propriedade que seria impossível a existência de uma prática educativa distante, fria, indiferente com relação a propósitos sociais e políticos (FREIRE, 1992, p. 80).

Essa responsabilidade reflexiva de Dussel e Freire, o reconhecimento da vítima e do oprimido como iguais, como sujeito vivo, pleno de sentidos, com memória, cultura, uma comunidade que precisa ser validada, faz com que esses teóricos sejam legitimados nas comunidades dos oprimidos, fazendo-os assim uma forte referência em nossa pesquisa na e com as margens.

De Paulo Freire elegemos as categorias: oprimido, inédito viável, diálogo, conscientização e emancipação. Com essa base teórica, procurarei compreender o sistema de opressão, sob o ponto de vista filosófico e relacional. Minha dupla formação - Pedagogia e Direito - viabiliza a abordagem do direito como sistema pedagógico exemplar da prática dominadora e opressora, que não pode ser ignorada nessa pesquisa.

Freire é considerado um dos principais construtores do conceito Educação Popular e um dos principais referenciais para a Pedagogia Social de Rua. Pode-se inclusive afirmar que Paulo Freire é um dos mais importantes teóricos da Pedagogia Social e que sua obra é reconhecida internacionalmente nessa perspectiva e tem servido de base para Pedagogia Social nos países europeus.

 

COM A PALAVRA NOSSOS PROTAGONISTAS, MEUS COMPANHEIROS DE JORNADA: OS EDUCADORES SOCIAIS DE RUA, DESCORTINANDO SUAS HISTÓRIAS, AÇÕES, SEU ENGAJAMENTO E SUAS DECISÕES POSSÍVEIS...

Por meio dos diálogos com os meus colaboradores de pesquisa, os Educadores Sociais de Rua, compreendemos que o significado de pedagogia pode ser visto e sentido no contexto do conceito de práxis. A Educação Social de Rua, segundo a fala dos Educadores Sociais de Porto Alegre e Salvador, é construída na ação pedagógica da e na rua, desvelamos, também, em suas falas, muitos pressupostos educacionais freirianos: dialogicidade, amorosidade, conhecimento, conscientização, ação-reflexão-ação, leitura da realidade, inédito viável e a existência de alguns pressupostos, inclusive já apontados pela pesquisadora Liberalesso, em uma pesquisa com Educadores Sociais, em Santa Maria (LIBERALESSO, 2008).

 

DESVELANDO INTENCIONALIDADES POR MEIO DA PRÁXIS AÇÃO-REFLEXÃO-AÇÃO

Ação e reflexão são palavras que pulsam em toda obra de Paulo Freire, o saber reflexivo da ação, o fazer para Freire sem a reflexão torna-se meramente mecânico, repetitivo e sem sentido, o contexto teórico para Freire é inseparável do contexto prático, nesse contexto acrescentaria hoje a necessidade de ação-reflexão-sistematização para que possamos (com)partilhar, dizer a palavra ao outro, falar do que temos feito e refletido.

 

HÁ CONFUSÃO DE FAZERES NA EXPERIÊNCIA DE SER EDUCADOR SOCIAL DE RUA DIRETIVIDADE FREIRIANA

Somos cobrados de todas as partes. O poder público nos quer retirando as crianças das ruas quase que a força, a população não quer conversa nem afeto entre os educadores e os meninos que estão na rua. Pensam que nós somos polícia, mas nós trabalhamos com afeto, com diálogo, com o ser humano e as necessidades dele, com educação (P1, POA).

Diretividade, no entendimento de Freire, seria um caminho viável que possibilitasse o educando a se emancipar. Essa é uma prática empreendida por um educador que sabe qual é o seu lugar, o fato de não sabê-lo dispotencializaria sua ação com os educandos que estão nas ruas. A educação libertadora de Freire se consolidará por meio de práticas diretivas que põe às claras a educação que defende quem é e o que pretende sem neutralidades ou eternas confusão de fazeres. Percebemos que a ação do Estado despotencializa e reprime o educador, quando não deixa claro seu papel diretivo de educar.

 

A METODOLOGIA UTILIZADA PELO EDUCADOR SOCIAL DIFERE DA METODOLOGIA UTILIZADA PELO EDUCADOR ESCOLAR PEDAGOGIAS DIVERSAS/AMOROSIDADES

Professores e Educadores Sociais educam, mas há uma diferença: O primeiro visa a uma educação mais formal, com matérias escolares de matemática, português etc. Já os Educadores Sociais atuam como eternos aprendizes, ensinando e aprendendo todos os dias através de uma leitura de vida, com um olhar mais micro e macro conforme a história de cada indivíduo que chegam até nós (S1, SALVADOR).

Na obra de Paulo Freire, o termo pedagogia aparece no título de diversas obras, indicando que para ele não existe uma pedagogia. Existem pedagogias que correspondem à determinadas intencionalidades formativas e se utilizam de instrumentais diversos (STRECK, 2008), dentre eles a amorosidade como uma potencialidade educativa, uma amorosidade compartilhada, que significa comprometer-se consigo e com o outro e que nos faz produzir quantas pedagogias forem necessárias para dar existência digna ao humano.

 

DIALOGICIDADE E A RELAÇÃO QUE SE HORIZONTALIZA SEM PERDA DE AUTORIDADE.

O diálogo é o nosso ponto chave, a relação dialógica em que o educando é uma pessoa de direito, visto como um cidadão, momentaneamente privado dos bens de consumo, mas um cidadão que fala e é ouvido pelo Educador Social de Rua. A Pedagogia do Desejo nos leva a suscitar o desejo de ser em nosso educando, acreditando nele como pessoa humana, ouvindo-o de todas as formas (S3, SALVADOR).

O diálogo para o Educador Social de rua constitui-se numa das categorias centrais de sua práxis, é preciso ouvir o outro, estar atento a cada palavra, cada gesto linguístico, deixando o outro dizer e fazer o mundo, a coerência metodológica do Educador Social de Rua está sempre pautada no diálogo com o menino e menina que se coloca diante dele. Estabelecer um diálogo critico, criativo em relação àquela existência humana que é o educando é parte essencial do trabalho do Educador Social de Rua. Saber escutar é um dos saberes necessários quando se está nas ruas, escutar não só o educando, mas a sua cidade.

O Educador Social de Rua é um cria[dor] de espaços de escuta, sem agenda específica, sem sermão, sem moralismos, retomando a história de vida do educando e da história iniciada com a relação educador/instituição.

 

FORMAÇÃO COMO EIXO FUNDANTE NA PROFISSÃO DO EDUCADOR SOCIAL. FORMAÇÃO PROFISSIONAL COM COMPROMISSO SOCIOPOLÍTICO

Nossos educandos são muito preciosos e aprendemos com Freire, que foi o primeiro formador do projeto Axé. Precisamos estar em constante formação, problematizando o cotidiano de nosso educando e percebendo a melhor forma de alcançá-lo. Por exemplo, há alguns anos atrás, o nosso educando andava em grupos e usava loló, hoje ele anda só, por conta do uso do crack [...].

Os Educadores Sociais de Rua de Porto Alegre e Salvador, por meio de suas falas e experiências desvelam a importância do processo de formação, não reprodutivo, e, que se dá também nas ruas, quando educadores e educandos vão se tornando sujeitos do processo vivido, quando falam e são verdadeiramente ouvidos, não apenas um pelo outro, mas por toda sociedade. É uma formação problematizadora que leva à ação-reflexão-ação-reflexão.

O SER humano é essencialmente diferente das demais espécies e isso fascinava Freire, não nasce pronto, é incompleto até a morte, sendo que cada indivíduo necessita se fazer, decidir o que virá a ser (Freire, 1984, p.65), por isso escutar, criar vínculos com esses seres da incompletude é algo quase mágico que nos permite ter esperança e sermos criativos em nossas metodologias, nas ruas não valem contatos unilaterais, precisamos de diálogo, conquistas, vínculos para aprender e ensinar.

 

CONSCIÊNCIA

Antes havia esse cuidado para conosco, havia essa preocupação. Antigamente nós estudávamos a rua, nenhuma ação que acontecia ficava na rua, a gente trazia para o grupo e fazia um estudo. Nós tínhamos uma formação em serviço, uma formação própria, diária, toda reunião de equipe tinha uma parte que era para trabalhar a rua, vinham acessorias, psicólogos, pessoas de varias áreas da saúde, da educação etc (P1, POA).

Na fenomenologia, a consciência se caracteriza pela intencionalidade, que é, por vezes, contraditória, misteriosa, humana... Freire nos fala sobre a consciência intransitiva, transitiva ingênua e transitiva crítica (FREIRE, 1974, p. 59-60), ele nos propõe uma reflexão radical sobre a realidade em que se vive, creio que essa reflexão faz parte do cotidiano, por vezes, solitário, invisibilizado, mas sempre cheio de esperança no sentido de reinvenção da complexa realidade vivida e sentida.

 

(RE) EDUCAÇÃO DO EDUCADOR

Descobrir o que sabe, o que traz de bom, o que é capaz de fazer, não permitir que a visão de ladrão, do homicida, do viciado, do agressivo, nos impeça de ver a pessoa, não utilizar o conhecimento sobre o passado do educando, para não colocar a exigência antes da compreensão, ser exigente, mas exigir por degraus. Abrir espaços para que possa experimentar-se como fonte de iniciativa, liberdade e compromisso, surpreender seus educandos, fazê-los perceber que aprender é prazeroso, é difícil, mas não é impossível (S 3. Salvador).

Como ser educador? O ser educador é um dos eixos fundantes do discurso político-pedagógico freiriano, a (re)educação desse ser incompleto, inacabado, que se chama Educador Social de Rua, é processual e por vezes lenta e confusa, pois está inserida em um contexto inóspito. Essa processualidade lenta ou acelerada é sentida na existência desses humanos que se propõem a trabalhar com crianças e adolescentes em situação de rua.

 

LEITURA DE MUNDO

É significativo nesses encontros mergulhar na história de vida dos educandos, buscando por meio da compreensão perceber seus potenciais e limites, para que eles se situem no mundo enquanto seres em desenvolvimento e se percebam como sujeitos de direitos e deveres, sempre entendendo que eles possuem o tempo deles e que esse tempo precisa ser respeitado. É Paulo Freire que fala sobre a paciência histórica do educador? Às vezes nos atrapalhamos nisso, como costumam dizer, metemos os pés pelas mãos, aí vem um colega educador e nos diz: olhe o tempo do menino [...], e assim a gente caminha errando, acertando, mas, sempre com vontade de acertar, sempre com esse guri e guria tão sofridos (P 4, POA).

A leitura do mundo, a vocação para humanização do mundo, faz parte do humano nesse sentido Freire nos diz: é por estarmos assim, sendo assim, que nos vimos vocacionados para humanização e que temos na desumanização, fato concreto na história, a distorção da vocação. Jamais, porém, outra vocação humana. Nem uma nem outra são destinos certos, dados, sina ou fato. Por isso mesmo, é que uma vocação e outra, distorção da vocação, a leitura do mundo do humano, a maneira como vemos o contexto educativo no qual estamos inseridos, vai certamente influenciar em nossa existência, em nossos modos de ser sendo Educadores Sociais de Rua.

 

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