Congr. Intern. Pedagogia Social Mar. 2010
Educação conscientizadora na prática do enfermeiro em hanseníase1
Renilda Rosa DiasI; Sônia Maria Villela BuenoII; Cláudia Bernardi CesarinoIII
IUniversidade Federal de Mato Grosso do Sul, Campus Três Lagoas, Mato Grosso do Sul, Brasil. Email: rerodia@ig.com.br
IIEscola de Enfermagem de Ribeirão Preto, Universidade de São Paulo, Ribeirão Preto, São Paulo, Brasil com auxilio financeiro no Programa de Qualificação Institucional em convênio com a Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES)
IIIFaculdade de Medicina de São José do Rio Preto, São José do Rio Preto, São Paulo, Brasil
RESUMO
No estudo de natureza qualitativa, objetivamos levantar as necessidades de aprendizagem, com o desenvolvimento de um programa educativo relacionado à hanseníase com o seu portador, mediado pela metodologia da pesquisa-ação e baseado no referencial teórico da educação conscientizadora de Paulo Freire. Trabalhamos com dezenove sujeitos no primeiro momento e com seis de ambos os sexos, nos momentos subseqüentes. A investigação ocorreu em uma Faculdade de Medicina do interior paulista. A coleta de dados foi efetivada por meio de entrevistas, observação participante, círculos de discussões e visitas domiciliares. Os resultados apontaram cinco temas geradores: a desinformação da doença, sinais e sintomas da hanseníase, transmissão da doença, estigma e a falta de prevenção para as incapacidades físicas. Desenvolvemos o programa educativo com situações problematizadoras da realidade do portador, motivando o sujeito ao diálogo. Este desencadeou a tomada de consciência, o desenvolvimento de capacidades e habilidades para o autocuidado. A avaliação do processo de conscientização permitiu comprovarmos a mudança de um sujeito passivo em ativo e reflexivo, multiplicador de informações e transformador de sua realidade, respeitando seu contexto cultural.
Palavras chave: Hanseníase, Educação Conscientizadora, Educação em Saúde, Enfermagem
ABSTRACT
On this quality nature study, we aimed at verifying learning needs, developing an educative program related to leprosy with the carrier, mediated by research-action methodology and based on Paulo Freire's theoretical referential of consciousness education. We worked with nineteen individuals on a first moment and with six of both genders, in subsequent moments. The investigation was developed on a Medicine School from Sao Paulo State. Data was collected through interviews, participant observation, discussion groups and home visiting. The results pointed out five generators themes: disease disinformation, leprosy signals and symptoms, disease transmission, stigma and lack of prevention for physical incapacities. We elaborated an educative program with problems situations of carriers' reality, motivating them to dialogue. The educative program with leprosy carrier propitiated consciousness' taking, the development of capacities and abilities for self-caring. The consciousness process evaluation allowed us to testify the changing of a passive individual into and active and reflexive one, information multiplier and reality transformer, respecting cultural context.
Key-words: Leprosy, Conscience Education, Health Education, Nursing
Introdução
A dinâmica das doenças crônicas sempre esteve presente ao longo da história da humanidade. O que se observa hoje é a rapidez das transformações, bem como de seus reflexos, as mudanças nos paradigmas e nos contextos que são ágeis, implicando atualização nas estratégias e táticas desempenhadas no controle destas doenças, assim como na hanseníase.
O portador de hanseníase necessita, pois, conhecer a doença e conscientizarse da importância das ações preventivas e curativas. Dessa maneira, educá-lo exige o uso de estratégias de aprendizado para o adulto, que apreende os conhecimentos com base em suas experiências de vida1.
Ao educador compete colaborar com o educando na organização de seu pensamento, estimular a identificação de suas necessidades de aprendizagem, através da reflexão e do diálogo, para assim desvelar sua realidade de maneira crítica e conscientizadora tornando-o agente da transformação social 2, 6.
O objetivo do estudo constituiu levantar as necessidades de aprendizagem e desenvolver um programa educativo conscientizador relacionado à hanseníase em um grupo de portadores, tendo como suporte teórico das ações e intervenções educativas a educação conscientizadora.
Metodologia
O estudo foi pautado na abordagem qualitativa, elegemos a pesquisa-ação articulada ao referencial teórico metodológico de Paulo Freire da educação conscientizadora, favorecendo o levantamento das necessidades de aprendizagem por meio do estudo exploratório, assim como, trabalhar ações e intervenções educativas.
O desenvolvimento do estudo ocorreu em uma instituição de ensino superior (IES), no Estado de São Paulo/Brasil, sendo constituído por três cenários distintos: o ambulatório, salas de aula e o domicílio do portador de hanseníase. Os critérios de inclusão dos portadores como sujeito da pesquisa foram ser maiores de 18 anos; residir em São José do Rio Preto e/ou região; estar em tratamento medicamentoso, apresentar diagnóstico médico de hanseníase; aceitar participar da pesquisa; estar em condições físicas e ter disponibilidade de tempo à de freqüentar as reuniões de grupo e oferecer informações.
Dezenove sujeitos atenderam aos critérios básicos, compareceram ao 1º encontro do programa educativo, onze. No desenvolvimento das atividades de educação conscientizadora houve participação de seis sujeitos, os quais se mantiveram constantes.
A organização da análise do universo temático possibilitou selecionar os temas geradores relevantes: desinformação sobre a doença, sinais e sintomas da hanseníase, transmissão da doença, estigma e falta de prevenção para as incapacidades físicas. Elaboramos o planejamento e a aplicação das ações educativas o qual se caracterizou em seis encontros quinzenais, com duração de uma hora e meia.
O processo de conscientização foi realizado com círculo de discussão, objetivando propiciar a reflexão, a descrição e a avaliação das situações-problema. A avaliação das ações e intervenções educativas foram desenvolvidas nas visitas domiciliares, objetivando não apenas avaliar o processo ensino-aprendizagem, mas também verificar as transformações oriundas do mesmo.
Aspectos éticos
Atendendo aos pressupostos éticos que regem a pesquisa com seres humanos este estudo foi atestado pelo Comitê de Ética e Pesquisa da Faculdade de Medicina de São José do Rio Preto (FAMERP).
Resultados e discussão
Operacionalização das atividades educativas em grupo
Ao planejarmos os planos de ensino escolhemos estratégias de fácil entendimento e, na execução dos mesmos trabalhamos com abordagens simples, usamos uma linguagem clara e objetiva. No desenvolvimento de cada plano de ensino utilizamos situações problematizadoras, com as discussões no grupo, observações de figuras, realização de desenhos, elaboração de cartazes, verbalização de experiências vivenciadas, motivando a aquisição de novos conhecimentos.
Ao desenvolvermos o círculo de cultura, atuamos enquanto coordenador de debates tendo o compromisso de ordenar os conhecimentos a fim de que os educandos compreendessem o sentido e a utilização do conhecimento, para formar uma consciência crítica. Foi necessário conhecer o que os participantes já sabiam sobre o assunto a ser discutido e o que iriam saber. Para tanto, foi preciso um trabalho pedagógico crítico, por meios da educação dialogal e ativa, permeando a responsabilidade social e política 3,4.
Ao desenvolvermos o programa educativo estabelecemos seis encontros, nos quais no primeiro realizamos a recepção dos sujeitos participantes e revimos os critérios de inclusão e nos demais trabalhamos o desenvolvimento das ações educativas propriamente ditas.
1º Encontro: O primeiro encontro objetivou realizar a apresentação dos onze sujeitos participantes nesta etapa, lembrando que esses atendiam aos critérios préestabelecidos; construir o cronograma de encontros e ainda explicar a atividade educativa. O encontro propiciou além da interação, o aquecimento para o desenvolvimento dos próximos temas que seriam discutidos.
2º encontro: Realizamos a leitura das falas mais significativas que culminou no tema gerador de desinformação sobre a hanseníase, a ser trabalhado neste encontro. O grupo iniciou um diálogo, verbalizando suas situações vivenciadas resultantes da falta de conhecimento da doença. Apresentamos um esquema com a representação anatômica do acometimento dos nervos periféricos. Na medida em que dialogávamos, os sujeitos observam a figura e colocavam uma das mãos sobre o local de seu comprometimento. Discutiam suas formas clínicas e o que estas representavam para cada um. Expressaram o seu conceito da doença, as diferentes formas clínicas da enfermidade, assim atingimos os objetivos propostos ao encontro.
3º Encontro: Sinais e sintomas da doença. Dividimos em dois subgrupos, distribuímos várias figuras apontando sinais da doença e pedimos que montassem um cartaz. Ficaram livres para discutirem e após algum tempo apresentaram a construção do cartaz. Nesse momento buscamos o conhecimento dos participantes, para chegar a um consenso ou esclarecer dúvidas. As falas de reflexão retratavam estarem receptivos às informações e ao novo conhecimento.
4º Encontro: A transmissão da hanseníase. Retomamos no coletivo os conceitos trabalhados anteriormente. A partir daí, o diálogo foi desencadeado por uma das participantes que relatou um caso de um familiar portador de hanseníase. Promovemos a estratégia de tempestade de idéias na medida em que refletíamos, anotávamos no quadro de giz, o que transmitia e o que não transmitia a doença. Ao longo da ampla discussão, da imersão nos problemas, contestando ou contradizendo os fenômenos experenciados entendiam a relação dinâmica da transmissão da doença em suas vidas, sem perderem a noção de conjunto que caracteriza a própria vida. Essa relação estabelece novo vínculo de saber, nova forma de união e expressa por solidariedade. Um pensar coletivo. Verbalizaram também as questões cultural, social e religiosa que cada pessoa traz consigo e deve ser analisada, pois podem influenciar seu comportamento de aceitar a si próprio, como um portador de hanseníase.
5º Encontro: O estigma. O grupo concluiu que quando uma pessoa apresenta alguma diferença que constitui uma dificuldade para a sua aceitação na sociedade, ela tem um estigma. Enumeramos alguns atributos considerados estigmatizantes pela população, surgiram: o cego, o negro, o doente mental, os portadores de AIDS, de tuberculose, da própria hanseníase entre outros. Suscitaram questionamentos como o da integridade do homem que fica ameaçada ao sofrer mudanças no seu modo de viver, inicialmente quando os problemas físicos superam os psicológicos, porém tornam-se mais vultuosas com a alteração de sua imagem corporal.
Solicitamos que desenhassem o que representava o estigma para eles. A oportunidade em dialogarem estimulou-os a livre expressão sobre suas realidades, do que é relevante, valorizando sempre suas vivencias.
6º Encontro: Falta de prevenção para as incapacidades físicas. Distribuímos duas figuras que retratavam a mão e a outra do pé de um portador de hanseníase. Pedimos para analisarem as alterações existentes. Identificaram seus próprios comprometimentos, ou seja: atrofia do nervo da mão, pele ressecada, artelhos em garra e úlcera plantar. Lançamos uma indagação no intuito de vislumbrarem a visão global: por que aquela pessoa chegou até o quadro retratado na figura?. Diante desta situação problema, teorizamos algumas ações preventivas simples de autocuidado.
A capacidade de ajustar-se à realidade acrescida à possibilidade de transformação pela opção e não pela imposição, em que o portador de hanseníase assumiu o papel de sujeito, com a liberdade de pensamento, de ação e de decisão, altera sua realidade pela tomada de consciência de suas situações-problemas, tornou-se ativo, não sendo submetido a prescrições alheias e a comandos externos.
Desenvolvimento da educação conscientizadora
Desenvolvemos ao longo do processo ensino-aprendizagem uma educação conscientizadora visando trabalhar as temáticas contempladas nos planos de ensino, de forma aberta, dinâmica e democrática, crítica e reflexiva, dialogal e interativa, tendo em vista os preceitos da horizontalidade, com isto, permitimos a participação ativa dos educandos na construção de conhecimento e habilidades, tanto no nível individual quanto coletivo.
Concordamos com Moraes 5 quando diz que precisamos cuidar do aprendiz para que ele possa aprender a pensar de maneira mais global, a refletir, a criar com autonomia soluções para os problemas, estimulando o pleno desenvolvimento de sua inteligência.
Para Freire 6, todo conhecimento está em processo de construção e reconstrução, de criação e recriação. A metodologia conscientizadora possibilitou observarmos as diferentes interfaces da temática, sendo que cada tema gerador, congrega várias visões que foram trabalhadas com o conhecimento produzido no diálogo, no contexto que emergiu.
Avaliamos que as necessidades priorizadas pelos educandos, partindo de suas experiências pessoais e guiadas por pelo nosso conhecimento técnicocientífico, reformulando a compreensão da realidade e propiciando, assim, a melhoria de suas condições de saúde. As vivências compartilhadas, as informações e as práticas de viver possibilitaram a socialização do saber.
Para Serra 7, quando se realiza o diálogo é porque se realiza a compreensão; quando se produz a compreensão é mais fácil e enriquecedor o diálogo.
Ao visitarmos os domicílios dos educandos, além de termos uma boa recepção, certificamos de que escolhemos com propriedade estar em seu contexto natural para avaliarmos as falas referentes aos seus 'novos e velhos' conhecimentos e as mudanças desencadeadas pelo processo.
O desenvolvimento da consciência do educando deve ser pautado pelo ato de refletir, pensar, criar, investigar, adquirir conhecimentos, criticar, bem como o despertar para intervir em sua realidade com responsabilidade e confiança. Todos esses quesitos proporcionam modificar a realidade norteada pelo diálogo, assumindo o compromisso político e social com o portador de hanseníase, o enfermeiro identifica com ele suas necessidades de aprendizagem permeada pela reflexão-ação e desenvolvendo o pensamento crítico e reflexivo, o que facilita a atividade educativa conscientizadora, culminando na transformação da realidade. Atualmente, as ações educativas são prioritárias no programa de controle da hanseníase, com a finalidade de diagnosticar precocemente a doença e proporcionar mudanças de atitudes relacionadas à socialização do doente.
Considerações finais
Neste novo milênio, necessitamos avançar nas exigências da educação, principalmente na educação em saúde. No decorrer do estudo, vislumbramos as inúmeras possibilidades do uso de estratégias que facilitem a aprendizagem.
O processo ensino-aprendizagem realizado entre o enfermeiro e o portador de hanseníase propiciou a tomada de consciência, o desenvolvimento de capacidades e habilidades não só para o seu autocuidado, mas também a contribuir em sua atuação como agente multiplicador de informações e transformador de sua realidade.
Referências
Caride JA, Meira PA. Educación ambiental e desarrollo humano. Barcelona: Editorial Ariel; 2001.
Freire P. Educação para a prática da liberdade. 21ª ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra; 1992.
Freire P. Pedagogia do oprimido. 22ª ed. São Paulo: Paz e Terra; 1993.
Bueno SMV. Educação preventiva em sexualidade, DST-AIDS e drogas nas escolas [livre-docência]. Ribeirão Preto: Universidade de São Paulo, Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto; 2001.
Moraes MC. Educar na biologia do amor e da solidariedade. Petrópolis: Vozes; 2003.
Freire P. Impossível existir sem sonhos. In: Freire AMA, organizador. Pedagogia dos sonhos possíveis. São Paulo: Ed.Unesp; 2001. p. 35-40.
Serra MG. Evaluación de los servicios sociales. Barcelona: Gedisa Editorial, 2004.
Souza CS. Liga de combate à hanseníase "Luiz Marino Bechelli": a inserção de um projeto acadêmico junto à atenção primária em saúde e comunidade. Hans Int. 2003;28(1):59-64.
Deps PD, Guedes, BVS, Filho, JB, Andreatta, MK, et al Characteristics of known leprosy contact in a high endemic area in Brazil. Lepr Rev. 2006; 77:34-40
1 Trabalho desenvolvido com Bolsa Doutorado Sanduíche do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), sob orientação do prof. Dr. José Antonio Caride Gómez, da Universidade de Santiago de Compostela, Espanha.