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An. 2. Seminário Música, Ciência e Tecnologia 2005

 

Aspectos acústicos da afinação de pianos

 

 

Ricardo Goldemberg

Instituto de Artes – Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). Caixa Postal 6159 – 13083-970 – Campinas – SP – Brasil. rgoldem@iar.unicamp.br

 

 


RESUMO

Este trabalho tem o propósito de explanar os princípios físicos que regem a distribuição de freqüências em escalas de pianos acústicos. Inicialmente, os problemas oriundos da existência de rigidez ou tenacidade em cordas percutidas reais são expostos e os seus efeitos avaliados em termos de inarmonicidade. Em seguida, discute-se os critérios comumente adotados para o espaçamento dos desvios de afinação e apresenta-se a lógica dos procedimentos utilizados por técnicos na ajustagem destes instrumentos.

Palavras-chave: Acústica Musical , Acústica de Instrumentos Musicais , Afinação de Pianos


ABSTRACT

This paper has the purpose of describing the physical principles that conduct the distribution of frequencies in acoustic piano scales. First, the problems due to the existence of rigidity or tenacity in real struck strings are evaluated in terms of inharmonicity. Next, the criteria commonly adopted to the spacing of tuning deviations is discussed and the logic of the procedures used by technicians to adjust these instruments is presented.

Key-words: Musical Acoustics , Acoustics of Musical Instruments , Piano Tuning


 

 

1. Inarmonicidade

Em um sistema físico composto por uma corda ideal, a força restauradora que dá origem ao movimento oscilatório surge a partir da tensão à qual a corda se encontra submetida. Entretanto, cordas reais diferem dos modelos teóricos, devido ao fato delas não serem perfeitamente flexíveis ou maleáveis. Neste caso, a força restauradora recebe uma contribuição oriunda da rigidez ou tenacidade da corda vibrante que, embora pequena frente à totalidade da força em ação, não pode ser desprezada.

A tenacidade existente nas cordas reais provoca pequenos desvios inarmônicos na série harmônica de uma corda idealizada. Trata-se de um efeito que ocorre em todas as freqüências vibracionais de uma determinada nota, mas afeta mais os modos superiores, resultando, por conseqüência, em um alargamento da série harmônica. Reblitz (1976, p.53) expõe a questão da seguinte forma:

Quando uma corda tipicamente imperfeita de um piano vibra, a fundamental e todos os parciais são produzidos pelo mesmo pedaço de corda, de espessura uniforme. Quanto mais alta for a parcial, menor e mais tenaz será o segmento de corda utilizado. Quanto maior a tenacidade deste segmento, maior será a freqüência de vibração e mais “sustenido” se encontrará o parcial. O resultado? Quanto mais alto se encontrar a parcial considerada, maior será o desvio, no sentido “sustenido”, em relação ao seu harmônico teórico.

Cordas mais longas apresentam desvios de inarmonicidade menores, e é justamente por esta razão que pianos de concerto, de grandes dimensões, possuem uma sonoridade superior à de pianos de armário. Segundo Reblitz (1976, p.53):

Pianos grandes têm cordas relativamente mais longas e menor inarmonicidade. Pianos pequenos têm cordas curdas e tenazes, com bastante inarmonicidade. A inarmonicidade, em conjunto com a intensidade relativa das várias parciais, determina, em grande parte, a qualidade tonal de um piano. Esta é a causa dos graves pobres e pequenos de uma típica espineta, comparados aos graves ricos e potentes de um piano de concerto.

A inarmonicidade é causa de diversos problemas técnicos, além de personalizar o instrumento a ser ajustado e impossibilitar a utilização de aparelhos eletrônicos comuns na precisa tarefa realizada por afinadores profissionais.

 

2. A Escala Temperada

Ao se afinar ou construir um instrumento como o piano, é necessário adotar-se uma freqüência de referência (em geral, A=440 Hz) e decidir o critério para o espaçamento de cada uma das notas da escala cromática. Esta distribuição de freqüências é chamada de temperamento e geralmente reflete as particularidades de uma determinada época e dos instrumentos utilizados.

De um modo geral, a criação da maioria dos sistemas de afinação ao redor do mundo tem como fundamento a maneira como os intervalos musicais são interpretados pelo ouvido humano. Sob este ponto de vista, os intervalos possuem características próprias, associadas a uma razão aritmética simples entre as freqüências das notas constituintes. Por exemplo, um intervalo de quinta puro é percebido quando existe uma relação de 3 para 2 entre as freqüências individuais.

Apesar da lógica inerente desses sistemas denominados entoação justa, não foi possível lidar de maneira coerente com as complexidades do processo evolutivo da música ocidental como as modulações e o enriquecimento harmônico em geral. Para que isto se tornasse possível, seria necessário criar notas inexistentes na tonalidade original e o número delas seria tal que se tornaria impraticável construir um instrumento musical funcional.

De maneira gradual, adotou-se a utilização de temperamentos fechados, como solução. Neles, apesar dos desvios introduzidos ao ideal de intervalos puros, todas as tonalidades tornaram-se suficientemente aceitáveis, ainda que não completamente iguais. O ápice deste processo evolutivo ocorreu no século XIX, quando praticamente todos os instrumentos musicais adotaram como referência de afinação um sistema de temperamento igual, que tem como princípio a eqüidistância das notas da escala cromática. Neste sistema, os “erros” encontram-se distribuídos de maneira uniforme e não existem tonalidades melhores ou piores.

 

3. Afinação de Pianos

Da mesma forma que em outros sistemas vibratórios, um efeito acústico particularmente relevante ao técnico e afinador de pianos, denominado batimento, ocorre quando duas cordas de freqüências sonoras bastante próximas são estimuladas ao mesmo tempo. Trata-se de uma breve modulação em volume (e timbre) cuja freqüência de oscilação fica menor à medida que as freqüências se aproximam. Este fenômeno decorre da combinação das freqüências originais na membrana auditiva, resultando num efeito de interferência com a freqüência da diferença entre freqüências originais.

Se uma nota de 440 Hz e outra de 442 Hz soarem juntas, é possível se discernir com clareza um batimento de 2 Hz, desde que se saiba o que ouvir. O interessante é que batimentos também podem ser ouvidos entre os harmônicos de determinadas notas, desde que estejam bastante próximos, e este efeito é criteriosamente procurado por afinadores experientes. Por exemplo, em uma escala temperada, é possível distinguir um batimento de 0.886 Hz entre o terceiro harmônico de C4 (784,878 Hz) e o quarto harmônico de G3 (783,992 Hz)

Ao se afinar a região central do piano, procura-se ajustar as cordas de cada uma das notas, de maneira que produzam freqüências de batimentos específicas quando comparadas com outras previamente afinadas e tomadas como referência. A primeira nota da denominada região de temperamento é afinada por intermédio da comparação direta com um diapasão, em geral um A 440 Hz ou C 523,25 Hz. A partir daí, o afinador compara e ajusta intervalos específicos, procurando pelos batimentos que ocorrem entre os respectivos harmônicos.

Por exemplo, ao afinar o intervalo de quinta F3-C4 procura-se comparar o segundo harmônico de C4 (523,252 Hz) com o terceiro harmônico de F3 (523,842). Em função da pequena distância entre estas duas freqüências, é possível se discernir um batimento de 0,59 Hz ou 2,95 batimentos a cada 5 segundos. Da mesma maneira, ao afinar o intervalo de quarta G3-C4 procura-se comparar o terceiro harmônico de C4 (784,878 Hz) com o quarto harmônico de G3 (783,992 Hz). Novamente, é possível se discernir um batimento de 0,886 Hz ou 4,43 batimentos a cada cinco segundos. De maneira similar, freqüências de batimento de combinações diversas podem ser encontradas.

Ao afinar o instrumento, o técnico adota um procedimento seqüencial específico e, sabendo o que ouvir, conta os batimentos de acordo com a expectativa teórica. Diversas seqüências são possíveis, formadas não só pelas notas a serem afinadas, como também pelos denominados intervalos de teste. Á medida que se progride na seqüência programada, novos intervalos afinados de maneira indireta se formam e permitem que se confira cada passo do procedimento. Por exemplo, após se afinar seqüencialmente as notas C5, C4, F3 e F4, já é possível verificar se as notas C4 e F4 apresentam a relação esperada de 1,18 batimentos por segundo.

Evidentemente, neste procedimento de ajuste da região intermediária do piano, utilizam-se cunhas ou tiras de feltro que emudecem duas das três cordas correspondentes a cada nota do piano. Após o ajuste de temperamento, as cunhas ou tiras de feltro são retiradas gradualmente e ajusta-se as cordas remanescentes em uníssono com aquelas que foram ajustadas inicialmente. Uma vez terminado o procedimento de afinação da região central do piano, prossegue-se ajustando por oitavas as cordas remanescentes das regiões graves e agudas do instrumento.

 

4. Alargamento de Oitavas

Ao medir os resultados obtidos por um afinador experiente, descobre-se que, por causa dos efeitos de inarmonicidade previamente discutidos, obtém-se um efeito de distorção bastante característico. A região intermediária do piano irá se mostrar bastante próxima dos modelos teóricos; entretanto, na medida em que se dirige aos agudos, eles se mostrarão cada vez mais “altos” ou “sustenidos”, a tal ponto que um C9 agudo pode se encontrar 20 ou 30 “cents” além do esperado. Da mesma maneira, um processo de “bemolização” ocorre na medida em que se ajusta a região grave do instrumento.

Cada instrumento apresenta sua própria “curva de distorção” ou “curva de inarmonicidade”; dentre os fatores determinantes da sua forma, destacam-se o comprimento das cordas em relação à sua espessura e o projeto de escala adotado pelo fabricante. No gráfico abaixo, visualiza-se uma curva de inarmonicidade típica, lembrando que pianos maiores apresentam uma sutileza maior nos efeitos de “distorção” ou “alargamento” das regiões graves e agudas.

 

 

É justamente por causa das características individuais de cada instrumento que o processo de afinação de pianos continua a ser praticamente artesanal. Os resultados são adequados na medida em que se procede de maneira comparativa - uma habilidade exclusiva de seres humanos ao invés da simples medição eletrônica de freqüências sonoras. Entretanto, hoje em dia a afinação de pianos, através da utilização de artefatos eletrônicos dedicados, é possível. Neste caso, adota-se sempre um cálculo inicial de inarmonicidade, a fim de validar as medidas feitas para cada instrumento em particular.

Curiosamente, é justamente a “imperfeição” dos pianos um dos aspectos que os transformaram num dos mais difundidos e aceitos instrumentos da cultura ocidental. A inarmonicidade das suas cordas é considerada uma qualidade desejada, comumente associada com a idéia de “calor”. Sob este ponto de vista, o instrumento tem na sua “imperfeição” um caráter distintivo que o aproxima da natureza humana e valoriza o seu poder de comunicação e expressão artística.

 

5. Referências Bibliográficas

BERG, R.E. & STORK, D.G., The Physics of Sound. Englewood Cliffs: N.J.: Prentice-Hall, 1995.

CAMPBELL, J., “The Equal Tempered Scale and Some Peculiarities of Piano Tuning”, 1997. Disponível na Internet: <www.precisionstrobe.com/apps/pianotemp/temper.html>

HOPKIN, Bart, Musical Instrument Design: Practical Information for Instrument Design. Tucson, AZ: See Sharp Press, 1996.

REBLITZ, Arthur A., Piano Servicing, Tuning & Rebuilding, Vestal, NY: The Vestal Press, 1976.

SKUBIC, Michael, “Instruction Manual for Peterson AutoStrobe 490-ST Strobe Tuner”, Alsip, IL, 2002. Disponível na Internet: <www.petersontuners.com/support/pdfmanuals>