7Relações de trabalho e modo de produção capitalistaMundo do trabalho: a particularidade dos trabalhadores de Franca/SP índice de autoresíndice de materiabúsqueda de trabajos
Home Pagelista alfabética de eventos  




ISBN 978-85-62480-96-6 versión impresa

Sem. de Saúde do Trabalhador de Franca Sep. 2010

 

MUNDO DO TRABALHO E REESTRUTURAÇÃO PRODUTIVA

 

A dinâmica do trabalho na formação da vida social

 

 

Wagner Alves Pereira

Graduação em Serviço Social pela Universidade Estadual Paulista, UNESP. Faculdade de Direito, História e Serviço Social- FHDSS. Campus Franca

 

 


RESUMO

O nosso estudo analisa o trabalho enquanto uma categoria ontológica de formação do ser social, afirmando que o processo de trabalho preserva em sua dinâmica um caráter transformador que não se resume a produção de uma objectualidade material, mas sim um processo de transformação do próprio ser humano que ao por em movimento as suas forças produtivas, mediante o intercâmbio ineliminável com a natureza, desenvolve suas capacidades humanas. E mais, mostraremos que tal processo é imprescindível do intermédio da consciência, já que fornece uma seiva protéica na constituição do processo global de produção e reprodução da vida social.

Palavras-chave: Trabalho. Ser Social. Consciência


 

 

1 O PAPEL DA CONSCIÊNCIA NO PROCESSO DE TRABALHO

Todos os seres vivos devem realizar seu processo de reprodução biológica com sua espécie mediante uma constante relação com a natureza. Trata-se de uma relação de caráter ineliminável, que não comporta a mínima possibilidade de supressão, sem a emergência de consequências trágicas, já que tal ato consistiria na extinção da espécie. Por isso, o processo de reprodução biológica se desenvolve sob um matiz orgânico mediado pela constante relação com a natureza. Os seres vivos se adaptam em seu processo de reprodução biológica com o ambiente natural mediante um comportamento imediato de ação instintiva e espontânea em sua atividade vital, subordinados pelas determinações impostas pelo ambiente natural. Dessa forma, os seres vivos não se distinguem da natureza, são parte constituinte dela, e os produtos de sua atividade preservam a exigência de suprir uma carência física imediata, derradeiramente instintiva, pautada na sobrevivência.

Os seres humanos em seu processo de reprodução biológica não se desvencilham das determinações impostas pelo meio natural, são parte constituinte da natureza, devendo realizar suas carências elementares mediados, através de suas atividades vitais, pelo constante intercâmbio com a natureza, para que possam confirmar sua existência. Ademais, os seres humanos não encontram no desenvolvimento de suas formas de reprodução orgânico-biológicas quaisquer possibilidades de desenraizamento do meio natural1. Não obstante, os seres humanos "[...] começam a se distinguir dos animais logo que começam a produzir seus meios de existência, e esse passo à frente é a própria conseqüência de sua organização corporal". Ou seja, "[...] ao produzirem seus meios de existência, os homens produzem indiretamente sua própria vida material" (MARX; ENGELS, 2007, p.10). Mais do que isso, os seres humanos se distinguem dos outros seres vivos por assumirem em sua atividade biológica, mediante o constante e ineliminável intercâmbio com a natureza, a explicitação do papel desempenhado pela consciência.

 Para que a consciência do ser humano exprima seu caráter diferenciador dos outros seres vivos, é fundamental a evidência de uma atividade que seja manifesta, enquanto base dinâmico-estruturante, de um novo tipo de ser, salvaguardando um grau de desenvolvimento no processo de reprodução orgânica. Essa diferenciação revela a sua emergência para o ser humano pelo e no trabalho, que, sob o primado da consciência, assume um grau de complexificação, dotada de uma adaptação ativa e determinada ao meio natural, enquanto modificação consciente e transformadora do ambiente natural, contrapondo as formas de adaptação passiva dos outros seres vivos cuja regulação atende as exigências instintivas e imediatas da sobrevivência física, bem como a fixação ao ambiente natural (LUKÁCS, 1978, p.03-04).

Segundo Lukács, a essência do trabalho (1978, p.04, grifo nosso):

[...] consiste precisamente em ir além dessa fixação dos seres vivos na competição biológica com seu mundo ambiente. O momento essencialmente separatório é constituído não pela fabricação de produtos, mas pelo papel da consciência, a qual, precisamente aqui, deixa de ser mero epifenômeno da reprodução biológica: o produto, diz, Marx, é um resultado que no início do processo existia 'já na representação do trabalhador', isto é, de modo ideal.

Nesses termos, o trabalho preserva, em sua essência, uma dimensão que suprime a mera fixação dos seres vivos com o ambiente natural, na qual o seu momento separatório não consiste na fabricação de produtos, já que em todos os seres vivos se exprime a mediação indissolúvel com a natureza, mas se manifesta pelo papel da consciência humana nesse processo2. O ser humano não transforma no e pelo trabalho apenas o material pelo qual se desenvolve o seu processo de produção; é uma operação que contém a dimensão de um projeto desempenhado pela consciência, que se constitui pela legalidade determinante do seu modo de operar e ao qual tem de subordinar à sua vontade (MARX, 2006, p.212).

Apresenta-se no trabalho, como advoga Lukács, uma dimensão teleológica, um "modo de pôr" posição sempre realizada por uma consciência guiada em uma determinada direção, refletida previamente, portadora de um projeto ativo e consciente, no sentido de contrapor a dimensão da causalidade, que representa todas as leis espontâneas manifestas em todos os movimentos da vida real, cujas determinações independem dos indivíduos singulares (LUKÁCS, 1978, p.06). Essa dimensão teleológica detém em seu cerne a decisão entre alternativas acerca de posições teleológicas futuras, pois todo o indivíduo singular, sempre que atua em práxis, deve decidir se o faz ou não. Dessa forma, a teleologia que se realiza mediante a explicitação da consciência e é portadora de uma posição ativa na realidade humana e natural.

O trabalho, enquanto ato teleológico, aparece como uma experiência elementar no processo da produção e reprodução da vida humana. O trabalho humano possui um caráter ineliminavelmente teleológico que se apresenta e se desenvolve na atividade dos seres humanos. Além disso, esse caráter teleológico é colocado em movimento pela dimensão objetiva e determinada do ser humano que, em sua dinâmica, afirma o todo existente como parte movente e movida de um complexo. Segundo Lukács (1978, p.02-03), isso conduz a duas conseqüências fundamentais: em primeiro lugar, o ser humano em seu conjunto é dotado de um processo histórico; e, em segundo lugar, as categorias não são tidas sobre algo que é ou que se torna, não obstante como formas moventes e movidas da própria matéria ou como entendia Marx, "formas do existir, determinações da existência3" (LUKÁCS,1978, p.02-03).

A dimensão objetiva, ou melhor, a objetivação enquanto momento decisivo da categoria trabalho, é um complexo portador de um processo histórico que afirma o surgimento de um novo produto, que se apresentava como prévia ideação da consciência do ser humano ao plano da realidade concreta. O surgimento de um novo produto pela objetivação advinda do trabalho não é apenas a transformação da natureza física. Não obstante, é um processo de exteriorização de um novo sujeito que, na livre e potencial explicitação do desenvolvimento histórico de suas capacidades humanas, manifesta a amplitude de sua humanidade.

A exteriorização não é prescindível do pôr teleológico em sua base genética, ou seja, não se exprime o relegar do papel da consciência no desenvolvimento do processo de trabalho, já que a afirmação do caráter humano do trabalho que transforma a matéria advinda do meio natural pelo uso dos meios de trabalho, se apresenta mediante a dimensão prefaciada da consciência. A transformação do real pela exteriorização do indivíduo não é apenas uma transformação da realidade objetiva. É mais do que isso: consubstancia-se na vivificadora transformação do próprio indivíduo, mediante a sua atividade material pelo e no seu intercâmbio com a natureza, que exterioriza a si mesmo e sua capacidade ativa na objetivação revelada em um determinado produto realizado pelo e no seu trabalho.        

Portanto, o processo de produção do trabalho presente na relação objetivação e exteriorização, em sua ação reguladora e subordinadora das propriedades advindas do intercâmbio com a natureza, confirma uma forma útil à vida humana e aos produtos resultantes dessa relação. É um processo protéico que fermenta uma transformação potencializadora das capacidades humanas, dirimindo o aspecto meramente instintivo e espontâneo dos outros seres vivos, pois "[...] atuando assim sobre a natureza externa e modificando-a, ao mesmo tempo modifica sua própria natureza" (MARX, 2006, p.211). Nesse sentido, Lukács sustenta que mediante o processo de trabalho ocorre uma dupla transformação no ser humano:

[...] Por um lado, o próprio homem que trabalha é transformado pelo seu trabalho; ele atua sobre a natureza exterior e modifica, ao mesmo tempo, a sua própria natureza; 'desenvolve as potências nela ocultas' e subordina as forças da natureza 'ao seu próprio poder'. Por outro lado, os objetos e as forças da natureza são transformados em meios, em objetos de trabalho, em matérias-primas, etc. o homem que trabalha 'utiliza as propriedades mecânicas, físicas e químicas das coisas, a fim de fazê-las atuar como meios para poder exercer seu poder sobre outras coisas, de acordo com sua finalidade' (LUKÁCS, 1979, p.16, grifo nosso).

 

2 A DESPEDIDA DE ROBINSON CROSUÉ NA ASSUNÇÃO DO TRABALHO COMO CATEGORIA SOCIAL

Para não cairmos numa afasia abstrata, apreendendo a categoria trabalho como uma relação direta entre indivíduo-natureza para a produção de valores-de-uso específicos, evitaremos a nossa intensa nostalgia pelo nosso querido Robinson Crusoé, em sua singela e enfadonha ilha; na execução de suas atividades de subsistência, como por exemplo, na caça, na pesca, na fabricação de instrumentos e móveis - enquanto objetos diretamente úteis -, bem como na sua leitura resignada de sua Bíblia que tanto lhe conforta4. Diante desse afastamento, nos ocupemos do trabalho em sua esfera ontológica enquanto uma categoria indissoluvelmente de caráter social.

Antes de mais nada, é necessário afirmar que a sociedade (os complexos sociais) não se confronta como uma abstração ao indivíduo. Esse pressuposto observado por Marx, nos seus Manuscritos de 1844, advoga que o "indivíduo é o ser social" e a sua manifestação de vida mesmo que ela não apareça na imediaticidade de uma manifestação comunitária de vida, realizada simultaneamente com outros , salvaguardando no trabalho sua mais nítida expressão, é uma exteriorização e confirmação da vida social. Nesse sentido, ainda segundo Marx (2007, p.107):

[...] a vida individual e a vida genérica do homem não são diversas, por mais que também e isto necessariamente - o modo de existência da vida individual seja um modo mais particular ou mais universal da vida genérica, ou quanto mais a vida genérica seja uma vida individual mais particular ou universal5.

Nesse ensejo, o caráter ontológico do trabalho se alicerça em sua base social.  Por não se constituir como um ato fortuito, fundamentado numa desdita instintiva e imediata do intercâmbio com a natureza, deve o trabalho se apropriar do conhecimento adquirido pelo desenvolvimento histórico da humanidade, afirmando em seu cerne as multifárias e complexas relações sociais presentes em seu processo de objetivação. É mediante o conhecimento correto das propriedades, relações, vínculos, inter-relações e etc., pertencentes a ambiência natural, existentes objetivamente e independente da consciência dos seres humanos, é que o trabalho pode ser realizado. Mais do que isso, trata-se de uma objetivação-exteriorização que representa o grau de desenvolvimento social específico, num determinado contexto histórico, colocando em movimento, pelas posições teleológicas, o funcionamento de séries causais. A causalidade não exprime uma legalidade espontânea na qual a totalidade dos movimentos se encontra fixada em sua expressão geral; não obstante, representa um complexo de atos teleológicos, influentes e influenciados por determinações advindas de seu contexto histórico, cujo solo de ideação é a consciência social6·, que mediante a práxis social pode movimentar as séries causais (LUKÁCS, 1978, p.06).

Ou seja, segundo Lukács, é derradeira a importância de se compreender que a relação estabelecida pela teleologia e consciência comporta uma duplicidade:

[...] numa sociedade tornada realmente social, a maior parte das atividades cujo conjunto põe a totalidade em movimento é certamente de origem teleológica, mas a sua existência real e não importa se permaneceu isolada ou se foi inserida num contexto é feita de conexões causais que jamais e nenhum sentido podem ser de caráter teleológico (LUKÁCS, 1978, p.06).

Partamos para um exemplo: o processo de trabalho é a mediação teleológica - uma atividade consciente impulsionada a um determinado fim -, dos objetos de trabalho7 (a matéria que se aplica ao trabalho) retirados da conexão imediata com o seu meio natural e o meio de trabalho8 (o instrumental de trabalho), ou seja, uma coisa ou um complexo de coisas (MARX, 2006, p.212). Nesse caso, a dimensão da causalidade se apresenta na apropriação dos conhecimentos da matéria aplicada na realização do trabalho, bem como da valia prestada pelos instrumentos de trabalho que são fornecidos pelo desenvolvimento do conhecimento dos instrumentais de trabalho e das determinações naturais dos complexos sociais históricos, que de modo geral, independem da consciência dos seres sociais.    

O processo de trabalho possui a capacidade de criar produtos novos que não existem ou possam ser construídos no espontâneo decorrer natural, "fenecendo" em sua forma palpável imediata qualquer semelhança com a sua raiz objetiva natural. Entretanto, não se exprime dessa afirmação e é necessário reiterar - qualquer possibilidade de se eliminar o intercâmbio mediado entre o ser humano e o ambiente natural. O que afirmamos é: o conteúdo dessa emersão de novos produtos, transformados pelo ineliminável intercâmbio entre o ser humano e a natureza pelo processo de trabalho, revela a plena capacidade do ser humano de transformar tanto a realidade prático-sensível, imediata ao alcance do individuo que trabalha, quanto de toda dimensão que não se apresenta na direta relação palpável do indivíduo, no caso as múltiplas e complexas relações sociais.

Segundo Lukács, o processo de trabalho, entendido enquanto uma práxis social, contém em si um caráter contraditório: por um lado, é uma decisão entre alternativas, no sentido de que todo o indivíduo singular, sempre que desempenha seu "agir interessado", deve decidir se faz algo ou não. Dessa forma, todo ato social é uma decisão entre alternativas acerca de posições teleológicas futuras. E paralelamente, a incidência imperativa da necessidade social que se afirma por intermédio da pressão direta e ineliminável exercida sobre os indivíduos (com freqüência, de maneira anônima), a fim de que as decisões deles possuam uma determinada orientação presente nas condições de vida já existentes: "[...] Marx delineia corretamente essa condição, dizendo que os homens são impelidos pelas circunstâncias a agir de determinado modo 'sob pena de se arruinarem'[...]" (LUCKÁCS, 1978, p.06).

Em outros termos, o processo de trabalho desempenhado por um indivíduo singular é uma práxis social que preserva decisões entre alternativas que engendram implicações acerca de posições teleológicas futuras, num processo de imprevisibilidade e irreversibilidade de suas ações, para um determinado direcionamento que em determinado grau incide em outras práxis sociais, num processo de caráter infindável. Contudo, os indivíduos, mediante o movimento dinâmico e consciente de sua práxis social, agem de determinado modo, sob determinadas circunstâncias históricas, não podendo se desvencilhar dessas, sob o risco de cavarem seu próprio jazigo. Marx e Engels assinalam com extrema argúcia, que tanto o conteúdo da produção dos seres humanos, como no tocante da forma em que produzem e reproduzem seus produtos - sejam eles materiais, sociais, econômicos, culturais e etc. -, há uma estrita dependência com as condições materiais de produção já existentes. O modo determinado de suas atividades representa a manifestação de suas vidas, refletindo o que eles são9 (MARX; ENGELS, 2007, p.11).

Não se aufere da existência dessas determinações históricas, presentes no processo de produção da vida material dos seres humanos, advindas do "devagar depressa dos tempos", ou no transcorrer da prosa da vida, pelo desenvolvimento dos complexos sociais históricos, um represamento de suas capacidades e potencialidades de transformação do todo existente: a vida concreta é sempre um complexo dinâmico onde os seres humanos agem, mesmo que em determinadas condições, transformando não só os objetos e os instrumentais de suas ações, mediante suas posições teleológicas no intercâmbio com a natureza, como também a si próprios e, - por mais que alguns pérfidos teóricos tentem negar essa conseqüência ineliminável - a vida real. Ademais, se nas suas manifestações há lutas, histórias, lamúrias, sonhos, vontades, belezas, virtudes ou até mesmo a negação de uma intensa nostalgia de alguém que se fora para todo o sempre, isso se deve ao caráter do "emergir ativo" que sempre vilipendia a realidade existente.

Outrossim, é necessário assinalar que como produto da atividade do processo de trabalho, o ser humano vive num mundo que se tornou cada vez mais humano, cada vez mais expressão de sua objetivação exteriorizada enquanto manifestação de si. E, as determinações colocadas pelas condições de vida existentes não imprimem tão-somente as limitações pelas quais devem estar subordinadas suas ações na realidade, mas também a apropriação das potencialidades, capacidades e necessidades humanas advindas do desenvolvimento social que lhe antecedeu. Markus (1974), inspirado pela teoria do conhecimento legada pelos escritos juvenis de Marx, concorda com a afirmativa supracitada:

[...] É tão-somente porque o homem vive num mundo que se tornou por esse modo um mundo humano, tão-somente porque ao nascer já encontra objetivadas aquelas necessidade e capacidades que se manifestaram no passado, podendo assim dispor materialmente dos resultados de todo o desenvolvimento social que lhe antecedeu, tão-somente por isso torna-se possível que o processo de desenvolvimento não se veja obrigado a recomeçar sempre do início, mas possa partir do ponto em que se deteve a atividade das gerações anteriores. Apenas o trabalho, enquanto objetivação da essência humana, configura de modo geral a possibilidade da história (MARKUS, 1974, p.52, grifo do autor).

No ser social, o processo de trabalho produz conhecimentos que influenciam de forma direta o intercâmbio ineliminável com a natureza, ao serem desvinculáveis da posição teleológica que engendra implicações para a totalidade dos processos sociais. Dessa forma, há, segundo Lukács (1978, p.10), importantes conseqüências advindas da gênese teleológica para todos os processos sociais:

[...] Por um lado, podem chegar à condição de ser determinados objetos, com tudo o que disso decorre, que não poderiam ser produzidos pela natureza; basta pensar, para continuar ainda no campo dos primitivos, no exemplo da roda. Por outro lado, toda sociedade se desenvolve até níveis onde a necessidade deixa de operar de maneira mecânico-espontânea; o modo de manifestação típico da necessidade passa a ser, cada vez mais nitidamente e a depender do caso concreto, aquele de induzir, impelir, coagir etc., os homens a tomarem determinadas decisões teleológicas, ou então impedir que eles o façam.

Segundo o mesmo autor, embora todos os produtos advindos da realidade do processo de trabalho surjam e operem de modo causal, com o que sua gênese teleológica parece desaparecer no ato de efetivação do produto10, eles tem a peculiaridade de se apresentarem como caráter de alternativa e quando seus efeitos se referem aos seres humanos podem abrir alternativas. Mesmo que estas se apresentem no plano cotidiano11 e suas conseqüências são pouco relevantes, são, porém, "autênticas alternativas", "[...] já que contêm sempre em si a possibilidade de retroagirem sobre o seu sujeito para transformá-lo [...]" (LUKÁCS, 1979, p.81).

O processo global da sociedade movimentado pelo processo do trabalho é um processo causal, portador de suas próprias normatividades; todavia, não é jamais dirigido à realização de finalidades. Destarte, mesmo quando alguns seres humanos ou grupos de seres humanos conseguem realizar suas finalidades, surgem resultados, que no mais das vezes, se converte em aspectos diversos daquilo que se havia pretendido. Um exemplo dado por Lukács, revela sua patente histórica no desenvolvimento das forças produtivas da Antiguidade que destruiu as bases da sociedade constituída, destruindo a si própria12. Nessas veredas, é necessário apreender que a discrepância interior entre posições teleológicas e seus efeitos causais se potencializam com o desenvolvimento das sociedades e, por conseguinte, com a intensificação da participação sócio-humana em tais sociedades. Não obstante, essa diferença entre finalidade e seus correspondentes efeitos, a despeito de se expressarem com preponderância nos elementos e tendências materiais no processo de reprodução da sociedade, não exprimem, de maneira alguma, uma afirmação necessária desenvolvida sem nenhuma forma de resistência. Com isso, "[...] o fator subjetivo, resultante da reação humana a tais tendências de movimento, conserva-se sempre, em muitos campos, como um fator por vezes modificador e, por vezes, até mesmo decisivo" (LUKÁCS, 1978, p.10-11).

 

3  A DINÂMICA DO PENSAMENTO E DA LINGUAGEM NO PROCESSO DE TRABALHO

O trabalho não poderia ser concebido sem a sua intrínseca relação com a linguagem que é inerente ao desenvolvimento das relações humanas, na exteriorização da consciência pelo e no ato do trabalho. A despeito de revelar em alguns momentos específicos um certo distanciamento com relação ao processo de trabalho, a linguagem funciona como um instrumento de interação com os outros seres sociais, atuando no desenvolvimento do complexo do ser social na consecução de suas posições teleológicas. Outrossim, a linguagem permite a formulação de um pensamento conceitual acerca das categorias do desenvolvimento do ser social, expressa no distanciamento dos seres humanos e não eliminação das determinações naturais presentes no âmbito de suas atividades.

Com efeito, Markus (1974, p.60) afirma que a inserção na vida da sociedade exige do ser humano uma "articulação estável aos fenômenos", de acordo com a estrutura que já está posta de um modo inteiramente independente do ser humano - o que é contestável, já que o próprio homem atua na transformação da vida humana na linguagem, ou seja, "na consciência social materializada". Portanto, ainda segundo Markus (1974, p.60), "[...] o homem deve se apropriar do mundo não apenas em sua atividade material, mas também em sua atividade espiritual". Todavia, "[..] a estrutura na qual os fenômenos são articulados não é arbitrária, dada que a natureza dos objetos e dos nossos órgãos sensoriais lhe impõem limites, ainda que sejam bastante amplos" (MARKUS, 1974, p.60).    

Não é de outra forma que Lukács afirma incisivamente que:

[...] Deduzir geneticamente a linguagem e o pensamento conceitual a partir do trabalho é certamente possível, uma vez que a execução do processo de trabalho coloca demandas ao sujeito envolvido que só podem ser preenchidas suficiente e simultaneamente pela reconstrução das possibilidades e habilidades psicofísicas que estavam presentes na linguagem e no pensamento conceitual, uma vez que eles não podem ser entendidos ontologicamente sem os antecedentes requeridos pelo trabalho, ou sem as condições que permitiram a gênese do processo de trabalho (LUKACS apud ANTUNES, 1999, p.140).

A linguagem é portadora da potencialização da objetivação e exteriorização das forças produtivas e, por conseguinte, do desenvolvimento do ser social a medida em que a práxis social supera as determinações advindas das condições de vida existentes. Por um lado, a linguagem é um processo de objetivação do indivíduo singular com a totalidade social na mediação do desenvolvimento de suas atividades, que expressam o conteúdo do conhecimento adquirido pelos resultados legados pela totalidade das forças produtivas, bem como a explicitação da emergência de novas possibilidades pelo e no trabalho social. Por outro lado, a exteriorização da linguagem não revela a práxis social do individuo, contida nas múltiplas e complexas relações sociais, apenas a realidade sensível do produto advindo do ato teleológico do trabalho, mas também o conjunto dos indivíduos singulares como explicitação do complexo social geral no decorrer do processo histórico da transformação da realidade existente.

Numa amplidão analítico-universal, Marx (2007a, p.107) entende que a consciência genérica do homem (ser humano) confirma a sua vida social real, repetindo no pensar sua existência efetiva, tal como, de forma inversa, o ser genérico se confirma na consciência genérica, sendo em sua universalidade "como ser pensante, para si". Pode-se inferir que não se operacionaliza nessa análise uma negligência do fermento contributivo, afirmado pela consciência social na formação de um pensamento conceitual da atividade do trabalho, da apropriação do processo histórico-social legado pelas formações sociais precedentes13 do desenvolvimento das capacidades produtivas humanas, entendidas em sentido lato.

E mais: a linguagem, em sua presença indissolúvel no desenvolvimento da vida social, atua no processo de apropriação da experiência humana, fornecendo elementos que afirmam o desenvolvimento das forças produtivas, bem como as determinações colocadas à ação dos seres sociais. Nesse sentido, Thompson (1981, p.16, grifo nosso) é muito lúcido ao afirmar que:

[...] A experiência surge espontaneamente no ser social, mas não surge sem pensamento. Surge porque homens e mulheres (e não apenas filósofos) são racionais, e refletem sobre o que acontece a eles e ao seu mundo. [...] O que queremos dizer é que ocorrem mudanças no ser social que dão origem a experiência modificada; e essa experiência é determinante, no sentido de que exerce pressões sobre a consciência social existente, propõe novas questões e proporciona grande parte do material sobre o qual se desenvolvem os exercícios intelectuais mais elaborados.

Desse modo, Lessa (1996) assinala que em seu momento primordial, o ser social se apresenta como um complexo constituído, pelo menos, por três categorias fundamentais como também fundantes da vida genérica: a sociedade, a linguagem e o trabalho (LESSA, 1996, p.10). Não obstante, o trabalho exerce uma predominância sobre a linguagem e as formas de sociabilidade, pois o ser humano que trabalha, se humaniza e fornece forma humana através do trabalho; a emersão do novo tem sua gênese no e pelo trabalho (LUKÁCS, 1978, p.05).  Não se trata de uma operação de hierarquia sistemática imposta pela categoria trabalho ante as manifestações de outras categorias de caráter fundamental para a constituição do ser social. Tal empreendimento empobreceria as dimensões do ser social, homogeneizando as múltiplas e complexas manifestações do ser social, reduzindo as suas conexões e mediações a uma única dimensão (LUKÁCS, 1979). Trata-se de uma prioridade ontológica, que se difere radicalmente dos juízos de valor gnosiológicos, inerentes a toda "hierarquia sistemática idealista" ou "materialista vulgar".

Quando atribuímos uma prioridade ontológica a determinada categoria com relação a outra, entendemos simplesmente o seguinte: a primeira pode existir sem a segunda, enquanto o inverso é ontologicamente impossível. É algo semelhante à tese central de todo o materialismo, segundo a qual o ser tem prioridade ontológica com relação à consciência. Do ponto de vista ontológico, isso significa simplesmente que pode existir o ser sem a consciência, enquanto toda consciência deve ter como pressuposto, como fundamento, algo que é. Mas disso não deriva nenhuma hierarquia de valor entre ser e consciência [...] (LUKÁCS, 1979, p.40, grifo nosso).

Não é de outra maneira que Lukács, expressando o extrato contributivo de Marx, entende que onde a totalidade não constitui um fato formal do pensamento, não obstante a reprodução mental do "realmente existente", as categorias a sociedade, a linguagem e o trabalho não são elementos de uma arquitetura sistemática e hierárquica. Pelo contrário: apresentam-se na travessia do real como "formas de ser, determinações da existência", ou seja, manifestam "[...] elementos estruturais de complexos relativamente totais, reais, dinâmicos, cujas inter-relações dinâmicas dão lugar a complexos cada vez mais abrangentes, em sentido tanto extensivo quanto intensivo. [...]" (LUKÁCS, 1979, p.28).

 

4 A FORMAÇÃO DAS NECESSIDADES HUMANAS NO DESENVOLVIMENTO DO PROCESSO DE TRABALHO

Mesmo com o risco de entediar o leitor, retomemos mais uma contribuição de nosso filósofo húngaro, em sua constatação que o ser humano que trabalha, isto é, o animal tornado ser humano através do trabalho, é um ser que fornece respostas ao carecimento que provoca o seu ato laborativo (LUKÁCS, 1978, p.05). Portanto, pode-se apreender dessa afirmação que o trabalho surge como uma resposta ao carecimento instigador de seu surgimento. Entretanto, não se trata de uma relação erigida na imediaticidade de um ato fortuito; pelo contrário, o ser humano torna-se um ser que fornece respostas na medida em que generaliza, transforma, indaga o seu próprio carecimento, ao mesmo tempo, em que cria as possibilidades de satisfazê-los.

O carecimento, ao ser mediado por um ato teleológico de ultrapassagem da instintividade metabólica imediata dos outros seres vivos com a natureza, explana em seu fulcro um desenvolvimento concreto da própria substância que manifesta a sua aparência. O que se pode apreender desse desenvolvimento não é a presença de um mero carecimento indagador de legalidade causal que impulsiona uma atividade, ou seja, o trabalho, e sim a elevação de necessidades que expressam a atividade do trabalho pertinentemente salvaguardada de uma forma humana. Com efeito, ocorre a emersão de necessidades humanas, expressas no desenvolvimento advindo das potencialidades e capacidades humanas no desenvolvimento das forças produtivas movimentadas pelo trabalho.

Nesse sentido, Lefebvre (1968, p.28) entende que o estudo das necessidades ilumina um entrelaçamento de processos dialéticos:

A necessidade é, ao mesmo tempo, ato (atividade) e relação, em si mesma complexa, com a natureza, com outros seres humanos, com objetos. Pelo trabalho o ser humano domina a natureza e se apropria parcialmente dela. [....] O trabalho torna-se uma necessidade. Os sentidos são cultivados e apurados pelo trabalho. As necessidades mudam e são cultivadas, porque o trabalho as modifica, apresentando-lhes novos bens. [...] O trabalho substitui a necessidade como sinal de impotência, pela necessidade como capacidade de gozo, como poder de realizar tal ou qual ato. O ser humano substitui assim, aquela sua unidade com a natureza, - imediata e pouco diferenciada, enquanto ser natural por uma totalidade diferenciada.

Porquanto, Marx e Engels (2007b, p.21) entendem que o primeiro pressuposto de toda a existência humana é a que todos os seres humanos tenham condições objetivas para a satisfação das suas necessidades, na produção da sua vida material. É tão-somente na efetivação desse pressuposto que os seres humanos podem viver para "poder fazer história", ou seja, produzir e transformar as múltiplas e complexas determinações presentes na realidade. Destarte, é através do processo de trabalho, entendido como o intercâmbio ineliminável dos seres humanos com a natureza, mediante um ato teleológico advindo de uma posição consciente, o meio para a consecução da satisfação das necessidades humanas.

É fundamental considerar as necessidades humanas como um pressuposto incisivo na efetivação da dinâmica sócio-histórica da produção da vida material dos seres humanos, salvaguardando no cálcio presente no processo de trabalho, advindo do intercâmbio indissolúvel com a natureza e com os outros seres humanos, sua mediação protéica, significa apreender a amplitude das capacidades e potencialidades humanas. Trata-se de um movimento que não se finda na produção e reprodução da vida material e, por conseguinte, se cristaliza aos imperativos pragmáticos da fomentação das forças produtivas imediatas da práxis social. Pelo avesso, revela-se nesse transcorrer - de cunho sócio-histórico - a emersão de uma dinâmica humana de complexas (inelimináveis) conexões e mediações com a vida real, pelos sujeitos históricos em suas múltiplas formas de sociabilidade, na satisfação de suas necessidades humanas.

Não queremos inferir dessa emersão, uma vontade humanística de diretriz utópica, seres humanos "multilaterais" que vivam na plena harmonia com sua ambiência natural, na comunhão apostólica da divisão do pão. Trata-se de afirmar que as necessidades humanas se formam numa dinâmica permanente, relacionada com o desenvolvimento sócio-histórico dos seres humanos, a medida que não negligencia o jugo das determinações de vida existentes na produção da base material advindo do processo de trabalho, e nem encaram as relações sociais como sedimentos postos no desenvolvimento histórico.

Ou seja, trata-se da prospectiva que Marx (2007a, p.108) alude na construção de uma sociedade comunista, ou seja, "a apropriação sensível da essência e da vida humana", da obra humana para e pelo ser humano, que não pode ser apreendida enquanto uma fruição imediata, de dimensão unilateral, restrita ao "sentido do ter":

[...] O homem se apropria da sua essência omnilateral de uma maneira omnilateral, portanto como um homem total. Cada uma das suas relações humanas com o mundo, ver, ouvir, cheirar, degustar, sentir, pensar, intuir, perceber, querer, ser ativo, amar, enfim todos os órgãos de sua individualidade, assim como os órgãos que são imediatamente em sua forma como órgãos comunitários, são no seu comportamento objetivo ou no seu comportamento para com o objeto a apropriação do mesmo, a apropriação da efetividade humana; seu comportamento para com o objeto é o acionamento da efetividade humana [...] (MARX, 2007a, p.108).

De acordo com Heller (1986, p.43), os objetos da produção da vida material fundamentam a existência das necessidades, bem como estas justificam o surgimento dos objetos. Com efeito, a necessidade do ser humano e o objeto da necessidade, que pode ser um produto material ou uma atividade concreta, estão numa estreita correlação. Nesse ensejo, Heller em sua análise das contribuições de Karl Marx acerca do entendimento das necessidades humanas afirma que o objeto mais elevado da necessidade humana é o outro homem (ser humano). Em outras palavras: "[...] a medida que o homem é encarado como um fim [das necessidades humanas] e se converteu no mais elevado objeto de necessidade para o outro homem, determina-se o grau de humanização das necessidades humanas" (HELLER, p.1986, p.44).

Nesse sentido, Heller sustenta, apoiada em Marx, que o trabalho não é a única fonte de riqueza material geral da sociedade, pois

A verdadeira riqueza da sociedade se realiza através da livre manifestação dos indivíduos sociais, através de sua atividade e de seu sistema de necessidades qualitativamente múltiplas. A verdadeira riqueza do homem e da sociedade não se constitui no tempo de trabalho, mas no tempo livre. Precisamente por isto, a riqueza da sociedade dos 'produtores associados' não é mensurável no tempo de trabalho, mas no tempo livre [...] (HELLER, 1986, p.125-126).

 

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Em síntese, reiteramos essa posição que enxerga no enriquecimento das multifárias manifestações da individualidade dos sujeitos em sua práxis social a riqueza da sociedade.  Não obstante, não podemos negligenciar que no horizonte constitutivo de formação da vida social, o trabalho possui um estatuto ontológico, de base fundada e fundante, em suas "formas de ser, determinações de existência", que se fomenta o grau de humanização adquirido pelos seres humanos no decurso de seu processo histórico. É a base da vida social. É a categoria que fermenta a emergência de incidências nas múltiplas determinações do real. É o fundamento ineliminável dos seres humanos. É a afirmação do ser humano. Para tanto, devemos evocar, tal como um poeta alemão Bertold Brecht, a desconfiança face ao movimento do real:

Desconfiai do mais trivial, na aparência do singelo.
E examinai, sobretudo, o que parece habitual.
Suplicamos expressamente:
não aceiteis o que é de hábito como coisa natural,
pois em tempo de desordem sangrenta, de confusão organizada,
de arbitrariedade consciente, de humanidade desumanizada,
nada deve parecer natural, nada deve parecer impossível de mudar
(BRECHT, 2000)

 

REFERÊNCIAS

ANTUNES, Ricardo. Os sentidos do trabalho: ensaio sobre a afirmação e a negação do trabalho. São Paulo: Boitempo, 1999.

ARENDT, Hannah. A condição humana. 10. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2008.

BOGO, Ademar. Lições da luta pela terra. Salvador: Memorial das Letras, 1999.

BRECHT, Bertold. Poemas: 1913-1954. São Paulo: Edições 34, 2000.

GRAMSCI, Antonio. Maquiavel, a Política e o Estado Moderno. 2. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1976.

HELLER, Agnes. Teoría de las necesidades em Marx. 2. ed. Barcelona: Provença, 1986.

KOSIK, Karel. Dialética do concreto. 2. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1976.

LEFEBVRE, Henri. Sociologia de Marx. Rio de Janeiro: Forense, 1968.

LESSA, Sérgio. A centralidade ontológica do trabalho em Lukács. Serviço Social & Sociedade, São Paulo: Cortez, ano 17, n.52, 1996, p. 07-23.

LUKÁCS, Gyorgy. As bases ontológicas do pensamento e da atividade do homem. Temas de Ciências Humanas. São Paulo, n.4, 1978, p.01-18.

______. Ontologia do ser social: os princípios fundamentais em Marx. São Paulo: Ciências Humanas, 1979.

MARKUS, Gyorgy. A teoria do conhecimento no jovem Marx. São Paulo: Paz e Terra, 1974.

MARX, Karl. O capital: crítica da economia política. Livro I. 24. ed. Rio de Janeiro: civilização Brasileira, 2006.

______. Manuscritos econômico-filosóficos. São Paulo: Boitempo, 2007a.

______. A ideologia alemã. São Paulo: Boitempo, 2007.

THOMPSON, E. P. A miséria da teoria ou um planetário de erros. Rio de Janeiro: Zahar, 1981.


1 Conforme a lúcida observação de Lukács (1978, p.04): "[...] o processo de reprodução assume na natureza orgânica formas cada vez mais correspondentes à sua própria essência, torna-se cada vez mais nitidamente um ser sui generis, ainda que jamais possa ser eliminado o seu enraizamento nas bases ontológicas originárias. [...]".
2  A sutil diferenciação operada por Marx entre a melhor abelha na construção de um abrigo contra as intempéries externas do ambiente natural, ou seja, a sua colméia, do pior arquiteto na construção de uma morada, reside no papel desempenhado pela consciência no ser humano. Neste último, a relação entre meios e fins ganha emersão no ato da produção. Segundo Marx, no ser humano, o ato e o processo da produção, mediante a efetivação de seu trabalho, "[...] figura na mente sua construção antes de transformá-la em realidade. No fim do processo de trabalho aparece um resultado que já existia antes idealmente na imaginação do trabalhador [...]" (MARX, 2006, p.211-212). 
3 Segundo Lukács, essa é uma posição radical que diverge radicalmente do velho materialismo histórico sofreu inúmeras interpretações pelo o que autor entende como "velho espírito", que em suas interpretações vulgares teve a falsa idéia de que Marx subestimava o papel da consciência com relação ao ser material. E acrescenta, num ataque ácido que: "[...] Aqui nos interessa apenas estabelecer que Marx entendia a consciência como um produto tardio do desenvolvimento do ser material. Aquela impressão equivocada [do 'velho espírito' materialista] só pode surgir quando tal fato é interpretado à luz da criação divina afirmada pelas religiões ou de um idealismo de tipo platônico. Para uma filosofia evolutiva materialista, ao contrário, o produto tardio não é jamais necessariamente um produto de menor valor ontológico. Quando se diz que a consciência reflete a realidade e, sobre essa base, torna possível intervir na realidade para modifica-la, quer-se dizer que a consciência tem um real poder no plano do ser e não como se supõe a partir das supracitadas visões irrealistas que ela é carente de força" (LUKÁCS, 1978, p.03).
4 Retiro essa alusão de Karl Marx em seu sarcasmo dirigido à economia política de sua época, que nutria um imenso apreço aos imaginativos "experimentos robinsonianos": "Façamos [...] Robinson aparecer em sua ilha. Moderado por sua natureza, tem, entretanto, de satisfazer diferentes necessidades e, por isso, é compelido a executar trabalhos úteis diversos, fazer instrumentos, fabricar móveis, domesticar lamas, pescar, caçar. Não falaremos de sua orações e coisas análogas, pois Robinson se compraz nelas, considera restauradoras atividades dessa natureza. Apesar da diversidade de suas funções produtivas, sabe que não passam de formas diversas de sua própria atividade, portanto, de diferentes formas do trabalho humano. A própria necessidade obriga-o a distribuir, cuidadosamente, seu tempo entre suas diversas funções.[...]" (MARX, 2006, p.98). E, Marx continua: "[...] Todos os produtos de Robinson procediam de seu trabalho pessoal, exclusivo, e por isso, eram, para ele, objetos diretamente úteis. [...]" (MARX, 2006, p.100).
5 Markus (1974) assinala que o fundamento teórico presente na unidade dinâmica do indivíduo e a sociedade, advinda da concepção pressuposta por Marx em seus Manuscritos, afirma que a totalidade dos indivíduos singulares, como produtores e produtos da sociedade, está colocada em existência e condicionada pela produção material dos indivíduos: "[...] Marx pode então concluir que as referidas relações sociais que intercorrem entre os indivíduos se apresentam como manifestação da relação do individuo que produz com sua atividade" (MARKUS, 1974, p.33-34, grifo do autor).
6 "[...] As filosofias anteriores, não reconhecendo a posição teleológica como particularidade do ser social, eram obrigadas a inventar, por um lado, um sujeito, transcendente, e, por outro, uma natureza especial onde as correlações atuavam de modo teleológico, com a finalidade de atribuir à natureza e à sociedade tendências de desenvolvimento de tipo teleológico" (LUKÁCS, 1978, p.06).
7 "[...] Todas as coisas que o trabalho apenas separa de sua conexão imediata com seu meio natural constituem objetos de trabalho, fornecidos pela natureza. Assim, os peixes que se pescam, que são tirados do seu elemento, a água; a madeira derrubada na floresta virgem; o minério arrancado dos filões. [...]" (MARX, 2006, p.212).
8 "[...] A coisa de que o trabalhador se apossa imediatamente excetuados meios de subsistencia colhidos já prontos, tais como frutas, quando seus próprios membros servem de meio de trabalho não é o objeto de trabalho, mas o meio de trabalho. Desse modo, faz de uma coisa da natureza órgão de sua própria atividade, um órgão que acrescenta a seus próprios órgãos corporais, aumentando seu corpo natural, apesar da Bíblia. [...]" (MARX, 2006, p.213, grifo nosso).
9 "A maneira como os homens produzem seus meios de existência depende, antes de mais nada, da natureza dos meios de existência já encontrados e que eles precisam reproduzir. Não se deve considerar esse modo de produção sob esse único ponto de vista, ou seja, enquanto reprodução da existência física dos indivíduos. Ao contrário, ele representa, já, um modo determinado das atividades desses indivíduos, uma maneira determinada de manifestar sua vida, um modo de vida determinado. A maneira como os indivíduos manifestam sua vida reflete o que eles são. O que eles são coincide, pois, com sua produção, isto é, tanto com o que eles produzem quanto com a maneira como produzem. O que os indivíduos são depende, portanto, das condições materiais de sua produção" (MARX; ENGELS, 2007, p.11).
10 "No processo de trabalho, a atividade do homem opera uma transformação, subordinada a um determinado fim, no objeto sobre que atua por meio do instrumental de trabalho. O processo [de trabalho] extingue-se ao concluir o produto [...]" (MARX, 2006), p.214, grifo nosso).
11 Segundo Karel Kosik, o complexo dos fenômenos que povoam o ambiente cotidiano e a atmosfera comum da vida humana, com sua irregularidade e evidência, penetram na consciência dos "indivíduos agentes", assumindo um aspecto independente e natural, constituindo o mundo da pseudoconcreticidade, que obscurece o conhecimento da essência em detrimento do primado da esfera fenomênica (KOSIK, 1976, p.11). Essa argumentação, a despeito de trazer implícita uma dicotomia entre aparência e essência detrimento de ações que privilegiem a sua transformação permanente, mediante ação crítica dos sujeitos históricos: "fazer extraordinário o cotidiano" (BOGO, 1999, p.105).
12 É necessário assinalar que a supressão de qualquer modo de reprodução material da vida social deve se movimentar, segundo a advertência feita por Gramsci em sua apropriação conceitual da contribuição realizada por Karl Marx, no âmbito de dois princípios: "[...] 1) o de que nenhuma sociedade assume encargos para cuja solução ainda não existam as condições necessárias e suficientes, ou que pelo menos não estejam em vias de aparecer e se desenvolver; 2) o de que nenhuma sociedade se dissolve e pode ser substituída antes de desenvolver e completar todas as formas de vida implícitas nas suas relações [...]" (GRAMSCI, 1976, p.45). Esta concepção apreende o estatuto histórico-social das relações sociais de produção e suas correspondentes determinações.
13 Assinalar o legado das formações sociais precedentes exige, por conseguinte, uma conceituação do que pode ser interpretado por "passado humano". Nosso entendimento não se desvencilha da formulação proposta por E. P. Thompson (1981, p.51, grifo nosso): "[...] O passado humano não é um agregado de histórias separadas, mas uma soma unitária do comportamento humano, cada aspecto do qual se relaciona com outros de determinadas maneiras, tal como os atores individuais se relacionavam de certas maneiras (pelo mercado, pelas relações de poder e subordinação etc.). Na medida em que essas ações e relações deram origem a modificações, que se tornam objeto de investigação, podemos definir essa soma como um processo histórico, isto é, práticas ordenadas e estruturadas de maneiras racionais".