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ISBN 978-85-62480-96-6 versão impressa

Sem. de Saúde do Trabalhador de Franca Set. 2010

 

MUNDO DO TRABALHO E REESTRUTURAÇÃO PRODUTIVA

 

Faxineiras em um campus universitário

 

 

Lúcia Arrais Morales

Antropóloga. Doutora. Unesp/Marília. Contato: e-mail: luciamorales@uol.com.br

 

 


RESUMO

Discute-se o trabalho terceirizado de faxineiras em um campus de uma universidade pública. Examina-se a categoria de pensamento natureza para explicar a exploração de trabalhadoras que limpam salas, corredores e banheiros. Deixar papéis usados fora da cesta de lixo e não utilizar a descarga após o uso do sanitário são rotinas que impõe desnecessariamente mais penosidade ao trabalho. Há, portanto, uma prática de exploração não enunciada de exploração nessa instituição de ensino superior. Demonstra-se que a dicotomia natureza/cultura, que preside o pensamento moderno, permite situar essas trabalhadoras no pólo da natureza não conferindo a elas o estatuto de plenamente humanas.

Palavras-chave: faxineira, terceirização, natureza.


 

 

1 INTRODUÇÃO

Quando Engels escreveu a Dialética da Natureza, na segunda metade do século XIX, apresentou os seguintes dados para mostrar as conseqüências de um modo de intervir no mundo:

As pessoas que, na Mesopotâmia, Grécia, Ásia Menor e alhures destruíram as florestas para obter terra cultivável, nunca imaginaram que eliminando junto com as florestas os centros coletores e as reservas de umidade lançaram as bases para o atual estado desses países. Quando os italianos dos Alpes cortaram as florestas de pinheiros da encosta sul, tão amadas na encosta norte, eles não tinham a menor idéia de que agindo assim cortavam as raízes da indústria Láctea da sua região; previam menos ainda que pela sua prática eles privariam de água suas fontes montanhesas durante a maior parte do ano (apud LÖWY, 2005, p.22).

Engels está focalizando o limite cognoscitivo de civilizações antigas que promoveram o desaparecimento de florestas. Ao trabalhar com este período histórico, o autor qualifica as ações destas coletividades através de expressões como "nunca imaginaram que", "não tinham a menor idéia" e "previam menos ainda". Lido hoje, no ano 2009, este trecho gera uma repercussão particular em nós que vivemos em um território que abriga a maior parte da floresta amazônica. Contudo, o elemento central está para além da comunicação da destruição progressiva de florestas. Diferentemente da época atual, as civilizações antigas estavam desprovidas dos exemplos de experiências anteriores que, uma vez sistematizados, forneceriam o conteúdo às opções de previdência. Então, se o problema não é ausência de conhecimento disponível, por que continuamente há informes sobre o aumento de áreas desmatadas para a pecuária e o cultivo da soja na região amazônica? Considerações sobre a Amazônia, embora muito mais próximas de nós do que as ponderações sobre a Mesopotâmia, a Grécia e a Ásia, continuam distantes em termos de nossa experiência imediata. Para trazê-lo é necessário reduzir uma escala. Ou seja, examinar situações regularizadas e regulares no exercício de convivência de um grupo, isto é, sua rotina. Este procedimento não visa tratar a rotina em si mesma e, com isso, permanecer no plano da crônica. Mas, localizá-la no interior de grandes escalas. Então, a pergunta inicial é: o que está ocorrendo na floresta amazônica é distinto do que está imediatamente presente a nós? Em outras palavras, a compreensão de mundo atuante na atualidade da floresta amazônica estaria presente em pequena escala no cotidiano do campus de uma universidade?

Esta pergunta nos encaminha para o modus operandi de uma modalidade de viver, pensar e sentir que recebe o nome de modernidade. Isto significa dizer que tratamos a nós e os demais seres do mundo separando e produzindo fronteiras. Há o mundo físico de um lado e o mundo humano do outro. O primeiro visto como pré-existente e repetitivo. O segundo entendido como dinâmico, inventivo e agindo sobre aquele. Em outras palavras, há uma dimensão denominada natureza que está separada de outra denominada cultura. Este dualismo aparece em outros pares como animalidade/humanidade, território/população indivíduo/sociedade, trabalho intelectual/trabalho braçal, razão/emoção, corpo/mente, modernidade/tradição e ciências humanas/ciências da natureza. Através de dualismos, fazemos nossa existência cotidiana acontecer e eles estão inscritos em todos os domínios de nossa vida: em casa, no trabalho, no parlamento, na igreja, nos hospitais, nos meios de comunicação e na universidade.

Como um campus de uma universidade é o objeto desta investigação, para tratá-lo, escolhem-se dois focos. Primeiro, é necessário não perder de vista que o nosso mundo vem sendo cotidianamente produzido e transformado pelas relações entre ciência, tecnologia e mercado. Neste sentido, as universidades estão a exigir uma aguda compreensão do seu funcionamento atual. Segundo, circunscrever a análise a partir da afirmação de que: "se você quer compreender o que é a ciência, você deve olhar, em primeiro lugar, não para as suas teorias ou as suas descobertas, e certamente não para o que seus apologistas dizem sobre ela; você deve ver o que os praticantes da ciência fazem" (GEERTZ, 1978, p.15).

Em outras palavras, para alcançar o entendimento de algo é necessário observá-lo num quadro de interações concretas, sobretudo tendo em mente que estas interações produzem simultaneamente os contextos em que se processam. Se a universidade é o local de produção de conhecimento e de uma tomada de consciência das questões prioritárias de nossa época, por que não pensar no cotidiano daqueles que nela trabalham? Se delas saem diretrizes para os políticos agirem em nome da sociedade, então não seria de esperar que as vicissitudes do pensamento moderno estivessem aí experimentadas de modo mais agudo?

Contudo, levar em frente estas questões exige não perder de vista dois aspectos fundamentais. Primeiro, a universidade é um dos suportes do tipo de formação social na qual fazemos nossa existência: o Estado-Nação. Examinar a universidade a partir daqueles que nela trabalham (ensinam, estudam, pesquisam e administram) é, consequentemente, colocar em perspectiva um dos planos de existência mais concretos desta formação social: a experiência vivida de seus membros. Segundo, a ação distintiva do Estado é produzir uniformização. A ninguém é permitido mais de um esposo ou esposa, mais de uma raça, mais de um pertencimento local. Ao contrário, somos produzidos para termos somente um cônjuge, somente um pertencimento local e ter na heterossexualidade a nota fundante de nossa sexualidade. Contudo, os modos da existência humana são sempre contextuais e dinâmicos, assim os habitantes de um determinado território são conduzidos, sob uma ação coercitiva, a um modo predominante de ser. A isto chamamos de "identidade". Assim, toda diversidade social converte-se em identidade. Falar de Estado, então, é pensar em um conjunto de agentes e operações cuja orientação é naturalizar, essencializar, literalizar a experiência social.

De que modo esta operação de essencializar está em na experiência cotidiana de um campus de uma universidade pública? Como ela se articula ao nosso modo de viver e pensar algo que definimos como natureza? Para responder a essas perguntas, serão descritas situações presentes todos os dias nesse campus.  Relatá-las talvez causem algum mal-estar no grupo. Contudo, do ponto de vista do conhecimento, essas reações são desejáveis, pois sem elas não é possível a existência de nenhuma problemática cujo destino é o espaço coletivo.

Esse tipo de preocupação esteve descrita de modo preciso na agenda de inquietações de Marx. Ao fazer, em 1867, o prefácio da primeira edição de O Capital, ele dirige-se ao leitor alemão e o convoca a desfazer-se de uma percepção falsa. Seu intento é oferecer elementos concretos que suspendam a tentação desse leitor para circunscrever geograficamente conseqüências danosas em processo de difusão, ou seja, fora do controle coletivo. Ele esclarece a proeminência em debruçar-se sobre a Inglaterra para pensar as transformações em curso. Ele explicita que tal exigência é de ordem metodológica. Não constitui uma determinação geográfica, portanto não dizem respeito apenas a ingleses. Em outras palavras, seu trabalho não autoriza o leitor a delimitá-las. Marx destaca dois caminhos possíveis para o exercício desse impedimento à tomada de consciência do plano do vivido. Em ambos, o indivíduo entrega-se com afinco a um ideário produtor do ato de obscurecer a apreensão de elementos concretos da experiência imediata. Ao fazê-lo, um dado problema torna-se inexistente e situado em outro lugar. Desse modo, Marx (1978, p.05) apresenta sua obra não apenas esclarecendo sua opção metodológica pela Inglaterra, mas assumindo um dever moral de agir sobre consciências:

Até agora a Inglaterra é o campo clássico dessa produção. Este o motivo por que a tomei como principal ilustração de minha explanação teórica. Se o leitor alemão, farisaicamente, encolher os ombros diante da situação dos trabalhadores ingleses, na indústria e na agricultura, ou se, com otimismo, tranqüilizar-se com a idéia de não serem tão ruins as coisas na Alemanha, - sinto-me forçado a adverti-lo: a história é a teu respeito.

O farisaísmo e o otimismo são os dois caminhos sinalizados. Ao contrário do que ficou correntemente em uso, fariseu não está no texto sob o sentido de hipocrisia ou dissimulação. Marx usa o termo em sua acepção originária. Os fariseus surgiram dois séculos A.C. como uma dissidência dos hasydhim. Essa oposição surgiu pelo descontentamento com a liderança religiosa que olhava a tradição de modo secundário. Disso resulta que o termo pharysaym (fariseu) significa separado e ligou-se à estrita observância formal aos ritos da lei mosaica. Portanto, os fariseus literalizavam o judaísmo. Além disso, e mais importante, eles predominavam entre a classe dos escribas e eram a maior força política no sinédrio. Assim, através do termo fariseu procura-se capturar-se a situação de um grupo ou de um indivíduo cujos atos estão automatizados pela prevalência da dimensão estruturante do passado na produção do seu entendimento do mundo. Desse modo, o que sai do âmbito da rotina de interesses é deslocado para fora e visto não apenas como secundário, mas sem poder de afetar o grupo ou o indivíduo. Com isso, o imediato, o circunstancial e uma visão abrangente ficam comprometidos. É sobre isso que Marx está alertando os alemães. Eles estão automatizados no seu fazer e isso os impede de enxergar uma transformação em curso acontecendo no seu presente imediato e não sujeita a um contorno geográfico definido.

Se o farisaísmo é um modo de aderir ao já estabelecido e, portanto, expressão de pouca permeabilidade ao circunstancial, o otimismo, por sua vez, também desconsidera o presente e afeta a ação de um grupo ou de um indivíduo. Ao conceber que sempre haverá um desfecho favorável independente das variáveis em jogo, o indivíduo não necessita perceber ativamente seu entorno para obter os elementos indispensáveis a um esforço reflexivo que possibilite uma ação. Há a crença, portanto, de que a realidade porta um dispositivo automático para a correção do rumo dos acontecimentos. Basta apenas manter-se confiante. Desse modo, tanto o farisaísmo quanto o otimismo operam através de sistemas de referência impedidores da apreensão da realidade imediata: o farisaísmo pelo apego à tradição e o otimismo pela fuga ao enfretamento de adversidades.

A advertência de Marx é útil para pensar o que está ocorrendo diariamente na floresta amazônica e em um campus universitário? O que se faz no campus narra a história face à destruição da Amazônia? Para responder a essas perguntas é necessário dirigi-las a um campo concreto de práticas. É sob essa perspectiva que se destinam as descrições de duas rotinas presentes em um campus de uma universidade pública. Através delas, faz-se aparecer as atitudes para com a floresta amazônica. Por isso, esse procedimento não tem um caráter ilustrativo. Pretende-se, por meio dessas situações, ativar problemas e não relatar casos. Essa análise dirige-se ao incômodo. Isto não significa que contar casos seja uma atividade menor. Ao contrário, exige habilidades as quais estão finamente analisadas por Benjamim (1975).

Desse modo, as rotinas escolhidas para análise são: 1) o desprezo pelo trabalho da faxineira expresso pela negligência com o ato de deixar papéis usados fora da cesta de lixo bem como não utilizar a descarga após o uso do sanitário; 2) as sistemáticas pontas de cigarro lançadas ao gramado, em canteiros de flores e em de jarros com plantas.

De imediato, isto mostra que a vida das pessoas aqui nesse campus é regulada por outros fatores que não os oriundos do conhecimento científico ou da conduta informada pela razão Como entender essas rotinas em um campus universitário no qual existem informação, seminários e grupos de pesquisa dedicados a chamada "questão ambiental"? Nesses itens, agora mencionados, falta algum ou o caso não é de ausência, mas de compatibilidade entre o fazer e o pensar? Não seria um equívoco explicar determinadas rotinas como expressão de contradição entre teoria e prática? Sob a aparência de contradição não estariam operando consonâncias, combinações solidárias, fertilizações cruzadas?

Stranther (1999), antropóloga inglesa, cunhou a expressão "commodity thinking" para dizer que o modo atual de pensar no interior das universidades encontra-se acentuadamente marcado pela categoria mercadoria. Ela está falando do predomínio de um pensamento estatal e implica perceber a inexistência atual do debate e, consequentemente, a recusa à diversidade intelectual. Então, cabe perguntar: a existência das rotinas, indicadas acima, em sua dinâmica particular, seriam uma das faces assumidas pelo pensamento comoditizado e, por isso, difícil de ser apreendida? Para pensar essa questão, é necessário uma descrição pormenorizada de cada uma das rotinas examinadas.

 

2  ROTINA I

O desprezo pelo trabalho da faxineira expresso pela negligência com o ato de deixar papéis usados fora da cesta de lixo bem como não utilizar a descarga após o uso do sanitário.

O trabalho de faxina exige contato com dejetos humano e não humano. Além de tarefas classificadas como braçais, elas expõem o corpo do indivíduo a elementos poluídos e, em sendo assim, são duplamente desvalorizadas. A mulher que faz faxina tem que se curvar sobre vasos sanitários e com um escovão esfregar seus contornos e o seu fundo. Faz isto várias vezes e, ao inclinar seu tronco, sua cabeça também vai junta e seu campo sensorial, sobretudo seu olfato e visão, limita-se à forma-sanitário. Em cada uma das pias, ela usa uma esponja ou pano para friccionar sua superfície e o faz rápido e repetidamente. No interior das salas, ao usar a vassoura, dobra-se constantemente para tirar o pó embaixo de mesas, estantes e cadeiras. Isso sem falar de mais um item recentemente adicionado ao mobiliário das salas: o micro com seu teclado, CPU, mouse, almofadinha para o mouse e fios que se prolongam pelo chão.  Além de uma vassoura, acrescentando peso à atividade, ela conduz um balde com água e nele mergulha um pano para executar outra operação: remover a poeira sobre os móveis. Ela é ágil e atenta para não verter água em livros, computadores, telefones sem fio, ventiladores e tapetes. Todas estas ações têm de ser feitas até às oito horas da manhã, quando professores e funcionários iniciarão o expediente. Para tanto, elas começam às 6 horas da manhã. Isto significa que ela necessita acordar antes do sol nascer e a distância entre a sua residência e esse campus impõe submeter-se ao regime de um transporte coletivo. As faxineiras, objetos dessa pesquisa, são todas casadas e têm filhos. Isto implica que, além de repetir no ambiente doméstico essas mesmas tarefas realizadas aqui, ela acrescenta outras que também reclamam esforço físico como lavar e passar roupas. Afora isto, preparam a comida do dia seguinte para o marido e filhos. Portanto, sua jornada de trabalho é superior ao seu tempo de repouso.   

Elas pertencem a extratos sócio-econômicos limitados e não fazem parte do quadro de funcionários dessa universidade pública, uma vez que este posto de trabalho foi desativado nesta universidade. No contexto da economia, a faxina situa-se no setor terciário também conhecido como serviços e, no caso desse campus, encontra-se sob o controle de uma empresa privada. Os indivíduos que se transformam em seus empregados recebem a categoria identitária de terceirizados ou terceirizadas, usadas aqui enquanto categorias analíticas. Observá-los no campus é vê-los em grupos de dois ou três percorrendo as trilhas que levam de um prédio a outro. Sua comunicação com os demais funcionários, embora não restrita aos cumprimentos de saudação, não leva a participação mais extensa, como por exemplo, usufruir da sala de convivência que ativaria a possibilidade de criar situações de interação mais diversificadas. Sua relação com professores, por sua vez, prende-se ao atendimento às solicitações para a abertura de salas. Basicamente, conversam entre si, mantendo os gestos, o tom e o volume das falas dentro das invisíveis linhas destas fronteiras. Na condição de terceirizados e terceirizadas, estão mais afastados das demais categorias profissionais do campus mostrando o quão frágeis são os elos que os vinculam a elas.

Em ciências sociais, há um termo para apreender este tipo de experiência social: a fragmentação. Através desta palavra, procura-se alcançar uma nuance do fenômeno do isolamento social gerado pelo modo atual de organizar a vida coletiva, exemplificado aqui pelo trabalho de faxineiras. Esta forma de gerir o trabalho tem como mecanismo procedimentos de obstrução à variedade de contatos. Isto acentua as distâncias sociais, diminui as chances do exercício da solidariedade e aumenta a prática da indiferença.

O termo fragmentação não está presente apenas em ciências sociais, mas também nas ciências da biologia e da informática. Na primeira, ele informa um tipo de reprodução em que certos organismos partindo-se em fragmentos geram outros indivíduos cujo destino é repetir este mesmo processo. Em informática, fragmentação refere-se ao desperdício de memória pela má utilização dos recursos do disco rígido. A aproximação com estes conceitos permite alcançar um dos componentes fundamentais da atual dinâmica da vida social: ênfase frenética sobre o individualismo e o conseqüente empobrecimento da vida coletiva. Portanto, estas faxineiras, sob o atributo terceirizadas, vivem neste campus universitário um mundo de relações sociais fragmentado e fragmentador que arma a vulnerabilidade delas a atos geradores de sobrecarga ao seu trabalho.

Não é por demais realçar que uma parcela considerável do tempo vital destas mulheres atrela-se a um ofício rejeitado não apenas pelo baixo salário e pelo desgaste do corpo, mas também pela depreciação social. Faz faxina o indivíduo que ocupa a posição de inferior numa ordem social hierarquizada. Em estudos sobre a migração brasileira para os Estados Unidos, é claramente identificado o tipo de trabalho destinado aos migrantes: ocupações rejeitadas pelos americanos, sem necessidade de qualificação técnica nem domínio da língua inglesa.  Entre elas, e de modo acentuadamente destacado, estão os serviços de limpeza em residência e estabelecimentos comerciais, como bares e restaurantes registrados na pesquisa de Scudeler (1999).

Na Índia, embora o sistema de castas tenha sido abolido em lei e o país existe enquanto um Estado-Nação, ele subsiste no cotidiano. Os "intocáveis" ou parias é a casta de posição mais baixa, por conseguinte, está condenada aos trabalhos mal pagos e vistos como degradantes, entre eles, as tarefas de coleta do lixo e do asseio realizado nos mortos. Portanto, Além do contato com elementos contaminados, sujos, poluídos exigindo de quem o faz uma ação de domesticação contínua do nojo, os ofícios ligados à limpeza naturalizam a atribuição da inferioridade daquele que os exerce. Ao mesmo tempo, eles fazem aflorar a percepção de que o contato com os resíduos da fisiologia humana, oriundos da materialidade irrecusável de nossa existência animal, é fonte de perturbações aquém do designável.

Estes exemplos originam-se de contextos sociais, geográficos, históricos, culturais e políticos distintos. Em todos eles, há uma reação aproximada quanto às inescapáveis providências em relação aos resíduos lançados pelo corpo humano. Esta reação está inscrita na solução de destinar as providências de sua remoção ao grupo socialmente produzido como inferior. A ele cabe controlar a iminente inquietação produzida pela inescapável experiência com os elementos absolutamente concretos da animalidade humana: fezes, urina, secreções nasal, ocular, e demais fluídos corporais. 

Assim, a posição sócio-econômica de um indivíduo é traduzida em uma escala de maior a menor aproximação à animalidade. O grupo socialmente inferior estaria situado mais perto da animalidade e, portanto, mais apto a lidar com ela. Enquanto, aqueles em posição acima dele estariam mais afastados das injunções fisiológicas e, por conseguinte, expressariam a humanidade plena. A civilização realizar-se-ia nestes estratos sociais superiores. Aos inferiores, reservar-lhes a tarefa de garantir as condições para a existência da humanidade. Com isto, afirma-se a desigualdade como operador da existência humana. Para tanto, aciona-se uma concepção determinista de homem que, no caso brasileiro e americano, apóia-se numa leitura interrompida da biologia.

Portanto, é o princípio da desigualdade continuamente ativado que fornece a senha, a licença para que num centro de ciências humanas, inteiramente voltado para pensar a situação humana, no qual se exortam o pensamento crítico e clama-se por emancipação humana, existam certas atitudes para com o trabalho das faxineiras. Assim, quando papéis usados caem no chão e aí são deixados, quando pilhas de papéis são colocadas nas portas das salas ou deixadas transbordando dentro de lixeiras sem acondicioná-las em sacos; quando a descarga não é acionada depois do uso do sanitário ou quando toalhas de papel são lançadas em pias, estamos impondo um esforço extra a mulheres já exploradas, cuja força do corpo é oferecida para obter sua sobrevivência. Neste momento, encontramo-nos em nossas idéias e elas são compatíveis com o nosso agir. Para nós, a humanidade das faxineiras não está na mesma proporção que a nossa. Nelas, a animalidade atua com maior força e as torna muito mais próximas da natureza, para a qual não nos colocamos como partes integrantes, mas separados e diante dela.

Um dos alvos de discussão de Descola (1998) é demonstrar a presença de um antropocentrismo moderno estruturando as diversas sensibilidades ecológicas contemporâneas e aparecendo em uma nuance do processo de identificação: os não humanos seriam tratados em função de seu suposto grau de proximidade com a espécie humana.  A simpatia em relação aos animais é ordenada segundo uma escala de valor na qual o ápice é ocupado pelas espécies percebidas como mais próximas do homem em função de seu comportamento, fisiologia e faculdades cognitivas. Naturalmente os mamíferos são mais aquinhoados nesta hierarquia do interesse, independente do meio onde vivem. Portanto, enquanto os animais vistos como perto da animalidade humana são recobertos de simpatia e, por isso, trazidos para perto, os grupos humanos vistos como mais próximos da animalidade humana são distanciados e mantidos em conjuntos habitacionais, favelas e em condições de trabalho aviltantes. Assim, se por um lado pratica-se o antropocentrismo, por outro, há o exercício de um antropocentrifugismo. Consequentemente, essa prática cotidiana desse campus é atravessada pela dualidade animalidade versus humanidade.

 

3  ROTINA II

Sistemáticas pontas de cigarro lançadas ao gramado, em canteiros de flores e dentro de jarros com plantas.

Um ato nunca se faz num vazio. Ele constitui-se num contexto. Portanto, em que contexto se joga cigarros acesos em canteiros, na grama e em jarros com plantas?  No contexto da ontologia dualista que estrutura os valores que produzem nossos atos. Desse modo, se a atitude rotineira para com o trabalho das faxineiras está sendo informada pela dualidade humanidade versus animalidade, a dualidade território/população preside essa segunda atitude rotineira.

A antropologia trabalha com o conceito de territorialidade que procura atravessar este plano dual saindo de uma idéia de um espaço genérico e abstrato e concebendo-o como produto da ininterrupta ação humana de recobrir o mundo com sua espessura vital. Territorialidade significa o espaço vivido e povoado de significações. Territorialidade expressa as duas exigências simultâneas impostas à nossa sobrevivência humana: garantir um metabolismo e situar-se numa ordem que faça sentido.

Portanto, em uma territorialidade, uma compreensão de vida coletiva efetiva-se através de ações diárias e concretas, como por exemplo, lançar pontas de cigarro acesas em canteiros de flores, no gramado ou em um jarro com plantas. O que governa tal comportamento? O que comanda essas ações rotineiras? O que se cumpre quando assim se procede?

Efetua-se o dualismo território/população no qual o primeiro termo é visto como substrato, como pano de fundo, como segundo plano, enfim, como se fosse nosso encaixe físico na vida. Compreender um território como cenário é pensar que vivemos sobre e não em relação, conectados e em interdependência. É não pensar que estamos inteiramente mergulhados numa materialidade que nos constitui e que somos inseparavelmente parte. Não vivemos sobre um território, mas em uma territorialidade.

Nesse campus universitário, as noções de extensão e durabilidade estão presentes nas edificações. São os blocos de concreto que se destacam verticalmente e são neles que ocorre a quase totalidade das atividades. As pessoas ficam a maior parte do tempo dentro dos recintos de concreto armado: salas, corredores, pátios ou escadas. Mesmo as áreas com grama e árvores de pequeno ou de grande porte são circundadas por trechos de cimento previamente traçados para servirem de rota. São muita poucas as atividades didáticas feitas nestas áreas e os movimentos humanos não se dão intensamente nelas, embora sejam os espaços mais extensos do campus. Assim, tanto essa vegetação quanto os canteiros e os jarros são vistos como pano de fundo, como segundo plano, como decoração e essa mesma lógica preside as ações em curso na floresta amazônica. Ali e aqui, é um território e age-se sobre ele. Ali e aqui é o mundo físico pré-existente, repetitivo sobre o qual vai atuar o mundo da cultura, o mundo da civilização, enfim, o mundo humano que, pensado por contraste com uma noção de natureza, é dinâmico e inventivo.

Essa perspectiva moderna tem nuances sinalizadas na revisão bibliográfica de Drummond (1991) de um campo da historiografia que recebe a rubrica Historia ambiental. Entre o conjunto de obras ali analisadas encontra-se "Wilderness and the American mind" do historiador americano Roderick Nasch. O centro da análise de Drummond está em destacar a pergunta principal do livro: o que significa para os humanos modernos possuir em seus territórios uma natureza virgem? Nasch responde que os povos modernos em cujos territórios existam ou imaginem que existam áreas intocadas desenvolvem atitudes opostas em relação a elas. Por um lado, essas áreas representam o temível e o inútil e, portanto, carentes de ação civilizatória. Por outro lado, essas mesmas áreas representam o belo e precisam ser preservadas. Para Nasch, há consequências quando uma sociedade possui grupos sociais vivendo com valores assim opostos. Isso propicia o surgimento de movimentos ambientalistas que desejam salvar a "natureza selvagem". Isto é, aquela que está distante do seu dia a dia. Contudo, essa mesma sociedade desenvolve atitudes de indiferença aos jardins, ou seja, à natureza que está próxima, imediata, enfim, que faz parte de seu cotidiano. Nash usa o termo "jardins", mas, creio ser possível também usar a expressão "campus" universitário. Pois, suas considerações se aplicam ao lócus das observações aqui apresentadas. Há discussões em sala de aula, seminários, jornadas, colóquios, cursos e textos são produzidos sob a temática da natureza com todas as variantes que essa palavra recebe nos títulos de tais eventos.

A análise de Nash, por sua vez, dirige-se a suas preocupações com os Estados Unidos, local onde nasceu, vive e experimenta essa questão. Contudo ela não nos inspira para pensarmos: sobre nós mesmos aqui nesse campus e nossas responsabilidades na direção de nossa atividade intelectual constantemente afastada da produção de um pensamento próprio, intimamente imbricado com nossa posição na divisão internacional do trabalho intelectual?

 

4  CONCLUSÃO

Então, encontrar as pessoas em suas idéias passa pela desativação desta estrutura que mapeia nossa sensação e percepção e, assim, nos prepara para reagir ao mundo da maneira como reagimos. Pensamos que há uma contradição entre falar sobre preservação ambiental, em consciência ecológica e jogar pontas de cigarro acesas em plantas, seres de vida, de uma vida inteiramente opaca para nós. Não há contradição. Há compatibilidade e ela esta no contexto dos dualismos que estrutura os valores que produzem nossos atos.

Entre 1960 e 1961, Levi-Strauss (1984) retoma o problema clássico do totemismo em seus cursos. Em 11 itens, analisa como as principais tradições do pensamento etnológico formularam o problema e tentaram resolve-lo.  Interessa aqui salientar que o totemismo foi pratica de sociedades não modernas, e um de seus aspectos era a representação do mundo social em relações intrínsecas com a natureza. Disso resulta o entendimento de que a dualidade que opõe a natureza à cultura não é prerrogativa de todas as sociedades humanas. Sabe-se que ela opera no interior do pensamento moderno. 

Essa questão é discutida em sua verticalidade por Sahlins (1990). Ele chama atenção para a forma de pensar através de dicotomias, a qual, além de ordenar a nossa experiência, está inteiramente naturalizada no pensamento ocidental moderno. Seu foco concentra-se na oposição entre história e estrutura para mostrá-la não apenas como um fenômeno cultural, mas para apresentá-la em suas implicações para o nosso entendimento de mundo. Ele deixa claro o erro produzido por essa dicotomia: confundir história com mudança e estrutura com estabilidade. Essa confusão é o impedimento à percepção de que a persistência de uma estrutura é um fenômeno histórico, ou seja, ela não se mantém por si mesma e, para tanto, precisa ser continuamente ativada num determinado lugar e em determinados momentos. Desse modo, não discernir que a dinâmica da vida social moderna é produzida a partir de dualismos impede a compreensão de nossas vidas, de nossos atos diários.

A confusão destacada por Sahlins adquire dimensão quando pensada à luz do texto de Geertz (2001) "O pensamento como ato moral: dimensões éticas do trabalho de campo antropológico nos países novos". Geertz põe em perspectiva a ação de pensar enquanto um ato social e público. A colocar desse modo o problema, ele traz para o primeiro plano a questão da responsabilidade à qual todo ato social se liga visceralmente. O autor, entretanto, age para delimitar a diferença entre o pensamento e outros atos. Para isso, conduz o leitor a situar-se em uma perspectiva temporal: pensar é o ato social de maiores conseqüências a longo prazo, pois pode carregar um conteúdo em duração há séculos e, com isso, fazer existir rotinas como essas aqui apresentadas. Sua persistência, portanto, se materializa em atos cotidianos que o mantém e o faz prosseguir.

Esse modus operandi do pensamento moderno através de dualismo se concretiza em modus vivendi entre os quais dois deles estão assinalados por Marx ao prefaciar a primeira edição de O Capital: o farisaísmo e o otimismo. Uma análise sobre esses dois modos de ser sugere uma solução para o problema aqui estabelecido: por que em uma instituição de ensino superior existem rotinas desleixadas para com o mundo vegetal e o mundo animal?

Para comunicar posições existenciais que optam por afastar-se do imediatamente presente e local, Marx estabelece a seguinte homologia: o farisaísmo está para o encolher os ombros diante de determinados acontecimentos assim como o otimismo está para o tranquilizar-se em relação a acontecimentos adversos. O encolher os ombros é uma expressão de indiferença. O tranquilizar-se, por sua vez, é crer não haver motivos para ocupar-se em elaborar uma linha de ação. Ou seja, é produzir uma posição na qual a nota distintiva é tornar desnecessário a realização de um movimento. Assim, de modos distintos, tanto o fariseu quanto o otimista reduzem o peso das evidências e eximem-se de uma responsabilidade. O primeiro desdenha; o segundo se ufana.

As figuras do fariseu e do otimista são boas não apenas para comunicar um pensamento, mas também para acioná-lo. É nessa direção que Deleuze e Guatarri (1992) propõem um movimento para fazer acontecer uma reflexão, ou seja, sinalizam para um modo de potencializar o pensamento. Isto está posto no capítulo de abertura do livro O que é filosofia? Nele, ao trabalhar com a idéia grega de "filósofo como amigo do saber", eles fazem sobressair no termo amigo sua potencia conceitual. Mostram que para essa palavra conduzir um poder heurístico precisa habitar um ambiente conceitual. Isto é, o termo amigo não funciona como exemplo, ilustração, circunstância empírica. Desse modo, "amigo" não é algo extrínseco. Os gregos o transformaram em uma figura intrínseca e, como isso, o dotaram da qualidade de categoria portadora de condições para acionar o pensamento. Portanto, "amigo" convertido em figura intrínseca "designaria uma intimidade competente, uma espécie de gosto material e uma potencialidade, como aquela do marceneiro com a madeira: o bom marceneiro é, em potência, amigo da madeira?" (1992:10). Se o filósofo é o amigo do saber, o marceneiro é o amigo da madeira. O marceneiro se faz marceneiro ao trabalhar sobre e com a madeira. Através dela, ele materializa o seu pensamento e ela, ao mesmo tempo, é capaz de ativá-lo continuamente. Do mesmo modo, o filósofo se faz filósofo ao trabalhar sobre e através de conceitos. Nesse processo, o conceito gera uma potencialidade e um gosto material. Em outras palavras, ele é fonte da instauração de um entendimento vigoroso e portador do prazer em mover-se para extrair nitidez do que está vivo, concreto e saliente.

Assim, fariseu e otimista são tomados aqui como figuras intrínsecas e, portanto, criadores de possibilidades de entendimento do problema aqui definido. São vistos como modos concretos de ser através dos quais uma ordem vigente se mantém. O fariseu age com indiferença ao que não guarda similitude com os seus interesses, reduzindo, portanto, a importância do que não está no centro dos investimentos de sua atenção. Além disso, no caso de perceber algo (uma ação, um objeto, uma habilidade pessoal) como potencialmente valioso, atua dissimulando sua curiosidade sobre ele e/ou desdenhando dele. Mas, o elemento saliente nesse modo de ser e agir é uma disposição permanente e irrefletida (automatismo) para um comportamento distanciado. O otimista, por seu turno, age para produzir um foco dotado de condições para afirmar aspectos imaginados como bons e favoráveis aos acontecimentos. Sua posição é a de manter as condições de continuidade, de estabilidade de uma dada perspectiva. Portanto, a figura intrínseca do otimista vincula-se à ordem instituída. Pois, se o valor e a meta é esperar sempre uma solução favorável, mesmo em situações as mais difíceis, isto significa dizer que a estrutura social em vigência é a garantia para que se chegue a um final feliz. Assim, ao não constituir em si a exigência de uma ação guiada por elementos contingentes, o indivíduo crê poder eximir-se de responsabilidades. Portanto, não se deter no local e no imediato é um modo de não se comprometer com o efeito e não envolver-se diretamente na mudança de comportamento.

Desse modo, essas duas disposições são produtos de uma socialização geradora de cidadãos impossibilitados de uma percepção plena, precisa e presente da realidade local. Elas estão sempre lançando seu pensamento para um futuro e para lugares fora do lugar onde estão. As circunstâncias empíricas imediatas, então, não constituem presenças intrínsecas ao ato de pensar e, por isso, torna mais fácil falar da Amazônia a partir de um lugar a mais de três mil quilômetros. Existe um impedimento lógico que impossibilita enxergar que o raciocínio subjacente aos atos que operam lá tem as mesmas bases daqueles em funcionamento aqui. Em vista disso, corre-se o risco de que a universidade não esteja produzindo uma reflexão sobre o nosso tempo, mas sim uma adesão a ele. E isso tem sérias implicações uma vez que essa instituição de modo direto ou indireto fornece as coordenadas para a elaboração de políticas públicas.

 

REFERENCIAS

DELEUZE & GUATARRI O que é filosofia? São Paulo: Editora 34, 1992.

DESCOLA, P. Estrutura e Sentimento: a relação com o animal na Amazônia. In: Revista Mana, Rio de Janeiro, v.4, n.1, 1998, p. 23-45.

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GEERTZ, C. Nova Luz sobre a Antropologia. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 2001.

LÉVI-STRAUSS, C. Minhas palavras. São Paulo: Editora Brasiliense, 1984.

LÖWY, M. Ecologia e Socialismo. São Paulo: Cortez, 2005.

MARX, K. O Capital. V.1. Rio de Janeiro: Ciências Humanas, 1978.

SAHLINS, M. Ilhas de História. Rio de Janeiro: Zahar, 1990.

SCUDELER, V. C. Imigrantes valaderenses no mercado de trabalho dos EUA. In: Reis, R. & Sales, T. (Orgs.). Cenas do Brasil Migrante. São Paulo: Boitempo, 1999.

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