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ISBN 978-85-62480-96-6 versão impressa

Sem. de Saúde do Trabalhador de Franca Set. 2010

 

MUNDO DO TRABALHO E REESTRUTURAÇÃO PRODUTIVA

 

Os homens e a construção e reconstrução da identidade de gênero

 

 

Onilda Alves do Carmo

Profª Drª do Departamento de Serviço Social da Faculdade de História, Direito Social e Serviço Social FHDSS - Unesp Campus de Franca/SP. Líder do Grupo de pesquisas Mulher e Gênero "Margariada Alves". Vice-Coordenadora do Núcleo Agrário Terra e Raiz NATRA. Pesquisadora do Grupo de Estudos e Pesquisas "Teoria social de Marx e Serviço Social", UNESP-Franca/SP

 

 


RESUMO

A construção das masculinidades passa pelo trabalho produtivo, pela sexualidade e pela definição dos papéis socialmente construídos. A masculinidade assim como a feminidade é uma construção social na qual estão imbricados não só os processos sociais, mas também os processos psicológicos, subjetivos. Portanto, o trabalho e o desempenho sexual funcionam como as principais referências para a construção do modelo de comportamento dos homens. Desde cedo dos meninos crescem assimilando a idéia de que, com o trabalho, serão reconhecidos como homens, porque através do trabalha vão adquirir liberdade e autonomia. O trabalho define a primeira marca de masculinidade, na medida em que, no plano social, viabiliza a saída da própria família. A masculinidade como construção social, não é homogênea e não está baseada somente na valorização do órgão sexual como elemento dominador da mulher, mas também por outros atributos.

Palavras-chaves: Masculinidade. Gênero. Trabalho. Depressão


 

 

INTRODUÇÃO

Nos últimos anos discute-se que haveria uma crise da masculinidade desencadeada pelas várias transformações ocorridas a partir das conquistas das mulheres, que provocou mudanças nos padrões culturais de sociabilidade. Para alguns psiquiatras, entre eles Nolasco (1995), no final da década de 1990 e início da de 2000, houve um aumento no número de homens que buscam os consultórios para discutir ou rediscutir seus papéis. Para os homens as mudanças ocorridas na economia também trouxeram desafios à sua posição de "macho provedor".

As várias transformações ocorridas, principalmente nas últimas décadas, no modelo de produção societária, provocaram mudanças no mundo do trabalho, desencadeando um processo acelerado de precarização do trabalho. Esse processo desencadeou mudanças no âmbito empresarial, na organização coletiva dos trabalhadores, no núcleo familiar e também pessoal. Para os homens que historicamente afirmaram a sua masculinidade a partir do trabalho - um dos elementos fundantes da sociabilidade social se vêem sob grandes desafios.

 

AS MUDANÇAS NO MUNDO DO TRABALHO E OS DESAFIOS PARA AS MASCULINIDADES

O peso da lógica da acumulação capitalista privilegiando o trabalho morto, em detrimento do trabalho vivo, não se funda mais, nem tanto, pela expropriação da mais valia absoluta, pois intensifica-se a partir da expropriação da mais-valia relativa, como afirma Ricardo Antunes, expropria-se a capacidade intelectual dos trabalhadores que agora se responsabilizam, em grande medida pela produção, organizada por equipe e pela manutenção do próprio emprego, transformar-se em mão-de-obra multifuncional capaz de assumir múltiplas funções, ou seja, realizar a tarefas de várias pessoas (ANTUNES, 2005), caso não consiga poderá perder o emprego. A culpa pelo desemprego é colocada como sendo do próprio trabalhador ou trabalhadora que não procurou se qualificar para esse novo momento.

Os sindicatos passaram e ainda estão passando por um processo de desmonte de sua capacidade de luta; as conquistas provenientes de séculos de lutas do movimento operário não têm o peso que tinham nos anos de 1970-1980. A luta hoje é muito mais para manter o emprego do que para sua melhoria (ANTUNES, 2005).

Ora todas essas mudanças colocam questões para aqueles que vivem do trabalho, mas, para o trabalhador se trata de um questionamento que coloca em cheque a sua identidade de homem, pois um dos eixos na construção de sua identidade masculina é o trabalho. Daí que, para alguns estudiosos haveria uma crise da masculinidade provocada muito mais por essas transformações do que, pelas conquistas das mulheres nos diversos campos da vida social, em especial, no que se trata da liberação sexual e da luta pela divisão sexual do trabalho doméstico.

Portanto, para discutir a construção da identidade é preciso também tomar em conta a categoria gênero como uma das ferramentas importantes que nos ajuda a compreender as relações que homens e mulheres estabelecem no dia-a-dia, em especial, no cotidiano do espaço familiar, espaço este de construção e re-construção das identidades. Esta é a discussão que se procura estimular a partir deste ensaio.

A discussão sobre a identidade masculina, passa tanto pela dimensão do trabalho, quanto pela dimensão do gênero, pois ambas são importantes no processo da construção da(s) masculinidade(s)1.

A chamada crise da masculinidade tem sido discutida no âmbito das relações de gênero, pois tem ocorrido de se tomar as conquistas das mulheres referentes a ocupação de outros espaços para além do âmbito doméstico, como o elemento desencadeador dessa crise. Apesar da afirmação de que o trabalho é o "mapa" por meio do qual os homens constroem e reconstroem suas masculinidades, poucos estudos discutem as mudanças no mundo do trabalho como questão central desta crise.

A conquista das mulheres por postos de trabalhos, antes ocupados pelos homens nos leva a perguntar se o trabalho não estaria se constituindo também em um elemento importante na redefinição das identidades femininas, pois as mulheres, por viverem nesse momento histórico e, mesmo que continuem responsáveis pelas tarefas domésticas, estão também inseridas no mundo do trabalho e, elas também são atingidas pelas transformações deste universo. Estas duas dimensões se entrelaçam na construção das identidades masculinas e femininas. Portanto, não se pode pensar que a crise da masculinidade é uma crise provocada, tão somente, pelas conquistas das mulheres do espaço da "rua". Para Nolasco "[...] restringir a transição hoje vivida pelos homens à particularidades e à história do movimento de mulheres é negar que o próprio movimento de mulheres também decorre das transformações sociais iniciadas no século XVII" (NOLASCO, 1995, p. 23).

Atualmente no Brasil, embora no nível macro, a economia goze de certa estabilidade e o nível de desemprego venha tendo uma pequena queda, o número de trabalhadores e trabalhadoras inseridas no trabalho "informal", sem nenhuma garantia, ainda é muito grande. A maioria dos/das trabalhadores/as vive uma realidade de subemprego, com salários aviltantes que não lhes permite ter e nem "dar" uma vida digna à sua família.

A partir do processo de globalização dos mercados e do processo de reestruturação econômica, ocorreram grandes transformações no modo de produção e nas relações de trabalho. A flexibilização implantada no modo de produção, foi imposta também para as relações de trabalho, conformando então o chamado trabalho precarizado (PEREIRA, 1999, p. 47).

Se a construção social da identidade da mulher está ligada ao seu espaço doméstico nas atribuições de cuidadora do lar e dos filhos, a construção social da identidade do homem está ligada ao espaço público do trabalho considerado produtivo.

O trabalho produtivo, realizado fora do espaço da casa, ou seja, o trabalho enquanto mercadoria é tarefa do homem, macho, forte e destemido, por isso ele é "direito", "honesto" e "responsável". Dessa maneira, pode-se afirmar que para muitos homens, embora desempregados, o trabalho é a característica mais importante na constituição de suas identidades masculinas.

Segundo Nolasco (1995, p. 50), para o homem o trabalho tem uma dimensão cartográfica, pois:

[...] define a linha divisória entre as vidas pública e privada e, ao mesmo tempo tem uma dupla função para a sua vida. A primeira é ser o eixo por meio de que se estruturará seu modo de agir e pensar. A segunda função é inscrever sua subjetividade no campo da disciplina, do método e da violência, remetendo-os a um cotidiano repetitivo.

O processo histórico de transformação do trabalho em mercadoria constituiu-se de um processo que incluiu a desvinculação do trabalhador dos meios de produção e a sua transformação em trabalhador coletivo e sua força de trabalho em trabalho alienado (ANTUNES, 2005). 

Para Marx, o trabalho tem como finalidade garantir a reprodução da força de trabalho: "Dada existência do individuo, a produção da força de trabalho consiste em sua própria reprodução e manutenção" (MARX, 1985, p.141). Em um estudo sobre família operária Macedo (1979, p. 142) discute a idéia de que as famílias da classe trabalhadora na sua dinâmica trabalham para manter e reproduzir a força de trabalho na geração de filhos. "A soma dos meios de subsistência necessários à produção da força de trabalho inclui, portanto, os meios de subsistência dos substitutos, isto é, dos filhos dos trabalhadores."

Isso não quer dizer que por ser trabalhador, explorado e pobre reproduza a pobreza. Como afirma Bilac (1997, p. 32):

[...] a reprodução humana nos grupos sociais não é, a priori, a reprodução do grupo social: a reprodução dos pobres não e a reprodução da pobreza, a reprodução dos operários não é a reprodução da classe trabalhadora. O que reproduz os negros como minorias sociológicas não é a cor de seus filhos, mas o estigma, o preconceito e condições sócio-econômicas adversas [e excludentes].

Nesse sentido, a idéia de que a pobreza reproduz a pobreza, não tem fundamento, pois, a questão da pobreza se coloca na perspectiva da lógica econômica e se no início e meados do século XX a pobreza era sinônimo de atraso, seu enfrentamento dar-se-ia com o processo de desenvolvimento econômico. Atualmente na visão de Teles (2000), a pobreza é o resultado desse desenvolvimento. Isto porque neste início de século (XXI) a lógica da produção societária, de produzir produtos com valor de troca em detrimento da produção de produtos com valor de uso e fortemente ligada ao consumo, pressupõe a diminuição do trabalho vivo e o aumento da automação. No Brasil, como na maioria dos países capitalistas que estão inseridos na lógica dessa produção societária mundial, instalou-se um processo de precarização das relações de trabalho e consequentemente um alto nível de desemprego, chamado de desemprego estrutural previsto na lógica do desenvolvimento atual.

Por outro lado, a educação do homem reafirmou, historicamente, a idéia de que sendo macho deveria assumir a chefia da família. Essa idéia da chefia nos remete a uma relação não só de dominação, mas também a uma idéia de exploração. Saffioti aponta que as relações de gênero, atendem quase sempre ao binômio dominação/exploração e quem se beneficia desta situação é a classe patronal (SAFFIOTI, 1992, p. 23). Essa relação por sua vez nos remete a uma relação de poder. Louro (1997, p. 38), citando Foucault propõe que "[...] observemos o poder sendo exercido em muitas e variadas direções, como se fosse uma rede."

As relações de poder que permeiam as relações de gênero se reproduzem em vários campos: na família, no trabalho, na produção intelectual, enfim nas diversas relações sociais. Para Foucault (1979) o poder se distribui em constelações dispersas de relações desiguais, discursivamente constituídas em campos sociais de força. Isso permite entender o fenômeno do poder tanto no nível macro, pressupostamente destinado ao homem, quanto no nível micro, historicamente destinado às mulheres.

A idéia de que é da natureza do homem ser o "chefe" e ter o poder impõe para eles a necessidade de "controlar" a família, a mulher, os filhos.  Essa forma de compreender a masculinidade vem do patriarcado que embora, tenha vigorado em outro momento histórico, se reproduz nos dias atuais de outra maneira. Therborn (2006) fala em um patriarcado do século XXI. Para ele o patriarcado não desapareceu totalmente, "[...] há um último terço da humanidade" em que ainda prevalece essa cultura. O aspecto mais importante das mudanças no patriarcado no século XX, segundo o autor, não está na sua tendência universal, mas na variação nos resultados assim como nas cronologias" (THERBORN, 2006, p. 192). É a partir do patriarcado, enquanto uma organização que tem o homem pai/proprietário - com poder sobre o filho e para o qual deixa sua herança, que o sexo masculino foi definido como um ser humano privilegiado, dotado de alguma coisa a mais, que o coloca num patamar superior ao das mulheres. "Ele se julga mais forte, mais inteligente, mais corajoso, mais responsável, mais criativo ou mais racional. Esse mais justifica sua relação hierárquica com as mulheres, ou pelo menos com a sua" (BADINTER, 1993, p. 6). Pierre de Bourdie observa que "[...] ser homem é estar instalado, de saída, numa posição que implica poderes" (BOURDIEU, 2002, p. 21) Em contrapartida, para alguns homens a experiência do poder suscita sofrimento. J. Scott (1995, p. 88) analisando as relações de poder nas relações de gênero, pondera que "[...] o poder coletivo dos homens é construído tanto nas instituições como nas formas como estes se apropriam e reproduzem este poder."

A masculinidade e a virilidade devem ser reafirmadas sempre, e, embora a violência de gênero afete muito mais a mulher e elas são as maiores vítimas, os homens também estão expostos à violência. Os meios de comunicação de vez em quando noticiam o aumento do número de denúncias de homens que sofrem violência de gênero. Ainda que se suponha que seja em menor grau, essa notícia chama a atenção, pois seria contraditório tendo em conta os atributos da masculinidade. Os homens, particularmente os que vêm das famílias empobrecidas, são vítimas da violência urbana. As estatísticas mostram que, no Brasil, as maiores vítimas da violência urbana são os homens jovens. Badinter (1993, p. 146) afirma que:

[...] a vida de um homem vale menos que a vida de uma mulher (as mulheres e as crianças primeiro), que ele serve de bucha de canhão em tempo de guerra e que a representação da sua morte (no cinema e na televisão) tornou-se simples rotina, um clichê da virilidade, boas razões para olhar a masculinidade tradicional como uma ameaça à vida; a masculinidade só se tornará menos arriscada quando deixar de ser definida por oposição à feminidade.

Não se trata, porém, de colocar o homem como vítima na outra ponta da relação, mas de rediscutir o gênero como uma relação entre duas pessoas, seus corpos, seus desejos e anseios que se relacionam.

Para Bourdieu (2007, p.64) "A virilidade, entendida como capacidade produtiva, sexual e social, mas também como aptidão ao combate e ao exercício da violência (sobretudo em casos de vingança) é, acima de tudo, uma carga."

Toda esta carga desencadeia nos homens muitas doenças, como por exemplo, a depressão, mas que nem sempre são entendidas como tal. Nos últimos anos tem crescido o número de homens que busca ajuda médica com queixa de desânimo, mal estar. O problema é que, na maioria dos casos, quando eles chegam aos postos de saúde, já estão com a depressão avançada.

A depressão, em geral está ligada a fatores emocionais e também genéticos e/ou ambientais, este último entendido como fatores familiares, políticos, econômicos e culturais. A depressão é uma doença grave, sistêmica que afeta todo o organismo, por isso deve ser diagnosticada e tratada o mais rápido possível (LEAL, 2009).

A depressão atinge homens e mulheres e, segundo as pesquisas da área da saúde ela atinge o dobro das mulheres em relação aos homens. O problema é que os homens demoram mais em buscar ajuda médica, seja por medo ou vergonha (SANTIAGO, 2009). Isto porque a depressão em geral, tem, entre outros, sintomas tais como tristeza persistente, insônia, apatia, pessimismo, irritabilidade, falta de energia. Todos esses sintomas seriam considerados femininos próprio da mulher. Ainda, segundo Leal, o que difere homens e mulheres não é a vulnerabilidade à doença, mas a capacidade de admiti-la (SANTIAGO, 2010).

Os homens, em geral, sentem vergonha, especialmente porque a doença faz com que eles percam a produtividade no trabalho, o que faz com que ele diminua sua capacidade de provedor da família, acrescente-se a isso o fato de que a depressão pode levar à diminuição da libido, colocando em xeque sua condição de macho.

Haveria então que repensar essa masculinidade construída a partir do trabalho produtivo, calcada na identidade de gênero. "Urge ensinar aos meninos outro modelo viril, que deixe espaço para o reconhecimento da vulnerabilidade" (BADINTER, 1993, p. 146).

 

A DIFÍCIL CONSTRUÇÃO DA IDENTIDADE MASCULINIDADE

A masculinidade assim como a feminilidade é uma construção social, na qual estão imbricados não só os processos sociais, mas também os processos psicológicos, subjetivos. J. Money, citado por Badinter, afirma que é mais fácil "fazer" uma mulher do que fazer um homem. "Da concepção de um XY até a masculinidade adulta, o caminho é cheio de emboscadas" (MONEY, 1972, p. 19 apud BADINTER,1993, p. 34).

Elisabeth Badinter inicia o Prólogo do livro "XY - sobre a identidade masculina", se perguntando "o que é um homem?", qual seria "a essência do macho humano?" e ao discutir a questão ela afirma que "[...] ser homem implica um trabalho, um esforço que não parece ser exigido das mulheres" (BADINTER, 1993, p. 3).

Nessa perspectiva a masculinidade não é algo que se adquire para sempre, ela tem que ser conquistada e re-conquistada, por meio da provação da virilidade do ser masculino: "prova que você é homem". Portanto, a virilidade não é dada de saída, ela deve ser construída. Segundo Badinter (1993), o maior elogio a um homem é dizer que ele é um verdadeiro homem. Para fazer jus a isso o homem deve, desde a adolescência, cumprir com determinados papéis que lhe são impostos e assumir características que o qualificam como homem. Até décadas atrás, algumas famílias tinham o costume de levar os garotos para serem iniciados na relação sexual com mulheres prostitutas. Pois prevalecia a idéia de que o menino, no processo de aprendizagem para ser homem, teria que "treinar" a sua sexualidade de modo a "não falhar" e, assim cumprir o seu papel de macho.  Analisando a questão da crise da masculinidade, Badinter, a partir de suas pesquisas, concluiu que, já no século XVIII esta questão estava colocada para os homens daquela época. Segundo ela estava implícito o medo da feminização do homem. Para eles o fato de assumirem as tarefas que pertenciam às mulheres, os tornava vulneráveis e se tornarem mulheres (BADINTER, 1993).  A autora aponta que a crise da masculinidade do século XX, apresenta um diferencial. Os primeiros estudos relativos a masculinidade dos anos 1970, traziam um tom de denúncia, contudo, a chegada da década de 1980, trazendo os desafios postos pela globalização de mercados e a conseqüente transformação no modo de produção societária, que acarretou no desemprego e nas incertezas para grande parte da humanidade, culminou com algumas conquistas dos movimentos feministas que recolocou novamente a questão da crise da masculinidade (BADINTER, 1993, p. 5). No entanto, concordamos com a autora quando ela afirma que o feminismo não é o único desencadeador da chamada crise da masculinidade "[...] o feminismo ocidental é menos culpado de ter misturado os pontos de referência do que ter mostrado a nudez do rei" (BADINTER, 1993, p. 6). Para nós, como também para a autora, essa crise dos anos 1980 é dada por uma dupla motivação: de um lado, as mulheres ao questionarem os papéis sociais e a relação de dominação dos homens sobre elas fizeram "[...] evaporar-se a característica universal masculina da superioridade do homem" (BADINTER, 1993, p. 6); por outro, a reflexão que fazemos é a de que, se o trabalho se constitui em um dos elementos fundantes na construção da identidade masculina, como ficaria essa construção para os novos homens, na medida em que se discute a perda da centralidade do trabalho na conjuntura atual? Ou mesmo para os homens que já constituíram sua identidade (a ser reconstruída sempre) ficar sem o trabalho seria ficar sem uma das bases de poder sobre a família e, conseqüentemente sobre a mulher, como definiria sua masculinidade? Portanto, ao lado dos questionamentos postos pelas conquistas das mulheres, coloca-se a questão do acesso ao trabalho formal, regulamentado que, na conjuntura atual, em muitas áreas, foi substituído pelo trabalho precarizado.

Alguns estudiosos sobre o tema apontam que a construção da masculinidade constitui-se em um processo sofrido para os homens, pois, a virilidade, marca profunda na identidade masculina, exige que o homem renuncie a experimentar momentos de plena alegria e prazer. Saffioti afirma que para agir como macho o homem deve aceitar, ainda que inconscientemente, sua própria castração.

O homem será considerado macho na medida em que for capaz de disfarçar, inibir, sufocar seus sentimentos. A educação de um verdadeiro macho inclui necessariamente a famosa ordem: "Homem (com H maiúsculo) não chora". Quantos homens não tiveram que engolir as lágrimas diante da tristeza, da angústia, do luto, em nome dessa norma de conduta (SAFFIOTI, 1987, p. 26).

Os desafios para isso são imensos, pois, por pior que seja o trabalho e por mais insatisfatório que ele seja, insere o rapaz no universo dos homens o "[...] primeiro dia de trabalho é uma iniciação ao reino da solidariedade secreta e conspirativa dos homens que trabalham. É por meio do trabalho que o rapaz passa a ser considerado homem" (NOLASCO, 1995, p. 51).

Portanto, o trabalho e o desempenho sexual funcionam como as principais referências para a construção do modelo de comportamento dos homens. Desde cedo dos meninos crescem assimilando a idéia de que, com o trabalho, serão reconhecidos como homens, porque por meio do trabalha vão adquirir liberdade e autonomia. O trabalho define a primeira marca de masculinidade, na medida em que, no plano social, viabiliza a saída da própria família.

A masculinidade como construção social, não é homogênea e não está baseada somente na valorização do órgão sexual como elemento dominador da mulher, mas também por outros atributos. Os conceitos: compromisso, coragem, força física, capacidade para o trabalho e para o sustento da família, entre tantos atributos, também são valorizados na constituição da masculinidade. Segundo Badinter (1993, p. 141), numa crítica à teoria de Lacan "[...] não é só pelo sexo e pela atividade sexual que o homem melhor toma consciência de sua identidade e virilidade, mas sim por um conjunto de experiências cotidianas".

Para Nolasco (1995), se entre maternidade e mulher o que vigorou foi uma fusão de modo que o destino de ser mãe seria a única possibilidade de realização, esta mesma articulação acontece entre homem e trabalho: sem ele, um homem não pode se considerar como tal.

Desta maneira, parte do sucesso e da prosperidade da estratégia capitalista reside no fato de que, ao transformar os princípios dos sistemas em padrão de desempenho para o comportamento dos homens, ela deixa de ser apenas uma questão ideológica para se transformar em questão cotidiana. A prosperidade do sistema capitalista depende da manutenção dos valores e do modelo de comportamento dos homens. Para isso foi preciso que a relação estabelecida entre os homens e o trabalho seguisse padrões semelhantes aos de uma doutrina religiosa, com dogmas, verdades e formas semelhantes de controle e repressão (NOLASCO, 1995, p. 54).

Outro componente importante na construção da identidade de gênero é a sexualidade. A sexualidade compõe nossa personalidade, e não se restringe ao sexo. Ela é um conjunto de múltiplas experiências que nos coloca na plenitude do SER HUMANO. Sexo refere-se aos aspectos físicos e biológicos, mas hoje podem ser modificados. Por outro lado a sexualidade não é somente um conjunto de estímulos biológicos; ela compõe-se de comportamentos, desejos e sentimentos construídos nas nossas relações de gênero.

A sexualidade, portanto, é uma elaboração social que age dentro dos campos do poder e se torna norma por meio da influência do contexto sócio-político no qual está inserida. Como construção social contribui na construção da identidade de mulheres e homens. Os papéis sociais influenciam na forma como cada um e cada uma vive a sua sexualidade.

A sexualidade para as mulheres quando ela é reduzida à genitália, torna-se vergonhoso, proibido. Para os homens, ao contrário, são preparados para viver o prazer da sexualidade através do corpo, já que socialmente o exercício da sexualidade no homem é sinal de masculinidade. Quando o homem não consegue a ereção ele é chamado de "brocha", "bicha", "[...] qualquer dificuldade com seu pênis é uma fonte de profunda humilhação e desespero, um indício da perda da masculinidade" (BADINTER, 1993, p. 142).

Para os meninos a sexualidade é algo a ser aprendido "aprender a ser macho", enquanto a menina deve aprender a esconder o sexo para entregar-se ao futuro marido.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A transformação da identidade masculina não se limita somente à revisão do funcionamento da sexualidade dos homens, nem somente a revisão da divisão sexual do trabalho. Ela deve ser pensada na sua relação consigo mesma, com a mulher, com os filhos e com o mundo real, contraditório e desafiador do momento atual. Esta mudança deve reconstruir a relação com o novo feminismo. A transformação tanto da masculinidade quanto da feminilidade passa também pela construção de um projeto no qual estará sendo repensado o próprio modelo de funcionamento político e social em que estão inseridos homens e mulheres (NOLASCO, 1995, p. 181).

A identidade (social ou psicológica) é um processo complexo, que comporta uma relação positiva de inclusão e uma relação negativa de exclusão (BADINTER, 1933, p. 33). Como enfatizado, a construção da identidade social masculina é um processo difícil para os homens, porque, ao mesmo tempo eles têm que aprender o que não devem ser, para depois construir o que devem ser: "Por três vezes, para afirmar uma identidade masculina, deve convencer-se e convencer os outros de que não é uma mulher, não é um bebê e não é um homossexual" (BADINTER, 1993, p. 34).

Diante disso para discutir como o homem define sua identidade e, mais que isso como ele a constrói e reconstrói, deve-se tomar em conta tanto a dimensão das relações de gênero construídas a partir dos papéis sociais, quanto a dimensão do trabalho dimensão da "rua"  enquanto categoria fundante do ser homem.

Na divisão sexual dos papéis, como vimos, às mulheres cabe os papéis da "casa", espaço particular, privado e ao homem os papéis da "rua", espaço do público. (SCOTT, R. P., 1995, p. 40). O macho "[...] se constrói contra a feminilidade original do embrião... ao longo do desenvolvimento, tornar-se macho é uma luta de cada instante" (BADINTER, 1993, p. 39), porque a cada momento ele tem que "provar que é macho".

Os papéis são aprendidos ao longo da formação da pessoa. Simone de Beauvoir (1980), afirma em sua obra O Segundo Sexo, que "[...] ninguém nasce mulher (ou homem), torna-se mulher (ou homem)" (acréscimo nosso). Portanto ser mulher ou ser homem é um aprendizado que começa desde o nascimento.  "Quanto mais a criança cresce, mais o universo se amplia e mais a superioridade masculina se afirma" (BEAUVOIR, 1980).

Para Saffioti (1987), o problema não está na diferenciação dos papéis, mas sim na valoração dos mesmos. Historicamente, mas em especial nos Séculos XVII, XVIII e início do Século XIX, prevaleceu a idéia da superioridade masculina, superioridade essa baseada na condição do macho que tem a força, é capaz, é racional e é branco. Contudo, para que essas idéias ganhassem força construiu-se o pensamento machista que firmou-se como uma ideologia que serve também como uma matriz utilizada para justificar ações de violência praticada por homens. No entanto, como afirma Nolasco (1995) é perigoso pensarmos que o machismo é só uma ideologia machista, pois as relações sociais estão perpassadas pela ideologia da classe dominante, internalizadas por meio da educação, dos meios de comunicação, da religião, entre outros.

Essa ideologia vai ganhar terreno no desenvolvimento do sistema capitalista, na medida em que coloca uma valorização do espaço público lócus no qual se desenvolvem os papéis masculinos -, em detrimento do espaço privado lócus privilegiado da realização dos papéis femininos.  

Para alguns autores e autoras Nolasco (1995); Badinter (1993); Saffioti (1987); Louro (1997) para citar alguns, as diversas culturas, ao longo da história foram construindo masculinidades diversas. O mesmo se pode afirmar sobre as feminilidades, pois não há feminilidade no singular. A masculinidade, assim como a feminilidade é "ensinada" no processo de socialização e constituição dos seres. Portanto se ela é ensinada e se é construída pelas diferentes sociedades nos diferentes períodos históricos, ela pode mudar (BADINTER, 1993, p. 29).

Badinter (1993) ao discutir a crise da masculinidade na virada do século XIX e XX identifica que os homens sentem-se ameaçados em sua identidade por essa nova criatura (mulher emancipada) que quer agir como eles, ser como eles, a ponto de se perguntarem se não serão obrigados a "[...] desempenhar tarefas femininas, ou até mesmo horror supremo a serem mulheres" (BADINTER, 1993, p. 16), por isso, como a depressão apresenta características tidas como femininas, é difícil para os homens admitirem a doença.

Os papéis definidos para os homens, via de regra, impõem para eles uma carga de responsabilidade que não lhes permite fraquejar.  Esse papel de "macho e viril" que a sociedade sexista constrói para os homens é tão nocivo e mutilador para eles quanto o é a imagem de feminilidade construída para as mulheres (SAFFIOTI, 1987).

A construção da masculinidade, assim como a da feminilidade, passa pela construção da identidade de gênero, a qual se transforma e inclui também a idéia de sexualidade. A sexualidade tem um sentido muito mais amplo que sexo, havendo possibilidade de diferenciar um e outro. Com o avanço das tecnologias, a reprodução pode acontecer até mesmo na ausência da atividade sexual.

A sexualidade também é uma construção. Deborah Britzman (1996, p. 74 apud LOURO, 1997, p. 27) afirma que:

[...] não existe uma identidade heterossexual pronta e acabada lá fora pronta, esperando ser assumida e, de outro, uma identidade homossexual, que deve se virar sozinha. Em vez disso, toda identidade sexual é um constructo instável, mutável e volátil, uma relação social contraditória e não finalizada.

Como dissemos a masculinidade difere em tempo, lugar e condições de classe, raça e cultura. "Não existe um modelo masculino universal, válido para todos os tempos e lugares" (BADINTER, 1993, p.27).  Contudo, podemos afirmar que, independentemente da sociedade, essa construção é um processo difícil e muito doloroso para os homens e, nestes tempos neoliberais de precarização do trabalho, assegurar o poder do macho provedor é uma tarefa bastante desafiadora.

 

Referências

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1 Utilizamos no plural por acreditarmos que não existe uma única e correta masculinidade, por ser fruto do processo histórico ela pode mudar nas diferentes sociedades e nos diferentes momentos históricos.