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ISBN 978-85-62480-96-6 versão impressa

Sem. de Saúde do Trabalhador de Franca Set. 2010

 

ACIDENTES, DOENÇAS E ADOECIMENTOS DO TRABALHO CONTEMPORÂNEO

 

A experiência do trabalhador offshore1: o caso de operadores de ROV

 

 

Larissa de Lima Vieira CoelhoI; Renata PaparelliII

IGraduanda em Psicologia na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.  E-mail: larissac23@hotmail.com
IIProfª Drª orientadora do Trabalho de Conclusão de Curso da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. E-mail: rpaparel@uol.com.br

 

 


RESUMO

O mercado petrolífero vem crescendo progressivamente e é um dos maiores e mais importantes mercados do mundo contemporâneo. As pesquisas não acompanham esse crescimento, já que se verifica uma baixa produção na literatura científica sobre trabalhadores offshore. A investigação realizada procura entender como a experiência do trabalho é sentida por esses trabalhadores. O resultado mostra a implicação do trabalho na vida do trabalhador apontando aspectos como: turno noturno que dificulta a adaptação ao trabalho durante o embarque, relações familiares e sociais fragilizadas, privacidade e lazer limitados, ansiedade constante, comunicação esvaziada de conteúdo e percepção do tempo diferenciada.

Palavras-chave: Confinamento. Petróleo. Trabalhador Offshore. Saúde Mental. Trabalho.


 

 

INTRODUÇÃO

O interesse pelo tema surgiu inicialmente em uma conversa com um mergulhador/soldador de uma plataforma da Petrobrás, que contou sobre sua profissão e os diversos aspectos de penosidade presentes em seu trabalho. Naquela ocasião, ele destacou o fato de sua atividade laboral diminuir seu tempo de vida, devido a condições ambientais de pressão marítima e pouca claridade no fundo do mar, ao tempo excessivo que passa embaixo d'água, entre outros fatores.

Posteriormente, houve uma conversa com um técnico que, também embarcado, opera uma máquina conhecida como ROV (Remotely Operated Underwater Vehicle), um veículo submarino operado remotamente, que executa diversas tarefas no fundo do mar, tais como realização e supervisão da montagem de equipamentos de exploração e produção de petróleo em grandes profundidades. Os operadores, estabelecidos na cabine de controle localizada no navio, visualizam seu objeto de trabalho pelas imagens produzidas por câmeras instaladas no ROV, sendo a partir dessas imagens que operam  o veículo, bem como seus "braços e mãos" mecânicos. As atividades desenvolvidas exigem grande concentração, visto que qualquer movimento do veículo pode prejudicar o trabalho. Assim, o ROV colabora na exploração do petróleo, trabalhando geralmente para empresas terceirizadas e contratadas pela Petrobrás, em locais que apresentam grande risco de acidentes.

Essa conversa com o operador de ROV trouxe questões ligadas à experiência de trabalho vivida por esses profissionais, cujas atividades guardam, ainda, outra peculiaridade: a situação de confinamento, já que eles passam quatorze dias embarcados e outros quatorze dias em terra.

O tema desta pesquisa tem importância no campo da Psicologia do Trabalho por contribuir no estudo da saúde dos trabalhadores dessa categoria de profissionais pouco conhecida e cujo trabalho é fundamental em um ramo industrial estratégico para o país. Além disso, esse tipo de trabalho vem crescendo cada vez mais, uma vez que o campo da indústria petrolífera está em ascendência (vide discussão atual sobre a exploração do Pré-Sal), abrindo um possível campo de atuação para os profissionais do campo da Saúde do Trabalhador. Desta forma, pretendemos contribuir com os esforços para a melhoria das condições e organização do trabalho desses profissionais.

O presente trabalho tem como objetivo pesquisar a experiência desses trabalhadores, conhecendo o sofrimento psíquico envolvido em trabalhos onde as pessoas ficam confinadas por um determinado período de tempo, como o realizado pelos trabalhadores offshore. Assim, busca investigar como esse confinamento pode estar relacionado a questões tais como a relação familiar e de amizade, aspectos psicológicos dentro desse contexto e o que isso pode acarretar, dentre outros.

 

O PETRÓLEO

A descoberta do óleo na modernidade se deu em 1849, na Pensilvânia, EUA, ocasião em que foi inaugurada a primeira empresa petrolífera, a E&P. Sua exploração era feita manual e desorganizadamente, o que levava a uma instabilidade do mercado, que não contava com a regularidade no fornecimento do material.  Naquela época, o petróleo era usado como querosene. Sua exploração era feita apenas onde o óleo aparecesse na superfície, assim só havia exploração superficial de jazidas de petróleo. A qualidade do produto não era padronizada, havendo diversos acidentes domésticos.

Com o crescimento do consumo e da utilidade do petróleo, principalmente no setor automotivo, após a segunda guerra mundial, as técnicas de exploração do petróleo foram ficando cada vez mais avançadas e então o trabalho passou a ser diuturno. Principalmente a partir da década de 1930, os especialistas (engenheiros, técnicos, físicos, geólogos etc.) começaram a estar cada vez mais permanentemente nos campos de exploração, ao lado do petróleo (DUTRA, 1995).

No Brasil, esse movimento veio inicialmente com o Conselho Nacional de Petróleo (CNP), que passa os comandos para a Petrobrás em 1953. A Petrobrás inicia, em 1993, a exploração de petróleo, com a descoberta do que pode se considerar o primeiro poço de petróleo no Brasil, em Lobato, na Bahia. Atualmente, já se tem mais de 63 campos situados ao longo da costa brasileira, o que mostra a importância desse setor na economia do país.

Um setor pouco mencionado, mas não menos importante, é o de fornecedores de equipamentos e serviços, setor que vem sofrendo terceirização nos últimos tempos (DUTRA, 1995). Faz parte desse conjunto o trabalho dos operadores de ROV, que pesquisamos no presente estudo. Um setor cada vez mais em alta, mas que ainda concentra todo o capital em poucas empresas.

 

PESQUISAS SOBRE O TRABALHO DE PETROLEIROS

Primeiramente, é necessário entender como a palavra confinamento está sendo utilizada nessa pesquisa. A partir da discussão feita por Rodrigues (2001) e mencionada por Castro e Nunes (2008), confinamento pode ser compreendido como limitação de espaço e impedimento do desejo de ir e vir, assim como isolamento social, distanciamento da família principalmente em eventos com grande significado simbólico, ausência de privacidade enquanto embarcado e abstinência sexual forçada.

O trabalho em plataformas contempla esses aspectos e pode ter diferentes escalas, geralmente os trabalhadores de empresas terceirizadas trabalham 14 dias e folgam 14 dias. Durante esses 14 dias de confinamento, os trabalhadores ficam limitados a um espaço físico, sendo difícil conseguir ficar um tempo sozinho, isolado ou quieto (SOUZA, 1996).

Os profissionais na área petrolífera são regidos pela lei 5.811/72, que estabelece remuneração maior devido ao trabalho noturno e ao perigo a que estão submetidos, assim como maior tempo de repouso e descanso semanal (FERREIRA; SILVA JUNIOR, 2007). Apesar desses direitos adquiridos, ainda há muitos outros a serem conquistados, já que as dificuldades do trabalho nas plataformas vão além das condições ambientais e entram no âmbito psicológico. É preciso atentar para questões mais gerais que envolvam a qualidade de vida dos sujeitos, questão muito importante quando se trata de atividades em plataformas marítimas, em que há uma expressiva perda da qualidade de vida (CASTRO; NUNES, 2008). Neste mesmo sentido, os autores apontam a existência de diversos transtornos mentais, denunciados pelo Sindicato de Petroleiros, em 1997, transtornos esses iniciados geralmente pela constante ansiedade e que afetam funções fisiológicas dos trabalhadores, principalmente o sono.

O trabalho desses profissionais está submetido a alguns fatores conhecidos pela literatura especializada, tais como o fato de ser realizado em turnos noturnos, o ritmo intenso etc. Trabalhos realizados em turnos noturnos causam impactos no bem-estar físico, mental e social dos trabalhadores, diminuem o desempenho das tarefas realizadas e expõem a maiores riscos de acidentes de trabalho e estressores ambientais (METZNER; FISCHER, 2001). O ritmo de trabalho intenso está ligado à produtividade e não à saúde ou segurança do trabalhador, assim como afirmam Figueiredo e Athayde (2005). Além disso, alguns aspectos psicossociais também são apontados em pesquisas sobre a categoria profissional em tela.

Em uma pesquisa de observação participativa realizada por Pena (2002), a saudade e a solidão são os sentimentos mais vivenciados nesse trabalho. Esse autor aponta como maiores dificuldades: isolamento pessoal, distância da família, ausência de convívio social externo, transporte marítimo até a plataforma precário e diferenças salariais. Nesse estudo, aponta-se, ainda, a presença da hierarquia e da diferença entre Petroleiros (Petrobrás) e contratados (serviços terceirizados). Desta forma, há um distanciamento entre aqueles que prestaram concurso público e aqueles que fazem parte de empresa privada, o que para o autor é mais um fator gerador de ansiedade e de mau convívio entre os trabalhadores no ambiente de trabalho.

Quanto ao lazer, os operadores têm em comum a prática de esportes, direito a no máximo dez minutos de ligação telefônica por dia e o fornecimento de apenas dois telefones para todos os funcionários. Durante a hora de lazer (não trabalho), eles têm que usar roupas que não os uniformes de trabalho para que se possa diferenciar quem está no turno (PENA, 2002).

O regime de confinamento impõe ao trabalhador a condição de permanecer restrito a um determinado espaço físico, exposto a barulhos e conversas constantes, o que faz com que não tenha hora de lazer enquanto embarcado (SOUZA, 1996).

Num ambiente de confinamento nem sempre atividades como o trabalho, lazer, alimentação, repouso e atendimento a saúde são fatores de relaxamento, visto que estão submetidos constantemente aos comandos da hierarquia no trabalho, às regras de convivência, entre outros.

O sofrimento no trabalho muitas vezes não é consciente, e, conforme o trabalhador vai tomando essa consciência vive sentimentos de revolta e uma maior busca de seus direitos (DEJOURS, 1992).  Assim, quanto menos conscientes os trabalhadores forem, mais conformados eles serão e menos sentido o trabalho terá para eles.

Muitas vezes, o trabalhador consegue mudar de função no trabalho antes do sofrimento se agravar, e mudança que pode ser utilizada como mecanismo de defesa, para diminuir o sofrimento. Então, quando falamos de saúde mental na área de trabalho é preciso levar em conta que o sujeito, que nasce em uma sociedade onde há uma super valorização do trabalho, que este muitas vezes entra precocemente neste mundo e, por fim, que o sujeito passa a se organizar a partir desta nova atividade, depositando as melhores horas de seu dia no trabalho (BORSOI, 2007).

Assim, o conceito de saúde/ doença no trabalho é um tema difícil de ser acessado, por geralmente não ser explícito. Porém, algumas medidas podem proporcionar melhores condições no trabalho, com pequenas mudanças. Dejours (1992) afirma que algumas mudanças paliativas têm um curto reconhecimento, pois quando o trabalhador se adapta a essa nova condição, percebe que seu problema vai além deste, não lhe proporcionando melhoria no contexto mais geral do trabalho.

 

MÉTODO

O trabalho foi realizado a partir da perspectiva sócio-histórica, ou seja, analisando experiências no trabalho vividas pelos entrevistados, levando em consideração que o sujeito é social, histórico e cultural (BOCK, 1997). Desta forma, procuramos considerar esses aspectos, não se esquecendo da história individual de cada sujeito estudado, ou seja, buscando integrar elementos sociais e individuais. Sendo assim, essa foi uma pesquisa qualitativa, desenvolvida a partir de alguns estudos de caso. Os efeitos da presença do pesquisador na situação de entrevista também foram considerados, já que partimos da crítica à neutralidade da ciência (BOCK, 1997). Entende-se, desse modo, que tanto o pesquisador quanto o entrevistado estão em transformação, refletindo, aprendendo e ressignificando o processo da pesquisa. Assim o estudo não é entre um sujeito e um objeto e sim entre sujeitos, sendo uma perspectiva dialógica. Então a contextualização do pesquisador também é importante e necessária para uma melhor análise qualitativa (BOCK, 1997).

Os participantes são trabalhadores de duas diferentes empresas. São três homens caracterizados como trabalhadores offshore, operadores de ROV há pelo menos seis meses, que foram indicados por outro trabalhador da área, este último sem nenhum vínculo com a empresa. As entrevistas foram realizadas em locais escolhidos pelos entrevistados, sendo colocada apenas a ressalva de que não fossem lugares privativos.

Realizou-se de uma a três entrevistas semi-dirigidas (MINAYO, 1993) com cada depoente, de acordo com a necessidade. Os sujeitos da pesquisa estão cientes do procedimento do estudo e consentiram em participar após terem assinado o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido por vontade própria. Este termo garante a integridade e o sigilo dos participantes, bem como a responsabilidade do pesquisador por qualquer dano que esta possa causar.  Os temas abordados foram: descrição do trabalho realizado por cada sujeito; descrição da trajetória até o atual trabalho; aspectos que possam expressar a vivência subjetiva no trabalho (suas impressões, sentimentos, vontades, entre outros). Os depoimentos foram gravados com consentimento dos depoentes e posteriormente transcritos.

O material transcrito das fitas foi devidamente organizado conforme categorias estabelecidas a partir do próprio material disponível. Foi feita a análise de conteúdo dos discursos em conformidade com essas mesmas categorias, sempre tendo em vista responder às perguntas da pesquisa. As falas dos sujeitos foram analisadas longitudinalmente, isto é, cada fala foi analisada integralmente, do ponto de vista estrutural e de conteúdo; e transversalmente, ou seja, foi considerada, nos vários discursos de diferentes sujeitos, a forma de ocorrência de cada tema ou categoria de análise (BARDIN, 1977).

 

RESULTADOS

As três empresas envolvidas desempenham, de um modo geral, a mesma atividade apresentada pelos entrevistados: inspeções e intervenções na exploração do petróleo no fundo do mar. Sendo assim, os pilotos de ROV participam de forma essencial para que as empresas desempenhem a atividade delegada pela Petrobrás.

Martim2 tem 25 anos, trabalha há três anos como piloto de ROV. Carvalho tem 31 anos, desempenhou a atividade de piloto por um ano, saiu do ramo de atividade, trabalhando de engenheiro. Após concluir a faculdade voltou para a área de piloto de ROV. Está há oito meses nessa outra empresa. Tobias tem 53 anos e ingressou no ramo offshore há 22 anos, iniciando como mergulhador e então aprendendo na prática, ingressou na área da robótica.

A profissão não é muito comum, nem divulgada, então geralmente os pilotos de ROV ingressam na área por indicação de algum conhecido que trabalha embarcado. Para desenvolver a atividade é necessário realizar um curso técnico profissionalizante, passar por um processo seletivo e realizar provas. A escassa mão-de-obra para área em geral, principalmente na robótica, normalmente faz com que haja uma rápida seleção dos trabalhadores. Esse processo acelerado não permite qualquer possibilidade de adaptação, de preparo físico e/ ou psíquico.

Os trabalhadores têm escala de quatorze dias trabalhando e quatorze dias de folga. Nos quatorze dias embarcados, trabalham em turnos de doze horas de trabalho e doze horas de descanso, sendo de meio-dia à meia-noite e de meia-noite ao meio-dia. Em cada turno trabalham quatro profissionais, geralmente dois pilotam e os outros dois fazem a manutenção.

Geralmente os "camarotes "(assim chamados o local em que dormem) são compostos por quatro camas (duas beliches), sendo que dois trabalhadores estão trabalhando e outros dois em horário de descanso. Os camarotes são providos de televisão com canais a cabo, e no navio há academia, sala de jogos e computadores.

A divisão dos trabalhadores nos turnos é feita pelo supervisor ou há um revezamento, sendo que, a cada embarque, o trabalhador fica em um turno, diferente do anterior. Eles preferem, em geral, trabalhar no turno diurno, ou seja, de meio-dia à meia-noite, por ser mais tranqüilo e apresentar menor impacto fisiológico. Isso quando não é necessária a extensão de turno, como afirmou Tobias, que chegou algumas vezes a trabalhar durante trinta horas seguidas. Quando isso ocorre, dificilmente o trabalhador consegue dormir tranquilamente, já que sai nervoso, tenso, em um ritmo mais acelerado. Carvalho aponta o "choque térmico" que os trabalhadores têm ao sair meia-noite para trabalhar na manutenção do ROV no deck do navio, por estarem dormindo, conseqüentemente com a temperatura do corpo mais alta.

A alimentação é oferecida a todos os trabalhadores a cada três horas, dentro das vinte e quatro horas, em alguns navios são disponibilizadas bolachas e café constantemente.

O lazer, para os entrevistados, restringe-se à utilização dos recursos do navio (academia de ginástica etc.) e à leitura de livros e revistas, ao ato de ouvir música e de conversar com outros trabalhadores nos intervalos em que isso pode ocorrer.

Tobias afirma que a segurança evoluiu muito, pois quando iniciou seu trabalho offshore, não havia equipamentos de proteção individual (EPI's). Nesse sentido, houve consenso entre os depoentes sobre a qualidade dos EPI's e a preocupação da empresa em relação a isto. Os EPI's são compostos por: capacete, luvas, botas, óculos e máscara quando necessária. É obrigatório o uso de tais equipamentos enquanto andam no deque do navio, mas muitas vezes não são utilizados enquanto pilotam o ROV, por atrapalhar a execução das atividades.

Apesar dos EPI's, os trabalhadores estão submetidos a riscos constantes, que tais equipamentos não evitam, sendo assim, Tobias evidencia a necessária negação subjetiva desses fatores para que o trabalhador consiga continuar efetuando sua atividade (como exemplo desses riscos, podemos mencionar, navios e plataformas que possam vir a afundar, objetos extremamente pesados que possam cair, intoxicação por vias respiratórias, entre outros).

Os conflitos interpessoais se dão principalmente pela pressão vivida no trabalho, com muitas exigências. Pressão essa que exige um trabalho sem erros na sua execução, sobretudo por ser uma empresa terceirizada, que tem que cumprir prazos exigidos e realizar o trabalho com perfeição.

A definição acerca dos procedimentos é feita pelos superiores e revela o grande distanciamento entre o trabalho prescrito e o trabalho real, já que os operadores têm que "refazer" as regras para conseguir realizar suas atividades. Sendo assim, as relações no trabalho geralmente são "extremamente profissionais", principalmente por haver dificuldade em relacionar-se com os colegas fora do ambiente de trabalho e de estabelecer relações de amizade entre eles.

Além da dificuldade de se encontrarem fora desse ambiente, as pessoas que embarcam são as mesmas sempre, havendo poucas variações de trabalhadores, ou seja, além do confinamento que o trabalho exige, há um convívio continuado com as mesmas pessoas durante o período de trabalho.  Essa falta de contato com a diversidade faz com que o ambiente de trabalho se afaste ainda mais da realidade onshore (palavra utilizada em contraposição ao trabalho embarcado, que pode ser entendida como "trabalho em terra") caracterizando de forma marcante o trabalho.

A dificuldade em relacionar-se com os colegas de trabalho também está relacionada à necessidade premente de evitar conflitos, já que a convivência é muito intensa e constante. Assim, quando está presente o conflito entre dois trabalhadores, eles procuram não entrar em contato um com o outro, tornando o trabalho mais isolado ainda.

Muitos trabalhadores mostram preocupação constante com a família enquanto embarcados. Essa tentativa de controle intensa se acentuou com o avanço tecnológico, atualmente é possível se comunicar com a família através do telefone e internet. O trabalhador offshore tem necessidade de ligar a todo o momento para casa, porém, as pessoas próximas acabam se sentindo incomodadas com tantas ligações. Esse incômodo ocorre principalmente pelo esvaziamento de conteúdo nas conversas O esvaziamento das conversas parece ser reflexo da redução das experiências vivenciada pelo trabalhador offshore, que está por quatorze dias limitado a um espaço físico e a relações formais.

A comunicação aparece em diversos momentos da fala dos entrevistados. Fica evidente então, a necessidade e importância de se comunicar com as pessoas próximas, principalmente com a família. Apesar da liberdade que há no sentido de ser permitido efetuar ligações sem muitas restrições, os entrevistados se queixam da falta de privacidade que se tem no navio ao falar ao telefone. Pode-se afirmar também que há limite do que é possível dizer nas ligações, fazendo com que as conversas com os familiares fiquem ainda mais esvaziadas.

O sentimento constantemente presente nos trabalhadores offshore é a ansiedade, que se reflete em como lidam com as pessoas próximas principalmente os familiares. Essa tensão afeta ainda mais esses relacionamentos já fragilizados devido ao distanciamento do trabalhador por quatorze dias. A perda de eventos sociais importantes, como feriados, aniversários, entre outros, faz com que esse distanciamento fique ainda maior e a sensação de não-pertencimento muito presente.

Assim como os eventos sociais e familiares, os finais de semana também são de extrema importância para o trabalhador, por serem momentos compartilhados socialmente, espaços em que procuram relações de troca. O trabalhador offshore geralmente tem dois finais de semana desembarcados para aproveitar, tanto com a família quanto com os amigos.

No trabalho, a experiência de viverem sofrimentos da mesma natureza constrói identificação entre os trabalhadores, identificação que parece oferecer algum suporte para eles. Quando o trabalhador sai desse contexto e lida com pessoas que não se encontram na mesma situação, sentem-se ainda mais abalados com as situações de trabalho.

Durante a semana em que está desembarcado, o horário de trabalho socialmente compartilhado inclusive pela esposa, amigos e vizinhos faz com que o trabalhador sinta-se mais uma vez isolado nesse período. Assim, além do trabalhador se sentir isolado no trabalho, ainda sente-se isolado em casa por nesse período não ter com quem estar.

Em diferentes momentos, o trabalho realizado é comparado ao trabalho onshore. Essa comparação é feita no sentido de que apesar do trabalho em terra ter as dificuldades de rotina (trânsito, conduções lotadas, etc.) ainda assim é válido pensando que estariam com a família todos os dias.

A experiência do tempo para os entrevistados é de extrema importância, sendo compreendida de uma forma diferente do que é compartilhado socialmente. Os entrevistados se referem à escala como "quinze por quinze", mesmo que isso não corresponda à realidade. Dessa forma, pode-se dizer que há dois dias que existem apenas na fala, já que o décimo quinto dia na realidade não é vivido. Em alguns momentos, é possível afirmar que, quando desembarcados há uma espera desse décimo quinto dia que não existe, pela expectativa de querer continuar desembarcado. Quando estão embarcados parecem vivenciar quinze dias e não quatorze, já que a vontade de desembarcar é grande e o tempo parecer passar devagar,

[...] [desembarcado] passa rápido demais. Passa rápido demais esses dias, quando vê já tem que embarcar de novo. [...] [no navio] Parece uma eternidade, toda hora você olha no relógio, toda hora você olha no relógio [...]. Agora se você estiver preocupado a hora não passa. É a ansiedade da galera, realmente é da cabeça. E a hora demora, esses quinze dias, quinze dias lá, quinze dias que a hora não passa. É complicado (Carvalho).

O trabalho visivelmente é vivido como "perda de tempo" que deve ser "recuperado", havendo uma enorme dificuldade em conseguirem organizar seu tempo quando desembarcado. Dessa forma, o desembarque se torna uma tentativa constante de reparação da ausência de quatorze dias, para com todas as pessoas próximas e principalmente consigo mesmo.

A ansiedade e a preocupação estiveram presentes em diversos momentos na fala dos entrevistados isso está relacionado ao fato da atividade desenvolvida estar intrínseca ao confinamento, sendo este vivido como aprisionamento, por limitar a liberdade dos trabalhadores em um espaço físico. No momento do ócio é que a ansiedade é mais vivenciada, como já afirmado anteriormente, enquanto a atividade está sendo desenvolvida, muitas vezes, o trabalhador se aliena do contexto em que está inserido. Os dispositivos citados como lazer para os entrevistados são elementos que apenas ajudam a diminuir o sofrimento do trabalhador no horário da folga.

Dessa maneira, há uma tentativa de controle intensa de amenizar o sentimento de tristeza e ansiedade, se tornando muitas vezes uma válvula de escape que pode prejudicar a saúde do trabalhador. A ansiedade constante está principalmente ligada à expectativa dos trabalhadores em desembarcarem.

O tema felicidade é o que parece não fazer parte do trabalho, apenas no momento de folga: "Feliz é na hora de ir embora. Momento feliz numa plataforma é na hora de ir embora. Você pode até ter momentos divertidos, mas felizes, é a hora que você está vindo embora" (Tobias).

A ansiedade do trabalho e do contexto se expande aos dias desembarcados, mostrando como o trabalho impacta o sujeito de forma a abranger outros aspectos da vida.

Todos os aspectos abordados até então mostram a complexidade do trabalho e o impacto causado nos trabalhadores. Ao serem questionados sobre o que os mantêm nessa mesma atividade, há um consenso que a atividade em si é interessante, mas não suficiente, e entre eles o principal é a remuneração, mas outros itens são considerados positivos no trabalho.

Há uma extrema dificuldade de planejamento do futuro principalmente por saberem que não conseguirão uma atividade com a mesma remuneração em terra. Tobias afirma que atualmente pretende completar os anos que faltam para sua aposentadoria. Martim diz não saber o que pretende fazer e Carvalho definitivamente diz não querer mais trabalhar em tal área principalmente por ter formação de engenheiro.

Em suma, o trabalho offshore está em ascendência na atual economia do país, sendo necessárias pesquisas das condições de trabalho em que é realizado para que assim haja a possibilidade de reivindicação de melhorias no trabalho. Mais do que isso, esses depoimentos evidenciam uma questão atual, vivida, de certo modo, por outros tantos trabalhadores de tantas outras categorias profissionais: o confinamento, o trabalho vivido como isolamento, ilustrando o sentimento de não pertencimento ao mundo.

 

REFERÊNCIAS

BARDIN, L. Análise de Conteúdo. Edições 70: Lisboa, 1977.

BOCK, A.M.B. Formação do psicólogo: um debate a partir do significado do fenômeno psicológico. Psicologia: ciência e profissão. V. 17. n. 2. Brasília, 1997.

BORSOI, I.C.F. Da relação entre trabalho e saúde à relação entre trabalho e saúde mental. Psicologia e Sociedade. V. 19. n. Porto Alegre, 2007.

CASTRO, A.C. NUNES, D.K.P. Análise Crítica do Gerenciamento de Stress em Plataformas Marítimas. Anais do XXVIII Encontro Nacional de Engenharia de Produção.  Rio de Janeiro, 2008.

DEJOURS, C. A Loucura do Trabalho. Estudo de Psicopatologia Do Trabalho. São Paulo: Ed. Cortez, 1992. 5ª Edição.

DUTRA, L.E.D. O petróleo no início do século XX: alguns elementos históricos. Revista Brasileira de Energia. vol. 4. n. 1. São Paulo, 1995.

FIGUEIREDO, M.G. ATHAYDE, M.R.C. Organização do trabalho, subjetividade e confiabilidade na atividade de mergulho profundo. Revista Produção. V.15, n.2, 2005

METZNER, R.J. FISCHER, F.M. Fadiga e Capacidade para o Trabalho em Turnos Fixos de Doze Horas. Revista de Saúde Pública. V. 35. n.6. São Paulo, 2001

MINAYO, M.C.S., O Desafio do Conhecimento: Pesquisa Qualitativa em Saúde, SP/RJ. Hucitec/Abrasco, 1993.

PENA, A. Relato de pesquisa: a influência do contexto ambiental nos trabalhadores off-shore de uma plataforma petrolífera. Psicologia: Ciência e Profissão. V.22. n. 1. Brasília, 2002.

SILVA JUNIOR, D.I. FERREIRA, M.C. Escala para avaliação de estressores ambientais no contexto offshore (EACOS). Avaliação Psicológica. V. 6. n. 2. Porto Alegre, 2007.

SOUZA, A.A. Perfil do homem offshore: aspectos relevantes nas relações no trabalho e familiares. Cadernos de Pesquisas em Administração. V. 1. n. 3. São Paulo, 1996.

 

 

1 Offshore: trabalhadores que executam atividade em alto-mar; embarcados.
2 Os nomes dos entrevistados foram alterados para manter o sigilo dos trabalhadores.